Gêneros e gênero; À Prova de Morte, influências e a representação da mulher

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE ARTES DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

LARISSA FAFÁ FREISLEBEN

GÊNEROS E GÊNERO; À PROVA DE MORTE, INFLUÊNCIAS E A REPRESENTAÇÃO DA MULHER

VITÓRIA, NOVEMBRO DE 2014 1

LARISSA FAFÁ FREISLEBEN

GÊNEROS E GÊNERO; À PROVA DE MORTE, INFLUÊNCIAS E A REPRESENTAÇÃO DA MULHER

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção

do

grau

de

Bacharel

em

Comunicação Social – Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Erly Milton Vieira Júnior.

VITÓRIA, NOVEMBRO DE 2014 2

LARISSA FAFÁ FREISLEBEN

GÊNEROS E GÊNERO; À PROVA DE MORTE, INFLUÊNCIAS E A REPRESENTAÇÃO DA MULHER Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção

do

grau

de

Bacharel

em

Comunicação Social – Jornalismo. Vitória, 12 de Novembro de 2014

BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________________ Prof. Dr. Erly Milton Vieira Junior (UFES) - orientador

_______________________________________________________________ Prof. Me. Klaus'Berg Nippes Bragança (UFES)

_______________________________________________________________ Prof. Drª. Gabriela Santos Alves (UFES)

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AGRADECIMENTOS Agradeço, antes de tudo, aos meus pais, José Osvaldo Freisleben e Fabiana Fafá, por todos os puxões de orelhas que nada mais são do que uma forma de demonstrar carinho. Por toda a paciência com a bagunça, com os livros e as noites viradas. E principalmente por terem me criado deixando jogar queimada e brincar de carrinho; cresci entendendo que existem várias formas de ser mulher muito além da divisão entre Barbie e Comandos em Ação. Às minhas amigas especiais, Ariny Bianchi, Clara Torres, Kédma Nogueira e Luiza Maciel, obrigada por tudo. Por tardes infindáveis de conversas, pelas nossas diferenças e por sempre estarem lá. Aos amigos de universidade, principalmente Brunella Brunello e Laila Martins, agradeço o convívio durante os anos na Ufes e toda a experiência de viver a universidade federal, com direito a pesquisa e extensão. Agradeço especialmente aos parceiros do Centro Acadêmico pela vivência do movimento estudantil e as tardes pintando o CA. Aos professores do Departamento de Comunicação Social. A Gabriela Alves e Klaus Bragança por aceitarem participar desta banca, mesmo apesar de todos os imprevistos. E especialmente, agradeço a Erly Vieira Jr, meu orientador e amigo durante alguns anos da Ufes, pela paciência comigo e pelos anos de pesquisa em cinema.

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RESUMO Este trabalho tem como objetivo analisar as nuances do caráter feminista das protagonistas no filme À Prova de Morte (2007), de Quentin Tarantino, a partir da utilização de referências de gêneros na lógica pós-moderna, principalmente a sua forma de usar a violência. Para isso, são estudados o contexto do diretor que se insere no cinema independente norte-americano e sua relação com os filmes de exploitation, através da análise fílmica. Para embasamento na análise feminista, é feito um estudo aprofundado das principais teóricas cinematográficas e a relação com o gênero no cinema, além de analisar a construção das personagens femininas no filme a partir destas teorias. Utilizo a construção dos filmes de estupro-e-vingança como plano de fundo para entender as relações de gênero - masculino e feminino - dentro do longa. Palavras-chaves: mulher, cinema, exploitation, violência

ABSTRACT This article aims to analyze the nuances of feminist character in Deathproof (2007), a film by Quentin Tarantino, and the use of gender references in postmodern logic, especially the way he use violence in the film. For that, the director's context in the american independent cinema and its relation with exploitation films will be studied by film analysis. For grounding in feminist analysis, a study of the main feminist theoretical film and the relationship with the genre is done, in addition to analyzing the construction of the female characters in the film from these theories. I use the construction of rapeand-revenge films as a background to understand the gender - male and female relations in the movie. Key-words: woman, cinema, exploitation, violence

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 7 2. A RESSIGNIFICAÇÃO PÓS-MODERNA DO EXPLOITATION PELA IRONIA .. 17 2.1 O gênero pós-moderno e o cinema independente ........................................ 17 2.2 Tarantino e o flerte com o exploitation; Um cinema à margem ...................... 33 3. O CINEMA DE EXPLOITATION EM À PROVA DE MORTE .............................. 50 3.1 Da presença das características do “gênero” exploitation ............................. 50 3.2 A violência “gráfica” e o cinema de atrações ................................................. 56 3.3 O diálogo com os revenge films..................................................................... 60 4. UM OLHAR FEMINISTA EM À PROVA DE MORTE? ....................................... 64 4.1 A teoria feminista e os gêneros cinematográficos ......................................... 64 4.2 As protagonistas de À Prova de Morte .......................................................... 75 4.3 Revanchismo como ruptura ........................................................................... 84 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 95 ANEXOS ............................................................................................................. 97 ANEXO I ................................................................................................... 97 ANEXO II .................................................................................................. 98 ANEXO III ................................................................................................. 99 ANEXO IV ............................................................................................... 100 ANEXO V ................................................................................................ 101 ANEXO VI ............................................................................................... 102 ANEXO VII .............................................................................................. 103 ANEXO VIII ............................................................................................. 104

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1. INTRODUÇÃO

Diálogos memoráveis, incontáveis referências ao mundo pop e muito sangue. Talvez, para alguns, isso consiga resumir as principais marcas do diretor norteamericano Quentin Tarantino, ou pelo menos as que se tornam mais evidentes. O diretor começou a montar suas referências com os muitos gêneros que ocupavam as prateleiras da locadora Video Archives, em que trabalhou como balconista na Califórnia. De lá, o cineasta soube extrair ao máximo do conceito de gênero cinematográfico, ativo no corpo a corpo com gêneros pouco valorizados pela indústria até então, principalmente o cinema de exploitation, que o diretor utiliza como referência em todos os seus filmes, em menor ou maior escala. Elevou o conceito do filme como uma forma de experiência sensorial deste movimento cinematográfico a tão alto que praticamente todos os seus filmes têm pouco foco no conteúdo de uma história, mas sim uma total atenção sobre como ela é contada para o público. Tarantino é um diretor de formas, que brinca com o cinema de passado de forma criativa quando repensa gêneros inseridos em novos contextos. E aproveita de gêneros com uma visão essencialmente estereotipada da figura da mulher, ao mesmo tempo que usa vertentes menores que quebram essa imagem do feminino para criar uma versão nova da mulher em seus filmes. O cinema de gênero, por sua vez, teve sua época clássica entre 1915 e 1960, e oferecia ao público uma definição clara de cada produção cinematográfica (SUPPIA; PIEDADE; FERRAZ apud MASCARELLO, 2008). Eram filmes pautados em padrões narrativos que definiam o gênero, como uma embalagem que deixava claro aos espectadores o que iriam assistir ao entrar na sala de cinema (comédia, western ou policial, por exemplo). Com o crescimento da teoria de autor, proveniente da escola francesa de cinema com Truffaut e Godard, o cinema de gênero foi reapropriado por produções cinematográficas modernas. Os gêneros não deixaram de existir, mas perderam sua força de linguagem a partir do momento que coexistiam com produções que utilizavam de suas características para ironizá-las ou subvertê-las e, assim, criar novas formas de explorar potenciais expressões cinematográfica. Gêneros como western, filmes de gângster e musicais, por exemplo, não deixaram as telas dos 7

cinemas e muito menos perderam o alcance de público embutido em sua lógica de formatar traços em um rótulo, mas foi sofrendo mutações ao longo do desenvolvimento da própria linguagem cinematográfica, como lembra Nogueira (2010). Em uma breve análise de seu conjunto de filmes, é possível identificar pequenas marcas de gêneros cinematográficos em todas as suas obras dirigidas. Seu primeiro longa, Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992), remonta os filmes de polícia; Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, 2009) pode ser considerado um filme de guerra e o recente Django Livre (Django Unchained, 2012) soa como um ode ao spaghetti western, gênero surgido na Itália e que tem como principal característica a subversão de figuras como o “herói” sendo a personificação do bom, comum em uma visão dicotômica da realidade que divide personagens entre bom/mau. A complexificação de personagens nesse gênero pode ser exemplificada com o protagonista de Três Homens em Conflito (Il buono, il brutto, il cattivo, 1966), um anti-herói, dentre outras obras de Sergio Leone. Mesmo que tendo muita força em filmes de western, a subversão de gêneros é uma referência levada para outras obras do diretor. Em Cães de Aluguel, por exemplo, há ética e solidariedade entre um grupo de criminosos que organizam um assalto, enquanto o traidor é policial, figura predominantemente boa no cinema clássico de gêneros policiais. Os filmes de violência que incorporam o kung fu e thrillers produzidos em Hong Kong, a partir da década de 70, também marcam sua presença em filmes como Kill Bill e Kill Bill 2 (Kill Bill vol 1, 2003 / Kill Bill vol 2, 2004). Se Tarantino é um diretor de formas cinematográficas, a sua escolha para configurar um estilo de cinema mais específico é a utilização da violência como marca. E não que a presença simples e banal de atos violentos caracterizam o diretor dentro da teoria de autores que sugere André Bazin, surgido com a nouvelle vague e a Cahiers du Cinéma, mas a reapropiação do caráter violento em formas específicas que compõe sua marca autoral. Sua principal fonte de referência, presente em todos os filmes, apesar dos diferentes gêneros cinematográficos clássicos, é o grafismo dos atos violentos em seus longas. O excesso gráfico das cenas de morte, decapitação, tortura e todas que envolvem violência física é o fator essencial para que seja possível identificar o chamado exploitation film como fonte de influência. Ainda posto em dúvida como “gênero” por certos estudiosos, o movimento do cinema de violência excessiva surge 8

quase junto com o próprio cinema, na década de 20, e perdura até a década de 70. Os filmes de exploitation sempre ocuparam espaços às margens do cinema de grandes estúdios, muitas vezes nem abordado como gênero consolidado por teóricos da área (BAPTISTA, 2010). Eram filmes de baixo custo que, exibidos muitas vezes em cinemas com pouca arrecadação ou drive-ins, abordavam especificamente a violência em excesso e temas relacionado ao sexo, seja ele explícito ou sugerido. São inúmeras cenas que podem exemplificar a influência do exploit nas obras de Tarantino. Porém, essa relação se torna escancarada com À Prova de Morte (Death Proof, 2007). O filme faz parte de um projeto duplo chamado Grindhouse, que por si próprio, é uma espécie de homenagem aos filmes da época. O nome dado ao projeto é como eram chamados as salas de cinema decadentes que ofereciam sessões duplas (dois filmes pelo preço de um ingresso). Junto com Planeta Terror (Planet Terror, 2007), de Robert Rodriguez, À Prova de Morte leva todo o sangue e o sex appeal dos filmes de exploitation, também com uma certa influência específica dos chamados filmes de estrada, como o clássico do gênero Corrida Contra o Destino (Vanishing Point, 1971), do diretor Richard C. Sarafian, e também dos filmes de revanche. Tarantino surge em um contexto muito específico no cinema americano, que saturava as telas de cinema com filmes de muita ação dos anos 80 e anos 90. Foi nessa mesma época que novos talentos, como Jim Jarmusch (Estranhos no Paraíso Stranger than Paradise, 1984), os Irmãos Coen (Gosto de Sangue - Blood Simple, 1984) e Gus Van Sant (Drugstore Cowboy, 1989), começam a retomar o conceito de new american cinema ou new wave, que surge na década de 40, mas ganha força principalmente na década de 60. Na época, os filmes independentes têm como sua principal característica fortes marcas autorais de jovens realizadores, que recebiam influência direta das vanguardas europeias, da nouvelle vague francesa e a sua ideia de autoria. Expoentes desse cinema, seja em sua vertente mais experimental e vanguardista como Maya Deren (Meshes of Afternoon, 1943), ou em sua vertente mais narrativa, como filmes do pioneiro John Cassavetes (Sombras - Shadows, 1958-59) e filmes icônicos da cena underground como Pink Flamingos (1972), de John Waters, serviriam mais tarde para influenciar outros diretores de um novo tipo de cinema independente americano. 9

Segundo Suppia; Piedade; Ferraraz (apud MASCARELLO, 2008), esse movimento cinematográfico norte-americano específico deixou duas grandes vertentes de filmes, atuantes até nos dias de hoje. São elas a linha mais “autoral” do cinema independente norte-americano, como o cinema cerebral de Woody Allen, por exemplo, e o que os autores chamam trash, considerando neste caso, obras influenciadas pelos exploitation movies. Esse resquício dos filmes de exploit irá influenciar outros diretores, como Robert Rodriguez, mas Tarantino desponta como um dos principais nomes devido a sua capacidade de fazer a manutenção do caráter autoral de seus filmes, com traços estilísticos pessoais fortes, e conseguir simultaneamente ser incorporado ao mercado cinematográfico, considerando sua lógica de estúdios, e se mantendo independente. Nesta introdução, vamos analisar de forma breve a dicotomia que envolve o termo cinema independente, no qual o diretor em questão é incluído. Uma análise mais extensa e levando outras questões em consideração será feita ao longo deste trabalho, para contribuir para a compreensão deste universo, por muitas vezes, de difícil delimitação. Com o passar do tempo, essa definição de se caracterizar independente se torna cada vez mais relativa. Em uma primeira análise, o termo faria sentido quando realizada uma oposição ao um cinema de grandes estúdios, como Hollywood, segunda maior indústria cinematográfica atualmente e responsável pelo cinefilismo americano (JORGE, 2013), mesmo que a invenção do cinema seja francesa. Atualmente, torna-se muito simplório e raso considerar somente filmes independentes os que passam à margem de grandes produções, pois essas fronteiras se tornaram muito mais tênues. O cinema independente não se resguarda, nos dias de hoje, somente em âmbito econômico. Segundo Emanuel Levy (1999, apud MASCARELLO, 2010), um filme para ser considerado independente deve ter um estilo corajoso e que seja abordado um assunto inusitado, expressando assim, a visão essencial do diretor, com toda a liberdade para o fluxo criativo imagético. Estamos falando, portanto, de atitudes independentes no cinema americano que se diferem dos tradicionais formatos dos grandes estúdios. Os filmes independentes e todo o cinema indie funcionam hoje, mais do que nunca, como uma indústria paralela a Hollywood, e não mais em contraposição. Isso, segundo Supia, Piedade e Ferraz, seria uma consequência de uma série de transformações, sofridas tanto pelo cinema 10

independente quanto por Hollywood. Os grandes estúdios, segundo os mesmos autores, notaram a possibilidade de vantagens da manutenção de um “cinema independente” e criaram divisões ou subsidiárias voltadas para a produção e/ou distribuição desse nicho de mercado. É possível notar que, em suas últimas obras, Tarantino tem fechado acordo com grandes estúdios, como a Universal Pictures, que lançou Bastardos Inglórios, e Django Livre, lançado pela Columbia Pictures. Além de mais um ponto de lucro, os grandes estúdios veem os diretores independentes, além de outras funções, como responsáveis por renovar os gêneros e pela inserção de novas temáticas, que mais adiante serão apropriadas pelas grandes produções. O mercado independente dentro da lógica dos grandes estúdios funciona, portanto, como um espaço de testes para dar espaço a novos nomes e novas formas de se construir o cinema. Nunca houve uma referência financeira para categorizar filmes como independentes, mesmo que na história dos filmes indies, por sua posição à margem de grandes estúdios, os baixos orçamentos eram muito recorrentes. Mas obter um orçamento alto para a realização de um filme pode ser um termômetro de como os estúdios avaliam a situação do diretor no mundo do cinema, considerando a possibilidade de lucro. Se feita uma análise no orçamento dos filmes de Tarantino, certamente é possível notar um crescimento exponencial que nos garante afirmar que, em relação aos valores, os últimos títulos contam com orçamento que não deixam a desejar a nenhum blockbuster. Segundo dados do IMDb, Cães de Aluguel foi filmado com um orçamento de U$1,2 milhão. Somente U$150 mil foram arrecadados no final de semana de estreia nos Estados Unidos com o mesmo título, ou seja, 12 por cento do total gasto. Em seu último filme, Django Livre, o diretor contou com um orçamento estimado de U$100 milhões, conseguindo quase um terço (cerca de U$30,7 milhões) apenas no final de semana de estreia do longa nos Estados Unidos. Os dados de salas exibindo os filmes do diretor tornam ainda mais evidentes como Tarantino teve sucesso em sua entrada no mercado cinematográfico, mesmo sem abrir mão de sua linguagem estilística. No seu filme de estreia como diretor, apenas 19 salas tinham o título em cartaz em solo norte-americano. Em Django, o número subiu para mais de três mil salas exibindo o western, que teve cinco indicações ao Oscar. 11

Ou seja, ao mesmo tempo em que Tarantino constrói seu universo, sem perder a característica essencial do independente - valorizando o filme de gênero e estilo, dando ênfase na mise-en-scène e deixando de lado a abordagem de grandes temas e significados do cinema tradicional -, consegue também conciliar a entrada no mercado e ainda assim realizar um cinema que se difere do produzido por Hollywood. Mesmo com sucesso mercadológico e um crescente interesse por parte de grandes estúdios em seus filmes, Tarantino se consolida como um dos principais nomes do cinema independente norte-americano contemporâneo. Essa mescla de gêneros citada, em conjunto com as paródias e a violência gráfica presentes nos filmes é principal marca do diretor, características do que Baptista (2010) rotula como um cinema de gênero pós-moderno. À Prova de Morte é um filme bem pontual da carreira de Tarantino e que talvez consiga exemplificar de forma mais clara a teoria de Baptista acerca do gênero pós-moderno. O filme é, desde o início, uma ode explícita ao gênero do exploit, que compactua com a retomada do tema dos filmes de estrada. Apesar de ter até mesmo o tratamento de imagem com intuito de parecer um filme da década de 70, Tarantino subverte a própria ilusão cinematográfica criado pela narrativa, inserindo iPods e telefones celulares, além de toda a violência gráfica já citada como trunfo do exploitation. Como Baptista (2010) faz questão de diferenciar, essa utilização de gêneros já consagrados não é em um sentido de simples citação do passado cultural sem estabelecer nenhuma diferença, mas uma abordagem que busca por novas potências expressivas. Trata-se de um cinema de metalinguagem, que estabelece relações, antes de tudo, com o próprio cinema e suas características. A referência no cinema de gênero é importante para contribuir com outra análise, que mais tarde irá se fundir para compreender o universo do diretor e inseri-lo em um debate também de gênero. Apesar de palavras com grafias iguais, o debate de gênero que é possível sustentar com os filmes do diretor sai do campo estritamente cinematográfico para o gênero em sociedade, ou seja, a identidade adotada por uma pessoa de acordo com seu papel na sociedade. Vale notar que não estamos apenas citando a dualidade entre homens e mulheres, mas sim o gênero como identidade sexual afirmada que represente a diversidade sexual e identitária nos dias de hoje. Mas, para o trabalho em questão, vamos pinçar os estudos de identidade de gênero e 12

sexualidade das mulheres, já que o papel feminino garante uma posição importante nos longas do diretor - e aqui, como importante, apenas considerando um grande número de protagonistas mulheres, sem fazer juízo de valor desses papéis. Uma das características dos filmes de exploitation, além da violência gráfica exagerada, é também a constante presença do personagem feminino. Neste movimento cinematográfico específico, a mulher é sempre tratada com a mesma abordagem, com poucas variações não substanciais, passando por vários tipos de exploit film: o lugar ocupado pelo sexo feminino é reforçado como sendo vítima da violência, sempre cercando a mulher-protagonista a atender um padrão de beleza que a concede o rótulo de objeto sexual. Dentro deste gênero, o único que foge a essa abordagem são os filmes blaxploitation, uma vertente com atores negros destes filmes de violência, que surgem com protagonistas mulheres que não são mais as vítimas da opressão

estigmatizada

pela

violência,

mas

sim

ocupando

o

lugar

que

predominantemente é considerado de homens, ou seja, no comando das ações e passível de praticar o ato de violência, como The Big Doll House (1971), Coffy (1973) e Foxy Brown (1974), de Jack Hill1. Ainda assim, são sempre mulheres que preenchem o padrão estético de beleza, apesar de não serem loiras nem possuírem cabelos longos e lisos, são magras, se vestem com roupas justas e curtas e sempre são representadas de forma hipersexualizada. Ainda há também uma seção pequena de filmes dentro do exploitation chamados filmes de rape-and-revenge, longas que abordam a vingança majoritariamente feminina contra homens que tentam matá-las ou estuprá-las, como A Vingança de Jennifer (I Spit on Your Grave, 1978), também com uma protagonista caracterizada de forma sexualizada segundo padrões de homens. Considerando que a visão do espectador dentro do cinema é majoritariamente masculina (KAPLAN, 1995), os filmes de exploitation são ainda mais restritos, dado a sua narrativa chocante, aos espaços que eram ocupados por este tipo de filme e principalmente pela representação estereotipada da mulher sexy, frágil e que, por muitas vezes, era a vítima e tinha como seu futuro fadado a morte, o estupro ou a tortura, sem chances de alterar seu “caminho natural”. 1

O filme Jackie Brown (1997), de Tarantino, é uma outra homenagem específica aos filmes de blaxploitation, especialmente à Coffy e à Foxy Brown, já que, além da narrativa e abordagem de temas semelhantes, os três tem como protagonista a atriz Pam Grier.

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Dessa forma, o principal objetivo do presente trabalho consiste em analisar as nuances entre a representação estereotipada do gênero feminino nos filmes de exploitation e a representação das mulheres em À Prova de Morte, de Quentin Tarantino. Para isso, é necessária a análise cinematográfica do filme em questão, destrinchando suas cenas e realizando a análise de seu conteúdo de acordo com as teorias de cinema e também teorias de gênero, além da comparação visual com outros filmes expoentes da principal influência do diretor. Como objetivos específicos, estão a identificação do cinema de Tarantino como um diretor que se encaixa no que Baptista (2010) chama de cinema independente norte-americano, comprovar a influência do movimento exploitation em seus longas a partir da análise fílmica e o estudo da representação feminina em filmes com essa estética. A definição de cinema independente é controverso não só nos Estados Unidos, então será necessário um aprofundamento nos conceitos de independente e como o movimento independente norte-americano evoluiu ao longo do seu curso com seus principais diretores, conforme Levy (1999) traz em seu trabalho específico sobre o crescimento e a formação do cinema indie como conhecemos hoje, e entender a inserção de Tarantino neste contexto. Uma das principais características dos filmes independentes, dentre o contexto de financiamento e divisão de trabalhos incluídos na produção fílmica, como será explanado no decorrer do trabalho, é a utilização de gêneros e marcas estilísticas dos diretores dentro dos filmes. Aqui, será considerado para essa marca de referências não um uso sem pretensões do passado, mas sim a definição pós-moderna do uso a partir dos estudos de Hutcheon (1991), que leva a referenciação ao patamar de ironia, quando é feita de forma crítica e distanciada, levando a criação de uma terceira interpretação ao utilizar de marcas do passado, como os gêneros cinematográficos para Tarantino. E então, o trabalho tem como objetivo específico perceber como o diretor faz esse uso, com suas especificidades do cinema de exploitation em seus filmes, a partir da ideia de uso de vários gêneros dentro de seus filmes. Ao falar especificamente do cinema de exploitation, um movimento do cinema norte-americano tão pouco abordado pela academia e teóricos cinematográficos justamente por sempre ter sido considerado uma forma marginal de se fazer filmes, é preciso portanto um estudo prévio de seu surgimento e evolução. Será feito análise fílmica de cenas do filme que compõe esse 14

estudo, À Prova de Morte, comparando-o com outros filmes icônicos do movimento de exploitation, como Blood Feast (1963) e Faster, Pussycat! Kill! Kill! (1965), além da contextualização de outros filmes de Tarantino e evidenciar o uso do exploit films em todo o seu cinema. Como a análise fílmica envolve principalmente a relação entre o protagonista, Stuntman Mike, e as mulheres de todo o filme, incluindo suas vítimas e o grupo de garotas que acaba por tirar sua vida ao fim da obra, é preciso também, além da análise fílmica para fins estilísticos, a análise fílmica das relações entre os personagens e como isso revela os poderes entre os gêneros - aqui, masculino e feminino - dentro do seus papéis no filme. Para compreender as discussões de gênero, é essencial detalhar o processo de introdução do pensamento feminista no cinema e uma breve representação histórica da mulher nos filmes, que irá contribuir para um entendimento específico do filme analisando em questão. Como desdobramento de tais abordagens, tanto o principal objetivo como os objetivos específicos, será necessário também explorar o conceito de cinema de atrações de Gunning (1986) sobre a hiperviolência presente nos filmes, tanto de Tarantino quanto no movimento exploitation, com o intuito de aproximar o cinema de sua principal função quando foi criado: o de despertar sensações na plateia, dando mais importância ao momento sensorial da experiência cinematográfica do que necessariamente ao roteiro, por exemplo. Como consequência da análise fílmica, veremos que o constante tema de revanche encontrado nos filmes do diretor, e também em À Prova de Morte, está ligado a um movimento pequeno de filmes de revanche que tem quase sempre a mulher como centro da ação, além de analisar como é a relação e reflexo destas definições entre as personagens do gênero feminino no filme abordado. Em À Prova de Morte, o universo do exploitation ressurge remontado quase como um todo. É justamente o papel da mulher que tem suas alterações mais significativas. No primeiro momento do filme, as protagonistas femininas se encaixam em concepções de um roteiro usual do gênero, onde são enganadas e mortas por Stuntman Mike e seu carro “à prova de morte”. São subjugadas, seu papel é da mulher frágil, sem ação de iniciativa. Ela apenas percorre o papel de sua existência, fadada a ser apenas coadjuvante do longa até o momento que cruza com o personagem principal, homem, com maiores poderes de discurso e lugar na imagem-fílmica e 15

tolhedor da figura feminina - transformado no longo da diegese, portanto, como quem encerrará sua vida. Quando, aparentemente, o vilão-protagonista-homem irá fazer mais vítimas, encontra três mulheres que não agem com a submissão esperada. De alguma forma, elas rompem com o modelo esperado já apresentado inclusive pelo roteiro, nas personagem das outras mulheres. Eles rapidamente trocam de papeis, com Stuntman Mike se tornando a vítima e deixando o posto de protagonista para se tornar o subjugado, o ator do violentado, com as mulheres se transformando em personagens principais e ocupando a posição da ação de violentar, de depois de cenas intensas da perseguição de carros entre os agentes da mise-en-scène. Mas seria somente essa inversão de papeis o suficiente para falar que À Prova de Morte traz uma visão progressista no papel feminino, em filmes que se encontram majoritariamente em territórios masculinos? Para algumas teóricas, como Bernárdez (2001), a representação de uma mulher violenta com homens nada mais é do que uma forma radical de externalizar séculos de opressão e controle do corpo e da imagem feminina. Não que seu texto justifique a violência, mas para a teórica é uma forma da mulher regurgitar o ódio enrustido em anos, com um diálogo próximo do que ativistas mais radicais do feminismo usam como embasamento para a misandria. Já Kaplan (1995) não considera a violência invertida como a melhor forma para expor o sentimento feminino perante a opressão de sua imagem, considerando essa troca uma falsa ideia de feminismo, pois não reforça um formato da mulher de forma genuína. De acordo com a autora, neste caso a mulher é “obrigada” a assumir um papel masculino que, segundo a psicanálise, significa uma outra forma de representação do falo masculino. Ou seja, ter o poder de talhar a vida de alguém seria como o poder do falo, e não construir um olhar próprio da mulher. Para compreender os questionamentos que envolvem esse aspecto específico do filme em questão e conseguir destrinchar uma discussão sobre o feminismo nesse ponto, é necessário primeiramente um olhar mais a fundo no mundo das referências de Tarantino, entender o gênero exploitation e sua formação, além de um embasamento maior para entender a representação história da mulher no cinema e suas formas de subversão.

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2. A RESSIGNIFICAÇÃO PÓS-MODERNA DO EXPLOITATION PELA IRONIA

2.1 O gênero pós-moderno e o cinema independente Para compreender melhor a principal característica cinematográfica presente no filme em questão e relacioná-lo com a discussão de gênero feminino que este trabalho se propõe, é de importância conhecer e entender o contexto cultural em que a obra cinematográfica foi concebida e realizada, compreendendo no detalhes as diversas concepções de pós-modernismo citado por Baptista em seu livro O Cinema de Quentin Tarantino e como isso se reflete em uma forma de fazer cinema levando em consideração os gêneros cinematográficos. Assim, termos como gênero pós-moderno, crucial para o uso de outros gêneros do cinema nos filmes de Tarantino, tentarão ser esclarecidos de forma mais simples. Além disso, é necessário uma compreensão do cinema independente e sua evolução - termo aqui posto sem sinônimo de melhora, mas apenas considerar as mudanças do cenário independente na história do cinema. Diante de muitos estudos teóricos da área, é válido esboçar uma breve diferenciação entre “pós-modernidade” e “pós-modernismo”, por mais que os termos se tornem confusos a medida de os usos se tornam mais constantes. O primeiro termo faz referência a um período histórico, onde novas formas de tecnologia e informação se caracterizaram como fundamentais para a formação social (BAUDRILLARD apud FEATHERSTONE, 1995:20). Toda essa concepção de pós-modernidade é de suma importância nas mudanças das relações sociais como um todo, como a reorganização dos objetivos em torno da imagem, por exemplo, ou até mesmo a inserção de minorias nos convívios sociais, a partir de um momento que racismo e direito das mulheres se tornam pautas diárias, mesmo que ainda com muitas barreiras. O resultado desta nova forma do próprio homem se relacionar tem também reflexos na produção cultural da sociedade inserida em tal contexto – o que nos é de interesse, de fato. Para Baudrillard (1991), a pós-modernidade se constitui na era do simulacro, tendo por base o que considera o "quarto estágio do signo", na concepção semiótica de traduzir uma realidade a partir de um significante e um significado. O filósofo francês chama seu “quarto estágio” de hiper-real, ao ponto que são códigos sem referência que se 17

apresentam mais reais que a própria realidade. Dessa forma, para o autor, a condição pós-moderna é a de uma ordem social na qual os simulacros e os sinais estão, de forma cada vez mais crescente, formando o mundo contemporâneo. Da mesma forma que se altera as formações de relações humanas, a produção cultural, segundo o autor, segue no mesmo caminho. Já o pós-modernismo diz respeito a todo um campo cultural característico e sua produção artística. E aqui não se restringe a apenas um domínio artístico, como por exemplo somente o cinema ou as artes plásticas, mas pelo contrário, engloba várias áreas de produção e as relações imagéticas, com características reflexivas da atual sociedade. O pós-modernismo pode ser definido como as caraterísticas estéticas e culturais de uma sociedade capitalista contemporânea. Dessa forma, a principal marca do pós-modernismo é justamente a sua contraditoriedade, que por sua vez, pode ser considerado um reflexo direto da sociedade atual governada pelo capitalismo flexível, na qual se instala e depois subverte os próprios conceitos que se desafia. Porém, o termo e seu significado não podem ser utilizados como simples sinônimo de contemporâneo, pois abarca relações muito mais complexas e é resultado da sociedade como um todo. Para Hutcheon (1991), o pós-modernismo é considerado um processo ou uma atividade cultural em andamento, que não pode ser restringida a uma definição estável e estabilizante, mas sim uma estrutura aberta que se encontra em constante mutação. A partir das contradições do pós-moderno, pode-se perceber que a presença do passado é o que mais sofre com as manifestações dessa característica dentro da estética do pós-modernismo. Essa presença do passado, ao contrário de outras manifestações culturais, não costuma pregar um caráter nostálgico, mas sim uma reavaliação crítica do mesmo. É uma forma de dar nova significação a alguma referência antiga, sem necessariamente deturpar seu sentido. Além de teoria para produções culturais, o pós-modernismo também encontra seu espaço dentro da teoria contemporânea do cinema. A partir da fragmentação de uma das duas grandes teorias, que no caso seria a teoria culturalista, surge uma vertente no cinema que se caracteriza pós-modernista, onde a vida contemporânea é dominada, principalmente, pela fragmentação da experiência (BORDWELL apud RAMOS, 2005). Pucci (apud MASCARELLO, 2008) diz que a mais interessante 18

aplicação do conceito de pós-modernismo ao cinema diz respeito em classificar o que foge às classificações tradicionais da teoria. O autor ainda comenta que, segundo as teorias de Hutcheon, há em filmes pós-modernos componentes considerados estranhos, como a coexistência de gêneros cinematográficos distintos. E é neste cenário que o cinema de gênero pós-moderno se insere. O cinema de gênero foi essencial à formação de Hollywood e da cinefilia, especialmente norte-americana, pois já indica ao espectador um conceito prévio sobre o filme. Em seu manual de cinema, Luís Nogueira (2010) explica que o cinema busca em parte a concepção de gênero na literatura. Antes separado em comédia, poesia épica e tragédia por Aristóteles, os gêneros se desdobraram em novas formas de "contar histórias", com uma preocupação em se estabelecer premissas e critérios para a categorização dos gêneros. Da mesma forma, o cinema busca caracterizar certos padrões estéticos e linguísticos em classificações de gênero. O autor, porém, relembra que a tarefa de achar um consenso definitivo é difícil, pois os gêneros são mutáveis a cada dia: Estando a delimitação e a caracterização dos gêneros sujeitas à constante mutação e hibridação dos mesmos, torna-se difícil atingir um consenso definitivo sobre os critérios e as fronteiras que permitem identificar e balizar cada gênero. No entanto, podemos afirmar, resumidamente, que um género cinematográfico é uma categoria ou tipo de filmes que congrega e descreve obras a partir de marcas de afinidade de diversa ordem, entre as quais as mais determinantes tendem a ser as narrativas ou as temáticas. (NOGUEIRA, Luís. 2010: 03. Manuais de Cinema II: Gêneros Cinematográficos)

Como os elementos genéricos que são selecionados dentro de um tempo para constituir um grupo de gênero são mutáveis e estão sempre se expandindo, insistir em amarrar de forma exaustivamente fechada características específicas que compõem cada gênero não pode ser considerado, se olhando através da história do cinema. Portanto, os gêneros cinematográficos são categorias classificativas que permitem ao espectador estabelecer relações de semelhança e identidade com outros filmes. Segundo Baptista (2010), ao analisar com mais profundidade a importância do cinema de gênero para o cinema de Tarantino, o filme de gênero se relaciona com o grupo de filmes preexistentes que formam o gênero e criam um mundo ficcional. É possível afirmar então que os gêneros tem algo em comum em todo o conjunto de 19

obras, seja a temática ou a estética - ou até mesmo os dois. São filmes, então, embasados em padrões narrativos que, principalmente no cinema clássico, se repetiam e tornavam possíveis identificar de forma fácil, tanto no nível de produção cinematográfica e na criação de estratégias, para a indústria, tanto no nível perceptivo final, do espectador, em definir se iria assistir um filme de comédia, drama, policial, etc. Como bem afirma Nogueira (2010), os gêneros são sobretudo um produto da indústria americana. E, apesar de ter sido largamente utilizado de suas definições para o cinema clássico americano, o autor diz que não se pode falar em uma oposição definitiva entre o cinema de gênero e o cinema de autor, concepção do teórico Bazin e do cineasta Truffaut, em que o diretor do filme seria como um autor de um livro, com suas características estilísticas pessoais se manifestando de forma livre na obra cinematográfica. O que acontece, ainda de acordo com Nogueira, são sinais de divergência entre eles, onde valores artísticos e propósitos comerciais se distanciam. Mas a distância não significa que uma obra de autor não possa surgir num contexto de gêneros ou, mesmo ainda, dar origem a algum gênero. E que as convenções genéricas utilizadas para definição dos gêneros são justamente passíveis de desafio ou ruptura. Na própria indústria americana, grandes cineastas contribuíram com gêneros a partir de sua singularidade. Ou seja, a partir das contribuições artísticas de autores, rejuvenesceram ou deram destaque a algum gênero, ou até mesmo, por dominar bem os códigos de cada classificação, foi possível a capacidade de compreensão de diferentes gêneros coexistindo uma só obra cinematográfica. O cinema de Alfred Hitchcock, de certa forma, aprimorou os preceitos dos filmes thriller, chamados em português como filmes de suspense, como em Os Pássaros (The Birds, 1963) e Psicose (Psycho, 1960); Sergio Leone revisou o western, filmes de caubói, ao inserir a figura do protagonista anti-herói, bem diferente do filme de faroeste americano, que exaltava o xerife e os homens da lei, criando o que ficou conhecido como spaghetti western e tendo filmes expoentes como Por Um Punhado de Dólares (Per un pugno di dollari, 1964) e Três Homens Em Conflito (Il buono, il brutto, il cattivo, 1966); Woody Allen teve sucesso ao sofisticar e adaptar as comédias para um nível de maior debate intelectual, inclusive inserindo discussões mais profundas sobre a relações conjugais na sociedade ao fazer o espectador rir da falência conjugal em Noivo Neurótico, Noiva 20

Nervosa (Annie Hall, 1977), por exemplo; e até mesmo George Lucas, que transformou a concepção dos filmes de ficção após a série de filmes Guerra nas Estrelas. Assim como alguns autores fizeram suas contribuições para reforçar ou até mesmo alterar um gênero, outros passeiam entre eles sem muito esforço, levando características próprias nos mais diversos estilos classificatórios. Stanley Kubrick pode ser citado com um bom exemplo recente, tendo dirigido filmes de ficção (2001 E Uma Odisséia no Espaço 2001 A Space Odyssey, 1968), filmes de guerra (Nascido para Matar - Full Metal Jacket, 1987), filmes de drama (Lolita, 1962) e filmes de suspense (De Olhos Bem Fechados - Eyes Wide Shut, 1999). Justamente com esses desdobramentos da linguagem cinematográfica de qual fala Nogueira, começam, então, a surgir novas maneiras de reutilizar e reinterpretar o cinema de gênero. O chamado cinema de gênero pós-moderno tem em sua principal característica o uso de gêneros cinematográficos distintos num mesmo filme, ou a subversão, de alguma maneira, de algum gênero fílmico. A maior parte dos diretores citados, levando em consideração que mantém suas marcas estilísticas independente do gênero que segue, seja no filme ou na carreira, não subverte os termos que foram utilizados para sua categorização. Pelo contrário, utilizam-se das categorizações em prol de seu roteiro, como Hitchcock que procura trabalhar suas marcas estilísticas dentro do suspense, ou até mesmo Kubrick, com seus diversos gêneros, trabalha melhor a construção dos personagens e a estética do filme do que necessariamente subverte os códigos necessários para a compreensão do gênero cinematográfico. Dos já citados, talvez seja uma exceção de Leone, que muda os parâmetros do protagonista de filmes western, característica de grande importante para a categorização dos filmes de faroeste americanos. A intenção principal, portanto, é mostrar que apesar de grande importância para o crescimento da indústria cinematográfica americana em categorizar filmes do mesmo universo a partir de suas semelhanças, o gênero no cinema permite diálogo com diretores e suas marcas estilísticas. De uma forma semelhante, porém não igual, Tarantino também revisita os gêneros cinematográficos em seus filmes de forma clara. Sob uma primeira vista superficial, Cães de Aluguel se encaixa na categoria de filmes policiais, Django Livre poderia ser mais um western, Bastardos Inglórios é um filme de 21

guerra e os volumes um e dois de Kill Bill seriam perfeitos filmes de artes marciais. Mas a diferença está justamente na forma que Tarantino subverte os próprios gêneros, não o fazendo de forma desrespeitosa ou com intuito de mostrar alguma inferioridade do conceito de gênero cinematográfico, muito pelo contrário. Da mesma forma em que Nogueira afirma e cita os vários diretores que souberam tirar proveito das marcas estilísticas e estéticas do gênero no cinema, Tarantino realiza da mesma forma, adicionando suas próprias marcas autorais. Os diálogos longos e marcantes e a construção de cada personagem é visivelmente do diretor. Mas, além de somente utilizar os gêneros como terreno para um roteiro e o desenvolvimento dos personagens, o diretor brinca com os gêneros em si e dentro de um só conceito de gênero. Por exemplo, os dois filmes de Kill Bill têm todas as marcas para se categorizar como um filme de artes marciais asiático, se a protagonista não fosse uma mulher. O terreno dos filmes de kung fu, especialmente o papel principal, era sempre desenvolvido por um homem. O espaço da luta corporal ativa nestes filmes são majoritariamente locais masculinos. Quando representada, a mulher muitas vezes ocupa somente o papel de mulher de alguém, ou seja, atrelada a um personagem masculino que é ativo no papel, ou então encarna a vilã, sedutora e perigosa, a figura da femme fatale no perfil asiático. A Noiva, protagonista dos dois volumes citados, está longe dessa classificação. Por vingança, ela - e portanto o corpo feminino - toma o espaço principal de ação durante as duas obras e, neste caso específico, portando lâminas. Apesar de se encaixar mais propriamente dentro de filmes de kung fu, arte marcial chinesa, por causa dos combates corpo a corpo e do uso das artes marciais durante todo o longa-metragem, a espada que Beatrix Kiddo/A Noiva utiliza não é a espada jian, usada pelos chineses para a prática das lutas. Mas sim um sabre japonês, uma katana, com seu formato longo e curvo característico. Inclusive, quem cria a espada para a protagonista na trama é a figura de Hattori Hanzo, um ninja japonês que viveu no século 14. A katana era usada tradicionalmente pelos samurais, homens do militarismo e aristocracia japonesa. As mulheres dos samurais eventualmente lutavam, mas somente homens ocupavam a posição de samurai, que mais tarde deixou apenas de ter cunho militar e passou a ser uma casta, com título passado de pai para filho. Portanto, o manejo da katana é uma das principais características da figura 22

essencialmente masculina no Japão e, assim como todas as outras lutas que envolvem lâminas, são locais de ocupação majoritariamente masculina. Ao colocar o tradicional sabre de samurais em mãos de uma mulher, Tarantino subverte de forma sutil os próprios “códigos” de caraterização do gênero de artes marciais. Adicionado de suas outras marcas estilísticas, é uma forma de recriar, mesmo que em pequena escala, o passado. Para entender melhor o contexto desse uso de outros gêneros em conjunto ou a utilização de características que diferem do gênero que se está utilizando, é necessário compreender a visão de teóricos sobre a presença de gêneros já consagrados, ou pelo menos já “delimitados” por uma indústria, em outros filmes, tendo como resultado um terceiro objeto. Nem pior nem melhor dos gêneros que foram utilizados, mas diferente. Essa principal marca do cinema de gênero pós-moderno é o que Hutcheon (1991) cita em seu trabalho como característica que compõe a paródia e, como já visto, diz que a teoria do pós-modernismo é marcada principalmente por essa presença do passado revisitado. A definição de paródia como conceito de referência estética a outro objeto ou outro tempo, porém, varia de acordo com teóricos. Para Jameson (1993), a paródia seria uma figura estética central do modernismo e tem como finalidade pôr em destaque a singularidade de cada um dos estilos, com um impulso satírico e humor sarcástico. A tomada de gêneros, como feito por Tarantino, é considerada pelo autor uma deficiência de estilo próprio, e consiste em uma paródia vazia, onde há a clara perda de referência do real, o que o próprio autor denomina como pastiche. Porém, a concepção usada neste trabalho para paródia pós-modernista é, diferente do conceito de Jameson, construída pela já citada teórica Hutcheon (1991). A autora considera que a paródia não se refere a uma simples imitação ridicularizada das teorias e das definições padronizadas, que tem origem nas teorias humoristas do século XVIII. A paródia seria uma repetição com uma relativa distância, que permitiria assim uma postura crítica. Em lugar do vazio pós-moderno, Hutcheon pensa esse espaço como possibilidade criadora, decorrente de uma nova forma de se conceber o mundo. O

cinema

de

gênero

pós-moderno

seria

composto

então

por

obras

cinematográficas que utilizam de gêneros já formatados para criar novas produções, com toques autorais que façam do filme uma obra cinematográfica original, não uma 23

mera cópia. Como já exemplificado com as duas versões de Kill Bill, o diretor pode criar novas versões para os gêneros, seja modificando alguma característica dentro dos códigos para a caracterização de um só gênero ou, como citado pela teórica da paródia, pela aproximação de dois gêneros distintos. Essa é outra característica estética que será analisada com maior detalhamento ao decorrer deste trabalho. Tendo como referência o exploitation, considerado subgênero por alguns teóricos, Tarantino aproxima a violência gráfica explícita, principal característica estética do exploitation, à outros gêneros, como o western, o policial e o filme de guerra. Pegando mais uma vez o exemplo de Kill Bill, os filmes de artes marciais, principalmente em seu auge nos anos 70, sempre tiveram alto teor de violência sugerida, com lutas e mortes. Mas em Kill Bill a violência decorrente da vingança da Noiva é elevada para o excesso do grafismo, com cenas focando a dilaceração dos corpos. Como, por exemplo, a cena de Kill Bill 2, em que Beatrix arranca o olho de sua oponente de luta com a mão e, já repleta do vermelho de sangue no rosto e em sua blusa, joga o órgão no chão e pisa, mostrando com algum detalhe o material fluido por entre os dedos da protagonista. (ANEXO I). O olho falso utilizado não tem a menor pretensão de ser realista, pelo contrário, passa percebido como um molde opaco em suas partes brancas, mas a representação e o foco no ato tem mais importância para Tarantino do que necessariamente efeitos especiais fiéis ao real. Tarantino faz, portanto, a utilização da paródia construída por Hutcheon (1991) como marca estilística em seus filmes, lançando mão de gêneros já existentes, como western e filmes policiais, além da aproximação do exploitation com a maior parte de suas obras, acrescentado de suas marcas autorais para montar seus filmes. Como Baptista (2010) faz questão de diferenciar, essa utilização de gêneros já consagrados não é num sentido de simples citação do passado cultural sem estabelecer nenhuma diferença, mas uma abordagem que busca por novas potências expressivas. A possibilidade estética do novo entre diferentes gêneros coloca Tarantino em um contexto bem específico na cena do mundo cinematográfico. Com suas influências principalmente marcadas pela estética do exploitation, era de se esperar que o diretor surgisse em um mercado paralelo aos de grandes produções. O próprio movimento que dá os tons às inúmeras cenas de violência gráfica sempre foi considerado um cinema à 24

margem, como será trabalhado em maiores detalhes no próximo tópico. Tarantino conseguiu reunir suas marcas estilísticas, seu diálogos irônicos e seu excesso de sangue no terreno do cinema independente. E conseguir compreender o que é o cinema independe se faz necessário para contextualizar os filmes do diretor. Em seu livro Cinema of Outsiders: The Rise of American Independent Film, Levy (1999) introduz que até os anos 90, a categorização de independente se limitava, basicamente, ao montante disponível para a produção de um filme. Filmes independentes, então, compartilhavam um espaço único onde produtores e diretores não conseguiam um investimento suficiente para serem considerados mainstream, colocando no mesmo balaio filmes de gênero sem grandes pretensões artísticas e diretores com marcas autorais. Questionado uma vez para definir o que é um filme independente, o crítico de cinema do Chicago Sun Times, Roger Ebert, uma vez disse que poderia assim classificá-lo o filme feito fora da indústria tradicional de Hollywood, financiado de forma não-convencional e que tem sua execução baseada na visão pessoal do diretor em detrimento a noção de algum agente do que seria ou não um sucesso. Ou seja, de acordo com Ebert, um diretor com sua visão pessoal e apaixonada deve tomar controle do filme. Para se conceituar um filme independente deve-se, além do financiamento, criar um sentimento de "antihollywoodianismo", querer fazer oposição a grande indústria e sua estética dominadora. Dessa forma, surgem duas concepções diferentes do cinema independente. Uma é baseada em como os filmes são financiados e a outra foca no posicionamento do filme como expressão máxima e livre do diretor. As definições dividem teóricos e produtores do meio cinematográfico. Levy reporta que o produtor Brad Krevoy pensa a indústria hollywoodiana como uma forma opressora de se fazer cinema, pela interferência de executivos - quem financia e quem, obviamente, irá tirar lucros dos longas - e também pela castração criativa que muitos diretores sofriam. Seria, portanto, mais "honrado" realizar o cinema que se acredita, apesar de todo o dinheiro que o cinema de indústria provia. Mas não é tão simples categorizar um filme independente desta forma. Spike Lee, um dos nomes dos diretores independentes norte-americanos, fez apenas dois filmes independentes: She's Gotta Have It (1986), uma comédia romântica água-com25

açúcar distribuída pela Island, e a também comédia Garota 6 (Girl 6, 1996), pela Fox Searchlights - que inclusive, por coincidência ou não, Quentin Tarantino interpreta um dos diretores da trama. Porém, nenhum dos dois filmes tem "espírito independente", sem grandes pretensões artísticas. Apenas comédias que passariam por qualquer estúdio de cinema hollywoodiano. Não só, Garota 6 teve um orçamento estimado de US$12 milhões, segundo o IMDb. Por um outro lado, Todos a Bordo (Get On The Bus, 1996) teve orçamento bem menor, de US$2,4 milhões, mas lançado pela Columbia, um grande estúdio da indústria. Filmes como Faça A Coisa Certa (Do The Right Thing, 1989), também lançado pela Columbia, tem "espírito" muito mais independente do que Garota 6, mostrando a violência em bairros suburbanos de Nova York. A mesma coisa acontece com os irmãos Coen, outro grande exponente do cinema independente norteamericano. Passeando por entre os filmes dos diretores, apesar de algumas aparentarem mais ingênuas, os diretores dialogam diretamente com o film noir, um movimento cinematográfico que colocava no cerne do roteiro a melancolia das grandes cidades, o que se transforma nos filmes dos diretores em uma relação estreita com a violência e a incapacidade do ser humano de lidar com ela, além mesmo da proximidade estética. Do qual, inclusive, os diretores têm também uma ligação forte com o expressionismo alemão, ao colocar seus personagens em contato repentino com o acaso e as consequências que isso acarreta, elaborando uma espiral da violência. Pode ser demonstrado, por exemplo, em Onde Os Fracos Não Tem Vez (No Country for Old Men, 2007), onde o protagonista é colocado por um acaso em contato com o dinheiro, que vai lhe trazer como consequência uma perseguição e a morte. O filme, distribuído pela Paramount, teve um orçamento estimado de US$25 milhões, longe de ser um orçamento propriamente pequeno, conseguindo arrecadar o triplo do valor em um ano de exibição, segundo o IMDb. Levy diz que "os filmes dos irmãos Coen tem sido financiados e lançados por grandes estúdios, como Fox e Warner, embora os críticos considerem sua obra como a quintessência do independente" (1999). No livro, Russel Schwartz, o presidente da Gramercy, uma organização híbrida entre a Universal e a PolyGram para distribuir filmes de arte, afirma que está cada vez mais difícil de dizer o que exatamente é um filme independente. "A não ser que você volte com uma definição de total independência financeira, todos são híbridos", diz. Ele 26

lembra que, se há uma lógica de distribuição relacionada ao filme antes dele ser feito, sua independência já está colocada em cheque. A nova forma de fazer cinema, que se embasa em formas antigas e simultaneamente entende o esgotamento desta separação radical de independente versus indústria, chama a atenção de vários cineastas. Simultaneamente, várias escolas de cinema se espalhavam pelos Estados Unidos, formando um grande número de cineastas ambiciosos e procurando por oportunidades e lacunas criativas na área. Enquanto o sistema de grandes estúdios nos anos 70, que de fato antigamente as verdadeiras academias para os cineastas, começou a desacelerar, as escolas de cinema preencheram a necessidade de formar mentes para o mercado cinematográfico, inclusive para grandes produções. Antes de nomes como Spielberg ou Scorcese, escolas formais eram vistas como um meio passivo demais para aprender o cinema. Adicionados ainda com o sentimento de negar o dinheiro e exercer sua liberdade criativa, boa parte dos diretores formados viram nos prestigiados filmes indies uma forma de tentar alcançar o objetivo da geração. O grande interesse facilitou, mais tarde, que o movimento capturasse o olhar da indústria cinematográfica (LEVY, 1999:34). Um dos principais marcos para o filme independente norte-americano foi o Festival Sundance de Cinema. Hoje, o festival é famoso por ter lançado grandes nomes, como Soderbergh, Allison Anders, Gregg Araki e o próprio Tarantino, e se tornou o objetivo de vários diretores independentes em início de carreira. Robert Redford, o ator que se tornou galã de grandes sucessos da indústria, é creditado a ter lançado o novo movimento independente que adentraria a década de 90. Enquanto estrelava filmes de estúdios, o ator também dirigia pequenos filmes e, em 1980, criou o Sundance Film Institute, para incentivar o crescimento de artistas independentes. Mas o festival cresceu de forma exponencial após Sexo, Mentiras e Videotape (Sex, lies and videotape, 1989), de Steven Soderbergh. O filme, escrito em oito dias, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e se tornou um sucesso comercial, dentro dos limites possíveis do cinema independente à época. Um filme original, que não evoca nenhum outro filme realizado, com uma visão estritamente pessoal e interna sobre relações e traições. Com um orçamento de US$1,2 milhão, o diretor conseguiu um valor de faturamento bruto de US$24,7 milhões, de acordo com dados disponíveis no IMDb. 27

Sexo, Mentiras e Videotape contribuiu para a ascensão não só do Festival Sundance, mas como uma geração do filme indie. Porém, segundo Levy (1999), hoje o diretor caminha entre a necessidade de ainda ser comercialmente possível para as empresas e que, antes do sucesso da obra em questão, Sundance não era um "mercado de contratos ou um estande de vendas". Com o sucesso, a indústria percebeu que era possível fazer dinheiro com pequenos filmes independentes. O próprio Sexo, Mentiras e Videotape que fez o mercado indie ter mais visibilidade teve uma grande aceitação comercial, provando que existia uma grande oportunidade fora das grandes produções. Exemplos como Oliver Stone com Platoon (1986), uma pequena produção com roteiro sobre a Guerra do Vietnã, podendo ser considerado um "filme de arte" e, mesmo assim, se mostrou ter viabilidade comercial. O orçamento inicial do filme foi estimado em US$6 milhões, com cerca de US$138 milhões de faturamento bruto nos Estados Unidos. Pelo menos US$100 milhões foram feitos antes do filme ganhar o Oscar de Melhor Filme do ano. A professora do departamento de teatro, cinema e televisão da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) (apud LEVY, 1999) explica que os filmes independentes se tornaram "moda" nos anos 90, devido a lucros em filmes estrangeiros e até então de diretores parcialmente desconhecidos como O Banquete de Casamento (The Wedding Banquet, 1993), de Ang Lee, ou Quatro Casamentos e um Funeral (Four Weddings and a Funeral, 1994), de Mike Newell, mostrando aos investidores que havia espaço no mercado para filmes que não os de grandes produções. Com isso, estúdios grandes e pequenos começaram a focar no nicho. Hoje, maior parte dos grandes estúdios, quando não financiam eles próprios os filmes, têm braços menores para lidar com a parcela de filmes independentes. E estúdios independentes conseguiram emergir no mercado já muito dominado por nomes como Paramount, Columbia Pictures, Universal e outros. A Miramax lançou filmes como Como Água para Chocolate (Like Water for Chocolate, 1992), de Alfonso Arau, e Traídos pelo Desejo (The Crying Game, 1992), de Neil Jordan. Em 1996, lançou O Paciente Inglês (The English Patient, 1996), após a Fox ter desistido de produzi-lo. O filme recebeu indicação para 12 Oscars, ganhando nove, incluindo o de Melhor Filme. Nenhum estúdio, desde a MGM em 1939, conseguiu tal feito. No ano seguinte, o co-presidente da empresa, Harvey Weistein, foi selecionado 28

pela revista Time como um dos 25 americanos mais influentes do ano. Não que todos os filmes Miramax traduzissem a quintessência do independente ao pé-da-letra de definição dos mais radicais; muitos desses filmes que fizeram sucesso no circuito comercial, com o próprio O Paciente Inglês, não têm o que é considerado uma atitude independente, ou seja, um estilo próprio e marcas autorais independentes da forma de financiamento. Com a evolução do termo - e cada vez mais a dificuldade em determinar o que é ou não independente -, estúdios que não estavam inseridos no grande mundo dos negócios de Hollywood, às vezes com recursos mais escassos, também produziam filmes mais comercialmente aceitáveis como uma forma de se manter no mercado. Foi justamente pela Miramax que Tarantino lançou seu filme-hit Pulp Fiction, após o sucesso de críticas durante o Festival Sundance de Cinema com seu filme de estreia como diretor, Cães de Aluguel. Para Levy (1999), a principal referência do cinema independente norteamericano veio de outsiders, ou seja, aqueles que não pertencem a um grupo particular. E, apesar da influência direta da concepção de autor da escola francesa de cinema e a nouvelle vague, o teórico caracteriza na verdade os "intrusos" de duas formas: uma divisão entre os personagens e os próprios diretores. Nos filmes de John Waters, os protagonistas podem ser considerados, se vistos por uma perspectiva da maioria, no mínimo esquisitos, "diferentes" e caricatos. Já os diretores não necessariamente são outsiders por virem de outro local, mas por não pertencerem a um grupo da maioria. Ou seja, são pessoas que vem de minorias, seja elas quais forem. Isso pressupõe, no mínimo, uma visão diferente do mundo que é transferido para suas criações. São diretores e cineastas que não são da cultura mainstream, comprometidos com a diversidade cultural e que tiveram as vozes ignoradas pela cultura dominante. Mulheres, hispânicos, gays e lésbicas, negros e outras diversidade culturais tem a possibilidade de mostrar seus olhares através de seus filmes. Ainda em Cinema of Outsiders, há uma tentativa de delinear quando se deu início o chamado novo cinema independente norte-americano e seus principais nomes diretores. Muitos teóricos consideram o ponto de partida como Estranhos no Paraíso (Stranger Than Paradise, 1984). Mas Levy considera que Eraserhead (1977), do diretor David Lynch, pode ser o início do movimento. Inclusive pelo período de 1977 e 1978, 29

quando houve grandes avanços para o cinema indie, tanto na parte organizacional quanto artisticamente. O próprio teórico inclui em seu livro discussões sobre Pink Flamingos (1972), de John Waters, e outros diretores como Jon Jost, David Lynch, John Sayles e Seteven Soderbergh. O novo cinema independente norte-americano não pode ser considerado um movimento, pois não há definição ou uma categoria formal de seu acontecimento. Entretanto, é no mínimo imprudente fechar os olhos para as mudanças culturais resultados da inserção desta nova lógica cinematográfica, tanto dos cineastas, passando pelo mercado que teve de se adaptar, e até mesmo o público. Os filmes indies podem ser pensados como um movimento cultural, com sua própria estrutura, que possibilitou novas formas cinematográficas emergirem contra a natureza opressiva da sociedade norte-americana. Apesar de ser independente de espírito - e não tanto, talvez, comercialmente -, o cinema independente depende e muito do passado. Vários cineastas que começaram seus trabalhos nos anos 60 e 70 influenciaram o cinema independente contemporâneo, que começa na década de 90 com o estreitamento de relações entre a produção independente e as grandes produtoras. Temas, estilos e paradigmas de diretores como Robert Altman, Martin Scorcese e John Cassavetes não podem ser ignorados quando estudamos o cinema independe de hoje. Cassavetes é considerado por teóricos como sendo o pioneiro na american new wave, um movimento cinematográfico simultâneo a nouvelle vague francesa. Porém, há uma grande diferença entre eles: enquanto os franceses trouxeram a perspectiva da crítica para os filmes, como Gordad e Truffaut que eram críticos de cinema antes de embarcar na carreira de direção, Cassavetes trouxe a compreensão do ator para suas obras. Ser ator no cinema deu ao cineasta segurança para fazer filmes diferenciados dos que estavam sendo produzidos nos Estados Unidos. Em seu filme Shadows (195859), com orçamento de US$40 mil, o diretor aborda um caso de amor entre um homem branco e uma mulher negra com atores desconhecidos, trazendo realismo para a miseen-scène. Apesar da proposta, o filme teve pouco tempo para a edição e foram feitas alterações pela United Artists, que era responsável por distribuir o filme, que modificou a visão do cineasta. Depois da direção de dois filmes hollywoodianos sem muita pretensão artística, Cassavetes lança Faces (1968), com olhar íntimo para um 30

casamento falido. O longa levou oito meses para ser filmado e dois anos em edição. O diretor influenciava seus atores a interpretar de forma livre e improvisada, mas erra quem compara com o teatro: havia o roteiro e ele era objetivo, mas a forma de expressar os sentimentos confusos que eram livres. Seus filmes dissecam as relações pessoais de vários pontos de vista e o faz através da sinceridade da atuação. Em um tempo onde as enorme produções cresciam e os atores eram cada vez mais plastificados, Cassavetes mantinha uma voz singular em solo americano. Considerados por Levy como "filhos" do cinema que Cassavetes deu início estão nomes como Sean Penn, John Turturro, Alexander Rockwell, Seteve Buscemi e o filho do diretor citado, Nick Cassavetes. Já Quentin Tarantino aparece junto com Abel Ferrara, Nick Gomez e Paul Thomas Anderson como "descendentes" do estilo cinematográfico de Martin Scorcese, com sua paixão pelo film noir e caracterização dos personagens. A edição rápida, a câmera que balança e os frames acabam por se tornar a principal matéria de seus filmes. É exatamente dessa forma também para Tarantino, onde a forma de contar uma história através de um filme é tão importante quanto o que será passado com a narrativa. Como já discutido quando analisando a importância do cinema de gênero para as obras de Tarantino, o diretor não despreza os gêneros já formados pela indústria cinematográfica, mas pelo contrário. Tarantino utiliza desses gêneros, os mesclando com os filmes de exploitation, para transformar em uma nova criação de caráter pessoal. Apesar de abordar temas parecidos com o de Scorcese honra, lealdade e redenção e principalmente vingança, como será analisado posteriormente com mais calma, são temas recorrentes nos filmes do diretor, como Pulp Fiction - Tempos de Violência, Cães de Aluguel, a séria de dois filmes Kill Bill, Bastardos Inglórios e Django Livre -, os filmes de Tarantino tem um tom diferente de sensibilidade. O sentimentalismo, presente em filmes mais espirituais de Scorcese, não figura nos filmes destacados. O mundo não sentimental de Tarantino, porém, diz respeito essencialmente aos sentimentos de ternura e compaixão, permitindo ao diretor não fazer uma separação clara dos personagens na dicotomia bom e mau. Em Cães de Aluguel, por exemplo, o roteiro se constrói dentro de um grupo de ladrões e golpistas. Por mais errado que seja o ato do roubo, durante o filme descobre-se um traidor entre eles, alguém que vazou a 31

informação do grande roubo para os policiais. Com a situação insustentável de descobrir quem é o infiltrado, Mr. Blond tortura um policial, chega a arrancar-lhe a orelha - enquanto uma surf music toca no rádio que o próprio personagem ligou. Apesar da descrição parecer uma cena óbvia entre mau bandido e bom policial, isso se torna impalpável a medida que os golpistas tentam achar quem dali não se comprometeu com o acordo, fugindo à lógica do código de honra dos próprios ladrões. Citado apenas como exemplificação, a impossibilidade de se separar o bom e o mau nos filmes do diretor dá chances de espaço para os anti-heróis. O diretor compreende que o seus filmes são uma reflexão da cultura pop muito mais do que são, por si mesmo, cultura pop. A construção dos diálogos é, sem dúvida, a principal marca do diretor dentro do cinema independente. A primeira cena de Cães de Aluguel se passa em torno de uma mesa, câmera rodando ao centro, focando nos futuros ladrões que passam minutos discutindo o significado da música Like a Virgin, de Madonna. Os diálogos são extensos e, na maior parte da vezes, discutem banalidades que não acrescentariam nada ao roteiro, no caso, ao golpe que os personagens estão tramando. Da mesma forma, em Pulp Fiction há o diálogo entre Vincent e Jules sobre hambúrgueres, enquanto caminham para receber mais "missões". Os diálogos, por mais que não pareçam acrescentar ao desfecho das atitudes, transformam a percepção dos personagens com o público. Ao ver golpistas discutindo coisas banais, como uma música pop, a imagem de crueldade e errada se esvai, tornando o público próximo dos anti-heróis. Como Levy (1999) lembra em seu livro, Tarantino não é criativo no que diz respeito a criar novas histórias; boa parte delas são retiradas de outros filmes, séries e gêneros cinematográficos. "Mas não são as histórias que ele conta, mas como conta. Mais do outros diretores, Tarantino entende que a sociedade que toma como referência todos os pontos da cultura pop, o senso de identidade americana é altamente baseada em imagens, o que explica sua aproximação com o artefato mais comum em nossa cultura" (LEVY, Emanuel. Cinema of Outsiders: The rise of American Independent Film, 1999:127)

O diretor se apropria de situações familiares e as subverte com momentos inesperados de violência e uma mudança radical no tom, utilizando desses momentos com o gênero de exploitation, chamado por alguns teóricos como trash films, na 32

reprodução gráfica da violência e inserção da fatalidade no roteiro. Como será analisado mais a fundo em À Prova de Morte, um momento claro no filme é quando, durante a perseguição de carros entre Stuntman Mike e as garotas protagonistas, os papéis se invertem e as garotas passam a perseguir o assassino. Apesar de ser um filme que já remonta todo o universo do exploitation, a segunda parte da perseguição se caracteriza como um dos momentos inesperados de violência do diretor. Apesar de não compartilhar do sentimentalismo de Scorcese, Tarantino utiliza e muito um sentimento em seus filmes: a vingança. No filme analisado em questão, ele também aparece no exato momento em que o grupo de mulheres protagonistas conseguem derrotar o assassino. Como o filme é uma homenagem ao exploitation, é preciso entender primeiro a construção do movimento, suas características e o contexto cultural em que surgiu, para depois compreender a subversão citada. 2.2 Tarantino e o flerte com o Exploitation; Um cinema à margem Autor de um livro específico sobre o cinema de Trantino, que esmiúça suas obras, as divide em capítulos e analisa de forma próxima suas influências, Baptista diz que, em uma definição abrangente, o cinema de exploitation são os filmes de baixo orçamento feitos fora da indústria, seja ela americana ou de qualquer nacionalidade, que mostram mais violência, sexo e drogas do que a produção majoritária. Para brasileiros, talvez, seja mais complicado definir no repertório próprio, já que sempre tivemos nossas referências mescladas com o próprio cinema norte-americano. Mas no País, tivemos experiências que podem ser consideradas pertencentes do “movimento” do exploitation com a pornochanchada. Um dos maiores expoentes do tipo cinematográfico que fez sucesso na década de 70, estão cineastas como Zé do Caixão e a produção dos filmes da Boca do Lixo, em São Paulo. José Mojica Marins, o Zé do Caixão, se transformou em uma figura do inconsciente coletivo brasileiro com seus filmes onde ele é o coveiro mal-humorado e comete barbaridades, misturando o terror com o sensual. Com uma trajetória com alguns pontos parecidos com Tarantino, Mojica nunca estudou cinema. Começou sua carreira aos 17 anos, quando resolveu criar junto de amigos uma empresa para rodar filmes. Exibindo suas produções em locais 33

humildes, como praças e circos, o cineasta aprendeu a lidar desde sempre com a falta de recursos. O nome da expressão tupiquiniquim dos exploitation vem de chanchada, uma categorização de filmes com humor ingênuo e adicionado do “porno” em referência à alta dose de erotismo que, apesar de não mostrar em momento algum sexo explícito, em um país prestes a entrar em ditadura levava à associação do conteúdo erótico com a pornografia. Assim como a pornochanchada, há outras subvertentes, mas todos são considerados como partes mais específicas dentro do universo do exploit. Mas, para possibilitar a análise das referências dos filmes e do cinema como um todo no mundo de Tarantino, a definição se torna mais restrita do termo exploitation films como “produções independentes americanas de baixo orçamento das décadas de 50, 60 e 70, que atraíam o público com doses maiores de violência e sexo que as mostradas pela indústria Hollywood” (BAPTISTA, Mauro 2010:100). Discutir o cinema de exploração (exploitation), principalmente no que diz respeito a três de seus mais importantes vértices - o horror, o sexo e a violência - pede que, primeiramente, seja feito um estudo preliminar abordando tanto o tipo de aproximação que irá atravessar todas as etapas do estudo, como definir os padrões ou categorias que configuram esses vértices. Por não ter sido considerado uma produção cinematográfica válida durante parte dos estudos culturais, o cinema exploit sempre habitou à margem da teoria cinematográfica e entender a sua formação, diferenciação e categorias é uma atividade necessária. O primeiro passo para conseguir fazer suas comparações com Tarantino, é preciso compreender e refletir onde o exploitation se encaixa enquanto parte do universo fílmico. A ordem geral seria, em primeiro lugar, pensar na viabilidade de articulá-lo ao conceito de gênero. Caracterizar por gêneros é um instrumento bastante comum em análise cinematográfica, pela própria tendência em se compartimentar para uma melhor especificação. Não é o propósito questionar ou colocar em discussão as teorias sobre gênero, que já foram previamente abordadas sobre o conceito de gênero cinematográfico e uma teorização sobre a teoria do gênero pós-moderno. Para inclusive facilitar a referência ao conjunto de características próprias do exploitation, considero o exploit, neste estudo, como gênero, ou seja, como um sistema de códigos, convenções e estilos visuais que possibilita ao público determinar rapidamente e com alguma 34

complexidade o tipo de narrativa que está assistindo. E também aceitar a maneira como mudam, modulam e redefinem a si próprios continuamente. Por ter sido marginalizado pela própria lógica da indústria cinematográfica, o exploit não é considerado por muitos teóricos como gênero, passeando entre termos como movimento ou até mesmo sendo considerado características menores de uma gama de marcas estilísticas dentro de um determinado período temporal. O cinema de exploitation tem várias faces e merece certos cuidados ao ser classificado ou rotulado. Com o nascimento do “gênero”2 junto com a criação do aparato cinematográfico, enquanto as imagens em movimentos foram tomando forma e linguagem própria, o cinema de exploit já estava presente, também da sua forma antecessora. Entre os anos 50 e 70, a categoria desses tipos de filmes atingiram o auge do seu desenvolvimento, com exibições de baixo custo em cine drive-ins principalmente em território norte-americano. Apesar de ter grandes nomes do gore, splatter e giallo subdivisões do exploitation -, os Estados Unidos não foram os únicos a ter produção ativa na área, com contribuições em vários locais do mundo, inclusive no Brasil com a pornochanchada, como já citado. São filmes que tem como objetivo principal capitalizar em cima da exploração de temas considerados polêmicos ou tabus em determinado momento da sociedade e encontram o seu espaço ao exibir nas telas o que a indústria principal não pode - ou não quer - mostrar. Pela amplitude de seu raio de ação, considerando que levantava temas e permitia uma maior experimentação estética, já que não havia manuais rigorosos para este tipo de filme, também podemos considerar o exploitation uma linha que se ramificou pelos mais diversos gêneros cinematográficos e criou vertentes derivadas desses gêneros (PIEDADE, 2002). Além disso, é comum encontrarmos novas ramificações a partir dessas vertentes, e em muitos casos, fusões em um mesmo filme, de elementos característicos de várias delas. Como a lista de subdivisões é considerável e categoriza cada marca principal do que é explorado no filme, seja o sexo, a violência gráfica ou a presença de canibais, por exemplo, as possibilidades de cruzamento que é permitido hoje com o cinema de gênero pósmoderno são infinitas. Filmes que foram bem aceitos mesmo fora da esfera alternativa, 2

Como a referência dos filmes de exploitation como gênero não são abertamente teorizadas por autores, sendo ainda um ponto de discussão entre os poucos teóricos que analisam os determinados filmes, utilizo entre aspas para lembrar que é uma associação minha para facilitar ao decorrer do trabalho.

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como Uma Noite Alucinante - A Morte do Demônio (The Evil Dead, 1981), de Sam Raimi, e A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead, 1968), de George A. Romero, não apenas utilizam todos os recursos do exploitation, mas surgiram do meio exploit, entre mockbusters e giallo, e conseguiram sair do circuito alternativo. Tanto que os diretores, consagrados por se tornarem grandes nomes dos filmes com estética trash, seguiram suas carreiras de determinadas formas. Romero continuou a direção de filmes de zumbis, sendo uma das principais referência - inclusive dentro da indústria hollywoodiana, hoje - para este tipo de cinema. Sam Raimi se tornou ainda mais mainstream e dirigiu a triologia de Homem Aranha. A variação é tamanha que filmes como Sem Destino (Easy Riders, 1969), do diretor Dennis Hopper, pode ser considerado um título influenciado pela categoria de biker films, já que os títulos abordavam o cotidiano de gangues de motociclistas. Outro exemplo de como a ramificação de suas subvertentes se faz presente em filmes considerados legítimos pelo mainstream é Tubarão (Jaws, 1975), de Steven Spielberg, que leva o assunto dos monster movies para a indústria. Isso porque a essência maior do exploitation é explorar assuntos que são proibidos. Dessa forma, tabus à época como miscigenação, aborto, sexo e doenças venéreas e, principalmente, a violência, eram de serventia como a principal matéria dos filmes do “gênero”. Os exploitations exibiam o que a indústria cinematográfica não era permitida de revelar. Tendo em vista essa utilização contemporânea - e um pouco confusa - de outros gêneros e estilos cinematográficos, fica evidente a inviabilidade de se compartimentar e tecer classificações estanques para algo tão flexível como o cinema de exploit. Schaefer (1999) teoriza sobre a origem dessa vertente cinematográfica e considera que o exploitation surgiu no ciclo de filmes educativos sobre “escravos brancos” no início dos anos 10 nos Estados Unidos, principalmente a respeito da compra e venda de mulheres para prostituição. O autor considera que eles precederam a estética no que diz respeito a abordar temas tabus e mostrar o personagem à margem do american way of life e seu sucesso, como as prostitutas. Outros filmes que também tiveram sua importância no desenvolvimento da indústria marginal às grandes produções foram os filmes de sex hygiene - produções de caráter também informativo que falavam sobre métodos de higiene no sexo, principalmente para evitar doenças 36

venéreas. No início de sua veiculação, os filmes eram considerados “normais” e educativos, porém em pouco tempo se transformaram na escória da produção cinematográfica pela censura. Com o veto, a censura não somente construiu um ideal do que poderia ou não estar nos filmes mainstream, criando um ideário próprio, mas separou a indústria que faria filmes de conteúdo que Hollywood não mais se aproximaria. Simultaneamente, a indústria se estabilizava em torno da narrativa linear como método mais palatável para os públicos, enquanto os filmes de sex hygiene, que eram considerados por muitos como propaganda, se distanciavam das convenções de narrativa cinematográficas. E, como eram filmes de caráter informativo, as doenças venéreas atingiam grupos diferentes de pessoas, de todas as classes. Pequenos filmes mostravam gonorreia e sífilis em lares burgueses, assim como no exército. A não distinção de classes, na época, foi alvo de grandes críticas e que fundamentou a horizontalidade dos filmes exploitation, no que diz respeito ao debate de classes. Já nos anos 20, a censura municipal norte-americana poderia editar filmes ou até mesmo rejeitar filmes inteiros, com três tópicos abrangentes de proibição que envolviam cenas com sexo, seja de forma explícita ou sugerida, nudez, vícios, desrespeito a religião e vulgaridade. Houve então uma cisão; os grandes estúdios, assim como até então pequenos, como a Warner Bros., escolheram deixar de lado filmes polêmicos para se adequar a censura, rejeitando cenas vulgares e violentas em suas produções. Enquanto isso, produtores menores se organizavam de forma difusa, distribuindo em circos e circuitos de beira de estrada pequenas produções que ainda apostavam nos temas proibidos. Essa coalizão desorganizada pode ser considerado o nascimento da indústria do exploitation. Execrados do rótulo de cinema de qualidade pelos grandes estúdios e com a exclusão abraçada por teóricos durante muito tempo, o “gênero” em questão soube aproveitar exatamente suas características peculiares para se afirmarem como uma indústria marginal, existindo, porém, em locais “entre” Hollywood. Com o crescimento do exploitation e de seu público ao longo dos anos, principalmente após os anos 50, com uma maior capacidade de distribuição e com maior gama de equipamentos mais acessíveis, as produções do expoit estabeleciam uma relação de necessidade com a grande indústria, possibilitando a existência dos dois lados. Eram opostos que necessitavam do outro para se afirmar, ou como o cinema de qualidade de 37

Hollywood, ou como o cinema que mostrava o proibido. Com o crescimento dessa vertente, os filmes exploit continuaram com o maior objetivo de contar histórias sobre os “outros”. Notemos, entretanto, que essas histórias não tem pretensão com a realidade, não são documentários, mas são filmes que colocam no centro da mise-en-scène os excluídos do grupo social, mesmo que de forma a explorar apenas o que é considerado proibido. Schaefer cunha a expressão para falar sobre uma parcela da sociedade que, assim como os assuntos abordados nos filmes em questão, eram consideradas tabus. Em um reflexo da própria construção do cinema de exploitation, que fica à margem da grande indústria e seus filmes românticos, os protagonistas que figuram os filmes exploit são pessoas também à margem da parcela idealizada e homogênea família norte-americana, com seus valores de consumo e características que existiam muito mais na imaginação popular e midiática do que real. A parcela estigmatizada da população, como prostitutas, doentes, viciados, mães solteiras, homossexuais e mulheres que recorreram ao aborto, por exemplo, estampavam os cartazes das produções. Como os filmes do “gênero” devem sua criação, dentre outras características, principalmente às restrições feitas pela censura e que foram impostas com os anos pela própria indústria de Hollywood, é importante marcar as diferenças na forma de produção entre as duas categorias cinematográficas, ambas que nasceram em solo norte-americano. Com o passar dos anos, os estudiosos na área do cinema começaram a agrupar em tópicos as principais características que diferenciam as produções hollywoodianas de outros filmes. No livro The Classical Hollywood Cinema, de David Bordwell (1985), o teórico divide em três etapas o modo específico de produção dos cinema de Hollywood: a força de trabalho empregada nos filmes, os meios de produção das películas e a forma de financiamento das obras cinematográficas. Para conseguir delimitar de melhor forma os filmes exploitation, se faz necessário a compreensão do modo de produção da indústria para compará-los, já que sempre foi traçado um paralelo entre os filmes exploit e hollywoodianos pela crítica e pelo próprio público. Os grandes estúdios de cinema mantinham nomes de produtores, editores e diretores para formar suas equipes. A lógica do trabalho em Hollywood é ser empregado de um estúdio, e não de um filme. A edição, direção ou produção de um determinado título é 38

uma atividade que se exerce temporalmente, continuando a fazer parte da equipe da empresa sob contrato, o que quer dizer que muitas vezes os trabalhadores eram filiados aos sindicatos e, portanto, uma forma de garantir que eram profissionais da área. Já os produtores dos filmes exploitation não tinham como base os contratos de trabalho, mas sim eram empregados por cada filme e preferencialmente técnicos que não eram sindicalizados (SCHAEFER, 1999). Para cortar gastos, era mais barato o contrato temporário de pequenas equipes que não fossem filiadas ao sindicato, o que significava muitas vezes a contratação de pessoas que não sabiam exatamente a função que exerciam. Nem todos os produtores eram adeptos, alguns, como a produtora de Sonney Amusements, do produtor Louis Sonney, que realizou filmes como Hell-A-Vision (1936) e You Can't Beat the Rap! (1936), eram contra a ideia de manter um menor número de pessoas dentro da produtora e contratava apenas funcionários sindicalizados. Mas, como geralmente era utilizada mão de obra desqualificada, eram comum edições não usuais e também movimento de câmeras muito rápidos. Também para cortar gastos, os atores e atrizes contratados eram menos habilidosos, a maior parte deles procuravam ganhar experiência ou tentar, de alguma forma, ser notado como profissional. Com a redução na equipe, também era comum a divisão do trabalho nos filmes de exploitation não se ater estritamente a áreas específicas, como em Hollywood. Enquanto as divisões de trabalho só foram se tornar mais maleáveis na grande indústria após a Segunda Guerra Mundial, os cargos nas produções exploitation nunca foram muito bem definidos. Os profissionais se dividiam em dirigir e editar, produzir e escrever ou até mesmo dirigir e atuar nos filmes. Klaytan Kirby, por exemplo, escreveu, produziu, dirigiu e editou todos os seus filmes, como o sexploitation A Virgin in Hollywood (1953). O próprio Tarantino utiliza deste recurso como forma de, a certo modo, referenciar os filmes de exploitation, mesmo em produções que se encaixam em outros gêneros. Além de dirigir e escrever, com sua referência de vídeo-locadora, o diretor faz pequenos papéis em quase todos os seus filmes. No seu primeiro longa dirigido, Cães de Aluguel, Tarantino é o Mr. Brown, que morre baleado pela polícia durante o assalto praticado pelo grupo. Em Pulp Fiction - Tempos de Violência, Tarantino interpreta Jimmie Dimmick, que recebe a visita de Jules e Vincent ao tentar se livrar do corpo de Marvin, quem mais cedo mataram por acidente. Em Bastardos 39

Inglórios, Tarantino é um dos nazistas que são escalpados pela equipe do tenente Aldo Raine. O único filme que é de fato uma referência ao exploitation como “gênero”, e não apenas em pequenas escalas, é À Prova de Morte, onde Tarantino interpreta o barman do lugar onde Stuntman Mike frequenta. Para realizar grandes filmes, os estúdios de Hollywood eram donos dos meios de produção, ou seja, dos sets de filmagens, equipamentos, figurinos e toda a tecnologia necessária para se fazer um filme. Os pequenos estúdios, de filmes B3, também tinham em grande parte os meios, as vezes sendo necessário aluguel de parte do equipamento. A maior parte dos realizadores de exploit films não tinham os meios de produção necessários, sendo preciso alugar todo o equipamento e os sets de filmagem, ou seja, existia um distanciamento da equipe, que já mudava a cada título, e do aparato técnico. Como lembra Schaefer em seu livro, “se a força de trabalho já não era acostumada a trabalhar junto, não-familiarizados com o equipamento e o espaço alugado para a produção, problemas eram inevitáveis”. Associado com o pouco tempo que era disponível para as filmagens, a falta de orçamento tinha como resultado problemas como microfones avançando a cena filmada, iluminação ruim, atores confusos e falhas no áudio, por exemplo. A produção feita em espaços alugados contribuía também para a aparência de improvisação dos filmes de exploitation. Para conseguir o menor gasto possível, os móveis para decorar uma boate, por exemplo, eram algumas mesas e cadeiras. A decoração e mobília muito mais sugeria um local onde se passaria a cena do que necessariamente era fiel ao que representava. Com o uso de espaços alugados, também não era raro os erros de continuidade em cenas filmadas em locais diferentes. O que eram, então, consequências diretas da falta de

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Apesar de termos que facilmente se confundem, filmes B não tem o mesmo conceito de filmes exploitation. Em uma visão dos valores de orçamento, há uma variação. Nos anos 30 e 40, filmes de grandes estúdios tinham orçamento acima de US$300 mil. Os filmes B, de estúdios menores, circulavam em torno de US$50 a US$70 mil, enquanto nos filmes de exploitation os valores tinham uma média de US$20 mil (SCHAEFER, 1999:51). Mesmo com a diferença de valores, estúdios com orçamentos menores não supõem necessariamente uma abordagem diferente do que era feito na indústria cinematográfica. Exploitation films focavam no tabu, no proibido, e o orçamento pequeno vinha como consequência desse enfoque. Os filmes B, por suas vezes, até tinham roteiros mais intelectuais, mas seguiam em maior parte das vezes a censura imposta por Hollywood. Um exemplo foi a Monogram Pictures, que depois se tornou Allied Artists Pictures. A Monogram atuava em mercados mais segmentados, principalmente em filmes western, e tinha como característica principal o número de financiamento menor do que os filmes de grandes estúdios, mas conseguiu lançar títulos com grandes nomes, como John Wayne.

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recursos para a realização dos filmes, se tornou depois característica estética e estilística dos filmes de exploitation. Não que em algum momentos houve um aumento significativo

dos

recursos,

apesar

de

que,

quando

atingido

seu

principal

desenvolvimento, na década de 60 e 70, os produtores passaram a ter mais recursos do que inicialmente, enquanto o cinema de exploit ainda se desenvolvia. Mas sim que, ao descrever a estética dos filmes, todos os elementos como erros de continuidade, falhas na edição e a imaturidade dos atores fazem parte da marca estilística do “gênero”, que mais tarde será utilizada de maneira a ser referenciada em outros filmes, tendo como exemplo o filme À Prova de Morte, que tem falhas na película e saltos nos filmes para reproduzir os desgastes dos rolos de filme em pequenas salas de exibição, como será analisado de forma mais detalhada ao seguir deste trabalho. Nem sempre os “defeitos” dos filmes de exploitation eram resultados de má formação de equipe ou equipamentos alugados às pressas. Além de todos as características já citadas, muitos exploitation’s films tinham como forma de render um filme a partir de sua reciclagem. Também como resultado dos baixos orçamentos das produções, havia portanto mecanismos para estender a sua “vida fílmica” mudando o nome do título e modificando ou acrescentando algumas cenas, uma técnica muito mais barata do que simplesmente produzir um filme inteiramente novo. Em 1956, a Astor Film Exchange vendeu os direitos do filme Hometown Girl (1948) para Don Kay, um produtor do "gênero" à época, com um contrato que permitia Kay mudar o título e a embalagem do filme, que se transformou no “novo” Secret Scandal (1956). Os custos totais para a repaginação do título, com novos cartazes e modificações no negativo do filme, foram de cerca de US$1,4 mil. Filmes que não fizeram tanto sucesso, principalmente no segmento dos filmes B, recebiam um tratamento exploitation muito tempo após a sua data de lançamento, chegando às vezes a receber novas cenas filmadas. Algumas cenas mais genéricas, como perseguições de carro e amplos takes de paisagens ou cenas urbanas noturnas, eram compradas de banco de imagens, tornando mais barato mesmo uma modificação do filme original. As técnicas de reciclagem extendiam a vida - principalmente financeira - de filmes antigos. O título Is Your Daughter Safe? (1927), que depois se tornou um dos clássicos de sexploitation ao abordar a escravidão e abusos sexuais, é uma compilação de filmes antigos, alguns 41

com mais de até 15 anos, intercalados com imagens de banco de imagens, como cenas de doenças sexualmente transmissíveis. Ou seja, a combinação de material antigo recebia novos títulos, narrações e algumas edições e eram vendidos comos filmes totalmente novos, numa espécie de mash up de vídeos feito de forma arcaica. Mas a combinação do material nem sempre era integrado da forma correta e era comum haver (mais) problemas de continuidade entre as cenas, da mesma maneira que a manipulação de películas antigas gerava ainda mais desgaste, como arranhões em imagens já desbotadas. Além do uso de cenas compradas de banco de imagens, o autor lembra de outras técnicas utilizadas pelos produtores de filmes de exploitation. Como por exemplo a criação de duas versões do mesmo filme, uma mais “quente” e outra mais “fria”, já que a censura mudava de local para local. Outra técnica é o padding4. Já que o espetáculo era o mais importante dentro de um filme exploit, a narrativa era colocada em segundo plano. Os elementos da narrativa em alguns filmes que tinham focos objetivos em algo proibido às vezes nem existiam. Dessa forma, era preciso enxertar o filme com cenas para que o título conseguisse ganhar um tempo extra de 15 minutos, por exemplo. Eram cenas que muitas vezes não pareciam ter uma ligação direta com a trama em si. O que faz lembrar e muito os diálogos dos filmes de Tarantino, muitas vezes sem conexão aparente com o objetivo da trama, apenas retardam os acontecimentos. São as cenas que mostram diálogos como o de Vincent e Jules em Pulp Fiction, que percorrem Los Angeles discutindo sobre fast food em outros países. O objetivo principal é distanciar do espectador o real motivo da ação dos personagens, que na obra em questão é entregar a maleta a Marsellus Wallace. Ou então em À Prova de Morte, quando Stuntman Mike desafia Arlene a dar-lhe um lapdance. A cena não tem muitos diálogos, composta principalmente pela longa dança sensual da personagem. O espectador espera que Arlene seja a vítima do assassino, enquanto na verdade ele vai atrás de Pam para lhe oferecer uma carona, que acaba se mostrando na verdade um convite para a morte. Baptista (2010) chama tais momentos de “cenas do cotidiano”, como uma irrupção do banal dentro dos filmes de gênero, afinal, longas

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O significado do termo em inglês é "usar algum material para encher ou cobrir algo". Nos termos do português e no contexto cinematográfico, seria algo como a expressão "encher linguiça".

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conversas sobre banalidades e o lado prosaico dos momentos fazem parte da vida comum. Por fim, então, o que mais diverge os exploit films de filmes realizados em Hollywood é a forma de financiamento de suas produções. A grande indústria praticava uma forma de financiamento caracterizado pelo “capitalismo avançado, com concentração e centralização do capital, [...] em uma integração de escala econômica entre os donos dos estúdios e empresas conjuntas de ações no mercado financeiro” (SCHAEFER, 1999). Bem distante desta realidade, o financiamento de pequenas companhias que produziam filmes exploitation eram na maior parte dos casos individuais ou parcerias. Com poucas exceções de algumas produtoras, que distribuíam seus próprios filmes e tinham algumas poucas salas de cinema, a maior parte das companhias não tinha estratégia de divulgação de sua produção. Enquanto os filmes independentes de baixo custo começaram a ser cortados das sessões de estreia nos anos 20, o financiamento se tornou cada vez mais difícil, já que não havia visibilidade. Dessa forma, os filmes de exploitation foram se tornando cada vez mais afastados dos métodos avançados do financiamento capitalista, que envolvia a inserção da empresa cinematográfica no mercado financeiro, com ações valorizadas a medida que o estúdio crescia, e com artefatos da já publicidade, como o mechandising. A dificuldade na forma do financiamento, acrescentado do teor dos filmes, que já não chamava muitos investidores, na verdade, é o que causava diretamente os dois primeiros tópicos, levando as produções exploit a terem os menores orçamentos, os mais curtos períodos de filmagem e o menor número de estrelas aparecendo nas telas americanas e, mesmo assim, sobreviveu durante as décadas. Os filmes de grandes estúdios e até os filmes Bs deveriam dialogar com um público amplo e diverso, com mulheres, homens, ricos e aspirantes a ricos, com a classe média e seus valores norte-americanos. Os filmes de exploitation, ao contrário, tinha um conteúdo específico, que tornava os filmes atraentes para público também específico e, muitas vezes, fiel. Apesar de ter suas características próprias de produção, levanto em consideração pontos mais técnicos, como os que foram abordados sobre os meios de produção e formas de financiamento, a estética do exploitation tem em seu cerne a temática. Quando a censura começou a ditar o que seria proibido ou não dos filmes por 43

volta de 1920, acatado por Hollywood, uma série de assuntos se tornaram tabus e considerados imorais, que foram exatamente onde o exploitation decidiu fincar sua produção. Mais do que filmes de baixo orçamento, o “gênero” tem um universo próprio. Segundo o Longman Dictonary of Contemporary English, exploitation significa uma situação de que alguém tira partido, de forma não honesta, em benefício próprio. Significa a exploração e, neste caso, a exploração do proibido pelo imaginário e pelos valores culturais da sociedade. Já que o significado da palavra consiste na exploração, existe uma tendência, portanto, - e é importante levarmos em conta - a se considerar o exploitation como uma característica do próprio cinema e os elementos da exploração inerentes a qualquer filme. Qualquer filme que aborda terminado assunto para fazer dele um plano de fundo para seu roteiro seria, portanto, a exploração de um tema. O diretor de filmes de horror Larry Cohen afirma, em seu depoimento para o documentário Hollywood Rated "R" (1997): Todo filme é exploitation. Faça um filme sobre tubarão, é exploitation. As pessoas têm medo de ir nadar. Tudo é exploitation. Sexo é exploitation. Violência é exploitation. Até comedia, explora o fato de as pessoas estarem deprimidas e desejarem rir. Pagam para ter algumas horas de alegria antes de voltar à sua vida miserável. Tudo é exploração. (COHEN apud PIEDADE, 2002, p. 14)

Claro que, se for levado em consideração que todos as obras do universo fílmico exploram algum assunto, a categorização de exploitation perde o sentido. Mas aqui, neste movimento cinematográfico específico, a exploração é de temas considerados proibidos. Apropriando essa lógica para o “gênero” em questão, é possível então agrupar em subcategorias os filmes a partir do que eles exploram de forma mais clara, levando em consideração seu país de origem, já que, apesar de ter nascido durante o crescimento do cinema norte-americano, o exploit se tornou uma estética mundial. Ou seja, dentro do exploitation, há inúmeras divisões, como o giallo, filmes italianos sobre assassinatos de forma cruel, ozploitation, com filmes australianos, e outras categorizações, com os slasher films que focam a violência gráfica de psicopatas e assassinos, além do sexploitation, onde era possível encontrar cenas de nudez e mulheres seminuas, algo que hoje seria considerado como soft porn. Essa separação ocorreu principalmente nos anos 60 e 70, após a produção dos filmes de exploitation se 44

tornarem mais fáceis e também quando atingiu seu auge de público, com categorias segmentadas por eixos temáticos. Mas é depois dos anos 50 que o termo exploitation começou a mudar em relação ao seu conceito original, segundo Schaefer. Começou a ser chamado de exploit film qualquer filme de baixo orçamento que abordasse temas que causavam controvérsia, mas que não eram mais proibidos, já que a censura deixou de funcionar a nos estúdios de forma explícita a partir da década de 705. Filmes como os da American International Pictures (AIP), uma companhia cinematográfica voltada para o público adolescente, para o teórico, começam a mudar o sentido da categoria dos filmes de exploitation. Apesar de ter começado como uma companhia de baixo custo, os filmes tinham orçamento de, no mínimo, US$2 milhões e tinham roteiros que falavam diretamente com os mais jovens, como os filmes de festa na praia (Beach Party, 1963) e filmes de carros (Hot Rod Gang, 1958). A empresa conseguiu produzir filmes que viraram sucesso, como Beach Party, e tiveram como parte do elenco de alguns filmes nomes como Dennis Hopper, Jack Nicholson e Peter Fonda. Também foi a responsável por lançar um dos clássicos de blaxisploitation Foxy Brown, que tornou Pam Grier um dos maiores nomes do subgênero. O autor considera, portanto, esse novo cinema de exploitation como diferente para diferenciar do que chama de exploitation clássico, no período antes dos anos 50, e o divide em função do conteúdo entre os filmes de sex hygiene, filmes de drogas, filmes burlescos e nudistas e filmes de atrocidade e exóticos. Ora, seria o caso de considerar que houve uma evolução do “gênero”, e não que isso deve pressupor juízo de valor, no sentido de evolução como sinônimo de algo bom, mas como algo que mudou ao longo da história e re-contextualização do tipo de filme. A partir da década de 50 se criou um gosto pelo bizarro, com o teor de violência e horror, e isso passou a ser utilizado de outras formas nos filmes, alguns com mais dinheiro para a produção, inclusive. Nos dias atuais, há uma indústria em torno dos filmes de terror com grandes valores de orçamento e público, principalmente com a ajuda do cinema asiático, que jamais pensaria em ocupar a posição de grande indústria nesta época, como O Grito (The Grudge, 2004) e O Chamado (The Ring, 2002). 5

Além da censura que antes era praticada por autoridades municipais e estaduais que variavam em cada estado, a indústria tinha uma lista de censura moral chamada Dont’s and Be Carefuls lançada em 1934, que mais tarde se transformou em Production Code. Em 1968, a indústria desistiu das imposições.

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Mas para Schaefer, mais do que os valores altos em comparação aos antigos orçamentos ou a mudança na forma de produção dos filmes, o principal problema que levou ao fim do que chama de cinema de exploitation clássico é a tomada de assuntos antes proibidos pela própria indústria. O cinema mainstream foi absorvendo cada vez mais os debates sobre violência e revendo seus conceitos sobre pautas proibidas e tendo como resultados filmes que abordavam questões sexuais e mães solteiras, por exemplo. No final da década de 60, filmes lançados pela Fox, como Blue Jeans - O que os Pais Desconhecem (Blue Denim, 1959), falavam sobre aborto em famílias de classe média. Amores Clandestinos (A Summer Place, 1959), da Warner Bros, discutia sexualidade na adolescência, com questões que já eram levantadas por filmes de exploitation desde os anos 20. Como foi dito anteriormente, era necessário a oposição à grande indústria para se afirmar como um tipo de filme que retoma o proibido. Com a fragilização dessas barreiras, se tornou difícil separar o que era exatamente um exploitation film e o que era uma produção hollywoodiana clássica. Como reflexo, a - já não tão pequena - indústria do exploitation teve de mudar, se adaptar, e recorreu a extremizar mais ainda os conteúdos polêmicos que abordavam. É uma escala de história, onde o “gênero” nasce como uma consequência da proibição de temas no cinema mainstream, se consolida como um tipo de cinema importante à margem de Hollywood, começa a perder sua particularidade e passa a ser feito de outras formas, mas em sua nova apresentação ainda com a característica principal de abordar temas controversos, que vão se atualizando ao longo do período. O produtor David F. Friedman, que trabalhou em filmes como Blood Feast e She-Wolf of the SS (1974), caracteriza como essência nos filmes de exploitation “qualquer assunto que fosse proibido: miscigenação, aborto, mãe-solteiras, doenças venéreas… Todos esses temas eram a abordagem do exploiteer - contanto que fosse de mau gosto!” (apud SCHAEFER, 1999). E os filmes foram acompanhando. Se antes exploitation films mostravam a maconha quase de forma educativa, como em Marihuana (1936), os filmes de vício passaram a abordar as overdoses de heroína. Se o conteúdo sexual era sugerido, como em Is Your Daughter Safe?, passou a existir uma categoria do sexploitation e outros filmes, como nazisploitation, mostravam torturas sexuais em campos de concentração nazistas. É uma questão de contextualizar os filmes em cada 46

época. De certa forma, a abordagem de temas controversos isso nunca deixou de ser padrão nos filmes, mesmo durante sua fase de maior audiência nas décadas de 60 e 70. Dentro deste vasto mundo que são os filmes de exploitation, é possível, portanto, selecionar três aspectos que normalmente estão presentes e que fazem do “gênero” sua principal característica: a representação gráfica do sexo da violência e do horror. Em seu trabalho Trashing the Academy:Taste Excess and an Emerging Politics of Cinema, Sconce (1995) aponta o crescimento pelo gosto "estranho", articulando uma forte subcultura do trash, ao logo da década de 70 até hoje. Ele cita fanzines, revistas e outras publicações que falam sobre os filmes das mais variadas formas do "excêntrico e da vídeocultura" (SCONCE, 1995). O teórico chama de paracinema um agrupamento de várias estéticas que se tornaram subculturais formas de idolatrar o "lixo", o que é considerado por muitos inelegível como cinema - e coloca todas as vertentes do exploit nessa seleção. No que diz respeito a crítica cinematográfica, o autor ainda diz que as pessoas que consomem tal cinema não se consideram espectadores cults e muito menos a elite pensante, mas algo no caminho. São pessoas que reconhecem grandes nomes para o cinema, mas simplesmente gostam do rotulado "mau-gosto". Para Sconce, essa audiência estaria mais inclinada a assistir um filme defeituoso de treinamento do McDonald's do que Um Homem com uma Câmera (Chelovek s kino-apparatom, 1929), embora maior parte da comunidade paracinemática não teria dúvidas de ser familiar com o título mais respeitável do avant-garde. A negação calculada e a recusa pela elite cultural sugere que a política de estratificação social e do gosto no paracinema é mais complexo do que um simples divisão entre alto/baixo orçamento, e que a cultura do trash está se tornando cada vez mais ambígua ao passo que essa estética cresce influenciando. (SCONCE, Jeffrey. Trashing the Academy:Taste Excess and an Emerging Politics of Cinema, 1995)

O gosto pelo sangue e pela violência seria o primeiro deste mundo do paracinema a infiltrar o avant-garde, a academia e até mesmo o cinema de massa. E é possível perceber isso pela história do cinema da grande indústria, que começou a fagocitar primeiramente os temas levantados pelo exploitation e a partir dos anos 80 passou a usar também a estética, principalmente as representações gráficas da violência. O que antes era considerado chocante, como cenas de luta, assassinato e 47

muito sangue, a partir da década em questão começou a ser componente essencial para filmes de ação. Para Sconce, a radicalização do setor chocante ao longo das décadas nos filmes de paracinema é uma opção de continuar em oposição ao grupo cultural e econômico vigente, algo como ainda uma contraposição a grande indústria. Com cada vez mais absorção dos temas e estéticas do exploitation, os filmes vão se radicalizando para se afirmar diferentes. Para provar a influência do exploitation em filmes de Tarantino, é necessário a análise de cenas. Em alguns filmes, a paródia fica muito mais evidente, como em Jackie Brown, estrelado por Pam Grier, principal nome dos blaxisploitation (filmes de violência que tinham como protagonistas personagens negros, boa parte deles mulheres), o filme poderia passar por uma produção dos anos 60 da API. À Prova de Morte é uma homenagem clara, já que faz parte de um projeto duplo chamado Grindhouse, nome das casas de exibição dos filmes exploitation em seu auge. Em Cães de Aluguel, a cena de tortura e decepação da orelha do policial por Mr. Blonde ou em Pulp Fiction Tempos de Violência, quando Vincent atira acidentalmente na cabeça de Marvin, têm um enfoque gráfico que relembra os filmes de splatter com muito sangue, como na “Triologia do Sangue” de Herschell Gordon Lewis (Blood Feast, 1963; Two Thousand Maniacs!, 1964; e Color Me Blood Red, 1965). A overdose de Mia, ainda em Pulp Fiction, é tratada por Baptista (2010:80) como momentos onde a teoria das “cenas do cotidiano”, com ideias que a princípio são realistas e fazem parte da vida comum, e que passa por uma escala hiper-real e termina no grotesco e no absurdo. A protagonista confunde cocaína com heroína e leva uma injeção de adrenalina no coração, o que até então é considerado normal. Mas a forma como é feita a injeção, com Vincent furando violentamente o peito de Mia que, ao acordar, levanta como uma morta-viva dá o tom dos extremos adotado por Tarantino. Bastardos Inglórios, que pode ser considerado um nazisploitation às avessas, mostra a tortura de nazistas, como na cena em que alguns soldados conhecem o Urso Judeu e seu taco de baseball - intercalado depois pelo humor irônico do torturador ser apenas um aficionado pelo esporte - e também nos momentos em que deixavam gravado com uma faca e sangue as marcas da suástica nas testas nazistas. Há inúmeras outras cenas que mostram essa relação do diretor e as formas de representação gráfica do exploitation que serão analisadas de forma mais 48

detalhada em À Prova de Morte, o centro deste trabalho.

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3. O CINEMA DE EXPLOITATION EM À PROVA DE MORTE 3.1 Da presença das características do “gênero” exploitation Pode-se dizer que Tarantino efetuou com o exploitation uma reapropiação parecida com o que feito pela nouvelle vague, em especial os diretores Truffaut e Godard, com os filmes de viés mais autoral a partir da classificação de Suppia; Piedade; Ferraraz (apud MASCARELLO, 2008). Da mesma forma que os filmes autorais da década de 50 foram influência para a nova onda francesa eram ignorados pela crítica e habitava locais ao redor da grande indústria, o exploitation films, como já citado, eram considerado um cinema à margem em sua essência e, mesmo após o auge de seu desenvolvimento nas décadas de 60 e 70 com uma audiência fiel e segmentada, sempre foi um cinema marginal para os críticos, pelo menos até há pouco tempo atrás. Com a banalização da violência gráfica nos filmes e a retomada dos exploit films por alguns diretores independentes, especialmente Tarantino e Rodriguez, o olhar e o foco de estudos culturais passaram a abarcar a vasta produção do “gênero”, que tem praticamente a mesma ideia do que o próprio cinema como linguagem. Foram exatamente os dois diretores responsáveis pelo projeto duplo chamado Grindhouse, que se trata dos longas Planeta Terror, do diretor Robert Rodriguez, e À Prova de Morte. Todo o projeto tem sua ligação direta com os filmes de exploitation já em sua apresentação. Grindhouse é como eram chamados as salas de cinema decadentes que ofereciam sessões duplas (dois filmes pelo preço de um ingresso) e geralmente exibiam filmes de violência e terror de mais baixo custo, que sempre ficaram a margem do grande cinema de estúdios americanos (BAPTISTA, 2010). Exibiam poucos filmes por dia e tinham preços diferenciados para cada local dentro da sala, geralmente preços bem abaixo do mercado cinematográfico. Pela associação em atrair uma audiência específica para assistir os filmes de temas proibidos, a grind policy, como era chamado a estratégia de vender um ingresso para dois filmes ou mais, se tornou sinônimo de locais com má reputação, assim como seus filmes. Ou seja, em seu lançamento nos EUA e no Canadá em 2007, o projeto levou aos cinemas uma prática antiga, e, considerando os jovens como a média da audiência dos diretores, o recurso 50

muitas vezes nem foi vivenciado pelos espectadores. Com apenas um ingresso, o público teria uma experiência, contextualizada, é claro, de como eram as sessões nos drive-ins. Até os trailers, hábito que nos dias atuais perdeu a força com a possibilidade de assisti-los na internet e com a inserção de publicidade antes das sessões, foram lembrados. O espectador que foi a estreia presenciou uma sessão de fake trailers, anúncios de filmes que não são verdadeiros, todos remontando a estética e temática variada do exploitation films. Os quatro trailers que antecediam os longas-metragens são Machete, dirigido por Rodriguez6; Werewolf Women of the S.S, de Rob Zombie, Don’t, de Edgar Wright, e Thankisgiving, dirigido por Eli Roth. O cartaz do filme segue a mesma linha, se aproximando de cartazes da época e do estilo de cinema, como é possível pela comparação no Anexo II. Até mesmo a disposição dos elementos do cartaz, como título e as figuras, além das forma “pintada” com cores vibrantes, remonta os posters de filmes exploitation. Ao assistir o filme, a influência se torna mais clara ainda com o tratamento de imagem que simula os exploit films. As cores são desgastadas e há riscos por toda a tela. Em um dado momento, logo após Stuntman Mike receber o lapdance de Arlene, o filme parece queimar na tela grande do cinema e há um salto na trama. Além da produção dos filmes do “gênero”, que, como detalhada neste trabalho, tinha os riscos e os problemas de montagem como reflexo do baixo orçamento com a equipe e com os insumos para a obra cinematográfica, os circuitos do exploitation eram muito maiores do que da indústria hollywoodiana, podendo um título ficar em cartaz até dez anos (SCHAEFER, 1999), justamente por seu caráter itinerante que passava de cidade para cidade. Com a fragilidade da película, que as vezes era mais antiga do que a própria data do filme, e o desgaste das cópias já muito rodadas, eram comum os riscos, lapsos de cenas (quando parte da película se tornava tão danificada que não era possível mais assisti-la, era comum ser simplesmente retirada do filme) e, com isso, erros de continuidade. A trama que envolve o filme é simples e gira em torno de Stuntman Mike, um dublê de carros que tem no seu automóvel à prova de morte uma arma para matar e suas vítimas, sempre garotas. O filme passa a história paralela de Stuntman Mike e um

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Machete se tornou de fato um filme após seu trailer. Dirigido por Robert Rodriguez e Ethan Maniquis, o longa foi lançado em 2010.

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grupo de amigas que se reencontram, até o momento que os papeis se cruzam e Mike decide as fazer de vítimas, em uma perseguição de carros que não termina da forma como o protagonista tinha imaginado. A história com a estética e roupagem antiga, reverenciando os filmes da época, não pode ser considerado, porém, uma simples cópia, ou seja, um pastiche (JAMESON, 1993) dos filmes exploitation. Apesar dos carros antigos, o figurino retomar roupas antigas - como o uniforme de líder de torcida de Abernathy ou então as blusas de malha com temática praiana de Arlene e Zoë Bell e até mesmo o uso da rádio como um meio de comunicação no filme - Jungle Julia é apresentadora de um programa e Stuntman Mike fica sabendo da “promoção” para o lapdance de Arlene pela rádio -, o filme se passa em dias atuais. Tarantino emprega outros artifícios para lembrar os espectadores disso, por exemplo, colocando na mão de personagens mensagem de textos em um celular e aparelhos eletrônicos como um iPod. A presença de aparatos tecnológicos banais para o dia a dia das pessoas “comuns” acrescenta a estratégia de tirar a atenção do espectador sobre o principal tema da narrativa, já que não há nenhuma importância dos aparelhos eletrônicos para o filme. Faz parte da teoria de Baptista, já citada, das “cenas do cotidiano”. De certa maneira, Tarantino faz uma ode a cultura pop de consumo e seus desdobramentos, mas não com uma simples intenção de venerar. O autor ainda considera como cultura pop os hábitos de consumo cotidianos, brincadeiras e piadas sobre sexo com humor irônico, que considera “o conjunto de subculturas de massa como a música ligeira, as séries de televisão, o cinema de ação, a cultura da droga” (BAPTISTA, 2010). Ou seja, o diretor mescla uma situação típica do gênero em questão, seja de crime, western, exploitation, e coloca simultaneamente com aspectos do banal, do rotineiro. O autor também lembra que há nos filmes do diretor a subordinação do protagonista à causalidade, onde o que determina o destino do personagem são suas próprias ações, podendo padecer no fracasso ou no sucesso. A coincidência é geralmente um momento e que desestabiliza uma situação inicial e faz o personagem principal agir. Nas narrativas clássicas de grandes indústrias, é geralmente dessa forma que se identifica um herói, forçado a ação em determinadas situações. Em À Prova de Morte, podemos considerar uma narrativa onde a causalidade tem grande importância, mas talvez com o propósito às avessas do cinema clássico, quando Stuntman tenta fazer de 52

vítima o grupo de garotas comandadas por Zoë e se transforma em vítima, ao invés do assassino. É uma virada da narrativa que vem de um acaso, da junção de duas histórias que são mostradas ao longo do filme. Após a cena da morte de Pam, primeira vítima de Stuntman Mike, fica claro para a audiência a figura do vilão - e fica claro também a primeira grande referência aos filmes de exploitation no uso da violência gráfica sem uma preocupação da fidelidade com a realidade. Até então, o espectador ainda não o reconhece como de fato a posição do “mau” no filme, apenas como um protagonista com atitudes suspeitas, ao seguir Jungle Julia e suas amigas, quando oferece uma carona à funcionária do bar em que estava. Mas, ao conseguir levar Pam para seu carro “à prova de morte” para a suposta carona, Stuntman Mike arranca o carro e começa a dirigir em alta velocidade, fazendo ziguezagues para machucar a funcionária a quem dava carona. De repente, ele diz “Hey, Pam, você se lembra quando disse que este carro era à prova de morte? Bem, não é uma mentira. Mas para conseguir esse benefício, querida, você realmente precisa estar sentado no meu lugar”. Logo em seguida, o vilão pisa com força no freio, jogando Pam contra o painel do carro, resultando em uma Pam completamente ensanguentada e, como esperado, em sua morte. Seu rosto fica coberto de sangue e seus olhos se reviram para trás, mostrando a inconsciência da personagem que foi morta lentamente por batidas na cabeça. Salva as diferentes dimensões de produção e estética cinematográfica, o frame que encerra a cena da morte de Pam lembra, imageticamente, filmes de splatter que focam na violência e principalmente no exagero do sangue em suas cenas, como em um dos momentos da morte de Suzette Fremont, protagonista de Blood Feast (Anexo III). Cenas como essa explicam o que Baptista considera como uma estratégia que baseia-se numa inversão das prioridades do gênero. Aspectos que anteriormente eram secundários são agora principais, em detrimento da história central do gênero. Em lugar de realismo, estamos perante uma magnificação do banal e do acidental. (BAPTISTA, Mauro. O cinema de Quentin Tarantino, 2010)

A ideia pontual de uma porta de entrada para violência pelo mero acaso não é também uma novidade no cinema e para estudiosos do cinema. De acordo com o autor Ciccarini (2007), em seu trabalho analisando filmes de Joel e Ethan Coen, a ideia do 53

acaso que afeta drasticamente o percurso de uma narrativa existe no cinema expressionista alemão, uma das vanguardas europeias do cinema que teve seu auge nos anos 20. O autor se refere a uma ideia de espiral da violência, onde uma vez dentro, mesmo que por acaso, o protagonista continua por toda sua existência fílmica com as consequências da violência, proveniente dos filmes de Fritz Lang, principalmente em M – O vampiro de Düsseldorf (M, 1931), onde é utilizado por várias vezes a alegoria da espiral, como por exemplo nas escadas durante o início do filme. Em À Prova de Morte, a concepção de uma espiral da violência se encaixa com o decorrer do filme, como na cena citada acima da morte de Pam, que apenas aceitou uma carona de um estranho, ou na própria revanche contra Stuntman Mike mais ao fim, onde não há controle da violência que sobre cai sobre os personagens, depois de começado o ciclo. E não há como fugir das várias cenas que tornam À Prova de Morte um filme de homenagem específica ao exploitation. Cenas como o lapdance de Arlene com Stuntman Mike, com cerca de três minutos e meio de dança sensual, traduzem exatamente a exploração do erótico feminino, sem necessariamente mostrar o ato sexual. Como a maior parte dos filmes não poderiam mostrar o sexo explícito, considerado muito controverso até para a pequena indústria exploitation do início dos anos 20, o sexo por muitas vezes era apenas sugerido. Como já citado, a exploração do sexo no início do “gênero” poderia ser comparado hoje com as películas de soft porn, com cenas sensuais que sugerem o sexo. Em À Prova de Morte não há nudez; o erótico se faz principalmente pelos movimentos e poses sensuais, como o lapdance, ou a posição de Jungle Julia e Abernathy com pernas saindo da janela do carro. Aliás, as penas são a forma de retratar o erótico no corpo da mulher no filme, sendo explorado cenas que focam nas partes inferiores das mulheres durante todo o longa, conforme as cenas do Anexo IV. De qualquer forma, o tratamento das mulheres nesses tipos de filmes é sempre sexualizado. Em À Prova de Morte, as transbordam sex appael de maneira diferente do que nos filmes atuais, que bombardeia o espectador de bundas e peitos, com nada mais do que pernas a mostra, pés descalços e diálogos com palavras chulas. A hipersexualização da mulher é algo muito comum nos filmes, e as protagonistas terminam por serem as vítimas na maior parte dos casos. Os filmes 54

splatter, como a Triologia do Sangue, com seu primeiro título Blood Feast, conseguem exemplificar a mulher estereotipada do desejo masculino como a vítima do serial killer. O filme de Gordon Lewis é um dos principais e mais consagrados exemplos do subgênero do exploitation, que tem como principal característica a presença gráfica do que Piedade (2002) chama de sangue-e-tripas. À Prova de Morte também tem cenas que demonstram bem o apego pela violência gráfica. A morte das primeiras vítimas de Suntman Mike que é mostrada para os espectadores durante o filme transborda o momento sangue-e-tripas. Após matar Pam, Suntman Mike persegue as outras integrantes do bar onde estava mais cedo e colide com o carro onde se encontram as meninas. O acidente com o carro de Jungle Julia, Arlene e Shanna mostram cabeças sendo esmagadas, outras são decepadas e rolam para fora do veículo, com muito sangue (ANEXO V). As cenas de extrema violência chocam e agridem o espectador. Momentos que, graças à paródia e ao humor negro, provocam emoções contraditórias e frequentemente simultâneas, como o horror e o riso. De acordo com Baptista (2010), as reações diversas provocadas pela ambivalência proposital das cenas, dependem bastante do estado de espírito do espectador. Há nessas cenas um certo deleite com a agressão, com a surpresa e a dilatação do ato de violência para além do esperado. Essa ambivalência citada desconcerta o público de duas formas. Ao mesmo tempo em que as mudanças de tom nas cenas são operadas de maneira rápida, como a fala de Stuntman Mike antes de assassinar Pam que precede um banho de sangue inesperado, o diretor exibe esta violência lançando ao mesmo tempo um olhar distanciado e irônico, se considerada a teoria de ironia por Hutcheon (1991). São duas operações simultâneas, provocadas em um só momento do filme. Com a violência e sua vulgaridade gráfica, há uma suspensão momentânea no avanço da cadeia linearcausal de eventos, característica essa tida como central e de suma importância para o cinema clássico. Esse choque atrai a atenção do público, independentemente de sua função narrativa e sacode o espectador, introduzido numa letargia proveniente do cinema de grandes produções dos anos 80 e 90. O autor ainda cita “como Tarantino se compraz estendendo os tempos (da cena, dos planos) para além do convencional, prolonga o momento violento e mórbido ou a conversação vulgar com uma vontade 55

manifesta de perturbar e sacudir a audiência” (BAPTISTA, 2010:104). Em análise do autor, Tarantino surge como o primeiro diretor de magnitude que incorpora de fato os exploitation films em um projeto de fato considerado pós-moderno e criativo em sua essência. 3.2 A violência “gráfica” e o cinema de atrações A focalização das representações gráficas de sangue, violência e destruição do corpo torna os momentos de violência parte mais importante do filme, sobrepondo-se momentaneamente a narrativa. Em uma comparação visual já citada, é possível identificar a influência tanto das características gore/splatter, quanto na representação do feminino. Portanto, o cerne dos filmes de exploitation são justamente a exploração do tema proibido, seja ele o sexo ou a violência, com o roteiro e a caracterização dos personagens ficando como secundário. Se refletir sobre a composição do roteiro do filme, não passa de uma sequência de atos onde um assassino, em algum momento de sua existência, tem a sua carreira de mortes interrompida justamente por quem desejava que fossem suas vítimas. E os momentos que mais prendem a atenção do espectador durante o filme são exatamente os de ação ou da violência em si, com muito mais importância do que, por exemplo, a sequência que mostra o grupo de garotas se conhecendo. A dilatação dos momentos violentos, considerados por Baptista nos filmes de Tarantino, vem do próprio “gênero” em se diferenciar dos filmes de grande indústria a partir do espetáculo. A estratégia é a forma mais clara do que Gunning (1986) chama de cinema de atração. Em seu texto, o autor remonta a estratégia de Méliès para a criação de seus filmes. O diretor, consagrado por teóricos como ser um dos primeiros a dar uma linguagem ao aparato cinematográfico junto com Griffith, comenta durante entrevista que só pensava no cenário no último momento da produção de seus filmes, “já que são apenas um pretexto para os efeitos especiais e os truques” (MÉLIÈS apud GUNNING, 1986). Presente no cinema desde sua criação, então, a ideia de atrair a atenção do espectador pelo conjunto de truques usados pelo diretor e que, mais tarde, se transforma na lógica de edição e sua capacidade de criar novas impressões sensitivas é do que é feito a essência do cinema - teorizada principalmente 56

por Eisenstein -, muito mais do que uma narrativa simples de forma contínua. Ou seja, o cinema seria mais uma forma de como contar histórias do que necessariamente qual enredo é mostrado aos espectadores. É a habilidade do cinema de mostrar algo e tem um impacto direto, seja ele sensitivo ou lógico. O sistema de atrações é uma parte essencial do cinema popular, já que insere o espetáculo em certos momentos de pura estimulação visual em conjunto com a narrativa (GUNNING, 1986). Apesar de poder encaixar em várias produções cinematográficas, principalmente nas realizações de filmes de ação nos anos 90, o exploitation sempre abordou o espetáculo como sua forma de se diferenciar da grande indústria cinematográfica e se afirmar como um cinema que rompe a lógica mainstream. Além de abraçar as cenas que espetacularizavam o sexo e a violência, além de outros temas controversos e proibidos, a natureza dos filmes de baixo orçamento necessitava que as produções tivessem o espetáculo como forma de atrair audiência (SCHAEFER, 1999:95). É importante a identificação das referências estéticas exploitation, principalmente em relação a representação gráfica da violência. Para a discussão da composição das personagens femininas no filme, entender de onde vem os momentos de violência também é de grande importância. Mas há outros subgêneros do exploitation que se fazem presentes na obra e que tem tanta importância quanto apenas a violência. Apesar de sua trama com peculiaridades do diretor, À Prova de Morte pode ser considerado também resultado direto da influência de filmes de carro, o carsploitation. Com referências claras no próprio filme à Corrida contra o Destino com a descoberta de um Dodge Challenger branco do ano 70, o carro utilizado na trama de 71 (ANEXO VI), À Prova de Morte relembra filmes como Faca na Garganta (The Jezebels, 1975) e 60 Segundos (Gone in 60 Seconds, 1974), importantes influências para construir a obra de Tarantino. Além da ferramenta que Stunman Mike utiliza para matar suas vítimas ser o próprio carro, a segunda parte do filme se concentra, em sua maioria, em perseguições e corridas de carro à altas velocidades. Stuntman Mike encontra o grupo de três amigas que estão experimentando dirigir de forma bem perigosa o Dodge Challenger branco e decide que seria o momento de “brincar” com a situação, perseguindo as protagonistas e tentando provocar um acidente de carro. São cenas longas que se concentram na adrenalina da disputa entre máquinas em toda a segunda parte do filme. Em dado 57

momento, as meninas conseguem despistar e escapam de Stuntman Mike. O que parecia estar no fim, na verdade, é o início da última sequência do longa, onde as mulheres resolvem ir atrás do assassino, o que segue mais cenas de corridas de carro e disputa de espaço, agora com as mulheres tomando o espaço de ameaçadoras da vida do vilão. O filme subverte a ideia inicial onde o carro é um acessório dos homens, tornando os personagens acessórios secundários dos carros, como durante toda a perseguição da polícia atrás de Kowalski em Corrida Contra o Destino. Exemplo disso é a cena do início da segunda parte de carros, logo após conseguirem um test drive, onde Kim dirige o Dodge Challenger branco e Zoë tem a ideia de ir para fora, sobre o capô do automóvel, segurada apenas por dois cintos para apreciar a adrenalina e o vento no rosto resultado pela alta velocidade. Durante o próprio filme há cenas metalinguísticas, como quando Stuntman Mike questiona estar ficando sem trabalho devido aos efeitos especiais, que transformam os filmes de carro em filmes sem valor, sem emoção. É importante lembrar que na época de seu principal sucesso durante as décadas de 60 e 70, os filmes de carro e perseguições não tinham muitos efeitos especiais. Como os recursos eram caros, reservados apenas para grandes produções de Hollywood, e os filmes de carro não permitem muitas trucagens, a maior parte dos títulos eram feitos “à vera”, com cenas gravadas muitas vezes em apenas uma tentativa. A utilização dos dublês era bem maior justamente pelo perigo de gravar takes em carros em movimento e batidas. À Prova de Morte tenta recriar exatamente os filmes de carro antigos, sem efeitos especiais e sem explosões demais, mas com corridas e cenas que tornam o carro ator principal das perseguições. Corrigan (apud COHAN & HARK apud Paiva, 2011) define que os filmes road movies são, por definição, filmes sobre carros, caminhões ou motocicletas que passeia por diversos gêneros, como o western com suas perseguições de trem, ou filmes como Sem Destino, que utilizam das motocicletas. O que Paiva considera como filmes de estradas é a necessidade de liberação, seja do espaço familiar, seja do indivíduo em relação a sociedade capitalista e sua lógica de acúmulo, com uma necessidade de libertação. Não que filmes de exploitation que utilizam carros não possam usar o carro como a mesma forma de problematização. Corrida Contra o Destino tem um protagonista que dirige apenas por dirigir, sem muito objetivo, fugindo da polícia e de todos que entram 58

contra sua empreitada. Mas, no geral, diferente do road movie, os filmes de carsploitation não tem uma problematização tão grande de suas narrativas. Como estão dentro da lógica da exploração dos momentos de espetáculo, dentro do conceito de cinema de atrações, o objeto principal dos filmes não é o motivo de dirigir o carro, mas sim sua imagem e a forma que isso gera sensações no público, através das altas velocidades e batidas. Ainda nas referências exploitation de carros principalmente na segunda parte do filme, Faster, Pussycat! Kill! Kill! (1965) pode ser considerado uma grande influência. Na película de Russ Meyer, um grupo de três dançarinas de boates andam pelo deserto com seu carro. As protagonistas, que também são representadas de forma hipersexualizadas7, encontram um casal no meio da estrada, apostam corrida com seus carros e depois matam o homem, sequestram e drogam a mulher. Enquanto param num posto de gasolina, ficam sabendo de um senhor de cadeiras de rodas que vive em um rancho e guarda uma quantia de dinheiro em casa. Mas o senhor é um misógino que odeia as mulheres, pois foi uma mulher que a deixou na cadeira de rodas e usa seu filho para raptá-las e violentá-las. É um filme de mulheres anti-heroínas que, em algum momento, cativam a audiência com sua forma enérgica de ação. As cenas de violência, assim como as de sexo e sexualidade, são mais icônicas do que explícita. O filme inteiro conta com quatro aspectos bem parecidos com À Prova de Morte: violência gratuita; abordagem de forma sexualizada das mulheres, mesmo com pouca ou quase nenhuma nudez; a importância dos carros para as cenas; e, principalmente, uma posição de papeis femininos provocativos, enquanto a mulher assume a posição do sujeito da ação, mesmo que seja para a ação violenta. Em uma cena que torna a referência do filme quase clara, as protagonistas do filme de 65 dão um salto após concluir o roubo, onde a imagem é congelada com expressões felizes e sorrisos das garotas. É exatamente a mesma cena da última sequência de À Prova de Morte, quando as três personagens conseguem alcançar Stuntman Mike e dão-lhe socos e pontapés (ANEXO VII). Em um outro momento do filme de 1965, um plano enquadra a ação de violência com uma delas segurando o senhor em cadeiras de roda no meio do

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Talvez mais ainda do que À Prova de Morte. Enquanto no filme de Tarantino o foco maior da representação sexualizada está nas pernas e pés, com a dança de Arlene em trajes do dia a dia, as protagonistas de Faster, Pussycat! Kill! Kill! são mostradas em serviço dançando com trajes que cobrem apenas os seios e os quadris. Durante as próprias cenas de violência, há um foco em seus decotes.

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deserto, enquanto as outras duas posam de costas para a câmera, que enquadra somente a parte inferior de suas pernas e quadril em posições de afirmação da ação. A forma de enquadramento se repete também no filme de Tarantino, logo após o momento em que as protagonistas conseguem fazer o carro de Stuntman Mike colidir e vão em direção a ele para se vingar (ANEXO VIII). Apesar de serem filmes com grande carga de violência, as diferenças e semelhanças no papel da mulher serão analisadas de forma mais aprofundada levando em consideração questões da representação do gênero feminino em outros filmes. 3.3 O diálogo com os revenge films Já ficou estabelecido de forma clara que, para todos os efeitos deste estudo, Tarantino se utiliza da influência do cinema norte-americano de exploitation. À Prova de Morte tem sua base na representação gráfica e chocante da violência e cenas de horror, mais especificamente com uma aproximação com filmes da estética do gore e splatter, uma subvariação dentro do vasto universo do exploit films. Há também o subgênero de carsploitation, com filmes onde o carro momentaneamente se torna o protagonista das cenas, fazendo com que os atores nada mais passem de figurantes perante a ação. Mas outro subgênero dentro do exploitation de grande importância para compreender a obra de Tarantino. Um subgênero do exploit, bem menor, chamado de filmes de vingança (rape-and-revenge films). São filmes que, por definição, tem como foco principal a vingança de pessoas que são muitas vezes estupradas, deixadas para a morte e, por algum motivo, conseguem sua vingança de forma a explorar graficamente a violência contra seus assassinos ou estupradores. Neste tipo de filme, a vítima geralmente é uma mulher forte e bem sucedida que é atacada por algum homem. Em seu trabalho específico sobre os filmes de estupro-e-vingança, Read (2000) considera muito mais a forma como uma estrutura narrativa do que necessariamente um gênero, já que o roteiro básico pode ser encontrado em outros gêneros. Mas dentro do exploitation, a marca não é apenas a vingança, mas a forma extremamente violenta que ela é feita. O filme mais icônico deste movimento é A Vingança de Jennifer (I Spit on Your Grave, 1978), de Meir Zarchi. A trama é basicamente a essência dos filmes do 60

que se convencionou a chamar de estupro-e-vingança. Jennifer é uma escritora e sai da cidade para trabalhar em seu romance. No meio da estrada, homens a alcançam e estupram. Depois, ela é atacada, estuprada e torturada novamente por um grupo de quatro homens no meio de uma floresta. Recuperada, ela vai atrás de cada um para matar de forma violenta e conseguir vingança. Filmes que abordam vingança não são necessariamente uma novidade, mas neste caso, além de cenas fortes de estupro e tortura, o filme trata da vingança feminina pela violação do seu corpo, uma vingança extremamente sádica e que provocou discussão no campo da representação do gênero feminino no cinema. Segundo Clover, o filme é um caso extremo e provocou críticas negativas, sendo considerado um filme de valores mal interpretados, onde a protagonista, ao se vingar, torna-se tão vilã como os seus estupradores. Mas a teórica considera que, despindo-se de julgamentos morais e atendo-se a contribuição cinematográfica, A Vingança de Jennifer tem um "mérito específico de oferecer discussões particularmente originais na natureza da violência sexual" (CLOVER, 1993:116). Mesmo a mulher protagonista representando a tomada de espaço da ação, ela ainda sim é caracterizada de forma sensual, sexualizada. Jennifer é atacada e suas roupas ficam rasgadas, formando uma espécie de biquíni que a acompanha durante todo a trama. Talvez o filme de Tarantino que mais se pareça com esse título específico seja a sequência de Kill Bill. A Noiva busca nada além de vingança por, no caso, o seu futuro marido ter tentado matá-la. Todo o roteiro dos dois filmes se baseia nisso, onde era mata um por um quem, de alguma forma, tem participação na sua quase-morte. Mas À Prova de Morte também tem sua influência clara: a vingança de mulheres. As protagonistas da segunda parte são atacadas por Stuntman Mike, que também é um misógino odiador de mulheres, sem o menor motivo, apenas pela diversão do vilão em matar garotas. Quando conseguem finalmente escapar da tentativa de homicídio com o carro à prova de morte, as protagonistas são movidas até o último segundo do filme a se vingar de quem tentou lhes tirar a vida. É uma reação que, aqui, não cabe julgamento de valores, para vingar seu próprio corpo. Tendo em mente a utilização de um conjunto de referências que, em sua maioria, subjuga o feminino e, simultaneamente, filmes que trazem um tom mais crítico do posicionamento da mulher no cinema, uma das características deve ser analisada com 61

maior cuidado para entender a abordagem das protagonistas no filme em questão. As mulheres da segunda parte do filme não atendem aos estereótipos da imagem idealizada do sujeito feminino no imaginário coletivo criado pelo cinema clássico. Segundo Gubernikoff (2009), a partir da ideia de que o cultural imagético é uma área de intervenção da ideologia, se a imagem representada da mulher é uma imagem estereotipada, pode-se dizer que a construção social da mulher trabalhada pelas mídias, no caso aqui o cinema, é baseada em critérios pré-estabelecidos socialmente de uma imagem idealizada da mulher. Como estamos trabalhando com o conceito de gêneros, que por si só já abarcam um conjunto de signos pré-determinados para definir uma narrativa, como a representação de um personagem feminino majoritariamente submisso, é possível concluir que tal visão imposta à imagem da mulher funciona como uma forma de opressão, pois transforma a mulher em objeto e a nulifica como sujeito, cerceando seu papel social como construtora da própria imagem. Aqui é importante ir além da análise fílmica de alguns momentos do filme e sua comparação com a violência gráfica para também entender outros subgêneros do exploitation que se fazem presente na influência do diretor, especialmente nesta obra. A representação da mulher nos filmes de exploitation é, por regra geral, uma posição de vítima e, como será explorado mais detalhadamente com embasamento de teorias feministas do cinema de gênero, a visão patriarcal é algo inerente a toda a sociedade na época em que foi criado o cinema. Está enraizado na cultura ocidental e, nos anos 20, era muito mais forte do que hoje. Somente após os anos 60, mulheres começaram a questionar a forma como eram tratadas nos filmes e criticar a abordagem muitas vezes sexual. Assim como a sociedade tinha o discurso machista sobre o corpo da mulher, o exploitation reproduzia essa linguagem. E, paradoxalmente, foi um espaço com maior abertura para retratar de forma extrema mulheres que não se encaixavam na posição de submissa do patriarcado, escolhendo outras formas de lidar com a relação homem e mulher e, de certa forma, mostrando o empoderamento da mulher em suas decisões, como já citado em filmes como Faster, Pussycat! Kill! Kill! e A Vingança de Jennifer, já que a própria ideologia do exploitation é abordagem do polêmico em relação aos grandes estúdios. Mas é capaz de afirmar então que, por não atender parte dos estereótipos das 62

personagens femininas em outros filmes exploitation que influenciaram Tarantino, as protagonistas de À Prova de Morte tomam atitudes transgressoras? É possível afirmar que o filme tem um viés feminista quando coloca Zöe Bell, Abernathy e Arlene perseguindo Stuntman Mike, que representa todo o patriarcado e a manutenção da mulher como objeto inferior e castrado no viés psicanalítico? O que existe de estudos sobre os filmes de estupro-e-vingança? Não é uma resposta simples. Há divergências no campo teórico feminista, da análise cinematográfica inclusive, sobre a eficácia de uma simples inversão do papel de opressor/oprimido no que diz respeito a construção de um feminismo que busca um igualitarismo e que obtenha resultados em diminuir a objetificação da mulher, além de tomar um olhar sobre o feminino, ao invés de permiti-lo olhar. É necessário um aprofundamento maior para uma análise dessa característica específica do filme de Tarantino.

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4. UM OLHAR FEMINISTA EM À PROVA DE MORTE?

4.1 A teoria feminista e os gêneros cinematográficos Para que seja possível qualquer análise fílmica mais extensa e detalhada sobre a forma de representação do sujeito feminino em À Prova de Morte é preciso entender o contexto da mulher no cinema de gênero, como foi sempre representada e, a partir disso, as formas de rompimento que foram surgindo ao longo das décadas. O olhar propriamente feminino dentro da academia cinematográfica só surgiu com a revolução do feminismo, atrelada principalmente ao contexto sócio-político de empoderamento da mulher através do mercado de trabalho e com a pílula anticoncepcional, que significa um poder de decisão sobre o próprio corpo. A partir daí, estudiosas começaram a teorizar sobre como se viam representadas nos meios de comunicação e no cinema e esse início é crucial para compreender as correntes feministas dentro da teoria cinematográfica e como elas analisam a personagem mulher estereotipada, muitas vezes representada da mesma forma por um cinema de produção majoritária. Como a análise do filme neste trabalho é de um diretor americano, com sua principal influência estilística considerada por teóricos como americana - o exploitation surge em vários países, principalmente após seu auge de audiência nas décadas de 60 e 70, mas foi em solo norte-americano que nasceu e, portanto, é o que tem a maior influência sob Tarantino, como já citou Baptista (2010) -, Hollywood aparece como a grande referência para uma formação imagética e cultural nos EUA, e, portanto, responsável pelo impacto na construção de uma hegemonia na indústria cultural e uma representação préformada do sujeito feminino. Quando é dito que os exploitation films fazem contraponto à uma produção majoritária, é sempre claro que essa referência é a Hollywood. E por isso que é um terreno que não pode ser simplificado, pois, ao mesmo tempo que usou do que não era mais “próprio” para a grande indústria com a censura de temas polêmicos, e, portanto, abre brechas para visões mais progressivas nas questões de gênero, é um movimento cinematográfico que está inserido no contexto social e o machismo e o patriarcado, e tudo que ele acarreta no posicionamento da mulher na sociedade, sempre foi enraizado nas mais diversas sociedades, inclusive nos valores 64

norte-americanos de família. Os estudos feministas têm um primeiro movimento na história da teoria cinematográfica de criticar as representações sociais estereotipadas, os silêncios e as opressões (LOPES, apud MASCARELLO, 2008). Essa abordagem feita de forma sócio histórica é fundamental para a reafirmação de minorias, como uma forma de quebrar núcleos de misoginia ao demonstrar as diferentes formas de representação de gênero com a dualidade masculino/feminino. Isso tudo porque o preconceito e a opressão atuam de forma física e simbólica na sociedade, portanto construções de imagens que formam um ideário coletivo - e que contribuem para manutenção de um estereótipo são formas, assim, de opressão e controle. Essa preocupação leva ao questionamento da cultura e da arte não como criadoras dos clichês representações de gênero, mas quando se tornam reafirmadoras desses clichês. Se lembrarmos as teorias de Martin (1990) sobre os caracteres fundamentais da imagem fílmica, o objetivo do aparato cinematográfico é reproduzir a realidade que é apresentada de forma exata e objetiva. São as câmeras que filmam exatamente o que se mostra em determinado ambiente. Mas, com a criação de uma linguagem específica do cinema, que envolve formas de contar uma história usando a reprodução da realidade, Martin afirma que a atividade é dirigida no sentido desejado pelo realizador. Com a utilização principalmente da montagem seguindo as premissas de Eisenstein, de uma montagem ideológica, o que temos como resultado no filme é uma percepção subjetiva do mundo de quem realizou o filme. “A imagem encontra-se, portanto, afetada por um coeficiente sensorial e emotivo que nasce das próprias condições através das quais transcreve a realidade” (MARTIN, 1990:32). Ou seja, está na essência da imagem fílmica a sua subjetividade. Se levarmos em conta o contexto social em que foi criado desde o aparato cinematográfico até seu desenvolvimento como linguagem da comunicação, não precisamos de nenhum esforço para entender que é uma sociedade embasada no patriarcado. Se hoje o caminho do cinema é difícil para as mulheres, guardadas suas devidas proporções, no início do século passado e durante mais da metade de seu desenvolvimento o cinema era dominado por homens, logo, a visão subjetiva do realizador era sempre masculina. A teoria feminista do cinema tenta compreender os reflexos ou causas dessa representação, já que responder a pergunta “O cinema reflete 65

o machismo inerente na sociedade ou é uma forma de reafirmá-lo?” é uma tarefa complicada. Casseti (1999) fala sobre a teoria feminista do cinema como uma forma de fornecer provas adicionais à ideia que o cinema, sobre o disfarce de uma objetividade citada por Martin, realmente tem efeitos ideológicos à forma real do que é concebido, principalmente após a grande difusão do cinema e a importância dos filmes na construção do imaginário cultural. Para o teórico, “esses efeitos gravitam ao redor de dois fenômenos: o ocultamento do trabalho que converte a realidade dentro da representação cinematográfica e a construção de um sujeito transcendental que serve como apoio à audiência” (CASSETI, 1999:194). Uma das principais teóricas que problematizam a mulher no cinema é Ann Kaplan (1995), que em seu livro A mulher e o Cinema inicia sua problematização justamente acerca da representação da mulher no cinema pela polêmica questão do olhar masculino, que é visto em uma sociedade regida pelo patriarcado como capaz da dominação e repressão da mulher, inclusive de seus desejos. Isso acontece por conta do poder controlador do homem e principalmente pela sua capacidade de eternizar um “status” da mulher na narrativa dominante do cinema. A crítica feminista seria diferente, em primeira instância, dos antigos movimentos críticos por se distanciar do modelo básico de crítica cinematográfica, já que as posições teóricas sempre foram dominantes. Influenciadas pela lógica da semiologia, é dado devida importância na teoria feminista das formas artísticas, como o cinema, como meio de expressão. Juntando-se a lógica da psicanálise, onde os processos edipianos são fundamentais para a produção da arte, a crítica feminista então dá importância para como se produz o significado a partir de produtos artísticos e não somente o seu conteúdo. Ou seja, compreender o contexto para analisar as escolhas de planos e de construção de personagens é tão importante quanto a própria localização da personagem no universo cultural. Para a teórica, a psicanálise é uma ferramenta importante para compreender a construção do olhar masculino no cinema, mas não a considera como necessariamente capaz de revelar as “verdades” essenciais da psique humana. De qualquer forma, a psicanálise se torna extremamente importante como ferramenta, já que contextualiza a socialização da mulher dentro de uma sociedade regida pelo patriarcado. Como a sociologia refere-se às pessoas dentro de estruturas sociais, a psicanálise consegue 66

analisar as pessoas dentro de suas estruturas psíquicas. O olhar masculino, portanto, seria o responsável por tornar a mulher, antes de tudo, um objeto para satisfazer suas necessidades sexuais, dentro dos padrões patriarcais, e a transforma assim em sua forma de representá-la, já que estamos falando do olhar do homem realizador, necessariamente. Levando em consideração que os gêneros clássicos da indústria cinematográfica satisfazem desejos e necessidades criados pela organização familiar, é corretor afirmar que os signos produzidos por Hollywood estão carregados de uma ideologia patriarcal que sustenta estruturas sociais e constrói a mulher de maneira específica, principalmente suas formas de prazer. Continuando na lógica dos gêneros cinematográficos clássicos, o melodrama familiar foi criado para se destinar especificamente à mulher. Nele, as principais questões são relações de amores ilícitos, como extraconjugais ou incestuosas, e as problematizações das relações entre família, como pai e filho, mãe e filho e as relações entre marido e mulher. A matéria prima do melodrama, as relações pessoais dentro de uma série de códigos morais, é completamente diferente de outros gêneros da indústria, como os filmes de gângster e os faroestes. Mais do que apenas mostrar essas relações, a narrativa do melodrama funcionava para deixar claro as restrições e limitações que a família nuclear capitalista impõe, e, mais ainda, tornar inevitável tais restrições, com intuito de naturalizar os valores morais do que é devido. Nos filmes, protagonistas que tinham relações extraconjugais eram, de alguma forma, punidas, seja pelo próprio marido ou pela sociedade que a excluía dos seus direitos por ter faltado ao respeito com a lógica patriarcal. Ou seja, ao longo dos anos de melodrama, moldaram os desejos e necessidades femininas para caber dentro da organização familiar clássica. E, de uma forma ou de outra, todos os gêneros de Hollywood afirmam esse cenário, em várias intensidades, ao exigir o que Peter Brooks considera essencial ao melodrama, ou seja, “uma ordem social a ser purgada, um conjunto de imperativos éticos que é preciso elucidar” (apud KAPLAN, 1999:46). As mulheres são portanto, excluídas de papéis centrais em outros gêneros hollywoodianos para ocupar somente o centro do melodrama, o único local onde as questões femininas são abordadas. Com tais limitações, é compreensível como os desejos e as posições são assumidas pelo homem e pelas mulheres nas principais obras cinematográficas. Laura Mulvey (1989) 67

também vê o melodrama como o centro das questões edipianas para a mulher, mas, para a diretora e teórica feminista, o melodrama é antes de tudo uma forma feminina que age como corretivo para os gêneros principais que celebram a ação masculina. Para Mulvey, a importância do melodrama está em explorar emoções e desilusões das mulheres. Ou seja, cumpre uma função útil para a mulher no simples reconhecimento das questões femininas, o que considera uma importância estética. Mas, se por um lado o melodrama é importante por trazer à tona contradições ideológicas e ser, de fato, um gênero cinematográfico dedicado a mulher, ao fim das narrativas, os fatos nunca se reconciliam a beneficiar a mulher, mas sim reafirmar a lógica que poda seus desejos, como por exemplo na protagonista que foge dos padrões familiares e tem como o final uma sociedade excludente a quem consideram diferente, que, por algum motivo, “não se deu ao respeito” ao trair o marido. Para Kaplan, é na relação com o melodrama que é possível identificar a opressão dos desejos da mulher para ajudar a definir seu papel nos filmes, que em alguns momentos, sente prazer com a própria objetificação - e aqui a psicanálise ajuda a entender melhor essas relações. O problema da opressão dos desejos da mulher não está necessariamente na lógica de submissão, já que os modelos de domínio fazem parte da sexualidade tanto feminina quanto masculina na construção da sociedade ocidental. Nas fantasias sexuais masculinas, o homem tem uma amplitude maior de posições, assumindo rapidamente tanto a posição de dominante quando de dominado, por muitas vezes sendo atraído a conceitos de mulheres fortes que o deixariam submisso. Já a mulher, justamente por ser podada em sua construção do inconsciente, é mais submissa, passividade que é reforçada pela maneira que as mulheres são representadas nos filmes. Não só a representação, mas quando a mulher adota uma posição como iniciadora da ação, não é da mesma forma que o homem deixa seu lugar de controle Quando o homem abdica do papel de domínio e assume o de objeto sexual, a mulher adota o papel “masculinizado” de dono do olhar, ou seja, há uma inversão de papeis, e não necessariamente uma adoção do olhar de desejo feminino. Ao inverter os papéis, quase sempre há uma perda de características femininas tradicionais - não as de sedução, que continuam a estereotipar a mulher hipersexualizada - mas as de bondade, humildade e maternidade. No papel de domínio, 68

a mulher necessariamente é manipuladora, ambiciosa e fria. A dicotomia boa/má, no sentido da ordem de representações do feminino, se transforma na figura da mãe/prostituta, como já foi analisado por Simone de Beauvoir (1966). Inseridos nas premissas da heterossexualidade e nas matrizes institucionais do patriarcado, a mãe representa do sexo domesticado, moralidade e a reprodução do social; já a prostituta é a personificação da liberação, da devassidão latente do feminino e da imagem de mulher pública. A mística da mulher em exercer sua feminidade está na passividade sexual e na aceitação do marido, enquanto que para as que não aceite, é deixado de resto a banalização da prostituição, uma figura construída no lado sombrio e negativo da representação construída sobre a mulher-mãe (NAVARRO-SWAIN, 2004). Em seu texto, Kaplan remonta uma teoria de Mary Ann Doane que no melodrama, o único gênero que dá abertura a uma espectadora mulher, ela é obrigada a participar no que considera uma fantasia masoquista. Nos gêneros clássicos mais importantes, o corpo feminino é a sexualidade, fornecendo o objeto erótico para o espectador masculino. Nos filmes “de/para mulher”, o olhar deve ser “deserotizado”, ou seja, o prazer é negado às mulheres no que Mulvey chama de experiência da fase de espelho. Enquanto os heróis masculinos idealizados nos gêneros cinematográficos devolvem ao espectador masculino uma versão mais perfeita do seu ego, para a mulher são dadas apenas figuras vitimadas que, além de não terem a menor proximidade com a perfeição, ainda reforçam um sentimento de impotência. Segundo Gubernikoff, é dessa forma que a mulher interioriza os conceitos divulgados pelo cinema clássico como sendo sua própria identidade, o que reafirma a teoria de Casseti citada onde o cinema é de grande importância para a construção social das mulheres. Com uma cultura comprometida com os mitos das diferenças sexuais plenamente demarcadas, chamadas de masculino e feminino, Kaplan sugere que o aparato do olhar e os modelos de domínio-submissão é o que castra o olhar feminino, retirando-o seu desejo e, portanto, seu poder. Como explicita a autora, até em momentos de tentativas em mudar a estrutura, foi permitido a mulher assumir, na representação, a posição definida como “masculina”, desde que o homem assuma de alguma forma a sua posição novamente, mantendo assim a estrutura intacta. As teorias do cinema aproximam o espectador e o próprio aparato 69

cinematográfico de um voyeur, que assiste toda uma cena sem ser visto por ninguém. Mulvey coloca que o fetichismo constrói a beleza física do objeto, em que se finda em uma satisfação por si mesmo. Enquanto isso, o voyeurismo tem um lado sádico, ligado necessariamente a depreciação, que implica o prazer advindo do controle. O mesmo modo é aplicado no cinema dominante para construir o espectador masculino, que transfere no ato do voyeurismo o prazer em suprir as suas necessidades de dominação. Com a fetichização da forma feminina pela câmera através desta prática do olhar e não ser visto, o que ocorre é uma objetificação do sujeito da mulher. Lembrando, porém, que tornar mulher ou homem objeto não é o principal problema, pois pode fazer parte de um processo inerente ao erotismo, tanto masculino quanto feminino. Mas dois elementos são adicionados ao processo. Para começar, o homem não olha, simplesmente; mas em seu olhar está contido o poder de ação e o de posse que faltam no olhar feminino. A mulher recebe e retorna o olhar, mas não tem poder de ação sobre ele. Depois, a sexualização e objetificação da mulher não tem apenas o erotismo como objetivo; do ponto de vista psicanalítico, ele é concebido para aniquilar a ameaça que a mulher representa (KAPLAN, Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. 1995:54)

Então qual seria o caminho para fugir de todo o estigma e dominação do olhar masculino? Para Mulvey, para ser feminista o cinema deveria ser contracinema. Mas, com essa noção de contracinema, esbarra-se em um questionamento: a questão do prazer. A negação de um prazer é defendida pela teórica como um pré-requisito para a liberdade feminina, mas que não cabe a discussão dos problemas. O que acontece é uma desconfiança em admitir que há um certo prazer com a objetificação, com a transformação do corpo em espetáculo - e até que ponto tal prazer advém somente da posição “objeto-para-ser-olhada”8, resultados de uma série de fatores enraizados na pisque feminina, sujeitos da dominação do patriarcado. As autoras Lucy Arbuthnot e Gail Seneca (apud KAPLAN, 1995) problematizam que, especialmente certas correntes teóricas feministas do cinema, procuram tão a fundo a negação da relação com o homem como forma de se desvencilhar da dominação que esquecem de ligar as 8

As razões que levam as mulheres a sentir prazer na objetificação são análisadas pela psicanálise e destrinchadas em vários capítulos no livro de Kaplan, dignas de trabalhos exclusivos para o tema e que não cabe, portanto, ser discutido neste trabalho.

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mulheres em si, destruindo a possibilidade de uma identificação com os personagens. O objetivo se torna com tanta força em destruir o prazer do olhar masculino do espectador, que acabam também por anular o prazer feminino. À procura de uma alternativa ao cinema de opressão, começam a surgir as inversões de papeis. A mulher ocupa a posição dominante, principalmente em filmes onde reafirma a abordagem sexualizada, as femme fatales. Imagens onde somente há a troca de posição que, aparentemente, fornecem uma válvula de escape para as tensões sociais com séculos de construção, na exigência de um papel mais dominante para a mulher, esbarram no fato de que, estruturalmente, não há mudanças. Os papeis continuam estáticos em suas limitações, apenas com gêneros diferentes ocupando seus locais. Para Kaplan, seria o momento justamente de questionar a necessidade de uma estrutura de domínio-submissão na construção dos personagens. Independente da problematização psicanalítica, ocupar posições dominantes foi uma das formas que as mulheres acharam no cinema de gênero, principalmente no cinema hollywoodiano, para quebrar estigmas completos da construção patriarcal da mulher. As personagens femme fatale nos filmes noir foram as primeiras a mudar radicalmente a construção da imagem feminina, confrontando o homem diretamente com a ameaça que a mulher constitui. Ela agora não é mais vítima desprotegida nem um substituto fálico, pois o que ameaça o homem é justamente sua sexualidade que transpira a sedução, uma sexualidade essencialmente feminina e, talvez, até resultado dos padrões estéticos majoritariamente masculinos. O perigo que a sua sexualidade traduz vem à tona justamente quando a hostilidade é projetada na imagem feminina, ou seja, quando essa mulher é designada como maligna. O homem ao mesmo tempo que a deseja, teme seu poder sobre ele. Tal sexualidade, ao desviar o homem de seus princípios e objetivos, tem uma influência destrutiva para a vida masculina. É aí que a sexualidade explícita é vista como maligna e essa mulher precisa ser destruída. Ao contrário da mulher vítima, que assume o sofrimento para si e normalmente morre, ocupando o lugar da submissão, ou então ao contrário da mulher fetichista, que é controlada pelo matrimônio, a femme fatale rompe com tais modelos, assumindo a posição de atitude e utilizando do desejo masculino para conseguir seus objetivos. Para o homem patriarcal, a femme fatale deve ser assassinada por interpretar algo diferente da construção 71

familiar da mulher. O revólver ou a faca, para Kaplan, substitui o lugar do falo como poder e domina a mulher através de sua morte. A teórica afirma que o cinema noir demonstrou essa primeira abertura, uma vez que deu abertura para demonstrar essa perigosa diferença da sexualidade latente entre homens e mulheres e cita A Dama de Xangai (The Lady from Shangai, 1946), onde sua protagonista resiste a todas as formas de dominação que funcionam para suprimir os desejos femininos, como no melodrama. A sexualidade no filme é expressa em sua totalidade, mas “a traição e a duplicidade sexual femininas a veem como maligna, dando ao homem o direito moral de destruí-la” (KAPLAN, 1999:23). Nos filmes noir, apesar da libertação sexual em relação a categorias pré-formadas de subjugação da mulher, ela se torna a vilã, o papel do maligno justamente por ser perigosa ao patriarcado, já que o olhar do realizador ainda é masculino. Com a evolução nos debates na academia, os mecanismos que operavam para ocultar os medos patriarcais não funcionam mais após a década de 60. A mulher não pode mais ser taxada de má por ser sexual, ela conquistou o direito da sua sexualidade podendo ser “boa”, sem necessariamente estar vinculada a imagem do ruim e errado. Enquanto a femme fatale utilizava de sua sexualidade para manipular o homem para seus próprios fins, como em À Procura de Mr. Goodbar (Looking for Mr. Goodbar, 1977), a mulher hoje ocupa o direito de usar sua sexualidade para satisfazerse, forçando o homem a confronta-se diretamente com essa sexualidade livre. Como o exploitation não era considerado um gênero cinematográfico, os filmes produzidos dentro desse contexto cultural seguem à margem da discussão teórica feminista. É claro, muitos dos filmes se encaixam no formato que segue a clássica abordagem de Hollywood: subjugam o desejo feminino e, muitas vezes, até mesmo a sua existência. A maior parte dos filmes de splatter, giallo e gore, os subgêneros mais conhecidos do exploitation e também os responsáveis pela maior focalização da violência gráfica, tinham como vítimas principais as mulheres indefesas, encaixando-as no modelo de vítimas que aceitam seu destino, pois foram tiradas de sua capacidade de ação. Se o exploitation é exploração, a representação da mulher nula resultada dos signos do patriarcado é mais radicalizada nas produções exploit mais famosas. Alguns exemplos de produções extremas, como Blood Sucking Freaks (1976), de Joel M. Reed, segue o modelo da mulher como vítima, onde o protagonista é dono de um teatro 72

que encena shows grotescos de mutilações, torturas e assassinatos de mulheres. O número é indicado como encenação, mas, na verdade, são mulheres raptadas e transformadas em escravas para morrer no palco. Em momento algum essas mulheres tentam questionar seus destinos, ou até mesmo tentam fugir. A força da dominação masculina é maior e, neste caso, a dominação se traduz pela morte violenta do corpo feminino de forma espetacularizada. Em Fight for Your Life (1977), de Robert A. Endelson, a mulher segue o outro modelo de submissão, a de mulher fetichizada, que ocupa o lugar de esposa no matrimônio e, com isso, está fadada a ser apenas um apoio de seu marido, a figura principal de um lar. No roteiro, a mulher ocupa apenas o lugar de coadjuvante, como mulher de um ministro que é sequestrada e torturada por presidiários fugidos e deve esperar seu marido para salvá-la; novamente, sem lugar da ação. Para Clover (1993) e seu trabalho em dissecar o gênero feminino em filmes de horror9 , uma frase de Brian De Palma consegue explicar a força da relação diretoraudiência para a escolha de personagens femininos para o papel de vítima. Segundo o diretor de filmes como Murder a la Mod (1968) e Carrie, a Estranha (Carrie, 1976), "a mulher em perigo funciona melhor no gênero de suspense... você sente mais medo do que se fosse um homem fortão” (apud CLOVER, 1993:53), evocando a "fragilidade" do sexo feminino. Para a teórica, a maior parte esmagadora da audiência de filmes de horror com muita violência é de jovens e homens. Portanto, além de um olhar masculino na realização do filme, existe também um olhar essencialmente masculino na plateia. "O horror cinefantástico tem sucesso ao incorporar em seus espectadores a ideia de feminino e depois violentar este corpo em formas imagináveis para homens apenas em pesadelos", diz a autora. Em slasher films, que focalizam a série de assassinatos de forma cruel e tem uma grande presença feminina como vítima, a leitura figurativa de um homem tem muito mais do falocentrismo do que a falta de um olhar feminino. É uma leitura essencialmente masculina ao ponto que o discurso é inteiro masculino e a mulher figura apenas em habitar, em algum aspecto, a experiência do homem. Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, a força do divórcio e o empoderamento, no geral, das mulheres a partir dos anos 60, que mais tarde iria refletir numa próxima 9

Note, o trabalho da teórica não fala apenas de filmes de exploitation. Ela utiliza de filmes bem mais conhecidos e grandes produções. Mas pega como base uma série de filmes que exploram a espetacularização da violência e também a violência gráfica de forma extrema.

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geração com "confusões sobre gênero", como diz a teórica, tem também os seus reflexos na produção cinematográfica mesmo fora do circuito de cinema feminista. Com isso, nos anos 80, se aborda muito o culto da androgenia e sugere uma perda de categorias, ou pelo menos na categoria do feminino como o local já quase do senso comum para habitar a violência. Não que esses filmes mostrem o corpo feminino em sua forma plena de liberdade, mas começam a contestar a lógica expressa da visão masculina ao colocar, por exemplo, o homem em posição de ridículo e de morte em filmes que alternam a lógica da violência. O exploitation tem em filmes pontuais o início dessa contestação, principalmente nos filmes de vingança10. Por exemplo, os filmes de woman in prision são essencialmente machistas e patriarcais. Hollywood produziu poucos filmes de mulheres em cadeia, e, mesmo em suas produções, poucas exploravam a ação dentro da cadeia em si. Na produção da vertente dentro do exploitation, a mulher é representada das formas mais variadas dentro do estereótipo da hipersexualização junto com a ideia masculina do desejo feminino, além da violência aqui também como forma de dominação da mulher. Mulheres que foram mandadas para prisão, todas consideradas fora do padrão de esposa dentro da ideia de família americana e seus valores, eram obrigadas a se prostituir ou então forçadas a fazer trabalhos degradantes, como limpar latrinas enquanto estavam seminuas. No olhar masculinizado, as mulheres muitas vezes se envolviam em cenas de lesbianismo entre as outras detentas ou com as oficiais da prisão. Dentro deste mundo de estereótipos, filmes como The Big Doll House (1971) contestações desse universo. Ainda que representadas de forma sexualizada, com trajes curtos e nenhum pouco fiel a realidade de uma cadeia, as protagonistas dos

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É curioso notar que, além de alguns filmes que contestam a posição da mulher e sua representatividade no cinema, alguns filmes do início do surgimento do exploitation têm caráter progressista ao abordar a maternidade, principalmente os filmes quase educativos de sex hygiene. Enquanto na lógica patriarcal a maternidade é uma forma de opressão da mulher, ao ponto que a reduz na posição social como adjacente ao homem, também oprime no sentido da psicanálise pois lhe é negado o pênis. A maternidade é quase sempre representada nos filmes da grande indústria como apenas um conjunto de signos para simplificar a mulher. Já no exploitation do início da década de 20, uma forma mais ingênua do exploit films se comparado aos filmes no final dos anos 70, inúmeros filmes de sex hygiene mostravam cenas explícitas do parto e questionamentos sexuais da mulher atuais ainda hoje, de forma a ultrapassar, mesmo que de maneira discreta, o estigma em torno do assunto. Talvez o mais famoso deles seja Mom and Dad (1945), que explora a educação sexual dentro da família e os questionamentos de uma adolescente que engravida antes de casar e, com a morte do amante, a decisão de se tornar mãe solteira.

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filmes traçam um plano de fuga. Ao saírem, a primeira coisa que fazem é se vingar de um policial que as torturava enquanto eram detentas. Dentro do exploitation e nos filmes de violência gráfica, em geral, a forma de opor-se a visão masculina do patriarcado não está em questionar a estrutura, mas sim na troca de papéis, reafirmando uma mulher que tem o poder da ação, mesmo que a ação seja moralmente questionável. Os filmes de vingança, principal forma dentro do exploitation de contestar a visão dominadora e, portanto, aniquiladora da mulher, são filmes que não negam a lógica da violência, já que ainda se encontram num contexto de exploração do espetáculo, mas percebem a possibilidade da mulher de também poder aniquilar o masculino. Em À Prova de Morte, assim como filmes pontuais no universo exploitation, o corpo masculino experiência a dor e o lugar destinado às mulheres e sua fragilidade neste tipo de produção, uma resposta a uma tentativa do protagonista Stuntman Mike em dominar um grupo de mulheres que não se encaixam no fundamental modelo de fetichização ou vítima da mulher. 4.2 As protagonistas de À Prova de Morte Como já vimos, o exploitation surge à margem do cinema de grandes produções e abordando temas e tabus que eram muitas vezes deixados de lado pela grande indústria cinematográfica de Hollywood. Mas, no que diz respeito à abordagem de gênero, em uma visão geral, os exploit films não são inovadores. Especialmente os subgêneros que influenciam o lado gráfico da violência, utilizada por Tarantino, reproduzem estereótipos já consagrados na sociedade e destinam à mulher o lugar comum de sua aniquilação e, nesse ponto, talvez só se diferenciam da indústria por ter uma visão radical do conceito de aniquilar - o que em filmes hollywoodianos, muitas vezes, não passa de uma exterminação simbólica de seus desejos, nos filmes de exploit o sentido é ao pé da letra, com mortes espetacularizadas. Se feita análise, é possível notar que na verdade a imagem da mulher no exploitation é apenas um hipérbole da representação dominante masculina. Nos filmes de Hollywood, principalmente nos melodramas, a mulher lida com suas questões amorosas e relações com a família, seja filho ou marido, resumidas quase sempre na dualidade 75

mãe/prostituta de Beauvoir, onde a segunda categoria se encaixam ações que não estão esperadas da mulher, como a autoafirmação, o desprendimento sexual, o desejo pelo proibido (um amante, uma paixão impossível). No exploitation, a mulher nunca é a representação da mãe. É, em sua totalidade, uma mulher hipersexualizada que não se encaixa nos padrões de mulher socialmente reconhecida. Elas são representadas com poucas roupas, em posições que exaltam o corpo feminino, objeto do voyeurismo masculino e de dominação. E é por isso que, na maior parte das vezes, ela “merece” morrer, pois é uma mulher perigosa para o patriarcado. Neste caso, a dominação no sistema representacional se exerce não só no olhar, mas pelo controle efetivo físico, muitas vezes resultante na castração da mulher como um todo, aniquilando seu sujeito com a morte. No exploitation, portanto, a mulher é anulada no campo simbólico e físico. Se for pontuado que os filmes de exploitation eram voltados especificamente para um público masculino, feito por homens, não surpreende a dominação da mulher como sujeito, impossibilitando sua ação - por mais questionável que seja esse controle. Mas Tarantino busca sua influência em filmes pontuais de exploitation, como Faster Pussycat! Kill! Kill! que demonstram uma mulher diferente. Ela continua sendo a representação da prostituta, no legado de Beauvoir, mas sua aniquilação não é necessariamente uma relação de causa e consequência. O diretor lembra que, após décadas de história e de consciência de representatividade para as mulheres, o espectador também é feminino. Para a análise fílmica, é pertinente dividir o filme À Prova de Morte em dois momentos. No primeiro momento do filme, o fundamento da mulher subjugada apenas como objeto sexual e destinada a morte por sua sexualidade continua intacto. Há apenas uma reprodução da abordagem feita pelos filmes da grande indústria cinematográfica e, de forma mais exacerbada, nos filmes de exploitation como um todo. O vilão do filme, Stuntman Mike, é apresentado a audiência. Sua caracterização não é tão importante, mas traduz alguns pontos de sua construção. O dublê de meia idade demonstra desde o princípio o desprezo pelas mulheres. Ao olhar o outdoor com a figura de Jungle Julia e ouvir no rádio o desafio que tem como prêmio a dança sensual de Arlene, é possível prever que Mike apenas lança a compreensão da mulher como objeto sexual para lhes servir. Ao procurar o bar atrás de suas primeiras vítimas e ao assassiná-las, a espectadora, que agora também é 76

feminina, se encontra na posição de experimentar o que Kaplan considera uma identificação duplamente masoquista. Primeiramente, porque ela se identifica com a figura feminina e sua representação dominada; depois, há a construção da posição no cinema, que faz a espectadora se sentir identificada como vítima. Em uma breve análise das vítimas de Stuntman Mike no filme, conseguimos identificar uma relação com a categoria de “prostitutas” de Beauvoir. Jungle Julia, Arlene e Shanna são devassas, abusam de uma formação hipersexualizada de seus corpos; as cenas mostram posições deitadas e pernas à vontade com o olhar da câmera, consumo de bebidas e drogas, além dos diálogos com conteúdo altamente sexuais. Nas estruturas patriarcais que definem historicamente a mulher, só é admirável a que se subordina à Lei Paterna (KAPLAN, 1995:104). Na visão da psicanálise, a formação de uma mulher castradora do homem é, por definição, maléfica. No momento que se torna consciente do seu lugar como objeto, ela utiliza da sexualidade para manipular o homem, assim como mostram o perfil das primeiras vítimas. Apesar dessa posição não ser explicitamente pejorativa no filme, a morte pode ser considerada uma forma de punição pela “degradação moral” e descomprometimento que as personagens femininas remontam, pelo simples fato de terem resistido, de certa forma, à adequação patriarcal. Colocando a visão feminista do cinema sobre os personagens, Stuntman Mike tem medo de que a sexualidade forte de mulheres como Arlene e Jungle Julia não só altere os parâmetros do patriarcado como os valores, mas que signifique a própria morte dele. Ao mesmo tempo que o protagonista deseja as mulheres, como fica claro na troca de olhares na longa cena do lapdance em que Arlene se utiliza conscientemente da sexualidade do seu corpo, através dos movimentos sensuais, Mike teme o poder dessa sexualidade sobre o homem. Nos sistemas simbólicos não há lugar para a mulher sexual, pois o homem, sujeito da ação, regressa aos processos edipianos para temer a mulher e espera que ela se sujeite aos conceitos da mulhermãe. Jungle Julia, especificamente, tem um poder de autonomia durante toda sua aparição no longa. Ela tem seu próprio programa de rádio, bebe e usa drogas para demonstrar justamente a propriedade sobre o próprio corpo. E também utiliza da sua forma feminina como método de reafirmação da mulher, mesmo que para o espectador masculino, ao mostrar suas pernas em posições desleixadas, com pés ao alto. Sob um 77

olhar contemporâneo da plateia, talvez Jungle Julia não se aproxime nem do conceito de femme fatale, pois hoje não há uma vinculação necessária da afirmação da sexualidade com o mau, sendo possível ser um Ser sexual e bom. A personagem em momento nenhum realiza alguma ação que contribua para uma categorização de vilã, dentro dos padrões morais de certo e errado, mas somente por não se encaixar no modelo de vítima ou de mulher, e aqui esposa, dentro da lógica do patriarcado, ela deve ser aniquilada. Talvez Arlene traduza mais ainda o que Jungle Julia também representa: a sexualidade feminina que literalmente transpira. A sua caracterização é menos forte no filme do que a de Jungle Julia, mas é possível notar por seu posicionamento indiferente a Stuntman Mike ao entrar no bar que Arlene é consciente de sua sexualidade e lidar com isso não é um problema, tornando algo naturalizado. Não é possível afirmar que a personagem configure na categoria de femme fatale, já que, pela definição de Kaplan, a femme fatale que foi montada no cinema noir utiliza de sua sensualidade em prol de seu benefício próprio, para atingir um propósito. Mas a dança de Arlene é indiferente, existindo apenas para cumprir uma promessa feita pela amiga, Julia. Ao tornar a lascívia sexual algo parte do comum, a personagem também oferece perigo ao patriarcado e ao homem, portanto, ao vilão. Apesar de odiar mulheres como um todo, Stuntman Mike escolhe Pam para dar sua primeira carona. Sem uma introdução maior da personagem, a atendente do bar se demonstra frágil desde o primeiro contato com o vilão. Seu tom de fala ao aceitar a carona demonstra ao espectador um modelo de fragilidade já comum entre as mulheres nos filmes de horror, como disse Brian De Palma. Pam representa em À Prova de Morte talvez a única mulher modelo da vítima, assumindo o sofrimento e questionamentos apenas para si. No nível da narrativa, com certeza Pam deve ter pensado internamente sobre aceitar uma carona de um estranho. Mas não só não externa essa dúvida através da ação, como aceita ser diminuída a posição de quem sofre. Como toda a representação feminina da vítima nos filmes de exploitaition e violência extrema, Pam morre de forma espetaculosa para satisfazer a necessidade misógina de Stuntman Mike de aniquilar as mulheres. Logo após, o vilão vai atrás do grupo de meninas que, aí sim, caracterizam para ele perigo, e mata de forma violenta Jungle Julia, Arlene e sua colega. As mortes reiteram todo o aparato de reafirmação do local sem voz da mulher, do silêncio ao qual 78

ela é designada já que para Kaplan, “a representação da mulher assassinada é, evidentemente, também um produto da câmera, usada para controlar a imagem da mulher, quer dizer, para oprimir a mulher através da própria representação”. Na segunda parte do filme, o espectador espera uma continuação das relações já determinadas pelo vilão. Em audiências educadas pela representação da mulher como eterna vítima até o momento que algum homem aparece para salvá-la, o roteiro básico inclusive de grandes produções da indústria, a continuidade óbvia para o espectador, mesmo o feminino, é a manutenção dessas posições e papéis. O diretor começa a expor o novo grupo de vítimas, enquanto esse grupo de três amigas vão ao aeroporto buscar uma colega. Elas integram os novos objetos cobiçadas por Stuntman Mike, que as segue e as observa de longe. São retratadas mulheres com características diferentes do primeiro grupo, com exceção da atriz Lee. A personagem em questão é a única que carrega o estereótipo de mulher sexualizada e objeto. Sua profissão é essencialmente feminina; Lee está vestida de líder de torcida, considerado um fetiche sexual pelo masculino, demonstrando sua submissão; com roupas curtas e cabelos longos, Lee se encaixa dentro do padrão de beleza norte-americano. Em análise posterior, veremos que Lee não acaba se inserindo de fato no grupo, pois não participa das cenas de ação e perseguição com o vilão. As outras integrantes do grupo tem características bem mais específicas. Abernathy é maquiadora artística e, apesar de se enquadrar na estética como uma sexualizada, com decotes e pernas a mostra, além de uma bota de cano alto que traduz muito da feminilidade e, ao mesmo tempo da sensualidade provocativa, Abernathy é mãe. A representação da maternidade, mesmo que muito superficialmente - em momento nenhum se fala sobre a relação com seu filho/filha, muito pelo contrário, permanece indiferente durante toda a trama - já pressupõe uma visão estereotipada da mulher tenra e submissa, assim como é pregada a maternidade na lógica familiar. Remonta a ideia de mãe de Beauvoir. Durante os diálogos memoráveis do filme, Abernathy sofre constantes brincadeiras irônicas com o fato de ser mãe, como se isso necessariamente a privasse de uma série de atitudes. E de fato priva, para as posições estratificadas da mulher na sociedade. Novamente, vemos a dicotomia entre mãe e prostituta, com seus signos e representações que não cabe a figura de uma mulher mãe e simultaneamente uma mulher independente da 79

submissão de valores do patriarcado. Mais ainda, a maternidade nulifica a sexualidade. Porque para a lógica patriarcal, a mulher é ou prostituta ou mãe, não cabendo uma coexistência das duas características. Por fim, o filme apresenta Kim e Zöe Bell 11, ambas dublês de cinema. As duas últimas personagens citadas se diferem desde o comportamento a forma como são apresentadas esteticamente, com suas vestimentas. São roupas pouco “femininas” dentro do padrão masculino de visão; calças, t-shirts estampadas e tênis. Claro, o figurino parece cada centímetro programado dentro da obra para se aproximar de uma estética dos anos 70, mas fica clara a representação de cada personagem já pela roupa, já que a forma de se vestir confere em um signo que indica a forma com que todo ser humano quer ser representado e assimilado dentro de um contexto (LIPOVETSKY, 1987). Com palavrões durante as conversas, Kim e Zöe falam sobre os momentos de dublagem em filmes de ação, carros e, em certo momento, falam sobre armas como forma de proteção e reafirmação da independência. Para a psicanálise, a arma representa possuir o falo; se tornar, portanto, capaz de dominação e ameaça ao homem, que sempre manteve seu papel histórico de controle. Mas é necessário lembrar que, mesmo com o poder da arma, ainda existe um modelo de domínio-submissão necessário, seja pela mulher ou pelo homem, que permanece intacto com a presença de armas, como uma forma de domínio pelo medo e pela morte. Assim como a arma para a psicanálise é uma extensão do falo no momento de dominação, seja sobre qual gênero, no filme, o carro de Stuntman Mike também funciona como sua ferramenta para a opressão e domínio, no caso das mulheres, já que é através dele que o vilão faz suas vítimas. Um carro à prova de morte somente para quem senta no banco do motorista. Do mesmo modo que a essência do próprio subgênero de filmes de carro dentro do universo exploitation (carsploitation), como já citado, é o veículo que se torna um prolongamento do próprio corpo humano, nada mais óbvio que o carro, nesse caso, se torne também um prolongamento do corpo masculino e sua forma opressora. O carro é o poder do falo, tanto para o homem gerar sua maneira de opressão, como para as protagonistas em provocar os conceitos préestabelecidos da masculinidade ao pilotarem o carro como extensão do corpo - e

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Neste papel, Zöe Bell interpreta ela mesma. A dublê trabalhou em filmes do próprio Tarantino, como as duas versões de Kill Bill e Bastardos Inglórios.

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também como arma da aniquilação da vida, como no segundo momento do filme - da mesma forma que faz o vilão. Mais a frente da narrativa, quando vão testar um Dodge Challenger branco de 1970 à venda, o mesmo ano, modelo e cor do carro de Corrida Contra o Destino, o grupo deixa Lee junto com o mecânico e dono para garantir que não iriam roubar o veículo. Não há como tecer nenhuma afirmação concreta, mas é possível que a personagem escolhida para não participar da corrida - e que não participa da perseguição que se estende depois - tenha sido a que, justamente, não se destaca por atender a um padrão, por pertencer de certa forma a uma categoria que aceita a submissão dos valores patriarcais em relação a sexualização e objetificação da mulher, mesmo que no campo simbólico. Como Lee não participa das cenas de embate com o vilão que quer lhes tirar a vida, não é possível afirmar se a personagem ocuparia o posicionamento da vítima, assim como fez Pam no início do filme, mas é possível imaginar que sua representação sugerisse que sim. Não só pela construção da personagem sexualizada, já que em outros filmes como Faster Pussycat! Kill! Kill! e The Big Doll House as protagonistas são extremamente hipersexualizadas, muito mais do que em À Prova de Morte, por sinal, e mesmo assim são mulheres capazes de ocupar o local da ação. Em toda sua aparição no filme, Lee aparenta apenas figurar o grupo das outras amigas. Já durante o test drive do carro, Zöe arrisca um posição por cima do capô do automóvel, presa somente ao interior por cintos, para apreciar a adrenalina. Como dublê de filmes de ação, Zoë e Kim apreciam a sensação, uma atividade guardada muitas vezes ao homem e que não combina com a “fragilidade” do sexo feminino. As três protagonistas cruzam com Stuntman Mike, que já as seguia por algum tempo. O vilão inicia uma perseguição de carro, com tentativas de provocar um acidente e jogar Zöe para fora da estrada. Uma sequência de cenas que duram minutos de ação, atendendo ao conceito de cinema de atração ao provocar no espectador sensações através da mais pura ação, mas que, de um ponto de vista sob a relação de gêneros, não inova. Mesmo com Kim atirando em Stuntman Mike com sua arma pessoal, este consegue fugir e continua ainda assim assumindo a posição do homem dominador, no caso dos filmes exploitation e neste filme em específico, o vilão psicótico que persegue mulheres desconhecidas pelo simples prazer de matar, de castrá-las do mundo. O 81

roteiro faz o espectador, feminino ou masculino, ficar mais atento quando as protagonistas conseguem despistar o vilão. A atitude esperada de maior parte da audiência seria o deleite por parte das protagonistas com a liberdade - com vida - de uma perseguição que quase acaba por matá-las. Porém, como as mulheres não se veem nas estigmatizações sociais do gênero uma representação fiel de seus desejos, há uma reviravolta e Kim e Zöe simplesmente deliberam uma caçada atrás do “maníaco”, em comum acordo. A complacência geralmente feminina dá lugar ao sentimento de vingança. Há muito o que se analisar nesta cena. Quando decidem ir pegá-lo, Kim se vira para Abernathy e diz “Querida, acho que você queira sair do carro”. No momento, a dualidade invade novamente, onde uma representativa da mãe, a serenidade e “bom juízo” não pode compactuar com a imagem maléfica da mulher, mas Abernathy quebra esse padrão quando responde “Foda-se essa merda, vamos matar esse bastardo”. Com uma reviravolta e diálogos bem marcante ao estilo do diretor, o que se segue é uma inversão de papéis, onde Stuntman Mike se torna o perseguido. O grupo de três meninas volta pela estrada e o vilão, que estava tranquilo bebendo uma cerveja, leva pauladas repentinas de Zoë enquanto arranca com o carro sem muito controle. É o momento da virada, é neste exato momento que os papéis se invertem e isso fica claro para os dois lados. Logo no início da perseguição ao vilão por entre pastos, com três mulheres que parecem ameaçadoras ao xingá-lo e se divertir enquanto batem na traseira de seu carro, Stuntman Mike percebe que não lidava com o modelo esperado de vítimas femininas e demonstra feições no rosto claramente assustadas. Em um momento onde estão lado a lado com os carros em alta velocidade, Stuntman Mike tomado pelo desespero pede desculpas e diz para as garotas que era apenas uma brincadeira. As mulheres riem e ironizam sua resposta. Kim diz: “Ah, você só estava brincando? Pois agora nós estamos brincando com você”. Poucos minutos depois de mais alguma perseguição motorizada, elas batem em seu carro, o capturam e segue uma cena de segundos que parece dilatar no tempo, onde basicamente as três protagonistas socam o vilão, numa sequência de um exagero em que a própria violência soa artificial. Mesmo dentro de uma narrativa onde a maior influência advém de um gênero masculino, com uma dominação do sujeito mulher iminente, aqui as 82

mulheres se tornam dominadoras. Elas assumem a posição do controle e fogem a submissão esperada dentro de uma sociedade regida pelo patriarcado. E, diferente da concepção da femme fatale, figura feminina que tinha o domínio do homem e que, justamente por tal posição era fadada a aniquilação, aqui a face subversiva das protagonistas não é considerada como propriamente ruim. Cabe ao espectador o juízo de valor, mas o surgimento da face opressora da mulher aparece como uma causaconsequência da tentativa de sua tentativa de nulificação por parte do homem. Com a natureza contraditória e fragmentada das feminilidades construídas dentro de uma hegemonia masculina, posições como estas tentam suprimir exigências impostas no momento em que elas começam a ocupar novos papéis dentro da estrutura de organização entre gêneros, não se reconhecendo completamente em gêneros como o melodrama, que prega a submissão (KAPLAN, 1995:112). Portanto, o que vemos dentro do filme de Tarantino é uma das muitas formas de uma representação da mulher que rompe com o estigma enraizado pela grande indústria cinematográfica, principalmente se distanciando do melodrama, o primeiro gênero do cinema que realmente lidava com questões femininas - e que foi responsável por naturalizar todas as formas opressoras dos desejos das mulheres. Não que a forma de vingança seja essencialmente uma novidade no cinema, como será analisado no último tópico deste trabalho com mais cuidado, mas, dentro do cinema de exploitation, “gênero” de grande importância para a construção do cinema de Tarantino e, especialmente, para À Prova de Morte, a vingança da mulher com seus opressores (assassinos, pais, estupradores, policiais e outras figuras) aparece pontualmente em filmes que rompe com a passividade melodramática da mulher e a tira da estagnação patriarcal. Não é possível afirmar, entretanto, que somente a inversão de papeis seja o suficiente para considerar essa uma visão progressista ou, ainda mais, feminista por parte de Tarantino. Há visões diferentes por teóricas sobre a mulher na posição de dominadora e não nos cabe fazer julgamento de valor, no sentido de que é certo ou errado a mulher revidar uma agressão, mas sim compreender o lugar desta ruptura dentro do contexto da representação feminina no mundo cinematográfico. O que fica claro com essa mudança é uma ruptura significativa na abordagem da mulher em relação a principal estética usada pelo diretor, no caso, os filmes de exploitation dos subgêneros de giallo, slasher 83

e splatter, através da utilização como influência de filmes do próprio “gênero” onde a chave da trama é a vingança. 4.3 Revanchismo como ruptura O tema de vingança como centro na narrativa de um filme não é novidade na história cinematográfica, assim como na verdade não é inovação na própria linguagem literária, origem de outros meios de representações artísticas de narrativas, como o cinema. Nem mesmo dentro do cinema considerado "não-cinema", anulado de sua qualidade como filme, os exploit films também não fugiram da temática do revanchismo. Apesar dos roteiros das categorias carregadas de violência gráfica não deixarem a menor opção de ação para a mulher, já que ela era sempre a vítima fadada a seu destino apenas de morrer de forma espetacularizada, parte da produção também voltou seu olhar para o revanchismo. São os chamados filmes de rape-and-revenge, assim categorizados por Read (2000), que também tiveram espaço na produção de exploitation. Tinham como protagonistas mulheres e, enquanto a maior parte dos filmes de vingança trata de forma mais distanciada a própria definição de vingança, a vingança contextualizada nas características do "gênero" tornam as ações das mulheres protagonistas também espetacularizadas, mas em relação aos seus assassinos ou estupradores. E, logo, também não é novidade nos filmes de Tarantino. A análise que será feita é sobre o personagem feminino e como essa vingança se dá, principalmente nos filmes de estupro-e-vingança, mas cabe uma breve discussão sobre a vingança, em modo mais amplo, dentro de narrativas e a capacidade de alterar a percepção do espectador sobre os filmes. Na verdade, a vingança tem sido um assunto muito explorado nos últimos filmes do diretor e abordada de forma peculiar. Em Bastardos Inglórios e Django Livre12 a

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Django Livre é uma produção em homenagem ao filme Django (1966), de Sergio Cobucci, considerado um dos spaghetti westerns mais violentos durante sua época de estreia. Franco Nero, que interpreta Django na primeira versão, inclusive tem participação da versão de Tarantino. No western original, a trama também envolve uma busca de vingança do protagonista por terem assassinado sua mulher, mas em momento algum a questão racial é colocada em pauta. Em Tarantino, Django é escravo e procura um vingança dupla: tanto de sua mulher que foi tirada pelos senhores das fazendas de algodão, quanto a lógica escravocrata. O novo Django não quer ser mártir ou libertador; ele até despreza outros negros que aceitam a escravidão, buscando apenas a vingança dos brancos que o agrediu durante toda sua vida.

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vingança, mesmo que no nível da narrativa cinematográfica, coloca o dedo na ferida de atitudes e acontecimentos históricos da humanidade que hoje evitamos falar, em um nível especialmente diferente do que a maior parte dos filmes de vingança. Majoritariamente, o filme de vingança (e talvez a própria vingança dentro de narrativas clássicas, como as epopeias) surgem de relações pessoais. São pessoas que se sentem traídas, invejadas, ameaçadas e uma série de outros sentimentos que poderiam justificar, sob o olhar do vingador, a tomada da ação pelo viés vingativo. Ou seja, a vingança é majoritariamente um sentimento íntimo. Já em ambos os filmes citados, Tarantino transpõe a vingança para conceitos moralmente inaceitos nos dias de hoje, e aqui a afirmação é categórica. Apesar de que toda análise cultural, especialmente cinematográfica, requer uma relativização das afirmações, o nazismo e a escravidão racial são vertentes que, apesar de ainda encontrem seus admiradores - skinheads com suas teorias neonazistas e o racismo que perambula por grandes metrópoles ainda são restos de tais práticas -, são inaceitáveis de um ponto de vista ético geral tanto quanto as próprias teorias de subjugação racial e religiosa. São marcas na história de atitudes que, um dia tomadas como corretas ou possíveis, hoje só não é mais pesada na consciência coletiva humana porque boa parte escolhem esquecer. Tarantino escolhe e reafirmação de “lados”, instigando o espectador a tomar um lado para si. Dessa forma, a relação com a audiência muda. Quando a vingança ocupa o nível pessoal, o espectador pode analisar a atitude, levando em consideração inúmeras razões pessoais e morais inseridas dentro de um contexto de ética e valores. Já ao colocar uma vingança efetiva do nazismo e da escravidão racial, Tarantino homogeneíza a relação com o espectador. Considerando aqui que tais práticas são reprováveis universalmente, todos os espectadores nutrem, automaticamente, um deleite com a vingança. Talvez não um deleite estético; a vingança de Tarantino é calcada no exploitation, ou seja, ainda utiliza o excesso da violência gráfica para demonstrar sua forma de vingar seus personagens em cada filme e o excesso de sangue e morbidez ainda choca parte do público. Mas o prazer pela vingança no campo semântico, na projeção das ideias em fazer pagar com a própria vida quem tirou vidas ao escravizar Outra curiosidade é que, na primeira versão, a mulher do protagonista foi assassinada e ele consegue resgatar uma mulher chamada Maria das mãos de bandidos. Na versão de Tarantino, Maria é a mulher de Django.

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negros pela cor da pele e ao matar judeus apenas por sua religião. É uma forma, mesmo que não real, de fazer pagar os erros da humanidade. A partir do momento em que se lida com questões profundas dessa forma, é possível afirmar que não se trata mais de vingança, já que a vingança se dá mais apropriadamente nas relações interpessoais, mas sob o olhar do espectador, se trata de justiça. Shields (2013) considera justamente que, ao se tratar de uma vingança em comum de todos os espectadores, ou seja, por não haver uma oposição, as tramas de Django Livre e Bastardos Inglórios se definem como justiceiras, mesmo que isso seja feito a qualquer custo e por quaisquer meios. Com isso, o diretor joga para baixo o desafio da visão através do uma moral economicamente embasada na complacência e excessivamente estetizada, que preza por uma neutralidade e um relativismo excessivo. De acordo com essa norma, a maioria das obras contemporâneas de arte pairam em um estado moral transparente, que não toma lados, e que suspende qualquer pretensão de uma verdade ética absoluta (SHIELDS, 2013). Tarantino faz exatamente o caminho inverso, desafiando este dogma. Ao representar temas polêmicos para a própria história da humanidade, não só há uma (re)polarização da visão moral do espectador com a retomada do bom e do mau - já que antes a relativização e a neutralidade tem tomado conta dos discursos artísticos -, mas questiona o que está em jogo ao percebermos injustiça. A postura tomada como reflexo da narrativa é, como já dito, o deleite com a agressão, com a justiça sendo feita "olho por olho, dente por dente", mesmo que isso pressuponha uma linha cada vez mais turva entre vítima e agressor. Shields questiona que, talvez, a postura padrão seja uma forma de evitar uma questão muito mais radical e assustadora: a da responsabilidade. Mas o fascínio com as cenas dos filmes de Tarantino tornam a reflexão, em sua maior parte, sem sentido. Nada é mais evidente do que exorcizar imagética e metafisicamente os atos tirânicos que figuram por detrás desses questionamentos. A crença por uma possibilidade de um acerto de contas entre a justiça e a injustiça. É importante entender como o espectador projeta o senso de justiça no filme para poder analisar, tendo em vista essa ação, os filmes protagonizados por mulheres. Voltando para a vingança no nível pessoal, talvez o filme que mais se encaixa na temática é, o mais óbvio, os as duas sequências de Kill Bill. Na verdade, a trama de Kill 86

Bill é um enredo clássico de uma estrutura narrativa chamada de filmes de estupro-evingança, como já citado na análise de influências do exploitation sobre o cinema do diretor. Apesar de A Noiva, a protagonista feminina que irá se vingar, não ter sido estuprada, ela foi essencialmente deixada para morrer por um homem. No início do primeiro filme, quando Bill engana Beatrix e trama sua morte, é a figura masculina demonstrando seu poder de dominação sobre a mulher, seja demonstrando esse domínio pela obrigação sexual, como no estupro, seja através da aniquilação de sua existência. Beatrix se torna tomada pelo ódio e pelo desejo de vingança. Embora não fique claro no filme, a protagonista antes de assumir sua saga vingadora se enquadrava em um dos modelos de submissão do patriarcado através da figura da esposa. Ao ser traída, A Noiva se transforma em Beatrix, com intenção única e apenas de fazer a justiça com as próprias mãos. Enquanto nos filmes Django Livre e Bastardos Inglórios a justiça é apropriada pelo espectador para funcionar como uma lógica geral, aqui ela se dá no âmbito pessoal da protagonista. Ela resolve ir atrás de cada um e destilar seu ódio por ter sida abandonada das formas mais cruéis e violentas, ao longo do desenvolvimento do filme. Beatrix é vítima novamente de uma tentativa de assassinato e a enterram viva, já no segundo volume da sequência. Tentam, novamente, provar a superioridade masculina de Bill ao mandar matá-la novamente. Curioso notar que, ao fazer questão de despedaçar todos que se colocaram em seu caminho da forma mais violenta possível, Beatrix parece ver em cada tripa e sangue um pedaço de justiça pelo que foi feito com ela. Mas no último momento do filme, ao seguir para finamente matar o Bill, sua morte não gera uma gota de sangue. Por ter sido largada por alguém com quem criou relações anteriores de amor, A Noiva tira a vida de Bill com um golpe de artes marciais que explode somente o coração, capaz de matar por dentro. Talvez, aqui, uma forma de ressignificação melodramática da morte para a própria protagonista no momento que Bill tenta matá-la, ao “quebrar seu coração”. Kill Bill é um exemplar clássico de filmes de estupro-e-vingança, mas, como envolve questões muito intrínsecas sobre casamento e relação, talvez À Prova de Morte, o filme que é realmente analisado neste trabalho por sua influência exploitation, consiga exemplificar melhor as relações arquétipos entre o corpo masculino e feminino. Kaplan aborda em seu livro produções com mulheres protagonistas que, ao 87

serem estupradas ou tratadas brutalmente, são vistas vingando-se de seus estupradores, como em Lipstick (1976), exatamente a mesma trama do qual se apoderou os filmes de estupro-e-vingança, já citados como um viés do exploitation film e suas diferenças de um filme de vingança comum. O estupro é a externação do ódio nitidamente ligado a hostilidade básica e inalterável contra as mulheres enquanto seres sexuais, sendo necessário a copulação a força para torna-la ciente do local que deveria ocupar, o de não sexual e, mesmo se for, demonstrar que o último ato de decisão do desejo é ainda masculino. Ao procurar vingança através da violência, a mulher tem a posse do falo, pela representação da arma e sua capacidade dominadora, diminui a ameaça que sua sexualidade representava e é minorada pelo papel essencialmente masculino de vingadora. Assim, a identificação sexual dentro do modelo foi alterada, mas, para teórica, o maior problema é que se faz a manutenção de uma necessidade de domínio-submissão para sobrepor um ou outro gênero. Retomando as ressalvas de Brunsdon (apud KAPLAN, 1995:112) sobre este tipo de cinema, que é resultado de fatores extracinematográficos de empoderamento da mulher na sociedade, como já citado, colocam à tona “a natureza contraditória e fragmentada de feminilidades construídas dentro da hegemonia masculina”, expostas por essa nova liberação de padrões narrativos. Para a teórica, os resultados não são efetivamente progressistas no campo do feminismo, pois não abrem precedente para a mulher ocupar um lugar de voz no cinema essencialmente feminino, mesmo com todas as suas questões e contradições. A partir do momento que a mulher deve ser sexualizada ou masculinizada para mostrar sua força nos filmes, ela ou continua configurando dentro de uma categoria essencialmente machista e patriarcal, onde a sexualidade é, por muitas vezes, resultado de uma opressão do homem sobre seus desejos, ou então deve ocupar deliberadamente a posição do homem, ao ponto de se parecer com um para conseguir traduzir sua força como personagem. Ou seja, o cinema clássico é, em geral, construído para o espectador masculino. Filmes sobre mulheres, e os gêneros contemporâneos às teorias feministas, são feitos para a espectadora feminina, que se reconhece. Mas o que ainda não foi explorado e, para autora a inversão de papéis também não dá conta, são as formas da espectadora feminina ser posicionada diferente do homem em filmes claramente construídos para o olhar masculino. O 88

movimento de liberação da mulher foi, portanto, reduzido, principalmente nos anos 80, em uma inversão de papéis, à medida que a própria cultura norte-americana cooptou as diversas exigências feitas pelas mulheres na igualdade de representação do gênero. Independente de ter resultados progressistas, Kaplan assume que a problematização das questões, mesmo que de forma deturpada pela indústria cultural, foi uma forma de levar o debate para um nível mais popular e abriu brechas para explorar os problemas envolvendo as diferenças sexuais. Ou seja, por mais que os filmes de vingança protagonizado por mulheres não sejam essencialmente feministas, não é possível ignorar sua importância na ruptura de representações estagnadas da mulher e do homem, principalmente em relação ao seu poder de ação, já que as femme fatales dos filmes noir já romperam com a lógica da sexualidade reprimida, mas continuavam presas no patriarcado quando as mulheres tinham suas vidas anuladas justamente por essa sexualidade. Nos filmes de vingança protagonizados por mulheres, a maior parte são retaliações por abusos sexuais. Como a construção social e imagética da mulher dentro do sistema patriarcal é, desde o início, para servir aos desejos do homem e para oprimir os desejos das mulheres, o homem sempre construiu a imagem da mulher para o espectador masculino, que utiliza a transformação da forma feminina em fetiche como método de dominação. Não seria surpresa o homem, assim como até hoje, se acha no direito de usar a mulher, no sentido físico da palavra, para satisfazer seus anseios sexuais e dominadores. Para Haskell (1974), após a repressão da mulher dentro dos valores de família, principalmente para a mulher na figura da esposa, a maior hostilidade do patriarcado é expressa na ideia de que todas as mulheres anseiam o tempo todo por sexo, após a liberação sexual dos anos 60. Nessa ideia, a repulsa do homem nasce dele ser forçado a reconhecer a vagina como poder de afirmar a sexualidade feminina e, com isso, a diferença sexual. A reação masculina é querer dar seu falo, como forma de suprir o sexo que ele pressupõe que a mulher necessite, o mais dolorosamente possível e de preferência à força. Não só esse sexo forçado é uma forma de puni-la por desejar o sexo, em algum momento da vida, e fazer se mostrar consciente disso, quando para provar a “masculinidade” pela habilidade de dominar com o falo e, assim, afirmar seu controle sobre sua sexualidade. Assim como a nova 89

mulher do femme fatale deveria ser morta por incitar o homem e ofender a lógica da categorização do patriarcado, a nova mulher sexual tem de ser dominada pelo falo como forma de assegurar sua superioridade. O estupro é não só uma forma de ter o sexo propriamente dito, mas de fazê-lo contra a vontade da mulher, reafirma a supremacia dos atos masculinos perante o desejo, e no caso, o não desejo, da mulher. Por isso, na maior parte dos casos de filmes de vingança, o estupro é o principal abuso. Não há consenso nem mesmo entre as teóricas feministas. Como dito, Kaplan não considera a vingança como válida, já que há a manutenção da lógica de domíniosubmissão de algum gênero e isso significa uma simples redução de papeis. E principalmente, não cria uma alternativa para uma representação da mulher para a espectadora feminina no cinema, levando em conta suas problematizações e seus desejos. Mas até mesmo a teórica afirma que, ao levar a discussão da agressão ao corpo e a sexualidade da mulher para público, os filmes de rape-and-revenge tem algum mérito. Sem julgar se é uma forma efetiva ou não de se opor a dominação machistas nos filmes, há um segmento de teóricas que acredita na violência como um regurgitação de anos de opressão por parte da mulher, um primeiro reflexo após tantas construções submissas da forma feminina, principalmente por parte do cinema. Já falamos que espaços como melodrama e as telenovelas tem sua importância nos gêneros cinematográficos, pois são os primeiros a dialogar diretamente com a mulher sobre problematizações do feminino. Mulvey, inclusive, diz que a audiência destes programas devem ser incentivadas, porém com o cuidado de não servir para apenas podá-la em sua construção e em seus desejos. Bernárdez (2001) considera o uso da violência, e o uso da força contra o outro e/ou o uso da força de um grupo sobre outro, uma fascinação da própria sociedade, e não apenas do cinema. Ela sublinha que, para que seja possível um debate sobre a legitimação do uso da violência por ambos os gêneros, é preciso entender a fascinação da sociedade com a cultura da violência, já que a própria noção marcou a maneira de construir uma narrativa clássica ocidental. Aristóteles considera a violência como algo relacionada ao movimento; quando as coisas ocupam lugares que lhes correspondem são naturais e, quando não, se procede uma situação momentânea de violência. É, portanto, um ato transitório e antinatural, uma ruptura no rumo natural das coisas. Mas o que o filósofo grego não conseguiu 90

captar foi a relação entre violência e poder, já que toda a forma de poder implica violência. Para o poder sobre a mulher, o homem lhe desfere uma série de ações violentas, desde sua castração de imaginário até a violência física, como o estupro e a morte. Além da representação violenta no cinema pela óbvia dominação do olhar masculino, já que é ele quem realiza, Walter Benjamin (apud BERNADEZ, 2001) explica que a fascinação da violência pelas vanguardas “porque destruir rejuvenesce, já que distancia nossos passos de nossa idade”, pensada aqui como uma violência regeneradora, que pode dar poder ao novo. Mas, essencialmente, a representação do uso da força nas narrativas tem relação com o exercício de poder. E, como diz a teórica, em tempos que a única ética que prevalece é a hedonista, a identificação do bem com o prazer, a imagem dos maus e violentos podem resultar em uma imagem atrativa, desde o momento em que este poder simbólico que antes foi referido está em fase de destruição ou recomposição. (BERNÁRDEZ, Asunción. Violencia y cine: el sabor amargo de una fascinación, 2001)

Ou seja, a violência tem seu poder de atração para o público, uma vez que tem uma relação direta com o domínio. Como o olhar é masculinizado, é o homem que tem o maior prazer com as representações violentas em sua maioria. Caso isso mude, com o empoderamento da mulher para o ator violento, por exemplo, a teórica explica que a fascinação pela violência acontece da mesma forma no gênero feminino. O aparato cinematográfico utiliza-se, então, da violência como uma forma de comoção da audiência, remontando o conceito de Gunning sobre a violência como sensação extrema que traduz o essencial do cinema: sentir. Para a teórica, o feminismo tem que conquistado cada vez mais o direito da mulher na própria produção cinematográfica, podendo se representar de acordo com o que se identifica e, principalmente, que a violência está inserida nesse contexto de identificação. “Nos novos modelos de mulheres incorporados, temos mulheres mais independentes, mais ativas e que, nos últimos tempos, pleiteiam inclusive a sua legitimidade para usar a força” (BERNÁRDEZ, 2013:89). O direito do uso da violência ainda fica, portanto, legitimado apenas para os homens, enquanto as mulheres por muitas vezes são estigmatizadas por levantar a mão para seus agressores. Se encontrando no cinema em alternância de posições, hora se identificando ou não, a mulher é negada ao direito de ação. Não é uma questão 91

de incentivar a misandria, como lembra Bernárdez ao citar movimentos de feministas na internet que pregam a violência gratuita aos homens, mas de, numa lógica igualitária de gêneros, permitir a mulher de utilizar a violência para seus fins sem relacioná-la a uma figura necessariamente ruim, como foi feito durante o cinema noir. Para a teórica, compreender a possibilidade de uma resposta violenta, e aqui então representada pela vingança das mulheres nos filmes onde são anuladas de diversas formas, é dar igualdade de gênero. Independente das diversas formas que a teoria feminista abarca a troca de papéis, não é possível ignorá-lo como uma forma de ruptura na constante estratificação da mulher como objeto da submissão do homem.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como o principal objetivo deste trabalho é analisar a forma de representação das mulheres no cinema de Tarantino, principalmente em À Prova de Morte, foi necessário um embasamento de todo o universo do diretor, suas influências e, principalmente, a contextualização desse mundo dentro do olhar cinematográfico feminista. Não é uma questão apenas de compreender as relações entre os corpos femininos e masculinos dentro do filme, com todas as suas também relações, mas agora de força e domínio. É entender se, afinal, o filme rompe com a representação estereotipada da figura feminina de forma patriarcal pelo cinema de exploitation, principal influência de Tarantino em seus filmes? Há sim uma forma de ruptura, por mais delicada que ela seja. Na verdade, o que é possível observar é que o próprio cinema com a temática da vingança, principalmente dentro da linguagem do exploitation, aqui com os filmes de rape-andrevenge, já subverte a construção estereotipada da mulher nos filmes mais conhecidos, principalmente nas verteres mais mórbidas, como no gore e o splatter. Tarantino retoma essa discussão, levantada por filmes como A Vingança de Jennifer dentro do mundo do exploit, para trazê-la em seu universo, com suas marcas estilísticas, de volta ao debate. A compreensão do olhar feminista, a partir da discussão de submissão e poder de Kaplan, Beauvoir e Bernárdez, principalmente, nos leva a perceber que a tomada de decisão das protagonistas de À Prova de Morte em encarar seu quase-assassino é uma forma de empoderamento da mulher, por mais questionável que sejam suas ações. Considerando que a fascinação pela violência é da sociedade em geral, como pontua Bernárdez, por que não demonstrar também personagens femininos sendo livres para praticar a violência? O primeiro movimento cinematográfico a mostrar um poder de ação da mulher pela violência foi o cinema noir, com a figura da femme fatale, que também tinha o uso da violência e da sua sexualidade a seu favor. A diferença crucial é que, nos filmes noir, a mulher era vista como algo a ser aniquilada por não ser adaptar aos padrões patriarcais e, muitas vezes, com um fundamento narrativo, como ao ocupar o cargo de vilã. O que é principal aqui para salientar é que a discussão não tem pretensão de entrar em debates sociológicos em como a abordagem da violência nos meios de comunicação, e aqui o cinema, implica no aumento da criminalidade ou 93

associação de uma sociedade mais violenta. Mas sim abordar a representação da mulher no cinema e como essa representação sofreu mutações ao longo dos anos de desenvolvimento da linguagem cinematográfica. Dar a opção da mulher se tornar violenta e utilizar dessa força recém-adquirida como reflexo da opressão masculina seria, portanto, uma forma de regurgitar os anos de submissão que a mulher sofreu - e ainda sofre -, por mais questionável que seja o meio da vingança. Não que isso seja uma forma legítima e estritamente correta de criar uma visão feminista das protagonistas. Para Kaplan, a única forma de criar esse cinema seria pela própria visão de mundo da mulher, mas sem anular os desejos embutidos na sexualidade feminina, que envolvem também a submissão, mas não apenas ela. O que o filme não realiza, já que a agressão espetacularizada praticadas personagens mulheres no vilão se assemelha muito mais a uma forma momentânea de canalizar o ódio por alguém que deseja anular sua existência por não pertencer ao conceito do patriarcado. Por mais que isso fique implícito no filme, Stuntman Mike representa a misoginia, o ódio pelas mulheres por terem sua sexualidade cada vez mais afirmada. Tanto que suas vítimas são mulheres fortes, como analisado no tópico específico das protagonistas femininas do filme. A forma mais feminista possível de se realizar uma obra cinematográfica, levando em consideração inclusive os anos de opressão masculina, ainda é uma discussão muito nova para o campo teórico feminista, já que só a partir dos anos 60 que as mulheres começaram a ocupar os cargos pensantes para questionar, inclusive, como eram construídas suas imagens na televisão e no cinema. É importante lembrar que, como afirma Shields, o espectador projeta o senso de justiça no filme. No caso da vingança violenta levado ao extremo, como em todos os filmes de exploitation que exploram a violência gráfica, Tarantino joga com a emoção da plateia e o sentimento de vingança criado em todos a partir do próprio aparato cinematográfico e sua linguagem que desperta sentimentos, como lembra Gunning, e sacia o sentimento momentâneo por justiça. Se o filme trás uma forma meio torta de empoderamento da mulher, com várias questões a se fazer em relação a conduta de responder violência com mais violência, ele pelo menos responde ao estímulo momentâneo de justiça da plateia. O resultado é uma sensação de bem estar paradoxal, ao mesmo tempo que é mostrado na tela uma forma violenta de se rebelar. 94

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ANEXOS

ANEXO I – Cenas de Kill Bill vol. 2.

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ANEXO II – Cartazes do filme À Prova de Morte e Faster, Pussycat! Kill! Kill!

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ANEXO III – Cena de morte em Blood Feast em comparação com morte em À Prova de Morte, respectivamente.

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ANEXO IV – Sexualidade através das pernas em À Prova de Morte.

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ANEXO V – Morte de Jungle Julia e outras meninas. Na foto: perna de Julia é arrancada e cai no meio da estrada.

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ANEXO VI – Mesmo carro é usado em Á Prova de Morte e Corrida Contra o Destino, respectivamente.

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ANEXO VII – Cena de comemoração são parecidas em À Prova de Morte e Faster, Pussycat! Kill! Kill!, respectivamente.

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ANEXO VIII – Cenas são parecidas em À Prova de Morte e Faster, Pussycat! Kill! Kill!, respectivamente.

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