Gênero e Universidade no Brasil: acesso ao ensino superior e condição feminina no meio universitário

June 6, 2017 | Autor: C. Pereira de Sousa | Categoria: Gender and education
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7. Gênero e Universidade no Brasil: acesso ao ensino superior e condição feminina no meio universitário Cynthia Pereira de Sousa

1. Introdução

A

história do acesso das mulheres ao ensino superior se iniciou em 1880, com a matrícula de Rita Lobato Velho Lopes (1867‑1960?), na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Problemas familiares obrigaram-na a se transferir para Salvador, onde seu pai matriculou-a no 2º ano da Faculdade de Medicina da Bahia, em 1881, onde terminou seu curso em 10 de dezembro de 1887, com a seguinte observação: “primeira mulher diplomada em Medicina no Brasil, 1887”. Durante a Primeira República (1889-1930), o acesso da mulher aos cursos superiores foi limitado por duas razões principais: tímida .

Este texto é parte de uma investigação mais ampla, já finalizada, que contou com Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

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Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (SP-Brasil).

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Outras mulheres seguiram o exemplo de Rita Lobato, mas, ao que tudo indica, só ela conseguiu ir até o final do curso. Há a história de uma delas, entretanto, que é digna de registro. Trata-se da Drª Maria Augusta Generoso Estrela, formada em 1878 no “New York Medical College”, nos EUA, onde foi bolsista e a quem foi atribuído o título de primeira médica brasileira. Depois que regressou de Nova York, não conseguiu a revalidação do seu diploma junto à Congregação da Faculdade de Medicina, ficando impedida de clinicar em terras brasileiras. Em 1878, o ensino superior e, por conseqüência, as Faculdades de Medicina ainda não tinham aberto suas portas às matrículas femininas. Cf. em M.R.S. Paula (1991).

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participação das jovens no curso secundário (ginásio), o único curso que conduzia ao ensino superior, e impossibilidade de continuar os estudos com o diploma do Curso Normal, que formava um grande contingente de mulheres, mas não permitia matrícula nas faculdades. Isto só começaria a mudar a partir dos anos 30. Na década de 30, rompeu-se com a limitação do acesso ao ensino superior pela via do ensino secundário ginasial dado em escolas oficiais, tanto por meio da equiparação dos diplomas de colégios particulares aos dos colégios públicos, instaurando avanços na questão da articulação entre ensino médio e ensino superior, como por franquear cursos, principalmente das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, aos portadores de diplomas de normalistas, mulheres em sua grande maioria Tal fato significou uma abertura significativa à continuidade da formação feminina. Basta que indiquemos que, em 1959, as matrículas no 2º ciclo do Ensino Normal no Brasil assim estavam distribuídas: 57.229 mulheres (95,8%) e 2.496 homens (4,2%) (Werebe, 1968:128). Assim, as análises sobre a história do fenômeno da feminização de certas áreas do magistério secundário têm que se deter também nessa questão. Com as possibilidades abertas de formação para o magistério secundário, as Faculdades de Filosofia tornar-se-iam redutos femininos. Os cursos de filosofia, ciências e letras, que compunham estas faculdades, continuaram a se expandir, integrados a universidades ou como institutos isolados. Para efeito de comparação, em 1964, das 6.890 mulheres que obtiveram diplomas em cursos superiores, mais da metade, ou seja, 3.699 tinham freqüentado alguma Faculdade de Filosofia (Saffioti, 1969:243).

2. Dilemas e problemas para se chegar ao ensino superior (dos anos 50 aos anos 80) Entre 1955 e 1970 houve crescente expansão do ensino superior e o fato de metade da população ser de mulheres “potencialmente interessadas em ingressar” naquele nível de ensino colocava a questão de se saber até que ponto estas circunstâncias estariam permitindo a “maior abertura das oportunidades de acesso para os elementos do sexo feminino” (Barroso e Mello, 1975:47). De acordo com os dados referentes às conclusões no 2º ciclo, o chamado “Colegial” (entre o ginásio e o ensino superior) e o ensino Normal, o antigo curso de formação de professores para as escolas primárias, observa-se

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expansão de matrículas e forte presença feminina no Curso Normal, mantendo tendência verificada em décadas anteriores. A distribuição percentual de moças e rapazes mostra que mais da metade deles se diplomou no Curso Colegial e uma pequena porcentagem (entre 7% e 8%) concluiu o Curso Normal. O inverso aconteceu com as moças, cujas conclusões no Curso Colegial ficaram abaixo dos 25% e, no Curso Normal, mantiveram as mesmas porcentagens entre 1955 e 1970 (63%) (Barroso e Mello, 1975:49). A forte presença feminina nos cursos de formação de professoras primárias leva a algumas considerações: a possibilidade de continuação dos estudos após o ginásio e a profissionalização ao final do ensino médio, em uma atividade “autorizada” e reforçada socialmente como “adequada” ao universo feminino. Todavia, do modo como o ensino superior estava estruturado, a aguda concorrência existente nos vestibulares para as chamadas “carreiras nobres”, para as quais o Curso Colegial estava voltado deixava as normalistas em situação desvantajosa na luta por uma dessas vagas no ensino superior e, com mais condições de serem aprovadas nos cursos que compõem a área de ciências humanas e letras, o que, evidentemente, restringiu o leque de opções oferecidas. Em contrapartida, os rapazes estariam mais aptos a concorrer nas áreas de exatas e biológicas, situação que colocaria por terra a propalada “eqüidade de oportunidades” de acesso ao ensino superior, entre os sexos (Barroso e Mello, 1975:53-54). Quadro nº 1: Porcentagens de matrículas femininas no ensino superior, 1966 e 1971 Cursos

Início de 1966

Início de 1971

Engenharia

2%

3%

Cs. Econômicas e Administração de Empresas

11%

15%

Direito

21%

25%

Odontologia

29%

35%

Medicina

16%

24%

Física, Química, Matemática e Biologia

42%

49%

Letras, Ciências Humanas e Filosofia

73%

77%

Serviço Social

90%

95%

Enfermagem

95%

94%

Fonte: Cadernos de Pesquisa, nº 15, 1975, PAG. 51. Cynthia Pereira de Sousa

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Nos anos 60 e 70, para muitas moças e rapazes, chegar ao ensino superior significava, àquela altura, vencer e ultrapassar uma série de barreiras e desafios, aí compreendidos os “mecanismos de seleção”, que não eram apenas de ordem econômica, mas de natureza psicológica e social. Houve aumento da concentração de mulheres em carreiras tidas como femininas e a escolha vocacional de vestibulandas e matriculadas evidenciava estar atravessada pelos estereótipos de gênero, não sendo, pois, apenas uma questão derivada da seleção econômica. Na concorrência às vagas do exame vestibular, quando se tratou de fracasso e de sucesso, a pesquisa de Barroso e Mello mostrou que o desempenho feminino era, no geral, inferior ao dos homens, o que também se podia observar em outros países. É sempre importante recorrer aos estudos acerca da socialização feminina, que analisam meios e modos pelos quais as mulheres são ensinadas, desde cedo, “a obedecer e a não competir com os homens”, mantendo-se dentro dos seus limites para “merecer” ser amada, modelos que são passados pela família e reforçados pela sociedade. Barroso e Mello (1975:73-75) mencionam vários estudos daquela época, principalmente norte-americanos, que assinalavam que tais comportamentos podiam ser traduzidos como “motivo para evitar o sucesso”, “ambivalência diante da realidade profissional”, “conflito entre ser competente (trabalhar fora e ter sucesso) e ser amada”; a incompatibilidade entre o sucesso profissional e uma vida amorosa e familiar estável, todos influindo na auto-avaliação, que seria orientada pelas avaliações dos outros, e na direção de um reforço dos estereótipos. Tudo isso não se deveria apenas ao que poderíamos chamar de uma “avaliação equivocada” das mulheres sobre si mesmas. O modo como a sociedade ainda reproduz e reforça certos preconceitos de gênero ajuda muito a manter as mulheres nesta armadilha: de que o sucesso delas depende mais de sorte e de esforço do que de competência; de que certas atividades são mais bem avaliadas quando feitas por homens, e assim por diante. Em relação aos anos 80, há vários estudos que podem dar indicações das tendências, mas são estudos isolados, sobre esta ou aquela especialidade, sobre esta ou aquela instituição de ensino superior, e que apresentam dados distintivos entre homens e mulheres. No caso dos principais órgãos federais de coleta de dados, como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), na década de 80, o próprio Ministério de Educação e Cultura (MEC) não observou a desagregação por sexo

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nas informações coletadas sobre ensino superior, apesar das reiteradas recomendações de organismos internacionais, tais como UNESCO, UNICEF, OECD. Por conta da não inclusão da variável sexo, seja em relação ao alunado, seja em relação ao corpo docente, ficou difícil estabelecer quais eram os parâmetros sob os quais as mulheres (e também os homens) se situavam, àquela época, no mundo universitário em todo o país. O MEC só voltaria a incorporar e processar as informações sobre as mulheres, na década de 90, não apenas no ensino superior, mas operando a desagregação por sexo em instrumentos de medida e avaliação de desempenho de outros cursos (Rosemberg, 2001:519-520). Percorrendo-se a década de 90 até os anos iniciais do século XXI, quais as mudanças e permanências em relação à condição feminina, relativamente ao acesso e participação no universo acadêmico?

3. A “ciência no feminino” Pensar a mulher no ensino superior significa, também, considerála como produtora de conhecimento. A tentativa de traçar um quadro mais compreensivo da participação feminina no desenvolvimento científico brasileiro mostra que, ao lado de inegáveis progressos, há ainda uma série de barreiras não eliminadas, que insistem em permanecer, e são devidas a fatores variados. Ainda na década de 70, a já mencionada Carmen Barroso examinou a pequena participação das mulheres no desenvolvimento científico, resultado de uma falta de aproveitamento de “talentos potencialmente existentes” e de limites à extensão da “igualdade de oportunidades”. Para ela, podia não existir, àquela altura, “discriminação direta e ostensiva” contra a mulher, mas, “o fato de ser reduzida sua participação é indicador claro da existência de obstáculos poderosos a seu ingresso e desenvolvimento na carreira científica”(1975:613). Prova disto são alguns dados por ela apresentados, que mostram que a mulher era minoria em quase todos os ramos da ciência: “3% dos geólogos, 11% dos químicos, 26% dos físicos, 24% dos astrônomos, 37% dos naturalistas”, de acordo com categorias indicadas no Censo .

A expressão “ciência no feminino” foi tomada de empréstimo de Fanny Tabak, que a utiliza como subtítulo do seu livro O Laboratório de Pandora, publicado em 2002.

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de 1970. Analisando a presença feminina na própria SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) constatou que as mulheres também eram minoria nas “posições de destaque e importância”, qual seja, mesas-redondas, conferências, etc. Entretanto, como ela afirma, “antigamente era pior”, quando apenas 5% dos participantes de simpósios, 14% dos autores de comunicações e 5% dos que tiveram textos publicados eram mulheres, em 1949, na 1ª reunião da recémcriada entidade. No âmbito do ensino superior, os dados coletados nos boletins do MEC para o ano de 1972 referentes a São Paulo cruzam a presença da mulher em cursos, com regimes de trabalho e nível de qualificação. Apesar das variações que se encontram entre as diversas áreas do conhecimento e, em cada uma delas, diferenças no interior de cada especialização, “chega a surpreender a regularidade com que se comprova que, quanto mais alto o posto na hierarquia, menor a proporção de mulheres entre os que o ocupam”. Também é verdade que, nas escolas consideradas como de maior prestígio, o número de mulheres era menor. Era assim em 1975 e continua a sê-lo no novo milênio, embora sua participação venha aumentando, como veremos mais à frente. Para Barroso, a situação era similar a outros países na mesma época, de acordo com números referentes aos Estados Unidos, Inglaterra, França, a então União Soviética e a Polônia. Com análises e conclusões que seguem na mesma direção, Lucía Tosi, então pesquisadora da Universidade Pierre e Marie Curie (Paris), por meio de dados comparativos de outros países, acentua as variáveis que compõem o “condicionamento social das mulheres na escolha das profissões” e as “pressões e discriminações da parte da comunidade universitária em estágios mais avançados” da carreira acadêmica. Quando as mulheres escolhem carreiras ditas “masculinas”, isto pode significar que “sua vocação é suficientemente forte para suplantar, tanto seu condicionamento social, quanto sua falta de encorajamento” (Tosi, 1981:173). Bastante ilustrativo e pouco explorado foi o assunto analisado por M. Julieta Ormastroni, que procedeu a um levantamento da presença de meninas e moças no concurso “Cientistas de Amanhã”, àquela altura (1988) completando 30 anos. A autora, então diretora executiva do IBECC (Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura), instituição cuja finalidade era a “melhoria do ensino de ciências”, aponta a fraca participação de jovens do sexo feminino nesse concurso, que sempre contou com uma presença majoritariamente masculina de inscritos e vencedores de prêmios. Para todo esse

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período de 30 anos, os resultados indicaram que apenas 18,6% de jovens mulheres participaram e venceram em alguma categoria, de um total de 172 prêmios concedidos. Das premiadas, 40% seguiram o curso de medicina e, as outras, psicologia, biologia e engenharia, o que demonstra a continuidade dos estudos nas áreas de exatas e biológicas, de modo preponderante (1988:1.124). Na década de 90 iria ocorrer um crecimento gradual da presença feminina no concurso. A partir do ano 2000, as notícias veiculadas nos jornais impressos e nas suas versões online enfatizam o “brilho” das mulheres na premiação e, na edição de 2005, o fato bastante expressivo da exclusiva presença feminina nas três categorias de premiação. Uma outra questão significativa diz respeito à participação da mulher nas agências financiadoras de pesquisa. A partir de dados obtidos junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e ao Sistema em Linha de Acompanhamento de Projetos (Selap/ CNPq), um grupo de pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (Azevedo, 1989) organizou e analisou um conjunto de tabelas que apresentam números bastante ilustrativos da presença feminina nesses órgãos, seja enquanto consultoras ou membros de comitês de assessoria, seja como detentoras de bolsas para desenvolvimento de projetos de pesquisa. O estudo ainda aponta para um conjunto de dados sobre a produção científica, entre 1976 e 1985, onde a variável sexo permite comparar homens e mulheres. Em relação a periódicos científicos nacionais, o grupo percorreu um conjunto de 14 títulos, deles extraindo a proporção de mulheres autoras de artigos aí publicados. Relativo ao ano de 1988 e dentro do Departamento de Desenvolvimento Científico da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), de um total de 801 cientistas registrados como consultores nas oito grandes áreas de conhecimento, de acordo com a classificação do CNPq a que já aludimos, as mulheres eram 138, representando 17,2% .

Em 2003, as jovens ficaram com os dois prêmios nas categorias graduados e estudantes, entre 345 trabalhos inscritos. Dos nove finalistas nas três categorias, sete eram mulheres. Em 2005 houve 129 inscritos na categoria Graduados (menos de 40 anos); 52 na categoria estudante de Ensino Superior (menos de 30 anos); 1.196 na categoria estudante de Ensino Médio (até 25 anos).

.

Desse grupo faziam parte uma professora titular, uma médica do Laboratório de Genética Médica, duas técnicas em assuntos educacionais e dois assistentes em administração, todos pertencentes à UFBA.

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do total. A maior concentração de consultoras estava na área de Ciências Humanas (39 de um total de 88 = 44,3%), seguida pela área de Ciências Biológicas (51 de um total de 221 = 23, 1%). Nas áreas de Ciências Agrárias, Engenharias, Lingüística, Letras e Artes não havia consultoras registradas. Desmembrando-se as oito grandes áreas, é possível verificar em que especialidades elas comparecem como consultoras desse mesmo órgão, na denominada área tecnológica da Finep. “Produção animal” era o setor que abrigava o maior número de consultores: 467, sendo que 40 eram mulheres (8,6% do total). Entretanto, as maiores porcentagens de participação estavam, pela ordem, nas seguintes categorias: atenção ao menor (86,7%); educação (64,7%); saúde coletiva (33,7%); desenvolvimento regional (33,3%); agricultura (28,6%). Nenhum registro se observa em biotecnologia agrícola, saneamento, irrigação e drenagem. Do conjunto das informações, de 1.133 consultores, apenas 206 eram mulheres, ou seja, 18,2% do total. O que é curioso é que, quanto ao nível de qualificação, a porcentagem de consultoras com título de “doutor” é superior ao dos homens consultores, ou seja, 63% contra 56,8%; com o título de “mestre”, as porcentagens de equilibram (28,4% contra 29,5%). Como pesquisadoras que receberam recursos financeiros da Finep, entre janeiro de 1987 e março de 1988, elas representaram apenas 28% do total de bolsas concedidas, em torno de 1/3. Em relação ao CNPq aparecem mais alguns dados, embora o lugar ocupado pelas pesquisadoras não se modifique. Aqui, a maior proporção de mulheres que constituem os comitês assessores situase na área de Ciências Humanas (11 de um total de 22 = 50%); em seguida, na área de Ciências Sociais Aplicadas (3 de um total de 7 = 42,8%) e na área de Ciências da Saúde (3 de um total de 13 = 23%). Na área de Engenharias, apenas 1 de um total de 33 (=3,3%) e nas Ciências Exatas e da Terra 2 de um total de 39 (= 5,1%). Como bolsistas do CNPq, os dados referentes a 1988 distinguem a área de conhecimento e o nível das bolsas (de IA a IIIC). Assim, as maiores porcentagens situam-se nas áreas de Ciências Humanas (324 mulheres de um total de 582 bolsas = 55,7%); Lingüística, Letras e Artes (139 mulheres de um total de 270 bolsas = 51,1%); Ciências Biológicas (369 mulheres de um total de 855 = 43,1%). Nas Ciências Exatas e da Terra elas são 16,3% e nas Engenharias elas são 16,9%. A distribuição pelos níveis de bolsa de pesquisa mostra que, na área de Ciências Humanas, a maior proporção de bolsas concedidas a pesquisadoras concentra-se no nível mais baixo, ou seja , o IIIC (76,5%) variando

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até 30,9% para o nível IA. Na área de Ciências Sociais Aplicadas, a maior porcentagem está no nível IIIB (52,9%) com variação até 5,9 %, no nível IB e 22,2% no nível IA. Na área de Ciências Biológicas concentram-se no nível IIIB (77,3%) variando até 21,8% (nível IA). A área de Lingüística, Letras e Artes atinge porcentagens significativas em todos os níveis de bolsa: a variação vai de 30,5% (IC) a 71,1% (IIIA). De qualquer modo, as porcentagens levantadas indicam que, mesmo nas áreas de expressiva presença feminina, a maior concentração de bolsas a pesquisadoras situa-se nos níveis mais baixos (IIIA, IIIB, IIIC). O levantamento da produção científica entre 1976 e 1985 aponta que 1/3 dela era de autoria de mulheres que publicaram artigos em revistas nacionais (31,5%); em revistas internacionais (27,5%); teses (31,5%); trabalhos em congressos (32%); livros (30%). Em relação a 14 títulos de periódicos nacionais, foram localizados 125 artigos e de um total de 236 autores, 99 eram mulheres. Elas estavam bem representadas (em 1987 e 1988) na Revista da Escola de Enfermagem da USP (88,8%); Ciência da Informação (83,3% do total); Arte (66,6%); Educação e Sociedade (68,7%); Universitas Ciências (58,3%); Cadernos de Pesquisa (57,1%). As conclusões dos autores dessa pesquisa não deixam dúvidas acerca dos dados apresentados: a de que a participação feminina “representa aproximadamente um terço da força produtora do conhecimento científico no país”, no período analisado. Para situar melhor sua participação em cada área do conhecimento, seja como pesquisadoras, seja como consultoras, seja como bolsistas foram estabelecidas três grandes categorias: presença incipiente (Ciências Exatas e da Terra; Engenharias e Ciências Agrárias); presença intermediária (Ciências Sociais e da Saúde) e presença efetiva (Ciências Humanas, Biológicas, Lingüística, Letras e Artes). Seja como parte do alunado, seja como parte do corpo docente das universidades, as estatísticas mais recentes apontam, ainda, um outro lado da questão que aqui focalizamos: um aumento substantivo do ingresso de mulheres no ensino superior, nos cursos de graduação e de pós-graduação. Isto vai se refletir, obviamente, em maior demanda e em um crescimento do número de bolsas de pesquisa destinadas ao sexo feminino. Todavia, como fica evidenciado na tabela abaixo, há .

O grupo escolheu 14 periódicos e selecionou um número de cada um dos títulos levantados.

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diferenças de acordo com a modalidade de bolsa recebida. Tomandose a distribuição da bolsa de Iniciação Científica, pasasando pela bolsa de mestrado, doutorado, recém-doutor, até chegar às bolsas de Produtividade em Pesquisa há um decréscimo acentuado da porcentagem de mulheres que recebem bolsas. Em outras palavras, quanto mais alto o nível da bolsa (produtividade em pesquisa), mais diminui a proporção de mulheres bolsistas. Quadro nº 2: Distribuição de bolsas do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), segundo a modalidade e sexo do contemplado, em 2001 e 2002 Modalidade de bolsa

Feminino Masculino Total de bolsas % Feminino

Iniciação Científica 2001

7911,5

6506,2

14417,7

54,87

2002

7737,0

6303,8

14040,8

55,10

Mestrado 2001

2950,4

2842,8

5793,2

50,93

2002

2956,8

2635,9

5592,7

52,87

2001

2836,9

3000,3

5837,2

48,60

2002

2774,7

2960,1

5734,8

48,38

2001

140,8

154,1

294,9

47,74

2002

187,2

189,2

376,4

49,73

2001

2467,1

5204,2

7661,3

32,07

2002

2503,4

5259,8

7763,2

32,25

Doutorado

Recém-Doutor

Produtividade em Pesquisa

Fonte: Leta, 2003, p. 277.

4. Relações de gênero na Academia Shirley Schreier, professora de bioquímica e segunda mulher a fazer o concurso de titular do Instituto de Química da USP, apresentou um pequeno estudo sobre as mulheres na Universidade de São Paulo, em evento ocorrido em Singapura e publicado em 1991. Este trabalho foi parte da matéria publicada em uma edição do Jornal da USP no 162

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mesmo ano (Hissa, 1991), apontando que a participação feminina no corpo docente da USP tinha “crescido 104% nos últimos 13 anos, enquanto a dos homens apenas 27,6%”. Relativamente à qualificação, também tinha havido crescimento: “288% contra 73%”, além de uma presença maior nos chamados guetos profissionais masculinos. Segundo a própria Schreier, uma das entrevistadas pela repórter, “não cheguei a fazer uma análise profunda ou sociológica dessas mulheres, mas acredito que refletem as mudanças que vêm ocorrendo na sociedade. A mulher tem conseguido abrir e ocupar espaço”. Entretanto, a professora Sarah Chuchid Da Viá, ex‑vice‑diretora da Escola de Comunicação e Artes (ECA) tem uma explicação um pouco diversa acerca dessa “conquista de espaço” por acadêmicas mais tituladas. “Primeiro, a crise econômica da última década [anos 80] empurrou mais mulheres para o mercado de trabalho, em todas as áreas. Hoje, o homem precisa do salário da esposa para complementar o orçamento familiar. Segundo, como o trabalho de pesquisa e ensino vem sendo muito mal remunerado (cada vez mais) e também perdendo prestígio, os homens estão caindo fora e as mulheres ocupando seu lugar”. Para Schreier, todavia, há outras provas dessas conquistas em um setor vital da carreira acadêmica. As publicações do corpo docente do Instituto de Química revelam que as mulheres autoras estão no mesmo patamar ou, ainda, superam os homens em número de artigos publicados (produção anual de professores‑adjuntos homens = 2,34; professoras = 2,38), embora se esteja ainda abaixo do nível de outros países. “Nós produzimos bem menos artigos científicos do que a América do Norte ‑ os homens criam em média 8 trabalhos por ano e as mulheres 3 - , o que demonstra que nosso principal problema é trabalhar em um país do Terceiro Mundo e não [o fato de] ser mulher”. Mas, apesar das conquistas, as mulheres continuam tendo dificuldades de ajustar vida acadêmica e família, o que as impede, muitas vezes, de prosseguir na carreira, obtendo títulos mais elevados. Mas não se pode esquecer que a mulher, muitas vezes, contribui para essa situação, assumindo algumas posturas que acabam por dificultar ou impedir que ocupe lugares de maior prestígio e destaque e exerça poder. “Como a chefia é uma coisa recente na sua história, ela ainda não incorporou essa prática à sua psicologia. Ao contrário dos homens, tem dificuldades para lidar com os próprios funcionáCynthia Pereira de Sousa

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rios. Ou seja, com a função de dar ordens, chamar atenção, punir, despedir”. Ela mesma revela que teve que brigar e berrar muito para chegar onde chegou. “Como a gente tem de brigar por respeito, acaba ficando um pouco insegura e, eventualmente, exagera”. Um outro elemento importante no desenvolvimento de sua carreira é o fato de não ter filhos e ser divorciada, o que lhe permite dedicação integral ao trabalho. Em alguns dos textos lidos sobre o tema da mulher no ensino superior, a mulher que faz carreira acadêmica e decide não ser mãe é vista por algumas como “meia mulher”. Este é também o caso de algumas professoras da Faculdade de Medicina em São Paulo, que galgaram postos de destaque. Todavia, a maternidade não impediu a professora Maria Irma Seixas Duarte a chegar aonde nenhuma mulher havia chegado antes – tornou-se a primeira titular dessa tradicional faculdade, em 1997, ou seja, 96 anos depois de sua criação, passando a compor “o seleto grupo de 45 professores titulares”, todos homens evidentemente (Vieira e Michelotti, 1997) e em uma área pouco feminizada, a de Anatomia Patológica. Segundo dados do Conselho Federal de Medicina e FIOCRUZ (1995) havia 67% de médicos homens para 33% de médicas; destas, cerca de 30% apontaram quais eram os obstáculos ao seu exercício profissional: “discriminação dos pacientes; promoções negadas por ser mulher; o fato de ter de estar disponível 24 horas todos os dias da semana; longo período de estudo e atualização constante, não conseguindo conciliar com a família”. Nessa verdadeira “corrida de obstáculos”, uma outra vencedora merece destaque, além do fato de ter concorrido com nomes de professores de muito prestígio na área jurídica: Dalmo Dallari e Fábio Comparato. Em 1998, a professora Ivete Senise, casada e com quatro filhas, tomou posse como a primeira diretora da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, rompendo “uma tradição de 170 anos em que a escola foi sempre administrada por homens” (Mengel, 1998). O que dizem os dados mais recentes acerca da população docente na USP? Mostram a predominância do sexo masculino. Em 1999, o total de professores homens era de 3.164 e o de docentes mulheres 1.516 (47,9%) ou seja, menos da metade do corpo docente da USP era constituído por mulheres, apresentando variações mais extremas dependendo da Faculdade ou Instituto. Os dados de 2004 indicam 3.349 professores e 1.729 mulheres professoras. A última tabela, que mostramos a seguir, procura ilustrar algumas dessas variações nos últimos anos, entre 1995 e 2004, em que certas tendências têm se

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mantido; por outro lado, áreas tradicionalmente masculinas começaram a ter uma presença feminina mais significativa, como é o caso da Medicina. A Escola Politécnica abriga a maior concentração numérica de professores homens, com quase nenhuma variação do número de professoras. O extremo oposto se verifica na Escola de Enfermagem na qual a quase totalidade do corpo docente é formada por professoras. O maior equilíbrio entre professores e professoras está na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas onde, em 2004, os docentes já ultrapassaram duas centenas de indivíduos. Na Faculdade de Educação, as mulheres seguem sendo o dobro do número de homens. Quadro nº 3: Universidade De São Paulo. Participação feminina e masculina no corpo docente da USP em algumas de suas instituições de ensino e pesquisa, em números absolutos. 1995-2004 1995 H Esc. Politécnica (EP)

M

1998 H

M

1999 H

M

2004 H

M

482 41 453 43 454 43 430 43

Esc. Enfermagem (EE)

01

Inst. Física (IF)

127 47 124 43 123 38 117 39

79

01

80

01

80

02

80

Inst. Química (IQ)

68

42

62

45

62

45

69

46

Inst. Biociências (IB)

47

52

45

52

42

50

47

45

Inst. Ciências Biomédicas (ICB)

91

76

81

65

85

67

80

69

Fac. Medicina (FM)

259 92 240 88 237 92 243 111

Fil. Letras e Ciências Hum. (FFLCH)

198 196 172 168 172 169 234 203

Fac. Educação (FE)

33

Fac. Direito (FD)

107 28 104 31 101 30 107 29

68

29

61

31

62

34

69

Fonte: Anuário Estatístico – USP. Coordenadoria de Comunicação Social. Edições de 1995 a 2005.

O que pensam algumas professoras e professores da Universidade de São Paulo sobre sua profissão? Como se vêem a si mesmos nesta profissão e, sobretudo, como percebem as relações de gênero e de poder que perpassam suas atividades acadêmicas? .

Relatos autobiográficos de vida e de formação de 18 professores homens e 18 professoras mulheres, das três grandes áreas do saber, produzidos no ano de 2000.

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As concepções sobre “ser professor” envolvem, tanto para homens, quanto para mulheres, as condições que os levaram a “escolher” esta atividade, suas vantagens e desvantagens. As aspas no verbo escolher procuram chamar a atenção para um fato recorrente em alguns dos relatos: embora a pesquisa fosse seu primeiro e principal objetivo, não houve possibilidade de escolha, já que o ensino faz parte da vida acadêmica. Basta lembrar o tripé em que se apóia a USP – pesquisa, ensino e prestação de serviços à comunidade. Nesses casos, a atividade docente veio a reboque da atividade de pesquisa. Entre as mulheres, e para além do mito de que o magistério é a atividade mais adequada e ajustada à sua personalidade, parte das entrevistadas nunca tinha lecionado no ginásio ou no colegial, antes de chegar à Universidade. Para algumas, o objetivo de se fazer uma faculdade era para vir a ser “pesquisadora”. Do mesmo modo que para alguns homens, ingressar na USP significava poder desenvolver “pesquisa de ponta”, “o lugar certo para fazer pesquisas” mas, junto com isto, ter que ministrar aulas, “uma obrigação” ou, ainda, ter que enfrentar dificuldades com os alunos. Para alguns homens, a certeza de não querer lecionar, acabou por se transformar em atividade prazerosa. Boa parte destes professores já tinha tido experiências docentes anteriores no ginásio e no curso colegial, o que lhes facilitou o exercício do ensino na USP. Para outros professores palavras como “vocação”, “gratificante”, “estimulante” ou expressões como “levar jeito para ensinar”, “se tivesse que começar faria tudo de novo” são ilustrativas do seu gosto pela docência. Entre as mulheres, relativamente poucas afirmaram que sempre gostaram de ensinar e, a maioria, é da Área de Humanas. Dificuldades de todo tipo também fizeram parte dessa atividade nas suas etapas iniciais, para alguns homens. Para os homens, e independentemente da área em que atuam, as vantagens de ser professor na Academia vão desde a possibilidade de exercer papéis aí circunscritos (trabalho com iniciação científica, formação de novos profissionais e professores); obrigação de se manter atualizado; satisfação pessoal e motivação; horário flexível que permite estudar, pesquisar, escrever livros e artigos; boas condições de trabalho (clima sem muito desgaste e tensão); contato constante e “rejuvenescedor” com gerações mais novas até manifestações explícitas de se sentirem pessoas “privilegiadas” por trabalharem na USP. Entre as mulheres houve referências aos férteis e “rejuvenescedores” (outra vez) contatos com alunos, à observação do seu crescimento intelectual e emocional, a satisfação pessoal trazida por esta atividade, à ligação entre docência e pesquisa. 166

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Quanto às desvantagens, os comentários foram praticamente unânimes em duas questões: desvalorização social do professor e salários pouco condizentes. Outras questões apontadas foram o pouco reconhecimento da pesquisa produzida, classes abarrotadas de alunos (“onde ninguém ensina e ninguém aprende”), envolvimento com questões burocráticas e cargos administrativos, que “quebram o ritmo da pesquisa”. As professoras também se referiram aos baixos salários, ao desprestígio da profissão e ao fato de, mesmo trabalhando muito, as cobranças e pressões estarem sempre desabando sobre suas cabeças. Os comentários acerca da percepção de preconceitos e discriminações contra as colegas mulheres e a existência de diferenças e obstáculos que comprometem sua ascensão na carreira deram margem a longas exposições, com exceção dos professores da Área de Biológicas, bem mais “econômicos” em seus comentários, talvez até por falta de interesse ou conhecimento do assunto. Para eles, ou as diferenças não existem, ou nunca souberam de nada ou admitem o sexismo apenas partindo de certos indivíduos, e não da universidade como um todo. “Elas até exercem cargos administrativos…” . As professoras da área de ciências biológicas foram um pouco mais incisivas afirmando já terem se sentido discriminadas, seja pelas próprias mulheres; seja por terem sido preteridas por catedráticos, que preferiram homens como assistentes (em tempos mais antigos da USP); por sentirem que tem que “carregar o piano” e não levar a fama; por serem jovens e já estarem lecionado (desconfiança dos alunos e dos seus pares); por uma desagradável sensação de não estarem sendo levadas a sério. Uma delas afirmou que “a discriminação existe em todos os níveis. Já fui discriminada pelo meu modo de vestir, porque gosto de me vestir de forma simples. Em qualquer reunião aqui na USP, os homens vão engravatados e as mulheres com suas melhores roupas. Desse modo, eles são chamados de professores e eu de Dona… Se você for mulher, tem que se impor pela sua aparência e não pelo que você produz.” Na disputas internas, quando os cargos envolvem muito trabalho, os homens se abstêm mas, quando se trata de galgar posições, adquirir prestígio e conseguir verbas, eles entram na disputa. “Já escutei professores dizendo: tal comissão tem dinheiro, dotação? Se não, não quero”. Por outro lado, exigem da mulher um desempenho que nem eles próprios já tiveram. “Temos que ser boas e meia, para chegarmos a ser boas”.

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Com uma certa freqüência, no conjunto das entrevistas masculinas, há expressões cautelosas tais como “não sinto a coisa desta maneira”; “não enxergo diferenças”, “nunca percebi nada”; “pode ser que eu esteja sendo ingênuo”; “nunca notei nenhuma discriminação” até afirmações taxativas de que “não existe discriminação”; “a seleção não é pelo sexo, mas pela competência”; “o que seleciona essa evolução na carreira é a capacidade intelectual da pessoa e não o fato de ser homem ou mulher”. Para a maioria destes professores homens há provas que evidenciam a presença e a participação feminina no mundo acadêmico o que, obviamente, varia em função da área a que eles pertencem. Na Área de Exatas, se “a maioria dos titulares têm sido sempre masculina, isso é uma questão histórica”, porque “as coisas hoje estão mudando”. Entretanto, “parece que elas não conseguem ir muito longe na carreira, o que pode ser um problema de estrutura familiar, mas não por falta de capacidade ou competência”. As duas jornadas de trabalho acabam por subtrair tempo precioso de dedicação às suas carreiras. Em alguns outros casos, já foram “atuantes diretoras, chefes de departamento ou presidentes de comissões”. Ter sido orientado no mestrado ou doutorado por uma mulher também serve como prova de capacidade e atuação femininas. No momento de “prestar concursos ou receber benefícios, todos são iguais, homens e mulheres”. Entretanto, suas colegas de Área sentem o peso das diferenças na própria pele, por uma série de razões: casamento com um titular do mesmo Instituto (e viva a competição!); atividade política e participação na comunidade, gerando desentendimentos e muita exposição pessoal; por ser mulher e querer estudar Física, por exemplo; por escolher uma especialidade que fica nas fronteiras da física e da medicina, o que redunda em dupla discriminação, dos “deuses médicos” e dos físicos; por não ter o trabalho reconhecido; por ser mais jovem e, por isto, gerar desconfianças sobre a própria capacidade; pelo fato de “a mulher carregar o piano e tocar e o homem ser o regente”. Junte-se a isto, “a competição e inveja entre as próprias mulheres”. As argumentações de alguns professores da Área de Humanas demonstram uma percepção mais refinada das diferenças ligadas às relações de gênero e poder e que pode estar apoiada na convivência cotidiana com mulheres, que constituem maioria nessa área de conhecimento. “É uma especie de situação na qual os homens têm mais oportunidade e estão mais no controle e até certo ponto tem uma situação de favorecimento não explícito, sempre tácito. É uma

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impressão que tenho, mas não saberia dar provas…Do mesmo modo [que por ser mulher], pessoas podem ser preteridas por sua origem social (…)” Se, por um lado, entendem as dificuldades enfrentadas pelas mulheres de conciliar carreira e afazeres domésticos e os sacrifícios a que têm que se submeter; se respeitam a competência de muitas colegas e a seriedade com que desenvolvem seu trabalho parecem, todavia, esbarrar na questão da ocupação feminina de chefias de departamentos e coordenação de áreas departamentais. Para alguns “não há grandes méritos, nem benefícios” nessa situação, de resto desvalorizada por aqueles que têm horror à burocracia. O que ocorre é que, ao fazerem tal tipo de afirmação, e ainda que de forma inconsciente, terminam por lançar desprestígio a um cargo ocupado por mulheres. “O fato de você chefiar um departamento, onde você tem nomes fortes, torna difícil impor algo. Eu acho um desvio da função acadêmica (…) eu quero distância disto (…). Sobre a luta por cargos que envolvem poder, as mulheres estariam afastadas porque “eu tenderia a dizer que essa disputa pela direção aparece com mais força entre os homens”. Esta situação de predominância feminina na área pode gerar o sentimento inverso – o dos homens se sentirem minoria e não representarem as vozes dominantes. “No meu departamento, as mulheres são absolutamente competentes. E a gente se sente minoria…quando você pára para pensar, na verdade tudo aqui é gerido por mulheres, as decisões fundamentais são tomadas por mulheres, o que não causa problemas, mas chama a atenção, é incomum. Os colegas no Exterior ficam de cabelo em pé quando eu falo isso, porque lá é o contrário: as mulheres no departamento de … são exceções, são pouquíssimas. Lá a discriminação é muito mais explícita do que aqui. (…). Uma constatação surpreendente, que revela sensibilidade deste professor, é a de que “as mulheres não vivem um estado de solidariedade”. Nos seus depoimentos, as professoras da Área de Humanas vão mais fundo e também se referem ao “piano” que elas têm que carregar. Se há casos em que marido e mulher são professores na Universidade e têm que fazer seus mestrados e doutorados, a prioridade é sempre para o marido. Até em casa, “trabalho do pai é trabalho”, enquanto que o da mulher pode esperar por melhores oportunidades. Em outras palavras, adia-se um projeto pessoal em atenção ao outro, gerando frustrações. A maternidade não planejada, em um dos depoimentos, ocasionou a total perda de rumo dos estudos e da pesquisa, duramente

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retomados muitos meses depois. A decisão de fazer um concurso de livre-docência (um patamar anterior ao concurso de titular) foi, em outro caso, considerada pela própria professora como um “ato de ousadia” em relação aos seus pares, homens e mulheres.

5. Considerações finais Desde os finais do século XIX até estes inícios do século XXI foi uma longa e difícil trajetória para a mulher chegar até a universidade. A esta altura dos acontecimentos, não será lugar-comum afirmar que as mulheres, a outra metade da humanidade, vêm conquistando cada vez mais espaços no ensino superior, participando do corpo docente como professoras e pesquisadoras, além de integrar comitês e colegiados superiores que administram as instituições. No caso da Universidade de São Paulo, o ano de 2006 marca a eleição, pela maioria dos professores, alunos e funcionários, e a escolha, pelo governador do estado de São Paulo, da primeira mulher – Suely Vilela, da área de Ciências Farmacêuticas – a ocupar o cargo de Reitora de uma universidade pública. Antes dela, apenas Esther de Figueiredo Ferraz, formada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde também foi a primeira professora a dar aulas (década de 50), mais tarde se tornou a primeira reitora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo), instituição particular, depois a primeira secretária de Educação do governo de São Paulo, até ser a primeira ministra de Estado da Educação (1982) durante o governo do presidente João Figueiredo (1979-1985). Todavia, para o setor de mulheres que consegue ingressar em um curso de graduação e prosseguir na carreira universitária, questões como o processo de sua formação e socialização para papéis sexuais (o que ocorre desde a entrada na escola primária), escolhas profissionais, necessidade de reconhecimento e prestígio, fraca participação em postos mais elevados na hierarquia acadêmica, conciliação da vida profissional com a vida familiar, entre outras, permanecem como barreiras ao seu pleno desenvolvimento como professoras, pesquisadoras e cientistas, e em situação desigual em relação aos seus colegas homens. Nem sempre, todavia, as dificuldades vêm de fora. Há certas atitudes e comportamentos entre as mulheres, que não entendem certas questões como problemas ou mesmo não as vêem como reais necessidades em suas vidas: por exemplo, assumir cargos importantes, onde a tomada de decisões e a liderança são qualidades bastante desejáveis, pode

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ser visto como algo que só aumenta a carga de trabalho e a responsabilidade, deixando menos tempo para a família e para os assuntos pessoais. Preferem deixar para outros colegas (homens) a incumbência, reproduzindo tradicionais estruturas hierárquicas e, com isto, e apesar de discursos mais progressistas de que possam utilizar-se, acabam por contribuir à perpetuação de determinadas discriminações e para a perda de um precioso espaço de decisões institucionais. De qualquer modo, e entendendo que quaisquer conclusões são sempre provisórias, as investigações sobre a situação das mulheres no ensino superior e no desenvolvimento do campo científico devem prosseguir. Se está claro que devemos levar sempre em conta as peculiaridades de cada caso, de cada situação e, principalmente, do contexto sóciohistórico-cultural onde essas histórias acontecem, também é certo que sempre encontraremos alguns pontos em comum nesta condição de “ser mulher” e de “ser professora”.

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La presente edición se terminó de imprimir en junio de 2008, en los talleres de Gráfica LAF s.r.l., ubicados en Monteagudo 741, San Martín, Provincia de Buenos Aires, Argentina.

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