GÊNEROS TEXTUAIS EM AULAS DE LEITURA DE LITERATURA NA FASE INICIAL DE ESCOLARIZAÇÃO

June 2, 2017 | Autor: Elisa Stumpf | Categoria: Elementary School, School libraries, Reading Skills
Share Embed


Descrição do Produto

GÊNEROS TEXTUAIS EM AULAS DE LEITURA DE LITERATURA NA FASE INICIAL DE ESCOLARIZAÇÃO* Flávia Brocchetto RAMOS (Univ. de Caxias do Sul/ Univ. de Santa Cruz do Sul) Neiva Senaide Petry PANOZZO Elisa Marchioro STUMPF (Universidade de Caxias do Sul)

ABSTRACT: This article is part of a broader study conducted by a research project named Formação do leitor: o processo de mediação do docente, that aims to investigate reading processes at elementary school. In this article, first there is a description of twelve classes of literary reading observed in the third grade of elementary school, focusing on the text genre chosen for the class and the activities about the text lead by the teacher. Based on this there is a reflection on the places and roles of children’s literature in the school and the role of the teacher as a mediator between the reader and the literary work. As seen in the research corpus, in many times teachers are not aware of the characteristics of children’s literature, therefore they choose other text genres and develop inappropriate activities mostly based on grammar points. KEYWORDS: children’s literature; school; reading processes; mediation.

1. Introdução Ao longo dos anos, diversas pesquisas de instituições acadêmicas e governamentais1 vêm constatando, dentre inúmeras deficiências do panorama educacional brasileiro, as dificuldades de leitura dos estudantes do ensino fundamental e médio: os estudantes são capazes de ler e escrever, mas não conseguem obter nenhuma informação dessa leitura. Diante desse quadro, é urgente buscar as causas que levam os alunos a ter baixo desempenho na leitura, principalmente a de textos artísticos. Ao longo do projeto A produção de sentido e a interação texto-leitor, desenvolvido na Universidade de Caxias do Sul com o apoio da FAPERGS, investigaram-se os modos de leitura de textos literários infantis por alunos e professores da terceira série do ensino fundamental. Constatou-se que não só os alunos, mas também os docentes apresentam dificuldades na leitura dessas obras, pois deixam de considerar as múltiplas possibilidades de sentido do texto literário infantil e ignoram a natureza sincrética das linguagens que o constituem - valoriza-se a palavra escrita em detrimento da visualidade. Dessa forma, o professor não é capaz de desenvolver estratégias que auxiliem o aluno a atribuir sentidos ao texto, uma vez que, muitas vezes, o próprio docente tem dificuldade para realizar essa leitura. A partir desses resultados, buscou-se ampliar investigações sobre o papel desempenhado pelo professor em aulas de literatura infantil. Nesse sentido, o projeto de pesquisa Formação do leitor: o processo de mediação do docente pretende investigar de que forma se dá a mediação de leitura de textos literários em espaços escolares como sala de aula e biblioteca, dando ênfase ao processo de interação entre o sujeito leitor e o objeto de leitura. Dessa forma, pretende-se elaborar estratégias e princípios de mediação que, transpostos para a sala de aula, possam capacitar o docente como um mediador de leitura, capaz de desenvolver a competência de leitura dos seus alunos. Na primeira fase da investigação, formou-se um corpus de doze observações de aulas de leitura de texto literário em turmas da terceira série do ensino fundamental e dez observações de bibliotecas em escolas da rede pública e privada * Artigo elaborado a partir de estudos realizados no projeto de pesquisa Formação do leitor: o processo de mediação do docente, desenvolvido na Universidade de Caxias do Sul com apoio da FAPERGS e CNPq. 1 Resultados de avaliações como PISA, ENEM e SAEB.

1034

de Caxias do Sul. A análise das informações coletadas parte de pressupostos teóricos de Bordini e Aguiar (1993) e Cosson (2006), referentes ao papel e às características da literatura na escola, além de Silva (1986, 1997, 1999) e Silva (1995), no que diz respeito às funções da biblioteca escolar e do professor bibliotecário. As próximas etapas da investigação envolvem a elaboração de roteiros de leitura de obras de literatura infantil, a proposição de sugestões sobre dinamização e organização de bibliotecas escolares e um curso oferecido aos professores que participaram da pesquisa, a fim de instrumentalizá-los para atuarem como mediadores de leitura literária em escolas. No presente estudo, serão analisados os registros de doze aulas de leitura literária, a fim de definir e analisar os gêneros textuais escolhidos, seus suportes e as atividades propostas pelos professores a partir da leitura dos textos. Cabe aqui justificarmos que essa reflexão foi possibilitada pelo surgimento de diversos gêneros textuais (não somente literários) encontrados nas aulas observadas, fator não previsto na elaboração do projeto de pesquisa. Primeiramente, faremos uma breve descrição das aulas observadas, identificando os gêneros presentes nas mesmas, e mostraremos as atividades desenvolvidas a partir dos textos, a fim de pensar sobre o papel do professor como mediador entre o sujeito leitor e o objeto de leitura. Com base nisso, faremos uma reflexão sobre o lugar e a função da literatura nas séries iniciais do ensino fundamental. 2. Que textos entram na aula de leitura literária? Ao entrar em contato com as escolas, solicitávamos a autorização para observar uma aula de leitura de texto literário em turmas de terceira série do ensino fundamental, ministrada pela professora titular da classe. Sabe-se que as séries iniciais do ensino fundamental têm, em geral, um período por semana reservado para a Hora do Conto, realizada pelo professor que atua na biblioteca escolar ou outro espaço de leitura. No entanto, a intenção era saber se, além desse período, existiam no planejamento do professor titular outros momentos para a leitura de textos literários dentro da sala de aula. Porém, logo em um dos primeiros contatos, a pesquisadora foi encaminhada para a observação de uma Hora do Conto na biblioteca escolar. Esse fato já mostra que o único espaço para o texto literário na escola é a biblioteca que, como constatado na atual pesquisa, é, em muitos casos, apenas o lugar onde os livros são guardados, pois não há preocupação em ter um projeto de leitura com objetivos e ações definidos. Assim, o texto literário não entra na sala de aula: o trabalho com a literatura infantil é relegado como responsabilidade da professora que atua na biblioteca. Em duas escolas, ambas particulares, as aulas de leitura ocorreram fora da sala de aula. A diferença é que essas aulas estavam dentro do planejamento das professoras titulares e foram por elas ministradas, não se confundindo com a Hora do Conto. Porém, essas foram as únicas escolas dentre as pesquisadas em que o livro de literatura infantil entrou em cena. Em uma escola, foi feita a leitura do livro Liga-desliga, de Camila Franco e Marcelo Pires2. A motivação para leitura3 feita pela professora constituiu em mostrar os elementos contextualizadores do livro (autores, editora), questionar os alunos, com base no título, sobre o possível tema do livro e relacioná-lo com o trabalho que estava sendo feito em sala de aula. A professora lembrou que o texto já havia sido lido na primeira série, mas que, ao trabalhá-lo novamente, os alunos poderiam notar os avanços na compreensão do mesmo. A leitura foi feita no laboratório de informática da escola, onde os alunos puderam ver as imagens do livro, 2

FRANCO, Camila; PIRES, Marcelo. Liga-desliga. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1992. 43 p. As atividades desenvolvidas a partir dos textos serão abordadas de acordo com Saraiva (2001), levando-se em consideração três etapas: motivação à leitura (aplicação de estratégias que estimulem a leitura), leitura compreensiva (atividades que orientem a leitura e compreensão do texto) e transferência e aplicação da leitura (reelaboração dos sentidos do texto pelo aluno).

3

1035

que foram projetadas pelo aparelho datashow. Nessa observação, podemos perceber que as imagens foram consideradas como elemento produtor de sentido, porém, devemos questionar se a projeção das mesmas não prejudica a compreensão da obra ao não considerar a materialidade do livro e o contato entre esse e o estudante. Durante e após a leitura do texto, a professora chamava a atenção dos alunos tanto para os aspectos lingüísticos quanto os extralingüísticos, dando ênfase às ironias e intertextualidade nos nomes dos personagens (“Mãetsubichi” e “Painasonic”), à ironia causada pela inversão “desligar o menino” (e não desligar a TV), ao significado de palavras como “enérgico”, “inconsolável” e expressões como “chorou em chuviscos”. A professora também relacionava a linguagem verbal com as ilustrações, tanto nas situações em que as linguagens coincidiam quanto nas situações em que a ilustração extrapolava a palavra. Os alunos tiveram a oportunidade de opinar sobre a televisão, programas que assistiam, quem controlava, etc. Também foi discutido o uso do computador e da Internet, em uma tentativa de aproximar o texto (escrito em 1992, quando os computadores não estavam tão presentes nos lares como atualmente) do cotidiano dos alunos. Como atividade de transferência de leitura, os alunos foram solicitados a escrever uma adaptação da obra, trocando a televisão por outro equipamento, o menino por uma pessoa adulta, entre outras opções. Na outra escola, a aula foi realizada em uma sala especial, chamada Sala dos Sonhos Mágicos, um ambiente acolhedor para a leitura, com tapetes, almofadas e pufs. O livro escolhido foi Clact, clact, clact, dos autores Liliana e Michele Iacocca4, devidamente identificado para os alunos. Como motivação à leitura, a professora comentou que os alunos já haviam lido o texto na primeira série, porém agora seria realizado um outro trabalho. Havia apenas um exemplar do livro, que a professora utilizava para narrar a história e mostrar as imagens para os alunos, já que o texto explora a interação entre as linguagens. Porém, acreditamos que, ao interromper a leitura para mostrar as imagens, a professora corre o risco de perder a atenção dos alunos para o enredo da história, que tem de ser retomado cada vez que a leitura é interrompida. A partir da leitura da obra, a professora retomou alguns conceitos de geometria que os alunos já haviam estudado, como retas e polígonos. Como atividade de transferência de leitura, os alunos construíram um mural na Sala dos Sonhos Mágicos com pedaços de papel recortados em formas geométricas, com os quais os alunos deveriam criar personagens e atribuir-lhes características. Para a professora, isso servia como justificativa para o trabalho com polígonos, pois muitos não haviam entendido os motivos para estudar esse conteúdo. Os alunos também brincaram de “Chefe Manda”, baseados na história, uma vez que a tesoura mandava os papéis se organizarem). Nas observações realizadas em escolas públicas, encontramos heterogeneidade de textos, literários e não-literários. Em uma outra escola, foi utilizado um livro intitulado “A questão do lixo”, cujo autor, editora e ano de publicação são desconhecidos. Como motivação para a leitura, os alunos encontraram a sala de aula com o chão coberto de lixo e foram questionados pela professora sobre o que eles sentiram ao ver a sala assim. Após ter lido oralmente o texto para os alunos, a professora perguntou quais eram os personagens e quais as soluções para o problema do lixo. A seguir, os alunos deveriam construir produtos com lixo reciclável, elaborar a propagandas dos mesmos e organizar um mercado com esses produtos. O livro em questão apresenta um enredo para tratar de uma temática (no caso, o lixo), servindo como fonte de informação e conscientização. Percebe-se claramente que o texto, embora apresentado sob a forma de livro infantil, não se caracteriza como literário, corroborando a crença, existente entre os docentes, de que qualquer livro feito para criança se 4

IACOCCA, Liliana; IACOCCA, Michele. Clact, clact, clat. São Paulo: Ática, 1999. 16 p. 5ª Edição

1036

encaixa como literatura infantil. Como afirma Paulino (2000, p.46), “trata-se de uma atitude pedagogizante, pragmática, que tenta converter a narrativa artística em um artefato de utilidade imediata. Tal gênero, que se denomina ‘paradidático’, anula a experiência estética [...]”. Esses livros dominam boa parte do mercado editorial voltado para crianças e tornam-se atraentes pelo seu baixo custo, embora sejam desprovidos de méritos literários. Em três escolas da rede pública, a aula de leitura foi realizada na sala de aula e foram escolhidos textos literários, porém não foram apresentados no suporte original, mas em livros didáticos. Em uma aula, o texto utilizado foi “A cor”, poema de Angela Leite, presente no manual didático dos estudantes. O livro trazia informações sobre a autora e suas obras. Não houve motivação para a leitura. A leitura foi feita de forma silenciosa pelos alunos, depois oralmente pela professora, seguida de leitura oral pelos alunos (um trecho por aluno) e uma leitura oral coletiva. A discussão posterior, dominada na maior parte do tempo pela professora, girou em torno das cores e seu simbolismo (uso de expressões como “ficar verde de raiva”) e da estrutura do poema, pois na atividade de transferência de leitura (no caso, produção textual), os alunos deveriam criar um texto sobre cores e situações que poderiam ser associadas a elas, utilizando versos e criando ilustrações. Em outra observação, o texto lido foi o poema “O menino azul”, de Cecília Meireles, retirado de livro didático e entregue aos alunos em cópias xérox. Há apenas menção ao nome da autora. Não houve motivação para leitura. Os alunos leram o texto silenciosamente, depois os meninos leram algumas estrofes e as meninas leram outras; a última estrofe foi lida por todos. Após a leitura, a professora questionou as crianças sobre o título, autora e tema do texto. Foram discutidos os conceitos de verso e estrofe, que foram retomados em exercícios posteriores. Outros exercícios foram feitos com base no poema, como um ditado, um exercício de lacunas onde os alunos deveriam preencher as palavras com “r” ou “rr” e colocálas em ordem alfabética e outro em que os alunos deveriam decidir em quais palavras empregar o til. Houve também algumas perguntas como: “O que o menino pretende fazer junto com o burrinho? A que a autora compara o mundo?”, todas pautadas na transcrição de informações expressas no texto. A professora cedeu o livro para que os alunos pintassem suas cópias de acordo com as cores da ilustração original que acompanha o poema, porém não houve outra forma de abordagem da ilustração. Na terceira observação, foi utilizado o texto “Maria-vai-com-as-outras”, de Sylvia Orthof, retirado de livro didático e entregue aos alunos em cópias xérox (ver anexo 1), embora a professora tivesse a obra original. Como motivação para a leitura, a professora lembrou os estudantes que essa história já tinha sido contada, mas que seria lida novamente pelo simples fato de que todo mundo gosta de uma boa história. Primeiramente, a docente fez a leitura do livro, mostrando as imagens para os alunos, em seguida, os alunos fizeram leitura coletiva do texto e, por fim, cada um leu uma frase. Ao final da leitura, a professora questionou os alunos sobre a mensagem do texto e fez algumas perguntas pontuais sobre a obra. Outras atividades envolveram exercícios de exploração gramatical, nos quais os estudantes eram solicitados a procurar palavras dissílabas, trissílabas, etc.; verbos da primeira, segunda e terceira conjugação; frases exclamativas e interrogativas; duas palavras com acento agudo e outra em que o “m” se encontrava antes de “p” e “b”. A professora também pediu que as crianças desenhassem a parte do texto que mais gostaram. Vale ressaltar que na Hora do Conto citada anteriormente foi feita a leitura de um texto retirado de livro didático ao qual os estudantes não tiveram acesso e não foram informados sobre a fonte. O texto escolhido foi uma adaptação de “A Cidade Feliz” de Hans Christian Andersen. Para a contação da história, a professora fez uso de um mural de imagens que pontuavam alguns trechos do texto, mas as ilustrações apenas complementavam o sentido da obra. Uma aluna notou que, ao contrário da imagem da cidade feliz, a ilustração da cidade 1037

triste não estava colorida, porém seu comentário não foi levado em consideração. As perguntas orais da professora enfatizaram o “ensinamento” do texto: “O que aprendemos com essa história? Qual é a lição que podemos tirar dessa leitura?” Além disso, a docente questionou a classe sobre o que cada um estava fazendo pela sua cidade e assim o foco do texto foi deslocado para refletir sobre meio ambiente, tema de projeto desenvolvido pela professora titular. Dessa forma, o texto foi tratado de maneira doutrinária, ao enfatizar comportamentos e ações desejadas. Deve-se destacar que foi realizada uma pesquisa e não foi encontrado nenhum texto de autoria de Andersen com esse título ou conteúdo. Em outras três observações de aulas de leitura realizadas na sala de aula, os textos trabalhados não podem ser considerados literários. O primeiro era intitulado “A importância da festa de São João”, de autoria desconhecida (ver anexo 2). O texto trazia informações sobre a festa junina e foi utilizado em virtude da proximidade da data da festa. Foi entregue em uma cópia xérox para os alunos, com título, uma pequena ilustração de bandeiras e o texto escrito à mão. Como motivação para a leitura, houve uma breve conversa sobre o tema festa junina. Os alunos leram o texto silenciosamente e depois cada um leu uma frase em voz alta. Foram destacados aspectos formais do texto (número de parágrafos e frases) e o significado de algumas palavras, como “benquistas” e “versos”. Na seqüência, foram propostas duas perguntas, classificadas pela docente como de interpretação, mas cujas respostas podiam ser copiadas do texto e outros exercícios gramaticais, tais como: achar as palavras onde o “m” se encontra antes de “p” e “b”, encontrar palavras no plural, fazer a separação de sílabas e encontrar a sílaba tônica. A professora também solicitou que os alunos colorissem a ilustração que acompanhava o texto verbal. No segundo caso, o texto “Queimada” foi retirado de um manual didático (anteriormente publicado no suplemento Folhinha, do Jornal Folha de São Paulo, do dia 16/04/2000). Em relação ao estudo desse texto, ressalta-se que não houve motivação à leitura e que o texto foi copiado no quadro, assim como seus elementos contextualizadores, para que os alunos o transcrevessem em seus cadernos. O estudo iniciou com a leitura em silêncio pelos alunos; depois a professora fez leitura oral, seguida pela leitura oral e individual por apenas dois alunos. Novamente a leitura foi realizada pela professora e então o texto foi lido oral e coletivamente pelos alunos, para finalmente ser lido em voz alta individualmente, tendo que ser repetido nove vezes para que todos os alunos pudessem ler uma parte nessa etapa. Os exercícios exploravam a temática do texto e relacionavam-na com as vivências dos alunos. Algumas perguntas focavam a finalidade do texto e o porquê de ter sido publicado em jornal, mas foram exploradas equivocadamente pela professora, pois se aceitou que o texto era uma notícia que visava informar os leitores do jornal. Houve também um exercício no qual os alunos deveriam julgar as frases verdadeiras ou falsas, de acordo com as informações contidas no texto. Na terceira aula observada, o texto “A experiência do ET” foi escrito pela própria titular da classe, que era estagiária. Na motivação para leitura, a professora questionou os alunos sobre extraterrestres: se eles acreditavam nesses seres, se conheciam histórias, etc. A seguir, o texto foi oralizado pela professora para os estudantes, ao mesmo tempo em que ela mostrava imagens criadas para acompanhar o texto. Nas atividades posteriores à leitura, a docente retomou a seqüência de acontecimentos do texto e sobre o personagem. Ainda utilizou as ilustrações para trabalhar o conteúdo escolar, no caso, sistema solar e planetas, pedindo que os alunos identificassem o planeta Terra. O texto e as ilustrações também foram relacionados com conteúdos de Artes, pois assim a professora trabalharia conceitos de forma e circunferência. Como atividade de transferência, os alunos foram solicitados a dar continuidade ao texto, imaginando um diálogo entre eles e o ET. É difícil precisar a que gênero e tipo textual esses textos pertencem. Enquanto os dois primeiros textos têm caráter informativo, o terceiro assemelha-se a uma narrativa, porém não 1038

contempla as etapas da seqüência narrativa – exposição, complicação, clímax e resolução – sendo interrompido logo após a exposição, e foi claramente escrito com o propósito de ensinar o sistema solar. A exposição freqüente a esses textos pode fazer com que os alunos criem uma idéia deturpada de como funciona a narrativa, induzindo-os a escrever textos semelhantes a esse modelo (SOARES, 2001, p. 36). Já o texto retirado do jornal evidencia a tendência de os livros didáticos utilizarem textos de grande alcance social. Porém, a transposição do jornal para o livro didático não só desconfigura a sua disposição gráfica como também afasta o texto dos seus objetivos e condições de produção e recepção, interferindo na leitura. Em duas observações, as aulas de leitura literária foram ministradas sem a presença de textos. Em uma aula, os alunos foram dispostos em grupos e receberam da professora imagens de personagens de histórias em quadrinhos (Minnie, Magali, Mônica, Pato Donald, Cebolinha, Rosinha, Mickey, Chico Bento e Cascão). A partir da figura dos personagens, os alunos deveriam criar e dramatizar uma história, utilizando os personagens como fantoches. As produções envolveram temas como: ida a uma festa, passeio em parque e ida ao show dos Rebeldes. A professora frisou que a narrativa deveria ter, em sua estrutura, início, meio e fim, mas não pontuou o que poderia ser enfocado em cada uma dessas partes. Nessa aula, há a ausência de qualquer tipo de texto, atribuindo ao aluno a responsabilidade de criar um, sem delimitação do tema. Observa-se que a aula de leitura foi substituída por atividades de produção textual, em que sequer há um texto anterior e atividades de compreensão do mesmo. A substituição da aula de leitura por outras atividades mostra a desvalorização da mesma. Em outra aula, os alunos, organizados em grupos, dramatizaram fábulas que haviam sido lidas e estudadas nas aulas anteriores. O trabalho de leitura dos textos e preparação das dramatizações foi realizado em aulas anteriores, não tendo sido acompanhado pelas pesquisadoras. As fábulas eram: “O macaco coroado a rei e a raposa”, “O asno, o galo, o gato, o leão e a leoa”, “A raposa e o crocodilo”, “As lebres e o leão”, “O urso, o leão e o coelho”, “O cordeiro e o lobo no templo”. De acordo com a professora, a seleção dos textos foi motivada pelos estudos dos animais e a presença da moral. Nas dramatizações, esse último aspecto foi bastante ressaltado, assim como o desempenho dos grupos durante as apresentações. 3. Considerações sobre as observações Com base nos registros acima, fica evidente que a aula de leitura literária é espaço de práticas de leitura de textos literários, textos não-literários e até mesmo prática de produção textual sem leitura prévia. Acreditamos que isso decorre da falta de clareza, por parte dos professores, do conceito de literatura, suas funções e implicações no leitor (tema para outro estudo)5. O não reconhecimento da literatura e de seu papel na constituição do homem implica a escolha de gêneros não literários para as aulas de leitura literária. Se a literariedade parece não servir como critério, então quais são os critérios levados em conta pelos professores na escolha de um texto? De acordo com as respostas das docentes participantes da pesquisa6, para ser trabalhado em uma aula de leitura o texto deve ter: a) relação com a vivência dos alunos; b) relação com conteúdos a serem desenvolvidos; 5

Lembramos que o texto literário pode ser oral ou escrito, representa ações humanas simbolicamente, ou seja, não tem compromisso com a verdade, com a realidade imediata, é polissêmico por natureza e gera um efeito catártico no leitor. 6 As respostas foram informadas através de uma entrevista individual com a docente, estrutura, conduzida e registrada pela pesquisadora em fichas de observação.

1039

c) relação com datas comemorativas; d) presença de valores a serem transmitidos; e) presença de ilustrações (citada por uma professora, que acredita que a ilustração seja um fator que estimula o interesse dos alunos); f) adequação à faixa etária dos alunos; e g) relação com os interesses e necessidades dos alunos, sendo que uma professora afirmou que o texto deve ser um desafio para os alunos e, por isso, para seu trabalho, ela seleciona crônicas de um jornal local e até mesmo textos retirados da revista Veja. Acreditamos também que a forma de apresentação do texto é determinante na leitura. Nessa perspectiva, observamos os suportes nos quais os textos foram apresentados aos alunos. Aqui definimos suporte como a “materialidade com que o texto se apresenta” (PAULINO, 2000, p. 41). Os suportes podem ser impressos, como livros, jornais e panfletos ou estarem fora do universo concreto, tais como o palco de teatro que sustenta a peça, o computador que permite a leitura na tela, etc. O suporte é considerado como fator determinante do modo como o leitor interage com o texto, interferindo na recepção e produção de sentidos de um texto (PAULINO, 2001, p.31). Em três observações, os textos literários foram retirados de livros didáticos e multiplicados para que os alunos pudessem manusear. De acordo com Soares (2001, p.31), essa é uma forma de escolarização inadequada da literatura infantil, pois o texto é privado das suas características originais, das suas condições de produção e, muitas vezes, quando se utilizam apenas fragmentos do texto, este é privado da sua textualidade, ou seja, aquilo que torna um texto uma unidade significativa. Ao ser afastado do seu suporte original, que é o livro, e transposto para o livro didático, o texto literário é mutilado, pois não se respeitam alguns elementos que influenciam na produção de sentidos. Um exemplo é o livro “Maria-vai-com-as-outras”, de Sylva Orthof, que possui poucas palavras distribuídas por páginas e, quando transposto para o livro didático, teve o texto escrito reorganizado para caber em duas páginas. Além disso, percebe-se que a ilustração original foi substituída por outra, criada para o livro didático, sem guardar semelhanças com a arte original. Entretanto, sabemos que, na situação financeira em que estão as escolas públicas, a compra de livros para o acervo da biblioteca escolar, em muitos estabelecimentos, é vista como uma ação secundária. Esse pode também ser o motivo de três observações em que o livro já tinha sido trabalhado com os alunos, evidenciando repertório limitado dos professores, que muitas vezes não dispõem de outros recursos além da biblioteca escolar para se informar sobre o mercado editorial da literatura infantil. Outro dado relevante apontado pela análise é a falta de clareza do conceito de literatura, que implica equivoco na seleção do texto e dificuldade de escolha de estratégias metodológicas adequadas para desenvolver a leitura e compreensão dos textos. As atividades de motivação à leitura são quase inexistentes, e quando estão presentes, consistem na identificação de título e autor da obra. Em diversas observações foi constatado o hábito de fazer os alunos repetirem a leitura oral do texto, individual ou coletivamente. Além de a repetição ser uma prática mecânica e enfadonha, não leva a uma maior compreensão do texto. Em geral, os exercícios propostos exploram aspectos formais do texto ou pontos gramaticais. Se hoje parece ser consenso que não se deve utilizar nenhum gênero de texto como pretexto para exercícios de exploração gramatical, o texto literário corre ainda o perigo de não ser abordado na sua especificidade. As atividades de transferência de leitura, etapa privilegiada em que o aluno coloca-se como produtor de novos sentidos a partir do texto lido, foram raras. Ao pensarmos no tratamento dado à ilustração, os registros das aulas evidenciam que a imagem é deixada de lado na leitura, atribuindo-se a produção de sentidos apenas à linguagem verbal. Com exceção da abordagem do livro Liga-Desliga, que levou em conta o diálogo entre palavra e visualidade e a produção de sentidos dele proveniente, as demais professoras 1040

pareceram considerar a ilustração como algo acessório, pois as atividades desenvolvidas variavam entre: a) colorir as ilustrações que acompanham o texto; b) criar ilustrações para acompanhar a produção textual; e c) desenhar a parte que mais gostou: transpor o texto escrito para a imagem. A primeira alternativa diz respeito à simples ocupação do tempo, considerando que é comum haver prazer, por parte da criança, em usar as cores, porém a atividade não se sustenta quando se pensa na apreensão do texto. Na segunda atividade, fica a impressão de que se aceita que a ilustração caracteriza esse tipo de texto, e se ela não existir, é dada ao aluno a oportunidade de criá-la, porém sem nenhuma instrumentalização para isso. Nessa fase de escolarização, o aluno já foi exposto repetidamente a modelos de imagens para copiar, porém não há preocupação em orientar para tal ação. Isso evidencia a crença de que existe, no aluno, um saber já construído que só espera oportunidade de manifestação, fruto de concepções da tendência escolanovista, da livre-expressão. Essa visão espontaneísta desconsidera o papel do professor como mediador entre o aluno e o objeto de conhecimento através das ações didáticas. Silva (1987, p. 38) alerta-nos para o fato de a criança e sua expressão serem vistas muitas vezes sob a auréola da inocência [...], esquecendo-se que a criança [...] sofre influência do meio sóciocultural. E, quanto mais crescidinha, e maior o seu contato com o meio, mais ela é exposta à modelização pelo social. Sob a alegação de estar respeitando a expressão da criança abandona-se a mesma à influência das imagens oriundas das histórias em quadrinhos, da televisão ou dos modelos ensinados pela escola, deixando-a escravizada à repetição exteriorizada de clichês, sem ajudá-la na superação dos mesmos. Entre todos, os estereótipos aprendidos na escola parecem ser os mais difíceis de superar, talvez pelo fato de o aluno igualar o desenho às outras tarefas escolares e que deve, portanto, ser copiado, memorizado, repetido assepticamente como uma fórmula matemática.

4. Considerações finais No contexto escolar, o trabalho com a literatura infantil desliza entre a didatização e a leitura enquanto “viagem”. Percebe-se a preocupação em relacionar o texto com os conteúdos desenvolvidos no planejamento, pois assim, no dizer de uma professora, “o trabalho não fica solto”. Ou seja, a leitura só é válida quando serve para outros propósitos que não seja a fruição da leitura por si mesma. Bordini e Aguiar (1993, p.26) justificam que “a literatura pode suscitar prazer, porque tem fim em si mesma, isto é, funciona como um jogo em torno da linguagem, das idéias e das formas, sem estar subordinada a um objetivo prático imediato”. De outro lado, corre-se o risco de considerar a leitura literária apenas como fruição, como uma mera “viagem”, sem que se instrumentalize o aluno para compreensão do texto. De ambas as formas, “a literatura não está sendo ensinada para garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos humaniza.” (COSSON, 2006, p. 23). A proposta de letramento literário defendida por esse autor tem como princípio a formação de uma comunidade de leitores e a formação de um repertório a ser ampliado gradativamente. A proposta é sustentada pelos seguintes pressupostos: texto como objeto central das práticas de leitura e contemplação não só do cânone, mas sim de obras provenientes de diversos sistemas culturais, relacionadas com outras formas de manifestação artística. Cosson ressalta três princípios fundamentais para que a proposta se efetive: a construção do conhecimento através das práticas de leitura e de escrita, a atuação do professor como mediador entre o texto e o

1041

aluno, norteando e apoiando as atividades desenvolvidas pelos alunos e o registro das atividades realizadas para que se perceba o desenvolvimento dos alunos. A escolarização da literatura infantil é fato inevitável e indiscutível. Porém, deve-se pensar sobre a escolarização adequada, aquela “que conduzisse eficazmente às práticas de leitura que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores próprios do ideal do leitor que se quer formar” (SOARES, 2001, p.47). Para tanto, deve-se investir na capacitação de o docente atuar como mediador de leitura, estabelecendo diálogo entre o sujeito leitor e o objeto de leitura. De acordo com Ramos (2006, p.225), o papel do mediador é instrumentalizar o aluno para entrar no universo simbólico do texto literário, interagir com as diversas linguagens ali presentes e atribuir-lhes sentido, colocando-se como co-autor do texto. Portanto, ao executar propostas de trabalho com a literatura infantil, o professor deverá desenvolver estratégias metodológicas que abordem o texto literário na sua especificidade, abrindo espaço para que o aluno possa se apropriar do texto. Assim, acreditamos estar qualificando o trabalho escolar com a literatura, formando leitores autônomos e competentes que vivenciem o caráter humanizador da literatura enquanto elemento indispensável na formação do sujeito. Referências BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. PAULINO, Graça et al. Tipos de texto, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001. ______. “Diversidade de narrativas”. In: PAIVA, Aparecida; EVANGELISTA, Aracy; PAULINO, Graça; VERSIANI, Zélia. (Orgs.). No fim do século: a diversidade – o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. SARAIVA, Juracy (org.). Literatura e alfabetização: do plano do choro ao plano da ação. Porto Alegre: Artmed, 2001. SILVA, Walburga Arns da. Cala a boca não morreu: a linguagem na pré-escola. Petrópolis, RJ: 1987. SOARES, Magda. “A escolarização da literatura infantil e juvenil”. In: EVANGELISTA, Araci Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Brina; MACHADO, Maria Zélia Versiani. Escolarização da leitura literária. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. RAMOS, Flávia Brocchetto. “Mediação de leitura”. In: POLETTO, Raquel Conte et al. Pensamento, linguagem e desenvolvimento infantil. Caxias do Sul, RS: UCS EAD, 2006.

1042

Anexos Anexo 1 – Texto “Maria vai com as outras”, retirado de livro didático:

1043

Anexo 2 – Texto “A importância da festa de São João”

1044

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.