Geografia Política e Poder na Gestão do Território

June 29, 2017 | Autor: Claudio Goncalves | Categoria: Geografia, Geografía Humana, Geografía Política
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GEOGRAFIA POLÍTICA E PODER NA GESTÃO DO TERRITÓRIO* Cláudio Ubiratan Gonçalves

Resumo: neste artigo levantamos aspectos importantes para pensar a Geografia Política contemporânea. Referenciado em categorias analíticas como poder, região e representação política, pretendemos contribuir no riquíssimo debate que orienta as ações dos gestores do território. Palavras-chave: região, política, representação, poder

O Território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência (Milton Santos, 2002). INICIANDO OS TERMOS DA QUESTÃO trabalho está dividido em três partes. Na primeira, detemo-nos numa panorâmica geral da discussão sobre Região, Política e Poder. Em seguida, abordaremos a distinção entre Política e Poder, focalizando as ações e o poder político. E, por fim, discutiremos as formas de poder e a representação política, que são fundamentais na construção da idéia de Região. Verificamos, na abordagem sobre o poder, uma crítica ao caráter mítico das idéias pluralistas da sociedade democrática, fundada na igual capacidade de todos os cidadãos de formar sua opinião pessoal e de expressá-la livremente. Tanto os pensadores medievais, como os pensadores modernos que tiveram inspiração nos primeiros, retratam o poder a partir de alguns ele-

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mentos como a potência e a força. E não é de todo desconhecido que potência significa toda oportunidade de impor a sua própria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências, pouco importando em que repouse tal oportunidade (LEBRUN, 1995). A outra face da moeda que inclui a força como elemento essencial no exercício do poder está ausente de potência. Assim, existe poder quando a potência, determinada por uma certa força, se explica de forma precisa. Não sob o modo da ameaça ou chantagem, mas sob o modo da ordem dirigida a alguém que, presume-se, deve cumpri-la. Observamos também, sob o prisma da política, o modo de exercer os poderes calcados na não diferenciação entre governantes e governados. Neste aspecto, nossa idéia de política se confronta com a idéia de poder, pois a distinção entre governantes e governados pertence a uma esfera que precede o domínio político, e o que distingue este da esfera econômica do lar é o fato de a cidade basear-se no princípio de igualdade. Por outro lado, o campo do poder político traduz-se de forma indireta na dominação de classe. Desse modo, uma das manifestações essenciais desta transposição das relações de classe no campo político é a despossessão política daqueles que são os mais diminuídos de capital econômico e capital cultural (BOURDIEU, 1998a). PANORAMA GERAL DA DISCUSSÃO SOBRE REGIÃO E POLÍTICA Constatamos que o poder na região é deslocalizado, ou seja, o poder político escapa sempre à região em questão. Isto ocorre quando o indivíduo ou grupo que detém a capacidade superior de decisão o exerce distante do local de aplicação de suas decisões que podem ter implicações não só de natureza política, mas também econômica e, sobretudo, social. Por isso a região é sempre o instrumento ou o âmbito da dominação (KAISER, 1966). Sob esta perspectiva, a região é enfocada através do ponto de vista do poder de governar ou do poder de administrar, e enfatiza-se que, para compreendê-la sob este aspecto, é necessário antes observar seus vínculos com o poder econômico e com o poder político. Feito isto, é possível atribuir à região um nível intermediário indispensável na ligação entre o poder central e os organismos locais. Ela é o quadro territorial no qual se aplicam as decisões, para o qual são estudados os programas de ação. Nesta argumentação, percebemos a força e o poder do lugar, pois é nele que são executadas as ações e tomadas as decisões, sobretudo políticas. 252

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O poder do lugar revela a construção e a representação da dominação política em meso-escala materializada num programa de ação. Neste sentido, identificamos uma certa aproximação entre Kaiser e Raffestin quando trataram especificamente do programa de ação e, conseqüentemente, do poder. Para Raffestin (1993), é possível visualizar a manifestação do poder a partir do território. A representação do exercício de poder no sistema territorial traz para o primeiro plano parte da realidade quando coloca como questão primordial o poder institucionalizado. A lógica institucional, por um lado, conforma o ordenamento societário a partir de formas e leis geométricas. Por sua vez, essas formas propiciam posições para quem está no comando das ações. Neste sentido, o território abarca a forma e a posição dos atores sintagmáticos, pois ele não é dado naturalmente, mas construído. E sua construção obedece ao programa dos atores que se fazem hegemônicos. O mesmo autor afirma que a região permanece mais um objeto de discurso que de práticas; É a partir dessa constatação que o trabalho dos estudiosos das sociedades contemporâneas ou planejadores das agências de desenvolvimento consiste, sobretudo, em dar a essa questão um conteúdo relativo às relações sociais. O objeto de discurso versus o objeto da prática como uma oposição pode constituir o outro elemento de um encadeamento de leitura possível da realidade. A região está nas preocupações do Estado: ele corta, subdivide, delimita, quadrícula, encerra o mapa (o gabinete) e não o território (a realidade). Porque não remete a nenhum significante, o termo região e os discursos que se constroem em torno são independentes de qualquer relação com o real (RAFFESTIN, 1993). Ainda seguindo esta linha de pensamento, pretendemos dar à noção de poder não uma direção unívoca, e tampouco fechada em si. Para limpar terreno, queremos captar em nosso leque de significações as diversas vertentes que tratam o assunto, para em seguida termos ampliadas nossas possibilidades de compreensão deste fenômeno social tão complexo e ambíguo, assim como a região. O poder apresenta-se multifacetado para dificultar o seu reconhecimento e não deixar de existir. Ele é exercido onde menos é percebido, provocando a impressão de ser invisível. É possível identificar o exercício do poder através daqueles atores que ordenam, prescrevem, ameaçam ou punem outros atores sociais. Neste sentido, temos interesse não só em analisar as faces do poder, bem como relacionálas com a política e o conceito de região. Em nossa discussão abstraímos a FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 3/4, p. 251-263, mar./abr. 2008.

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perspectiva da filosofia política e da economia e optamos por trilhar os caminhos que cruzam e perpassam as fronteiras da ciência geográfica e da sociologia política. Nesse sentido, resgatamos a Polis que significa tudo que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social. O termo política se expandiu sob a influência da grande obra de Aristóteles, intitulada Política, que deve ser considerada como primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado. O termo política foi usado durante séculos para designar obras dedicadas ao estudo da esfera de atividades humanas que se refere às coisas do Estado. Na época moderna, o termo assume outro significado para indicar a atividade ou conjunto de atividades que tem como termo de referência a Polis, ou seja, o Estado. NAVEGANDO ENTRE A POLÍTICA E O PODER A idéia da gênese de um campo permite descrever e definir, de certo modo, como se revestem as formas e manifestações de poder. Assim, compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os atos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir (BOURDIEU, 1998a, 1998b). A respeito da noção de campo político podemos afirmar que é este, o lugar da interação social, das trocas simbólicas e da correlação de poder. O campo político é um espaço mutável e hierarquizado, onde os agentes sociais assumem posições diferenciadas de acordo com o capital político acumulado. Desse modo, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, é preciso saber identificá-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (BOURDIEU, 1998bb). O poder simbólico se fundamenta, contudo, através das estruturas estruturantes – instrumentos de conhecimento e de construção do mundo objetivo; estruturas estruturadas – meios de comunicação, língua, cultura etc; instrumentos de dominação – poder propriamente dito. O território, por sua vez, como ator e produto de uma ação social, estaria situado como 254

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uma estrutura estruturante capaz de conformar ou reagir ao exercício do poder, influenciando o comportamento dos indivíduos nele atuantes. O poder simbólico é um poder por assim dizer ‘mágico’ facilitador na obtenção do equivalente daquilo que é logrado pela força, seja ela física ou econômica, graças ao efeito de mobilização. Esse poder simbólico ao ser exercido pode fazer uso de elementos espaciais, como catalizador de interesses de grupos sociais e instituições. A sutileza com que é praticado esse poder é objetivada pela territorialidade e impresso no território pelo controle de quem detém mais capital, seja ele econômico ou simbólico. Portanto, partilhamos das idéias de Miceli (1998), quando afirma que o trajeto de Bourdieu visa aliar o conhecimento da organização interna do campo simbólico – cuja eficácia reside justamente na possibilidade de ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representações, que não passam de alegorias que simulam a estrutura real de relações sociais – a uma percepção de sua função ideológica e política e legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente. Por fim, vale dizer que nesse processo metodológico de conhecimento, proposto e aplicado por Bourdieu, o espaço social tem um papel privilegiado, na medida em que ele cristaliza os momentos anteriores. Neste espaço se dá o encontro entre o passado e o futuro, mediante as relações sociais do presente que nele se realizam. AS AÇÕES E O PODER POLÍTICO O conceito de ação política, entendida como forma de atividade ou de práxis humana, está estreitamente ligado ao de poder. O domínio sobre os homens não é geralmente fim em si mesmo, mas um meio para obter ‘qualquer vantagem’ ou, mais exatamente, ‘os efeitos desejados’, como acontece com o domínio da natureza, a definição de poder político como tipo de relação entre sujeitos tem de ser completada com a definição do poder como posse dos meios que permitem alcançar uma ‘vantagem qualquer’ ou os ‘efeitos desejados’. O poder político é o poder do homem sobre outro homem. Esta relação é expressa de variadas formas, onde se reconhece fórmula típica da linguagem política: relação governante-governados, entre Estado-cidadãos, entre autoridade-obediência etc. De acordo com Bobbio et al. (2000), o poder político para Aristóteles se entrevê no interesse daquele em benefício de quem se exerce o poder. Assim, o político, pelo interesse de quem governa e de quem é governado, o que FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 3/4, p. 251-263, mar./abr. 2008.

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ocorre apenas nas formas corretas de governo, pois nas viciadas, o característico é que o poder seja exercido em benefício dos governantes. Na verdade, o fato de o poder político se diferenciar do poder paterno e do poder despótico, por estar voltado para o interesse dos governantes ou por se basear no consenso, não constitui caráter distintivo de qualquer governo, mas só do bom governo: não é uma conotação da relação política como tal, mas da relação política referente ao governo tal qual deveria ser. Portanto, uma visão idealizada em certo sentido. Por outro lado, a rapidez em assumir diversificadas formas de domínio deu ao poder e à política a amplitude geográfica desejada. O mundo mundializado aí está sob nossos olhos, como um fato, embora mascarado pelas próprias condições em que foi gerado: quando a economia se baseia na insensatez, a ordem social apenas se mantém porque a ideologia se intromete; e a ordem política fica obrigada a se confundir, e isto ao infinito, com as demais instâncias de vida. O mundo ‘mundial’ se apresenta aos seus observadores, que são também seus personagens, como algo de incompletamente compreensível, ao menos para os indivíduos mais desarmados, que são a maioria (SANTOS, 1978). PODER POLÍTICO E REGIÃO Como vimos, a expressão poder assume inúmeros sentidos e pode ser empregada de acordo com o contexto social. Aqui nos valemos da definição dada pelo Dicionário de política, que designa poder de uma forma geral como a capacidade ou possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou a fenômenos naturais (BOBBIO et al., 2000). O mesmo Dicionário, aprofundando a terminologia, chama a atenção para três modalidades de poder. São eles: o poder social, em seu sentido mais amplo, é a capacidade de determinação intencional ou interessada no comportamento dos outros. Já o poder atual vai mais além, e caracteriza-se quando a capacidade de determinar o comportamento dos outros é posta em ato, o poder se transforma, passando da simples possibilidade à ação. Por último o poder potencial, que é uma relação estabelecida entre atitudes para agir (BOBBIO et al., 2000). Apesar de não ser este o espaço mais adequado para analisar as várias facetas que o poder assume na sua ligação com a vida do homem em sociedade, não podemos deixar de chamar a atenção para os modos de exercêlo. O homem é sujeito e objeto do poder social, e nessa perspectiva torna-se 256

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alvo de sua própria criação. Podemos ilustrar isto através do poder institucionalizado, que existe como norma e materializa-se por meio do governo, partido político, administração pública e exército. E no interior dessas instituições de poder exercita-se a força (energia), seja ela simbólica ou, em última instância, física. Portanto, a força só adquire significado quando os recursos do poder (persuasão, manipulação, ameaça de punição, promessa de recompensa) são utilizados para resguardá-lo. Não há poder se não existe ao lado um grupo/ indivíduo que o exerce, e outro grupo/indivíduo que é induzido a comportar-se tal como aquele deseja. Com base no exposto, delineia-se um quadro primário que servirá de suporte, mais adiante, para demarcarmos as idéias que iremos desenvolver com base no pensamento de Bourdieu. Desse modo, a sociedade de nosso tempo vem sendo marcada pela supremacia da técnica e da informação, que, de maneira veloz e simultânea, forja os fatos e acelera a ação dos indivíduos, gerando uma nuvem de ofuscamento em torno do verdadeiro sentido dos interesses em jogo. Para Santos (1996), o fato de que o processo de transformação da sociedade industrial em sociedade informacional não se completou inteiramente em nenhum país, faz com que vivamos, a um só tempo, um período e uma crise, e assegura, igualmente, a percepção do presente e a presunção do futuro, desde que o modelo analítico adotado seja tão dinâmico quanto a realidade em movimento e reconheça o comportamento sistêmico das variáveis formas que dão uma significação nova à totalidade. No desenvolver desses complexos processos sociais, estão em andamento um fazer/refazer constantes da correlação de forças existentes no interior do sistema de acumulação capitalista. E essa transição vivida pelos agentes sociais aponta para uma consciência e um desejo de ruptura, expressa a partir do colapso da razão e da modernidade. Encontra-se em curso uma nova configuração do poder, uma nova representação da relação estabelecida entre as classes sociais. As categorias dominados e dominadores não bastam por si só para apreender a realidade. É nesta chave de pensamento que se insere Bourdieu, que, de um modo peculiar, vai beber não só nas fontes conceituais foucaultianas, mas também em Weber, Durkheim, dentre outros. Bourdieu, em seu sistema teórico, realiza um repatriamento de idéias onde, de forma abrangente, se utiliza de clássicos das ciências sociais, da economia, da psicologia e da filosofia. De maneira pluridisciplinar, intenciona superar os antagonismos solidificados entre o subjetivismo e o objetivismo, FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 3/4, p. 251-263, mar./abr. 2008.

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o indivíduo e a sociedade, a liberdade e o determinismo, analisando o social sob duas dimensões: os agentes sociais, por meio do habitus, e no mundo sob forma de objetos ou produções culturais. A contribuição intelectual de Bourdieu é vasta e muito significativa. O habitus, como objeto social incorporado e estruturante, resulta de uma aquisição pretérita, que pode ser feita através da família ou no convívio dos grupos sociais. Neste sentido, as experiências do indivíduo com o mundo social norteiam as práticas que, de forma naturalizada, expressam a ideologia, de acordo com a posição e inserção dos indivíduos no estrato social. Em resumo, o princípio unificador e gerador de todas as práticas e, em particular, das orientações comumente descritas como escolhas da vocação, e muitas vezes consideradas efeitos da tomada de consciência, não é outra coisa senão o habitus. FORMAS DE AÇÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA Desse modo, cruzando o caminho das percepções sociais do poder e das formas de ação política, queremos pôr em relevo o seguinte conjunto de questões: até que ponto a ação interna e externa do representante pode significar a verdade do grupo? O representante realmente apresenta os interesses de seus representados? E a política incide na construção da identidade do grupo? Enfim, como ocorrem as relações de poder e de autoridade entre representante e representados? Frente a isso, queremos alertar sobre nossa limitada capacidade, neste estudo, em aprofundar a distinção entre os termos que consideramos chaves nesta explicação, a mediação e a representação política. Sendo assim, com a finalidade de realizar esta discussão, vamos ancorar nosso pensamento em Novaes (1994), que traz argumentos mais esclarecedores a respeito do assunto. A autora menciona os seguintes tipos de mediadores: externo, de cima e de dentro. Os mediadores externos assumem um papel de interlocução e situam-se entre igrejas, universidades, estado e ongs. Já os de dentro, apesar de um aparente paradoxo, se caracterizam pela representação e delegação de poder, ou seja, seriam as organizações institucionais dos trabalhadores, como sindicatos, federações, confederações etc., que, através de eleições, recebem da base social a incumbência de os representar. É exatamente sobre este segundo tipo de mediação que buscaremos dar maior visibilidade aqui. Na visão de Neves (1997), o exercício de mediação pode também ser compreendido a partir do conjunto de idéias, valores e modos de compor258

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tamento, transmitidos como formas de incorporação de saberes propiciadores da construção de novas posições e identidades do ator social. Embora utilizado noutro contexto, o termo mediação empregado por Neves complementa o item anterior defendido por Novaes. Enquanto a primeira chama a atenção para o fato da complexificação dos vários sentidos da expressão, a segunda autora focaliza a existência de um saber acumulado e experienciado pelas lideranças que é responsável pela formação de quadros e pela alimentação do papel dos mediadores. Também se percebe que através desta situação se dá a construção da(s) identidade(s) e o grupo se fortalece no enfrentamento e resistência a inimigos comuns. Ora, valendo-nos do exposto, começamos a vislumbrar as formas de ação do representante, que, antes de ocupar a sua posição, teve que passar por disputas no campo político onde adquiriu o direito de falar e de representar em nome do grupo. Nesses termos, o poder atomizado e a força minimizada presente nos indivíduos acabam quando estes se juntam em torno de um portavoz que passa a apresentar os anseios de todo o grupo. Nesse sentido, há um deslocamento da dimensão individual à dimensão coletiva do jogo de interesses. Para isto é preciso que este indivíduo, disposto a anular seus interesses pessoais, reúna quesitos como tempo livre e capital cultural. O significante não é apenas aquele que exprime e representa o grupo significado; ele é aquilo que declara que ele existe, que tem o poder de chamar à existência visível, mobilizando-o, o grupo que ele significa. É o único que, em determinadas condições, usando o poder que lhe confere a delegação, pode mobilizar o grupo: é a manifestação. O representante político tem esse poder de tornar manifestos os manifestantes, porque ele é, de certa forma, o grupo que ele manifesta (BOURDIEU, 1990). Não podemos deixar de emitir algumas considerações pertinentes sobre o que acreditamos ser a anatomia da representação política do grupo. Primeiramente, é relevante a idéia de capital cultural, termo emprestado da economia marxista, que nos remete a noção de acumulação. Quanto mais se acumula mais se quer acumular onde se aponta para uma linha hierárquica em que se encontram em questão as habilidades, conhecimento e percepções que permitem ao porta-voz, beneficiário desta acumulação, situar-se em determinados espaços sociais de sua atuação. O ingresso na hierarquia das lideranças lhe permite circular na esfera do campo político, onde ganha status e vê diante de si um ‘exército’ de indivíduos sem-fala suscetível ao seu mando. Por outro lado, acabamos caindo num ponto que merece atenção, que é a legitimação do porta-voz. É legítima a delegação que transpareça o FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 3/4, p. 251-263, mar./abr. 2008.

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verdadeiro sentido da base social, e o delegado, em suas atitudes, deve ser o intérprete fiel das demandas trazidas pela sua base. Voltando à questão anterior, Neves (1997), chama a atenção que a legitimação se dá a partir de um consenso coletivo, onde a delegação é pensada por um exercício de alienação de interesses individuais, subordinados ou enquadrados em nome de um legitimado e moralmente valorizado bem comum, que pressupõe a negação das apropriações particulares. Mas a legitimação não se dá somente pela projeção do grupo representado, o outro sustentáculo do equilíbrio é o carisma ou crédito do representante. Ele, declarando que existe, tem o poder de se afirmar e mobilizar o grupo que representa, é a manifestação. O ato de mobilização, ao mesmo tempo em que reforça as estruturas de representação, constituindo o grupo, também fornece a sua identidade. Sem essa capacidade de se fazer ver, de se identificar pra dentro e se diferenciar pra fora, o grupo não conseguiria existir. Antes de prosseguirmos em nossa idéia, queremos elucidar um pouco mais a respeito da crença confinada no representante em decorrência do seu capital político. De início, é preciso se ter clareza da tênue linha que separa a representação como ato de mediar, estabelecendo canais de diálogo da pseudo-representação como ato de imposição da autoridade com a única finalidade de dominar. O capital político é uma forma de capital simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento ou, mais precisamente, nas inúmeras operações de crédito pelas quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um objeto – os próprios poderes que eles lhes reconhecem. O crédito, o carisma, é o produto do credo, da crença da obediência, que parece produzir o credo, a crença, e a obediência como regra na sociedade. Seguindo os meandros do pensamento de Bourdieu, o campo político é, pois, o lugar de uma concorrência pelo poder que se faz por intermédio de uma concorrência pelos profanos ou, melhor, pelo monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade dos profanos. O porta-voz apropria-se não só da palavra do grupo dos profanos, quer dizer, na maioria dos casos, do seu silêncio, mas também da força desse mesmo grupo, para cuja produção ele contribui, ao prestar-lhe uma palavra, reconhecida como legítima no campo político. É a partir desta concorrência pelo poder e de um desnível cultural existente entre representante (porta-voz) e representados (profanos) que assistimos a conflitos de interesses inerentes a este processo político. Nesse campo de poder, o porta-voz mal intencionado pode dispor de recursos de dominação calcados na força da linguagem como: coação, discursos de auto 260

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consagração e oráculos, e, através desta imposição simbólica, manipular o grupo em nome do próprio grupo. No domínio simbólico, os atos de força traduzem-se por atos de forma – e é com a condição de saber disso que se pode fazer da análise lingüística um instrumento de crítica política e da retórica, uma ciência dos poderes simbólicos (BOURDIEU, 1990). Em outras palavras àqueles que detêm maior acúmulo de capital político – e de antemão sabemos também que são eles que concentram o capital cultural, ou seja, os representantes – não é nenhuma novidade dizer que o monopólio da competência de representar pertence a este pequeno grupo. Logo, é inevitável neste jogo de poder não fazer prevalecer seus interesses no campo político. Para reforçar este argumento, nos valemos do mesmo autor que diz ser o interesse uma noção de ruptura, por destruir a ideologia do desprendimento. Neste sentido, consideramos emblemático o debate em torno da representação política de grupos sociais organizados e amparados por instituições que informam sobre visões de mundos. Vimos que a ação política através do discurso produz as representações do mundo social, e que os choques daí decorrentes canalizam poder para os agentes sociais ‘mais aptos’ em conduzir o processo político. De modo simplificado, cria-se uma relação de dominação onde o mandatário faz sobressair seus interesses em detrimento do grupo, ou no mínimo o grupo se deixa dominar em nome da legitimidade da representação. Finalmente, queremos dizer que ainda há muito por investigar nos diferentes/coexistentes campos de ação determinantes da organização do sistema territorial e da construção do grupo social. Portanto, acreditamos na contribuição que o campo político pode oferecer como construção teórica para entendermos a trajetória do poder que perpassa o universo da representação política e que fundamenta o discurso regional. CONCLUSÃO Nos últimos tempos, o uso das expressões região, política e poder tem sido recorrente não só por aqueles que governam, mas, também e principalmente, por aqueles que são governados. Estes temas estão na ordem do dia, colocados por indivíduos organizados nos diversos tipos de associações ou movimentos: comunitários ou de bairros; corporações profissionais ou segmentos de trabalhadores; comerciantes, ou grandes empresários. Um exercício como este a que nos propomos busca sistematizar elementos explicativos da geografia política, propiciando clarificar a confusão FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 3/4, p. 251-263, mar./abr. 2008.

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de espíritos que se estabelece quando tratamos de temas transversais ou diretamente envolvidos com interesses coletivos. Nesta empreitada, nada fácil, optamos por revisitar os conteúdos já existentes de região, política e poder. Neste sentido, resgatamos o pensamento de autores clássicos que acumularam um considerável conjunto de experiências e que partiram de suas vivências para compreenderem a diversidade espacial da sociedade. Embora a polissemia do termo poder possa levar a generalizações várias, com o propósito de encobrir seu verdadeiro sentido ideológico, tentamos aqui estabelecer uma discussão na direção do campo epistemológico, aprimorando e consolidando conceitos referentes a esta temática. Região, representação política e as formas de manifestação do poder compõem, neste trabalho, o conjunto de categorias que buscam desvendar máscaras e interesses sociais. Se, por um lado, a territorialidade humana é uma forma espacial de comportamento social, por outro é estratégia de um indivíduo ou grupo de indivíduos de afetar ou influenciar pessoas, fenômenos e relações através da delimitação e controle sobre uma determinada área geográfica e seus recursos (objetivos ou subjetivos). Referências BOBBIO, N. et al. Dicionário de política. Brasília/São Paulo: Edunb/Imprensa Oficial, 2000. V. 2. BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998a. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. KAYSER, B. et al. A geografia ativa. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966. LEBRUN, G. O que é poder. São Paulo: Brasiliense, 1995. MICELI, S. Introdução: A força do sentido. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. NEVES, D. P. Assentamento rural: reforma agrária em migalhas. Niterói: Eduff, 1997. NOVAES, R. R. A mediação no campo: entre a polissemia e a banalização. In: MEDEIROS, L. et al. Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Edunesp, 1994. RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1978. SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1996. SANTOS, M. O dinheiro e o território. In: SANTOS, M. Território territórios. Niterói: PPGEOUFF/AGB, 2002.

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Abstract: in this article we brought important aspects to think he Political Geography contemporary. Reffered to analytical categories as Power, Region and Political Representation we intend to contribute with the wealthy debate that orients territory technicians actions. Key words: region, political, political representation, power

* Este texto resulta de reflexões e debates realizados na disciplina Teoria e Método do Ordenamento Territorial. Agradeço as contribuições dos professores Dr. Jacob Binsztok, Dr. Ruy Moreira e Dr. Rogério Haesbaert CLÁUDIO UBIRATAN GONÇALVES Doutorando em Geografia, com ênfase em Ordenamento Territorial e Ambiental, no Programa de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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