Gênese de uma crítica mágica

May 25, 2017 | Autor: Claudia Amigo Pino | Categoria: Roland Barthes, Semiotika Roland Barthes
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Manuscrítica§ n. 31 • 2016 revista de crítica genética

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Gênese de uma crítica mágica Os grandes projetos de Roland Barthes nos seminários da École de Hautes Études en Sciences Sociales Claudia Amigo Pino1

O outro tempo de Barthes PARA ALÉM DAS CLASSIFICAÇÕES da obra de Barthes (já se falou de um Barthes semiólogo, de um Barthes hedonista, do Barthes crítico...), existe uma classificação que não se refere à sua obra, mas à forma como o leitor o lê. Existem aqueles que leem seus livros e acreditam na unidade, na verdade de cada um deles. E existem aqueles que não leem os livros, que leem a Obra Completa e acreditam que a verdade está entre os livros, entre os arquivos, nas obras que ele não publicou e nem sequer escreveu. O meu interesse pelo arquivo e os manuscritos demonstra que sou leitora desse segundo Barthes, esse Barthes póstumo, que poucos elementos compartilha com o Barthes que realmente viveu, publicou e morreu em 19802. O Barthes que viveu, aparentemente, não tinha grandes projetos: escrevia em geral seus livros por encomenda3: o desejo do outro motivava a sua escrita. Já o Barthes póstumo tinha grandes projetos, que dificilmente tomavam a forma de um livro ou de um tratado; se algum texto derivado desse projeto era publicado, ele só dava conta de um aspecto, ou de um momento particular de uma busca bem maior. Essa consciência dos projetos, para mim, foi reforçada depois da leitura da última biografia de Barthes, escrita por Tiphaine Samoyault, certamente uma das maiores leitoras desse Barthes póstumo (não é à toa que ela começa a biografia pela sua morte). Ao se referir à publicação dos Elementos de semiologia, ela afirma: Frequentemente, por comodidade, aborda-se Barthes por meio de seus livros, o que pode levar a interpretações falsas. Reestabelecer a verdadeira cronologia do seu pensamento seguindo sua produção nas revistas, fazer de seus livros acidentes mais do que vontades, revela uma figura muito menos assertiva ou definitiva do que ela pode parecer algumas vezes. Isso leva a ler de outra forma o tempo de seu pensamento: momentos de conjunção, de pesquisa, de tentativas ou de ensaios, definitivamente provisórios como diria Queneau, sempre em obras.4 Aqui queremos abordar esse outro tempo do pensamento de Barthes, esse tempo sempre em obras, feito de tentativas, de fracassos, de desvios e, de vez em quando, de publicações. Para isso, decidi me ater aos seminários de Barthes na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), que ocorreram entre 1962 e 1977. Porém isso Professora de Literaturas de Língua Francesa da Universidade de São Paulo. Contato: [email protected] Alusão à classificação feita por Jean-Marie Schaeffer, em Lettre à Roland Barthes. Paris: Éditions Thierry Marchaisse, 2015. 3 Ver entrevista “Vinte palavras-chave para Roland Barthes”. Em O grão da voz. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 4 SAMOYAULT, T. Roland Barthes. Paris: Seuil, 2015, p. 415. Grifos nossos. 1 2

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colocou um problema: os cursos não são um objeto fechado, são uma relação entre os participantes, o professor, os temas e os livros escolhidos para o curso. Para abordá-la, é preciso construir um objeto híbrido composto de anotações do curso, publicações, depoimentos, programas, resumos, tanto do professor como dos alunos. Por mais que tenhamos todos os documentos possíveis, a relação entre eles sempre será hipotética, diria até ficcional. Assim, o desenvolvimento a seguir pode ser pensado como uma narrativa ficcional desse outro tempo de Barthes, um tempo que, para efeitos deste texto, decidimos limitar aos seminários inéditos entre 1962 e 1973, onde se gestam os três grandes projetos de Barthes: o projeto semiológico, o projeto retórico e o projeto mágico.

O projeto semiológico O primeiro seminário de Barthes inicia-se com uma declaração de intenções em relação à sua pesquisa. E aqui é importante observar que o Seminário está longe da ideia do “curso”: não se trata de transmitir um conhecimento para a formação dos alunos, mas dar conta de uma pesquisa em andamento, o que pode ser mais incerto, mais confuso, mais à deriva que o ensinamento de um saber sedimentado. Mas, no caso de Barthes, essa deriva apresenta um fator agravante: para ele, a pertinência da pesquisa não se encontra nos objetos estudados, mas na sua perspectiva, seu “ponto de fuga”. Assim, o interesse não está na pesquisa em si, mas no lugar para o qual ela “foge”. O seminário dá conta somente dessa passagem. Não é tão claro entender para onde a pesquisa “foge”. No final de sua vida, em A preparação do romance, ele tinha as coisas mais claras: tudo fugia em direção à escrita de um romance, mesmo se esse romance nunca fosse escrito. O desejo de escrevê-lo unia os temas pelos quais passava, os autores, as reflexões5. Mas qual é o ponto de fuga em 1962? Ele só ficará claro nos anos seguintes. Seus dois primeiros seminários – Inventário de sistemas contemporâneos de significação: sistemas de objetos (vestimenta, comida, habitação) (1962-1963) e Inventário de sistemas de significação contemporâneos (19631964) – giram em torno da semiologia, porém, como já dissemos, a semiologia não pode ser considerada como o ponto de fuga, o lugar para o qual se dirigem todas as suas pesquisas: ela é apenas uma passagem (um lugar pelo qual se deve passar para chegar a esse objetivo final, que é escrever). Assim, Barthes sabe que ele não pretende construir nenhum edifício semiológico: “Nada diz que aqui sempre trabalharemos com a semiologia: a semiologia se fará sob nosso olhar, o que obriga a reconhecer a possibilidade que ela se desfaça sob nosso olhar”6. Dito de outra maneira, não podemos falar de semiologia sem fazê-la. Assim, tudo que ele afirmava no seminário era sempre seguido por exemplos e longas análises de muitos sistemas, que se encontram, na sua maioria, inéditas. A semiologia se faz seguindo várias etapas neste seminário. No primeiro ano, ele se concentra em responder “O que é a semiologia?”, tentando passar por tudo o que as ciências humanas em geral apontaram em relação a uma possível ciência dos signos. Ele passa pela filosofia (Hegel, Sartre), a psicanálise, a semiótica americana, por Saussure, pela linguística pós-saussuriana, para terminar com uma espécie de manual-análise, que mais tarde será publicado em forma de livro sob o título Elementos de semiologia7. Mas tudo que se fez no primeiro ano se desfaz no segundo. O seminário do ano seguinte (63-64), começa por uma reflexão sobre a noção de inventário: baseando-se especialmente na psicologia da percepção, ele tenta esboçar três tipos de inventários: de imagens, da música e dos gestos. E então ele percebe que no seio da imagem fotográfica há sempre uma contradição: a descrição dos componentes e do tema da foto nunca dão conta do seu efeito, já que, numa boa foto de comida, seus elementos são sempre perturbados por uma contradição e assim seu sentido sempre BARTHES, R. A preparação do romance. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Seminário 62-63. Paris: Fonds Roland Barthes/ Bibliotèque Nationale de France. “Rien ne dit qu'on fera ici toujours de la sémiologie: la sémiologie se fera sous nos yeux, ce qui oblige à reconnaître la possibilité qu'elle se défasse sous nos yeux.” Grifos nossos. [Todas as referências dos seminários serão reproduzidas em francês, já que se trata se textos inéditos, sem tradução publicada para o português]. 7 BARTHES, R. Elementos de semiologia. Trad. Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix, 1974. 5 6

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“foge”8. Para ilustrar essa contradição, reproduzo aqui um exemplo do único texto publicado de Barthes a partir das reflexões desse seminário. Trata-se de uma foto publicitária do sorvete Gervais, com a seguinte legenda: “Une glace GERVAIS ...et fondre de plaisir!” [Um sorvete GERVAIS ...e derreter de prazer!”].

Fig. 1: publicidade do sorvete “Gervais”, do início dos anos 60. A contradição se encontra na oposição frio/calor, contida nas palavras “sorvete” e “derreter”9. A contradição da legenda produz uma espécie de “furo” na imagem, que já não pode ser definida pelos seus elementos: assim, pouco a pouco, os “elementos de semiologia” definidos no ano anterior começam a ruir. Ele conclui que fotografia escapa ao signo e à semiologia: “a fotografia é um objeto a ser dominado: a linguagem foge sempre, mas na e pela linguagem: é uma fuga fechada”10. Com a música, a reflexão sobre o inventário leva também à impossibilidade da semiologia, porque ela não produz um sentido, mas “suspende o sentido”, como o faz também toda a cultura moderna. Mais do que atribuir um sentido ao que ele está ouvindo, o ouvinte sente uma espécie de “frisson do sentido”: “imensa metáfora infinita, mas vazia ou cheia de sentido por tudo”11. Depois de passar pela fuga, impossibilidade e suspensão do sentido, Barthes finalmente propõe aos alunos um trabalho coletivo em torno da comida, que teria a vantagem de produzir um interesse generalizado, afinal todo mundo gosta de comer. Mas o trabalho já tinha começado com a marca do fracasso: em suas pesquisas, ele sugere sempre aos alunos que “prestem atenção ao duplo movimento contraditório”12, que ele já tinha observado na fotografia. Assim, ele se refere não à constituição dos signos, mas à transgressão ao signo, que impede ou perturba, a formação do sentido. Barthes antecipava assim questões de seu último livro publicado, A câmara clara. BARTHES, R. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañón. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 9 “A mensagem publicitária”. Em A aventura semiológica. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 8

Seminário 63-64. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. Idem. 12 Idem. 10 11

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Daí a conclusão do seminário sobre a comida: “o objeto escapa ao formalismo”. Barthes talvez chegasse a essa conclusão a partir de qualquer sistema de objetos, mas o seu fracasso é ainda mais visível a partir da comida: por mais que conheçamos as combinações e os elementos dessa estrutura, nunca chegaremos a conhecer um prato se não o comermos.

O projeto retórico Mas como comer o prato? Ou como ter acesso ao efeito de uma determinada combinação de signos? Em relação a seu ponto de fuga, a “expressão criativa de uma subjetividade”, Barthes tinha aprendido que de pouco adiantava conhecer a distribuição e combinação de signos, já que os sistemas criativos funcionam a partir dessa semiologia que vai além do signo, essa semiologia conotativa, como ele a chamará. Seu novo projeto, o projeto retórico, tem como objetivo dar esse próximo passo e construir essa semiologia do efeito. Centrado especialmente no seu sistema de signos predileto – a literatura –, o projeto se estenderá por anos e passará por várias etapas. Em um primeiro momento, Barthes decide revisitar um antigo saber que procurava explicar e determinar os efeitos de um discurso: a retórica “antiga”13; em seguida, ele tenta refletir sobre as razões da extinção dessa retórica e finalmente ele propõe duas formas de pensar esse efeito na modernidade: a análise estrutural da narrativa e a análise textual. Já que as pesquisas sobre a retórica e sobre a análise textual foram publicadas e abundantemente discutidas, aqui gostaria de me deter nessa etapa intermediária, onde ele reflete sobre a extinção da retórica clássica. Essa reflexão se encontra sobretudo no seminário de 1965-1966, chamado “A retórica, hoje”, que se inicia com as seguintes perguntas: o que aconteceu com a retórica depois do século XIX? Por que ela desapareceu? No que ela se transformou? Para Barthes, em 1966, não se podia falar mais sobre como escrever, o que se tornou um assunto proibido dentro da intelectualidade moderna: a meta-linguagem não se dá mais como um código explícito  perda sistemática da metalinguagem, espécie de ferida, de hemorragia (nós veremos: talvez lugar de um novo tabu: o de toda metalinguagem14 Para encontrar as razões desse tabu, Barthes remete ao ponto que deu origem à retórica, a “coisa real”, “o assunto” sobre o qual se deve falar. Ora, para ele, em 1966, a “coisa”, o “objeto”, deixam de ser essenciais para a literatura: escrever torna-se uma atividade intransitiva. Mas há, de fato, alguma coisa que deve ser comunicada com a literatura. Para descrever essa “coisa”, a inventio literária, ele se refere aos animais que “falam”, ou melhor, que se comunicam uns com os outros. Nenhum animal faz gestos ou emite sons sem a presença de um interlocutor. Já o homem fala sozinho, anota, escreve e publica livros, sem necessidade de presença de um outro ser humano. A literatura, segundo Barthes, tem como objetivo expressar essa solidão da comunicação, expressar que a presença do outro não é, de fato, necessária.

As aulas sobre a retórica antiga serão resumidas e publicadas na revista Communications, sob o título “L’ancienne rhétorique: aide-mémoire” [A antiga retórica: apostila]. 14 Seminário 65-66. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. Chemise 1, p. 6. “le méta-langage ne se donne plus comme un code affiché  perte systématique du méta-langage : sorte de béance, d’hémorragie (nous verrons : peut être place d’un nouveau tabou : celui de tout méta-langage”. 13

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A linguagem poderia estar ligada geneticamente a uma parada paradoxal da comunicação. Geneticamente? Esteticamente, essencialmente também talvez. Literatura: seria uma ordem de discurso muito próxima desse problema antropológico: passagem sem cessar vivido do falar a ao falar de: miticamente, a lit[eratura] imitaria sem parar o nascimento da linguagem, isto é, da fala, intransitiva (soberana): Orfeu continua sendo seu herói. 15 A literatura, como Orfeu, somente pode pensar em uma coisa: a perda do outro. Por isso, não haveria “coisa” a ser escrita, a coisa literária é sempre um vazio impossível de ser falado, mas que pode ser percebido por meio de um “frisson de sentido”. Já em relação à forma (dispositio, elocutio) como as coisas são faladas, Barthes remete novamente ao conceito de conotação. A retórica classificaria os tipos de conotação possíveis e mostraria como produzi-los. Porém, na literatura moderna, e especialmente em poesia, não seria possível determinar a conotação de uma imagem, apenas abrir um leque de conotações, ou mesmo de vibrações (sensações): A palavra poética (Mallarmé) seria aquela que teria todas as conotações possíveis: lit em poesia por uma série de operações técnicas (evidentemente sintagmáticas), a árvore vibra de todas as significações possíveis, é uma ambiguidade poética (certamente também na prosa escrita): ler (ler bem e não ler de forma besta) é desenvolver o leque de conotações; escrever bem ainda mais.16 O ponto de fuga dos projetos de Barthes começa a estar cada vez, se não mais claro, menos embaçado. Seu tema era, de fato, a literatura, mas ele estava longe da análise literária: aparentemente, a questão que ele colocava desde o começo era: como escrever? E, em particular, como escrever “literatura”? Com o projeto semiológico, ele tinha aprendido que os sistemas criativos – como a literatura – não podiam ser explicados pelas combinações de signos; era necessário encontrar um meio de estudar o sentido segundo dos signos, ou o efeito. Ora, com o projeto retórico, ele descobria que o conhecimento dos efeitos possíveis também não era suficiente para a expressão da escritura criativa, porque a literatura não quer produzir “um efeito”, mas 1) vários efeitos indeterminados que levem a 2) a percepção desse vazio da comunicação (“frisson do sentido”). E, então, a grande questão se torna: qual é magia pela qual é possível produzir esse bendito frisson?

O projeto mágico

Idem. Chemise 1, p. 10. “le langage pourrait être lié génétiquement à un arrêt paradoxal de la communication. Génétiquement ? Esthétiquement, existentiellement aussi peut-être. Littérature : serait un ordre du discours très proche de ce problème anthropologique : passage sans cesse vécu du parler à au parler de : mythiquement, la litt[étature] mimerait sans cesse la naissance du langage, cad de la parole, intransitive (souveraine) : Orphée est toujours son héros”. 16 Idem. p. 11. “le Mot poétique (Mallarmé) serait celui qui aurait toutes les connotations possibles : litt en poésie par une suite d’opérations techniques (évidemment syntagmatiques), l’arbre vibre de toutes les significations possibles, c’est l’ambigüité poétique (bien sûr aussi dans la prose écrite) : lire (bien lire, et non bêtement lire), c’est développer l’éventail des connotations ; bien écrire encore plus”. 15

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E assim chegamos ao projeto mágico, que começa a ser gestado no final do Seminário “A retórica, hoje”, com a aula de encerramento, mais tarde publicada sob o título “Escrever, verbo intransitivo” 17. Ali ele esboça a sua primeira resposta à questão sobre o frisson, a resposta “gramatical”. Para ele, se os versos de um poema se abrem para um leque de possibilidades, isso se deve, em grande parte, à subversão da base da gramática, à divisão entre sujeito e predicado. Ao propor um sujeito sem predicado, Mallarmé, por exemplo, inaugurava esse momento de dispersão do sentido, com seus sujeitos sem predicados. No seminário seguinte (“O discurso da história”), ele leva essa ideia para além da frase: a literatura transporia essas categorias “frasais” (sujeito e predicado) para o discurso, produzindo assim “novas aventuras para o predicado”. É o caso de Em busca do tempo perdido. Qual seria o sujeito, o tema predicado desse livro? Barthes propõe várias respostas a essa questão, como o tempo, a homossexualidade, ou o próprio Proust. Mas ele chega à conclusão de que o que o livro realmente predica é o próprio livro: “De fato, o que é inconstestavelmente predicado: o livro. O livro predica o livro que o narrador quer escrever (isso não quer dizer que eles coincidam, porque um termina quando o outro vai finalmente começar)”18. É a subversão total da estrutura sujeito-predicado. Todas as grandes referências da literatura moderna partiriam dessa premissa: Em busca do tempo perdido, Bouvard e Pécuchet, Os moedeiros falsos, Dom Quixote. Nesse mesmo sentido, Barthes chama a atenção para as diversas experiências de desdobramento do sujeito, que em muitas obras começa a aparecer simultaneamente como um eu, um tu ou um você. É o caso, por exemplo, de La modification, de Michel Butor, e Un homme qui dort, de Georges Perec (que seria publicado nesse mesmo ano e ao qual talvez Barthes tenha tido acesso). Há muitos outros aspectos desse projeto mágico que poderíamos desenvolver aqui, porém vou me concentrar em apenas dois momentos que dão continuidade a essa reflexão sobre a gratuidade dos predicados e o desdobramento do sujeito de 1966. O primeiro deles está no final do seminário “10 anos de semiologia: a teoria do texto” (1971-1972), sobre os linguistas ou pensadores da linguagem que inspiraram sua obra. Depois de passar por Brecht, Saussure, Jakobson, Hjelmslev e Propp, ele afirma que, diferentemente de outros linguistas, Benveniste é aquele que não deixa a magia de lado: ele sabe que a linguagem não é uma forma de expressar o mundo, não é um meio e também não é um objeto: ela constitui o nosso mundo; ao mesmo tempo, cada vez que uma enunciação está em curso, ela também tem o poder de mudá-lo. Essa é a magia da linguagem: ela não só diz o mundo, ela faz o mundo. Barthes classificava os textos de Benveniste como um “discurso mágico”, já que ele faz seu leitor chegar a sentir essa “magia da linguagem”: Discurso mágico: Eu chamo assim qualquer linguagem (qualquer prática) que assuma o poder da linguagem, seja para trabalhá-la, seja para colocá-la em cena, seja para analisá-la sem no entanto se colocar exteriormente ( Dogmatismo linguístico): eficiências, deslocamentos, persuasões, seduções. Relação ao interlocutor: erótica.19

BARTHES, R. “Escrever, verbo intransitivo”. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Seminário 66-67. Fonds Roland Barthes/Bibliothèque Nationale de France. Chemise 1, p. 9. “En fait, ce qui est incontestablement prédiqué : le livre. Le livre écrit prédique le livre que le narrateur veut écrire (cela ne veut pas dire qu’ils coïncident, puisque l’un finit quand l’autre va enfin commencer)”. 19 Seminário 71-72. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. Chemise 10, “Benveniste”, p. 3. “Discours Magique: J’appelle ainsi tout langage (toute pratique) qui assume la puissance du langage, soit pour la travailler, soit pour mettre en scène, soit pour l’analyser sans cependant s’y placer extérieurement (≠ Dogmatisme linguistique): efficiences, déplacements, persuasions, séductions. Relation à l’interlocuteur : érotique.” 17 18

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Ora, como no caso de todos os linguistas vistos nesse seminário, o interesse de Barthes não está do lado da teoria, mas do lado da identificação. Ele não estava simplesmente interessado na magia da linguagem de Benveniste: ele também queria praticá-la. É aí que ele encontra a primeira resposta à questão sobre o “frisson”: para ver a ausência de comunicação que constitui a escrita, é necessário dizê-la, explicá-la, analisá-la, colocá-la em cena. Nesse sentido, o que ele tinha feito até então – a semiologia – não estava tão longe assim da magia. Mas, além disso, era necessário se colocar interiormente a partir da linguagem e estabelecer uma relação erótica com o leitor. Voltamos assim ao des-centramento do sujeito: se colocar no interior da linguagem significa sair do discurso acadêmico, que está sempre fora de seu sujeito. Era necessário encontrar uma forma de se colocar, sem entrar no domínio da ficção. E é ali que ele encontra o texto “Análise de ‘Um caso de paranoia que contraria a teoria psicanalítica’”, de Freud, abordado no seminário de 1972-1973. O interesse por essa obra não é a teoria psicanalítica: não é uma coincidência o fato de ele ter escolhido um texto que “contraria a teoria psicanalítica”. Ele se interessa sobretudo pela escrita de Freud, que consegue construir um texto recebido como um produto da ciência, mas que usa vários recursos da narrativa ficcional. Percepção de uma censura enorme sobre o seguinte fato: Freud escreveu textos (idem: Marx escreveu livros): um escritor, um operador de texto, um produtor de escritura e não um escrevente. Escândalo: transparência suposta de seu discurso, inteiramente anulado em detrimento dos “conteúdos” que ele veicula. Freud seria um desses imbecis felizes para quem a linguagem é um simples instrumento. Para eliminar esse escândalo, começar a ver em Freud um operador do texto, um produtor de escritura, um praticante de significante (devemos fazer o mesmo com Marx).20 Nesse texto como em muitos outros, Freud não narra um caso alheio, ele “entra em cena”, já que é a personagem psicanalista procurado pelo advogado de uma moça que pensa que sofreu uma tentativa de estupro. Há pelo menos quatro narrativas no texto, contadas por quatro pessoas diferentes, como podemos observar no diagrama feito por Barthes: o que a moça conta ao advogado, o que o advogado conta a Freud, o que a moça conta a Freud e depois aquele que Freud conta para o leitor (o discurso científico, que engloba todos os outros):

Rapaz

Moça

Advogado

Freud

Leitor

Seminário 72-73. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. Chemise 7, p. 2. “Perception d’une censure énorme portant sur le fait suivant : Freud a écrit des textes (idem : Marx a écrit des livres) : un écrivain, un opérateur de texte, un producteur d’écriture– et non un écrivant. Scandale : transparence supposé de son discours, entièrement annulé au profit des “contenus” qu’il véhicule. Freud serait de ces imbéciles heureux pourquoi le langage est un pur instrument. Pour lever ce scandale, commencer à voir en Freud un operateur de texte, un producteur d’écriture, un praticien de signifiant (il faudra en faire de même avec Marx).” 20

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Fig. 2: Diagrama contido no Seminário 72-73. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France (folha solta no dossiê). Dessa forma, o texto acadêmico torna-se “Uma espécie de ópera com coro e narrador-ator: entradas de personagens, projetos, atitudes interlocutárias, projeções, flash-backs e inclusive um coro psicanalítico (Rank, Jung)”21 (os autores citados por Freud para contextualizar suas ideias). Ora, Barthes queria fazer igual, ele não queria ser nem professor nem intelectual, mas também encenar a sua ópera, com coro e narrador/ator. Já estava na hora de fazê-lo, ele tinha finalmente as respostas para ir atrás de seu ponto de fuga: como escrever. Era necessário provocar o famoso “frisson” do sentido, 1) contando essa tragédia inicial da linguagem e 2) encenando o desdobramento do eu.

A crítica mágica É o fim da fuga e o começo da magia. A partir dessas respostas, ele começa outra experiência, a de escrever seus livros que o farão conhecido não somente como crítico, mas também como escritor, em que usa esses recursos, procurados durante dez anos de seminários: Roland Barthes por Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, A câmara clara. Textos híbridos, que não são nem crítica nem literatura, nos quais Barthes finalmente põe em cena essa ópera, com eu múltiplo e constante alusão à solidão inicial da linguagem. Aqui eu me limitarei a dar alguns exemplos, para concluir este texto também com um pouco de magia. Talvez uma das frases mais significativas de Barthes desses textos híbridos encontra-se no início de Roland Barthes por Roland Barthes: “Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance”. A frase, reproduzida em letra manuscrita na abertura do livro, inaugura esse desdobramento do sujeito, que se torna ao mesmo tempo personagem romanesca e voz crítica (já que Barthes fala de si em terceira pessoa), mas também músico e cenografista de sua própria ópera, acompanhado de um bom “coro estruturalista”, como podemos observar nas imagens a seguir:

Seminário 72-73. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France, Chemise 7, p.4. “une sorte d’opéra avec chœur et récitant-acteur : entrées de personnages, projets, attitudes interlocutaires, projections, flash-backs et même le chœur psychanalytique (Rank, Jung).” 21

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Fig.3: Aquarela de Barthes reproduzida na abertura de Roland Barthes por Roland Barthes. A reprodução de seu trabalho artístico corresponde ao papel de “cenografista” de Barthes.

Fig. 4: No mesmo livro, Barthes também insere as suas composições, o que revelaria sua personalidade de “músico”. No canto direito inferior: “1939. Roland Barthes”

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Fig. 5: Finalmente, o “coro estruturalista” pode ser observado na reprodução desta caricatura no final do livro, na qual são representados (da esquerda para a direita) Michel Foucault, Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss e Roland Barthes. Além de todas as referências a essa multiplicação do “eu”, Barthes também enuncia abertamente a entidade plural que faz desse livro um “quase romance”, já que há muitas personae, mas nenhum personagem: Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance – ou melhor, por várias. Pois o imaginário, matéria fatal do romance e labirinto de redentes nos quais se extravia aquele que fala de si mesmo, o imaginário é assumido por várias máscaras (personae), escalonadas segundo a profundidade do palco (e no entanto ninguém por detrás). O livro não escolhe; ele funciona por alternância, avança por lufadas de imaginário simples e de acessos críticos, mas esses mesmos acessos nunca são mais do que efeitos de repercussão; não há imaginário mais puro do que a crítica (de si). A substância deste livro, enfim, é pois totalmente romanesca. A intrusão, no discurso, do ensaio, de uma terceira pessoa que não remete entretanto a nenhuma criatura fictícia, marca a necessidade de remodelar os gêneros: que o ensaio confesse ser quase um romance: um romance sem nomes próprios.22 Em relação à encenação da solidão da linguagem, podemos afirmar que os seus dois últimos livros autorais, Fragmentos de um discurso amoroso e A câmara clara, giram em torno dessa questão. No caso do primeiro (que também contempla vários sujeitos, que se alternam e compõem diferentes coros), a ideia é mostrar desde o início que o discurso amoroso só existe para suprir a ausência do objeto amado que, de fato, não está mais lá. Se ele estivesse lá, não haveria porque falar, descrever o amor: o amor seria consumado. A escrita está ligada à consciência dessa tragédia: Saber que não escrevemos para o outro, saber que essas coisas que vou escrever jamais me farão amado de quem amo, saber que a escrita não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente ali onde você não está – é o começo da escrita.23

Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 136. 23 BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes (Selo Martins), 2003, p. 161. 22 BARTHES, R.

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Talvez por esse laço com a solidão, Barthes se afasta da linguagem verbal e abraça, com alegria, a fotografia. Em A câmara clara, a fotografia torna-se o lugar ideal onde a pessoa perdida (Eurídice) parece estar de fato, diferentemente daquilo que ocorre em outros sistemas significantes: A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. O discurso combina signos que certamente têm referentes, mas esses referentes podem ser, e na maior parte das vezes são, “quimeras”. Ao contrário dessas imitações, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado.24 Essa sensação só dura alguns instantes na leitura do livro, mas Barthes parece ter encontrado um caminho para lutar contra essa tragédia. A sensação efêmera de simultaneidade produzida pela fotografia permitirá a Barthes sair de vez da crítica e começar a sua grande aventura quixotesca, a escrita de um romance. Mas aqui chegamos a outro projeto e outro tipo de magia, que devem ser objeto de outro trabalho.

Referências BARTHES, R. Elementos de semiologia. Trad. Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix, 1974. _________. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañón. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. _________. “A mensagem publicitária”. Em A aventura semiológica. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _________. “A retórica antiga: apostila”. Em A aventura semiológica. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _________. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. _________. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes (Selo Martins), 2003. _________. Vinte palavras-chave para Roland Barthes”. Em O grão da voz. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _________. A preparação do romance. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _________. “Escrever, verbo intransitivo”. Em O rumor da língua, Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012 _________. Seminário 62-63. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. _________. Seminário 63-64. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. _________. Seminário 65-66. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. _________. Seminário 66-67. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. _________. Seminário 71-72. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. _________. Seminário 72-73. Fonds Roland Barthes/ Bibliothèque Nationale de France. SAMOYAULT, T. Roland Barthes. Paris: Seuil, 2015. SCHAEFFER, J-M. Lettre à Roland Barthes. Paris: Éditions Thierry Marchaisse, 2015.

Recebido em: 22 set. 2016. Aceito em: 01 out. 2016.

24

Barthes, R. A câmara clara. Trad. Júlio Castañón. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 115.

Gênese de uma crítica mágica

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