Gênero, homossexualidade e saber médico na Bahia do século XIX.edu.pdf

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Associação Nacional de História – Seção Bahia Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Centro de Artes, Humanidades e Letras Organização Carlos Alberto de Oliveira Denis Renan Corrêa Fabricio Lyrio Santos Leandro Antônio de Almeida Sergio Armando Diniz Guerra Filho

Design gráfico e diagramação Clarissa Wetzel – Caixa de Pandora ([email protected])

Marca do Evento Diogo Navarro

Observação: a adequação técnico-linguística dos textos, bem como seus conteúdos, são de responsabilidade de seus autores.

Ficha Catalográfica: Biblioteca Setorial do CAHL/UFRB

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Encontro Estadual de História (7. : 2014: Cachoeira ; São Félix, BA) Anais eletrônicos: VII Encontro Estadual de História: Diálogos da História [recurso eletrônico], 30 de setembro a 03 de outubro de 2014 / Comissão organizadora: Carlos Alberto de Oliveira ... [et al.]. – Cachoeira, BA: UFRB, 2015. 1804 p. : il. ISBN: 978-85-61346-99-7 1. História. 2. História - Ensino. 3. Historiografia. I. Oliveira, Carlos Alberto de. II. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Centro de Artes, Humanidades e Letras. CDD: 930

Anais eletrônicos: VII Encontro Estadual de História: Diálogos da História. 30 de setembro a 03 de outubro de 2014. Cachoeira, BA: UFRB, 2015. (ISBN: 978-85-61346-99-7).

Gênero, homossexualidade e saber médico na Bahia do século XIX Daniel Vital dos Santos Silva1 (...) Documentar o atípico não quer dizer apontar o excepcional, no sentido episódico ou anedótico, mas justamente encontrar um caminho de interpretação que desvende um processo importante até ali invisível, por força da tonalidade restritiva das perguntas formuladas tendo em vista estritamente o normativo. (...) (DIAS, 1992, p. 40)

Introdução Tratando da história da homossexualidade no Brasil, James N. Green e Ronald Polito fizeram um diagnóstico pouco otimista: antes de 1870, as fontes produzidas sobre a homossexualidade são extremamente raras. Registros inexatos, esquivos, séries pouco claras ou de localização difícil, este seria o panorama para o historiador. (2004, p.p. 17) Décadas antes, este também foi o diagnóstico de João Silvério Trevisan (2011, p.p. 169-173): com o fim da Inquisição, que punia os sodomitas, e a falta de legislação criminal direta similar no Brasil império, tornou-se consideravelmente mais complicado obter fontes para tratar desta temática. Provavelmente as fontes mais importantes eram as de natureza médica, e o marco, para ambos, foi representado por uma obra intitulada Da Prostituição em Geral, e em Particular em Relação à Cidade do Rio de Janeiro: Prophylaxia da Syphilis, da autoria de Francisco Ferraz Macedo, escrita em 1872 na qual em um de seus capítulos, o autor dissertou sobre a prostituição masculina sob a rubrica da sodomia. A partir daí, a produção sobre o tema, na forma de teses de fim de curso da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, periódicos científicos, livros de medicina legal e processos-crime começou a se multiplicar. O ponto de viragem para uma espécie de ampliação discursiva veio com a obra de Pires de Almeida O homossexualismo - a libertinagem no Rio de Janeiro, datada de 1906 (GREEN e POLITO, 2004, p.p. 29-30). Em certa medida, esta obra espelharia o mesmo processo que se deu na Europa em 1870, quando surgiu com Westphal um termo para designar aqueles homens tinha algum tipo de desejo sexual ou afetivo pelo mesmo sexo. Lembra Foucault que foi a partir daí que se poderia falar de um homossexualismo enquanto patologia específica, dotada de profilaxias, causas e uma nova espécie de corpo doente - o homossexual, com seu passado, caráter, forma de vida, meio. Com este marco, emergiu todo um conjunto de seres que serão objetos para a clínica e medicina legal nas décadas seguintes (GREEN & POLITO, 2004, p.p. 77-93). Contudo, mesmo antes dos anos 1890 do século XIX foi possível encontrar um conjunto de referências ao erotismo entre pessoas do mesmo sexo, sobretudo entre homens. Assim, ao longo do século XIX, sob a rubrica de higienismo, começou a se delinear um conjunto de prescrições médicas tratando de práticas sexuais e amorosas tidas como divergentes da norma ou perigosas. O celibato, o onanismo, o adultério, a prostituição e as doenças geradas a partir daí – sífilis, histeria, ninfomania as diversas formas de enfraquecimento mórbido, etc. – passaram a atrair o olhar atento de médicos das duas faculdades de medicina do Brasil localizadas em Salvador e no Rio de Janeiro. A homossexualidade também estava presente nas preocupações de aspirantes a médicos baianos: nove anos antes de Ferraz Macedo, o Dr. Fruchuoso Pinto alertou a seus leitores, na tese inaugural de sua autoria. Neste trabalho, pretendo demonstrar, a partir de textos de aspirantes a médicos, de que maneira se deu a escrita a respeito da homossexualidade, quais os seus pressupostos, bem como 1

Bacharel em História pela UFBA (2012). Mestrando em História pelo PPGH/UFBA (2013-2015), desenvolvendo pesquisa sobre gênero, homossexualidade e medicina no século XIX. Atualmente é colaborador e colunista do Núcleo UniSex (http://nucleounisex.org/). Contato: [email protected].

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quais os significados que se encontram embutidos nestas referências. Para tal, utilizei como fontes as teses ditas inaugurais, que os formandos eram obrigados a defender perante banca de professores no sexto ano. Os temas em geral eram propostos pelas bancas de docentes e selecionados pelos estudantes, e o tom ensaístico e literário era abundante, com amplas citações aos textos clássicos e bíblicos ao lado de médicos europeus – sobretudo franceses. É interessante pensar que a medicina era descrita por estes jovens estudantes como uma ciência destinada a sanar os profundos problemas da sociedade brasileira, proporcionando um caminho reto para o sucesso e evolução da sociedade brasileira em direção a um mundo civilizado. I - Tese de Marinonio de Britto: libertinagem e efeminação. Em vários aspectos a tese de Marinonio de Freitas Britto, escrita em 1853, foi a mais interessante do período entre 1853 e 1870. Seu título A libertinagem e seos perigos relativos ao physico e ao moral do homem deixam explícita a agenda: demonstrar ao leitor os gigantescos problemas que uma conduta fora da norma em relação a sexualidade poderia gerar. A libertinagem, conforme descrita por Britto funciona como uma espécie de grande guarda-chuva para uma série de práticas consideradas inadequadas, e que variam do onanismo aos excessos com prostitutas. Tal comportamento era fruto da organização interna do homem que, como todos os mamíferos de sangue quente, estava suscetível ao que seu autor chamou de se si ilidade à ueà ... à aiàfe i àasà o dasàdaà oluptuosidade. à B‘ITTO,à ,àp.à àfa uldade passível de rebaixar o rei da criação ao patamar mais baixo dentre todos os animais. Esta abordagem taxonomista será encontrada em outros médicos permitiu evidenciar a preocupação de Britto com a degenerescência da espécie humana, expressa num dos trechos mais originais da tese, ao comentar que o desprezo voltado aos velhos libertinos teria por base o temor de que: (...) por estes se vão outros se moldando, e assim se vão umas ás outras succedendo gerações fracas, e effeminadas, faltas de energia, incapazes de acções generosas, capazes de todos os vicios, ainda que tenhão por espelho um quadro onde desenhadas estejão todas as virtudes; para seguil-as, faltalhes a preciza coragem, e não havendo esta, como bem se exprimiu Virey, não haverá saúde, nem mesmo liberdade, e só sim máos e depravados costumes. (IDEM, 1853, p. 4)2

Não foi certamente um quadro muito animador o pintado por Britto para a consequência de uma sociedade que se entregasse a libertinagem. Dois pontos, entretanto, são merecedores de maiores explicações. Primeiro, a ideia de que a libertinagem teria o poder de transferir para as gerações seguintes características pouco desejáveis, geradoras de um mundo repleto de maus costumes, viciado, fadado a destruição. Mas, em segundo lugar o autor optou por caracterizar as gerações seguintes com os designativos de fracas como efeminadas. Ora, este segundo termo é extremamente interessante, e surgiu na obra de Britto como um dos mais perigosos vícios das sociedades. Mais precisamente, foi aquela conduta escolhida como evidência da relação entre libertinagem como o caminho para a degenerescência do gênero humano e para a decadência de uma civilização. Na parte central de sua obra, na qual seu autor relacionou os maus exemplos de libertinagem retirados a história, os mais graves são os que possuem características femininas, efeminados e adamados, sobretudo aqueles que de alguma forma tiveram poder. Evidentemente, efeminado era um termo usado para destacar a leniência em questões morais, uma moleza aliada a incapacidade de tomar a frente na condução dos negócios públicos. Monarcas como Heliogábalo expressam esta incapacidade de agir como homens no sentido amplo, foram desvirilizados, incapazes de ações na esfera da política e voltados para os prazeres ou para uma conduta mais próxima das mulheres e, portanto 2

Grifos do autor no original.

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irrelevante (CORBIN, 2013, p. 3-5 e SCOTT, 1985, p. 24). Guarda alguma similaridade com a expressão adamado, que apareceu como designativo para Francisco I de França, que permitiu com a chegada de mulheres italianas, sobretudo sua esposa, o aparecimento de intrigas que enfraqueceram o reino. Mas é necessário pontuar aqui uma diferença fundamental: o efeminado e o adamado se afastam porque ao primeiro o autor emprestou uma relação com práticas homossexuais; assim, Heliogábalo foi referido como um imitador de Nero, (imperador que Britto referiu como amante do eunuco Esporo) e a esta figura se deveria votar o maior desprezo. A efeminação era o caminho para um destino terrível, cumulado de doenças e de infâmias com uma morte certa e prematura causada pela sífilis (BRITTO, 1853, p. 33). Certamente a efeminação não era a única conduta apontada por Marinonio como causadora deste mal, antes ela figura numa espécie de antessala para este fim mas, foi nesta referência sobre homossexualidade dentre as outras (como sodomia, pederastia, amor entre rapazes) na qual o autor indicou uma relação concreta entre a prática homossexual, a doença e o destino final tanto do libertino efeminado e sifilítico quanto das sociedades. (Idem, 1853 p.p 32-3) Existem outras referências a praticantes de atos homossexuais ao longo da obra. Marinonio expressou seu horror diante do vicio horroroso de Sodoma e Gomorra e de outras cidades da Pentápolis. Decorosamente citou os castigos do povo hebreu contra a pederastia, e p essosàe àLe ti oà :à Co àho e à oàteàdeita s,à o oàseàfosseà ulhe ;àa o i aç oà ,à bem como revelou os excessos e vergonhosas volúpias dos gregos a exemplo da perseguição de Troilo por Aquiles, nos amores dos deuses como Zeus e Ganimedes. Chegou mesmo a identificar aà su li idadeà daà es ultu a à o à a o esà il itosà I de ,à ,à p.à à eà .à ássi à o oà aà referência a efeminação, ficou patente o caráter literário deste tipo de análise, marcado pela referência da homossexualidade por meio de exemplos eufemísticos tirados especialmente do passado greco-romano. Mas parecem menos perigosa do que os exemplos citados acima, como ficou evidente quando a relação entre efeminação – sífilis – degenerescência. Ainda podem restar dúvidas ao leitor sobre a relação entre homossexualidade e efeminação. Entretanto, um dos trechos mais esotéricos do texto de Britto pode ajudar a clarear esta dúvida: Unamo-nos ao sabio Virey e digamos - o libertino é um ente degradado, fraco por sua velhice antecipada; elle sente sua impotencia physica e moral; a força nervosa e sensitiva estando absolutamente esgotadas pelas voluptuosidades venereas deixa o cerebro incapaz de pensar como os musculos se tornão incapazes de fortes movimentos: tal era o estado de molesa que os antigos notavão principalmente n'aquelles individuos que submettião seos corpos á um trafico infame; - os subacti dos Romanos são um exemplo. (IBDEM, 1853, p. 30)3

Necessário notar que neste trecho o autor emprestou ao termo libertino a principal característica que deu aos efeminados: a incapacidade de executar gestos poderosos tanto do ponto de vista físico quando do ponto de vista moral, bem como a moleza que se traduz numa leniência dos costumes e na condução de negócios públicos. Mas ele arrematou como exemplo deste estado de moleza e inaptidão moral notada desde os antigos numa categoria social bem particular: os prostitutos passivos, chamados pelos romanos de subacti (Virey, 1834, p. 37). Assim, a relação que se desenvolve entre estes indivíduos que tinham práticas homossexuais e as características da efeminação mais salientes sugerem a necessidade de pensar este termo como uma das maneiras de se referir a homossexualidade naquele período, tanto nas teses como em outras fontes e suportes. (SILVA, 2013, p.p. 3-4 e 12-13).

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Novamente os itálicos são do autor.

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II – Sulpicío Geminiano Barroso: puberdade onanismo e sodomia. Se as citações de Britto ostentaram um gosto literário extremamente pronunciado, outros colegas foram menos destacados dentro desta característica geral do exercício da medicina naquele período, mais voltado para a teoria e o discursismo (TEIXEIRA, 1999, p. 89). Um bom exemplo é a tese Breves considerações acerca do onanismo ou masturbação, também defendida em 1853 pelo estudante Sulpicío Geminiano Barroso. Seu autor tem uma preocupação com um fenômeno muito mais restrito que a libertinagem. Enquanto Britto menciona muito pouco os problemas da libertinagem o Brasil, Barroso nomeia claramente os problemas, condutas, espaços, hábitos que de alguma maneira conduzem ao onanismo no país. Além disto, se o objeto de preocupação de Britto era um Homem universal e em certa medida atemporal, a preocupação de Barroso foi com um momento específico deste homem: o período da puberdade e da adolescência uma mocidade, em meio à qual o vício do onanismo estava perigosamente difundido, justamente no período mais frágil para a vida humana, pois um notável perigo para indivíduos que ainda não se encontravam completamente formados para o exercício da paternidade (BARROSO, 1853 p.p. 3-4). Era necessário, pois, que a medicina indicasse uma maneira de impedir os desvairos dos jovens na puberdade, preocupação comum aos doutores no século XIX: Na sequência de Samuel Tissot, o célebre autor do O onanismo – Dissertação sobre as doenças produzidas pela masturbação4 (1764), todos os médicos e eclesiásticos do século XIX chamam atenção para os perigos da puberdade. Os efeitos da masturbação são inumeráveis e dramáticos. A criança emagrece, empalidece, torna-se difícil e impertinente; seu olhar é esgazeado, tem olheiras e os olhos constantemente baixos, seus movimentos são lentos; ele tem o dorso encurvado e se arrasta sem energias; seu sono curto e agitado não lhe proporciona nenhum repouso. Esse marasmo é acompanhado de diversas indisposições. Além disso, a masturbação degrada no plano moral: o adolescente, com um sentimento de culpa, rebela-se contra Deus resvalando abaixo das bestas. (JABLONKA, 2013, p. 62)

Esta movimentação de defesa da infância passível de ser encontrada nos médicos europeus também foi comum a Britto e Barroso. Ente ainda frágil, com um pé no mundo das mulheres, era preciso inculcar na criança e no jovem, por meio das ferramentas mais poderosas, os códigos de masculinidade que lhe permitiram escapar de sua debilidade e realizar sua missão última, isto é, a de ser homem: procriar, casar, trabalhar, participar da vida política, etc. (CORBIN, 2013, p. 27). Para tanto, era necessário que existisse uma atenção especial dos responsáveis por este aspecto formativo para os vícios que poderiam impedir o pleno alcance de sua potencialidade. A categoria vício é bastante vasta em ambos os autores, que a utilizaram tanto para se referir a excessos sexuais derivados de uma má-condução de impulsos naturais, como para tratar de algumas destas práticas, mais específicas e ainda mais perigosas. Barroso, em seu texto, falou de forma mais capilar do onanismo, mas não deixa de se deter brevemente sobre outros hábitos perigosos, na firme crença que na mocidade se estava suscetível a tais impulsos tanto quanto era indispensável coibi-los. Dentre eles, a perigosíssima sodomia: (...) Nos Collegios os jovens discipulos encontrão na verdade muitos amigos e protectores; mas essas amizades e protecções são insidiozas: promessas, astucias, ameaços emfim s'empregão ahi para abuzar da virtude dos filhos subtrahidos à vigilância de seus Pais, e para induzil-os à praticas degradantes, por cujo uzo terão de arrepender-se, e de corar de pêjo quando mais tarde a palavra - Collegio - for proferida em sua prezença. Não é a sodomia único vício que lavra os Collegios; o Onanismo tambem ahi se manifesta com uma pratica assustadora, pela recluzão em que vivem os individuos, e pela provação do 4

Grifos do original.

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exemplo: e o que nos induz a exprimir desta forma são alguna cazos que nesta Cidade mesma teem havido de mancebos educados em Collegios que se derão á este perniciozo habito com tal excesso de ser precizo socorros d'um Medico para tratal-os. (BARROSO, 1853, p. 9)

A referência ao risco para a mocidade nos colégios merece maior cuidado, uma vez que estes jovens estavam destinados as carreiras de maior importância no Brasil. Assim, longe de ser um risco literário, a sodomia emergiu do trabalho do jovem aspirante à médico baiano como um problema ao qual se precisava dar algum tipo de solução, tanto quanto o onanismo. Era preciso vigiar e educar os corpos daqueles meninos, e impedir que tivessem de se submeter a um caminho sem volta com resultados nefastos, aprendendo hábitos perniciosos. O problema, detectado por Barroso, mais tarde vai exigir uma pedagogia específica para sua correta resolução (PERROT apud CONCEIÇÃO, 2012, p. 91), mas enquanto um problema já era diagnosticado por Barroso em meados do século XIX. A preocupação com a higiene e moralidade dos colégios extrapolava a tese de um jovem estudante de medicina naquele período. Em certa medida, não constitui uma surpresa que a formação dos futuros quadros da elite política e social do império, que eram os que passavam pelos internatos naquele período. Alguns anos depois, o periódico mensal do colégio baiano O Ateneu alertava aos pais dos alunos que não se deveriam aceitar as matrículas de alunos com moléstias contagiosas, escravos, ou expulsos por desordem ou imoralidade (ATENEU BAIANO, 1878, p. 7). Conclusão Em seu conjunto, as teses indicam o seguinte: no afã neutralizar as causas das doenças e dos males sociais, os médicos se colocaram idealmente numa posição de normatização, que os autorizava a atuar contra os grandes males físicos e morais dos homens, fruto do mal funcionamento e desorganização da sociedade brasileira. A medicina social do século XIX gerou um processo diferenciado em relação ao período anterior, da Fisicatura da época colonial, destinada a evitar a morte. A questão para a medicina social era conservar a saúde e impedir as doenças, por meio do disciplinamento dos corpos a ser realizado, quando possível, previamente: É a descoberta de que, com o objetivo de realizar uma sociedade sadia, a medicina social esteve, desde a sua constituição, ligada ao projeto de transformação do desviante – sejam quais forem as especificidades que ele apresente – em um ser normalizado. (MACHADO et all, 1978, p. 156)

Assim, um novo conjunto de saberes produtores de práticas sociais persistentes e normatizadores de corpos – Barroso fala da necessidade de se evitar leituras e objetos excitantes para garantir a proteção dos mais jovens; da mesma forma, Britto lembra da necessidade de uma educação baseada na higiene visando o combate aos perigos da libertinagem (BARROSO, 1953, p. 20; BRITTO, 1853, p. 34). Na estratégia de Britto, contudo, o processo de normatização se estruturou numa construção daquilo que era de alguma forma ilícito, vetado, em suma: aquilo que deveria ser impedido a todo o custo. Nas referências a certos homens próximos do feminino como sinônimo de sujeitos perigosos, moles, incapazes das virtudes e sintomas da decadência das sociedades, a tese de Britto em certa medida foi parte do processo de construção da masculinidade no século XIX. Assim, certos riscos precisavam ser evitados a todo custo no processo de tornar-se homem, sobretudo o de se converter em mulher, ou ainda pior, num homem invertido, degenerado, passivo, inadequado para a função de homem que a natureza havia desenhado para este sujeito – em outras palavras, efeminados. A homossexualidade assumiu cores de ume feminilização perigosa, que precisava ser cortada o mais rápido possível em suas raízes (BADINTER, 1993 p.p.15-22 e 28-30). É neste sentido que desejo marcar muito bem a relação íntima entre o pensamento dos dois autores. Barroso, sem a grandiloquência de Britto, mostrou a preocupação com espaços e 641

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objetos que de alguma forma podem influenciar na adoção destas masculinidades alternativas, marginais que devem ser evitadas a todo o custo. Como lembra Joan Wallach Scott, instituições jurídicas, médicas, educativas, religiosas tentam fixar conceitos normativos que afirmem de forma categórica o que era próprio do masculino e do feminino (1985, p. 21). Neste sentido, estas orientações repreendem os sujeitos, de maneira a impossibilitar formas divergentes dos modelos de masculinidade – processo que se assemelha a uma construção em negativo. Logo, ao alertar contra a sodomia e o onanismo que grassava nos colégios, o autor tinha em vista um objetivo muito claro: impedir que maus hábitos adquiridos e impróprios para os jovens homens se generalizassem, depurando os colégios e a sociedade dos vicios, dentre os quais a sodomia, pederastia ou efeminação. Na França de Virey, autor que foi tão citado por Britto e Barroso, os dois primeiros termos eram estavam contidos no terceiro. (REVENIN, 2013, p. 466) Considero que o diagnóstico duro de James N. Green, com o qual abri este trabalho precisa ser nuançado: sem sombra de dúvida é uma tarefa complexa falar da homossexualidade antes do período nos quais as fontes médicas e policiais se expandiram. Entretanto, não é uma tarefa ociosa ou desnecessária. A relação entre homossexualidade como masculinidade abjeta e o risco da degenerescência vai se repetir em outros trabalhos médicos até o fim do século XIX e começo do século XX, embora certamente com maior detalhamento e sofisticação. Mas esta relação estava bem ancorada nos dilemas de uma sociedade escravocrata, frente ao desafio de caminhar em direção a um modelo de Brasil civilizado mantendo hierarquias sócio raciais e políticas. A medicina serviu de pilar de sustentação deste status quo a superioridade natural de alguns homens sobre outros. Mas este é outro capítulo desta história. Referências Fontes: ATHENEU BAHIANO. Salvador: Imprensa econômica, 1878. Mensal. BRITTO, Marinonio de Freitas. A libertinagem e seos perigos relativamente ao physico e moral do homem. Salvador: Tipografia de Vasco Carneiro d'Oliveira Chaves, 1853. 33 p. BARROSO, Sulpicío Geminiano. Breves considerações acerca do onanismo ou masturbação. Salvador: Tipografia de Luiz Olegario Alves, 1853. 20 p. Virey, Julien Joseph. De la femme, sous ses rapports physiologique, moral et littéraire. Paris: Chez Crochard, Librarie, 1825. 424 p. Bibliografia: BADINTER, Élisabeth. XY: Sobre a identidade masculina. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1992. 262 p. CONCEIÇÃO, Joaquim Tavares. Internar para educar: colégios-internatos no Brasil (1840-1950). Tese de doutorado. Salvador: UFBA, 2012. 323 p. CORBIN, Alain. Introdução. In: COURTINE, Jean-Jacques; CORBIN, Alain; Vigarello, Georges (Dir.). O triunfo da virilidade: O Século XIX. Petrópolis: Vozes, 2013. p.p. 7-12. Col. História da Virilidade. vol. 2. 535 p. ______________. A Virilidade sob o prisma do naturalismo. In: COURTINE, Jean-Jacques; CORBIN, Alain; Vigarello, Georges (Dir.). O triunfo da virilidade: O Século XIX. Petrópolis: Vozes, 2013. p.p. 13-34. Col. História da Virilidade. vol. 2. 535 p. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Teoria e Método dos Estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do passado. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. 336p. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 14ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2001. 150 p. 642

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