GEOGRAFIA SOCIAL EM ÉLISÉE RECLUS: PENSAMENTO GEOGRÁFICO E PRÁTICA ESPACIAL ENGAJADA FRENTE AOS MODELOS HEGEMÔNICOS DE ORDENAMENTO TERRITORIAL

June 14, 2017 | Autor: J. Cirqueira | Categoria: Geografia Social, História do pensamento geográfico, Anarquismo E Geografia
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José VandérioCirqueira Pinto Doutorando pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) Professor do Instituto Federal de Goiás (IFG) [email protected] GEOGRAFIA SOCIAL EM ÉLISÉE RECLUS: PENSAMENTO GEOGRÁFICO E PRÁTICA ESPACIAL ENGAJADA FRENTE AOS MODELOS HEGEMÔNICOS DE ORDENAMENTO TERRITORIAL “La planète est découpéepolitiquement par unlacis de fronteires quidivisentlesdiversesparties de la terre, déclaréespropriétéimpériale, royaleonnationale. C’est tout une révolution de lapenséequ’ilest nécessaire d’accomplirpourmodifier à cetégardlesconventionstraditionnelles.”1 Élisée Reclus (1905, t. V, p. 303).

INTRODUÇÃO O pensamento geográfico de Élisée Reclus (1830 – 1905) é marcado por um discurso heterodoxovinculado àcondição teórica e de prática espacial quese confrontacom os modelos hegemônicos de ordenamento territorial. Seu modelo de ciência não foi digerido pela crítica historiográfica da época, que negava a efetividade da geografia enquanto campo do saber politicamente engajado para a transformação dos desequilíbrios geográficos. Por sua vez, este era o principal papel da geografia para Reclus:ter um caráter eminentemente social, politicamente dissidente, colocado como uma prática espacial subversiva capaz de enfrentar as ingerências dos modelos hegemônicos. Diante desta perspectiva inicial, este trabalho tem como objetivo central destacar os elementos constitutivos da geografia social reclusiana, evidenciando seu caráter politicamente engajado enquanto fundamentação teórica e prática espacial. Como procedimento metodológico condutor deste artigoserá realizada discussão sobre a obra 1

“O planeta está recortado politicamente por uma rede de fronteiras que dividem as diversas partes da terra, declaradas propriedade imperial, real ou nacional. Antes de tudo, uma revolução do pensamento é necessária de se cumprir para modificar, a este respeito, as convenções tradicionais.”

L’Homme et laTerre, trabalho de Reclus pioneiro na apresentação dos parâmetros fundadores da geografia social, como também, breve revisão teórica do debate historiográfico sobre este campo da geografia e do pensamento reclusiano, na intenção de captar o sentido constitutivo da geografia social e do engajamento político impresso em seu pensamento. A emergência de sua geografia social libertária, diante do contexto em que foi apresentada, funcionou como antinomia ao efervescente século do liberalismo, com seus imperialismos e industrialismos, que causaram graves acúmulos de poder e de pobreza, promoveram sangrentos conflitos e conquistas territoriais, redefinindo fronteiras, forjando e apagando outras, consumindo vidas, recursos, força de trabalho e liberdades para nutrir os atores de poder do capital e do Estado como agentes autoritários de ordenamento do território, sobre os ombros dos trabalhadores.As questões territoriais, das regiões, dos lugares, das identidades, da exploração do homem, e da ação predatória deste sobre a natureza estavam consideravelmente evidentes para que a geografia ficasse unicamente omissa, calada e neutra ao passo que essas mazelas iam sendolançadas sobre as faces destes especialistas do espaço geográfico. Em L’Homme et la Terre,Reclus buscou investigar o resultado da relação entre a sociedade e a natureza,ou seja, a produção do espaço geográfico, além de ter explicitado os três elementos balizadores da sua geografia social: a luta de classes, como fundamento para a contestação dos modelos hegemônicos;a busca do equilíbrio, como elemento da ruptura à centralização e reprodução desigual do espaço; e a autonomia dos indivíduos, como sentido para as geograficidades libertárias.A evidência do papel da geografia social de Reclus se dá em virtude do pensamento geográficoter a oportunidade

deretornar

aos

clássicos,

principalmente

àqueles

que

foram

descaracterizados pela historiografia dominante, e extrair deste exercício elementos consideráveis para que se possa repensar ou apenas instigar novos direcionamentos do saber geográfico enquanto prática espacial comprometida com a contestação dos modelos hegemônicos de ordenamento territorial. PENSAMENTO GEOGRÁFICO E PRÁTICA ESPACIAL ENGAJADA

O projeto científico de geografia estabelecido por Reclus almejou integrar a dimensão espacial e social, conjuntamente à perspectiva radical do anarquismo, enxergando a função inovadora das ciências enquanto campo do saber atrelado às demandas políticas da sociedade. A monumental obra de Élisée Reclus, tomando como exemplo os dois tomos de La Terre; os dezenove tomos de Nouvelle GéographieUniverselle,que por sua vez abordam as cinco grandes regiões habitadas do mundo; e os seis tomos de L’Homme et la Terre (H&T), organizados em quatro livros que, consequentemente abordam desde a origem do homem ao período contemporâneo; é especialmente marcada pelo caráter ambiental, espacial, político e social, ora uma apresentando noção mais apurada da perspectiva ambiental, como La Terre, cujo subtítulo é DescriptiondesPhénomènes de laVieduGlobe, ora apresentando caráter político e social explicitamente integrado, como Nouvelle GéographieUniverselle, cujo subtítulo é La Terre et lesHommes. A geografia de Reclus portava em si um caráter eminentemente científico, investigativo (CREAGH, 2011), que desvelava a realidade espacial, com metodologia descritiva, comparativa e analítica, por vezes experimental, mas em contrapartida, não era uma geografia científica despersonalizada, fato que o diferenciava da forma científica de se fazer geografia pelos seus contemporâneos. Reclus estabelecia a politização do seu discurso, antecipando o uso do método dialético em geografia, alinhado à perspectiva libertária, num primeiro momento, e posteriormente assumidamente anarquista, negando a neutralidade científica e incitando o engajamento político deste campo do saber (RECLUS, 2002). Em busca de construir uma geografia integrada, Reclus introduziu a perspectiva socioambiental, elaborando com Demangeon o conceito meio geográfico, “inaugurando uma aberta e avançada compreensão dos diferentes espaços geográficos do planeta numa perspectiva ambientalista e globalizante” (MENDONÇA, 2009 p. 125).Dessa forma, o projeto de geografia reclusiana caracterizado por suas três principais obras: La Terre;Nouvelle GéografieUniverselle; e L’Homme et la Terre, projeto esse de produção científica progressiva, que partiu do horizonte ambiental, perpassando pelo político,

econômico e cultural, culminando no horizonte social, imbuído pela perspectiva libertária, inscreve o longo percurso traçado pelo geógrafo anarquista francês.Neste projeto, delinearam-seos direcionamentos heterodoxos de um pensamento e prática espacial que parte de uma geografia ambiental para umageografia social especialmente engajada,e que, por estar fundamentada no anarquismo comunista, se posicionado contrária aos projetos hegemônicos de ordenamento territorial de seu tempo, foi sendo marginalizada dos domínios do centro do pensamento geográfico do final do século XIX e início do século XX. No que diz respeito à negligência, operada pela história da geografia, da obra reclusiana, é de suma importância destacar que ela advém de motivos pessoais de seu envolvimento direto com a militância anarquista, e não tem explicação frente ao conteúdo de sua obra geográfica, que por sua vez, é essencialmente fiel às vanguardas radicais de sua época, encontrando hoje diversas atualizações e antecipações ao futuro do saber geográfico. Por isso, Creagh (2011, p. 12) afirma que “a obra de Reclus é uma das luzes que devemos transmitir se quisermos arrancar-nos da barbárie do século XXI. Se quisermos, também, entrar no transe dos movimentos de emancipação que atravessam a humanidade”. Para Meynier (1969), Reclus é um extraordinário geógrafo de práxis, um verdadeiro escritor engajado, que foi negligenciado também como ÉmileLevasseur. Roques (2011, p. 49) argumenta que, diante dos diversos temas abordados em sua extensa obra, “Reclus insiste nos aspectos políticos, numa geografia engajada”. Pois, segundo Pelletier (2011, p. 116), “de fato, Reclus parte sempre e ainda da realidade para construir seu projeto social. Ele o julga realista se a observação científica, e singularmente a geografia, mostra o que é”. Quando Alavoine-Muller (2009, p. 213) polemiza que “l’écriture d’Élisée Reclus est pluslittéraire que scientifique”,2 ela está chamando a atenção para o caráter polifônico dessa geografia heterodoxa, que destoa da noção monológica ortodoxa de ciência positiva. Por outro lado, houve a partir dessa geografia heterodoxa a emergência de formação de um pensamento geográfico das liberdades, se não fosse eminentemente anarquista seria ao menos libertário. Entretanto, 2

“a escrita de Reclus é mais literária do que científica”

esse curso fluvial foi de certa forma represado. Isso leva Creagh (2011, p. 30) a destacar que Não se pode concluir, contudo, na existência de uma escola de geógrafos libertários. Trata-se mais de conceitos libertários incorporados à geografia, e, deste ponto de vista, existe um corpo embrionário de ideias relativas à geografia urbana, ao espaço rural, aos fenômenos migratórios, culturais e assim por diante. Essas ideias podem transformar simultaneamente o imaginário do geógrafo e o da geografia. Elas representam um potencial extraordinário de subversão das outras disciplinas humanas: basta imaginar, por exemplo, uma geopolítica que, em vez de fixar-se nos decididores, levasse em consideração os indivíduos como seres planetários. Como disciplina, uma geografia anarquista revestiria novas formas. [...] Mas aqui também a inspiração de um Reclus seria benéfica.

E o contexto em que Reclus estava submetido foi propício para o desenvolvimento de diversas geografias libertárias, não integradas ao modelo de uma corrente paradigmática coesa, mas um saber feito na espontaneidade, não levado a cabo pela lógica institucionalista. Ao seu lado encontravam-se grandes nomes como Kropotkin, Metchnikoff, Charles Perrone Paul Reclus, sobrinho de Élisée, responsável por organizar, publicar e divulgar L’hommeetla Terre, na qual, todos esses nomes faziam parte do grupo de anarquista responsável pelo jornal Le Travailler, composto de outros membros de diversas formações, surgindo daí uma espécie de intelligentsia geográfica anarquista (FERRETTI, PELLETIER, 2013), não se esquecendo de nomes como dos espanhóis Anselmo Lourenço, amigo e tradutor para o espanhol de El hombre y laTierra, Odón de Buen, revisor também da obra citada, e da amizade com Ferrer iGuardia, empreendendo discussões sobre o ensino.É importante lembrar o nome de Patrick Geddes, também amigo de Reclus, admirador de sua obra, além de ser o urbanista responsável por introduzir o conceito conturbação, hoje muito usado na geografia urbana, e ainda de ter desenvolvido estudos sobre as cidades-jardins dentro de uma perspectiva de organização do espaço urbano pelo prisma ecologista libertário. “O que atrai Geddes às ideias de Reclus é a formulação do conceito de geografia que lhe parece ser a extensão natural do movimento de estudo da humanidade em seus diferentes contextos ambientais” (STEELE, p. 80).

No bojo desse pensamento geográfico e prática espacial engajada assenta-se o continente do que se buscou posteriormente denominar de geografia libertária, que segundo Creagh (2011, p. 25) “situa-se na grande tradição da dissidência, aquela que questiona os poderes, ou, para ser mais preciso, as diversas formas de dominação e exploração”.Para o geógrafo anarquista estadunidense, “tal geografia também é uma arma contra as ideologias imperialistas”, e Reclus foi o principal expoente dessa forma engajada de fazer geografia, reluzindo subterraneamente suas ideias sobre diversas possibilidades radicais de pensar a dimensão geográfica, no que hoje se denomina de geografias dissidentes. Através de sua larga experiência espacial vivida em decorrência de suas longas e intensas viagens, pelos mais diversos cantos da Terra, Reclus projeta sua obra, que funciona como teoria dessa prática espacial de engajamento político libertário gestado em decorrência de seu envolvimento com a Comuna de Paris e outros diversos movimentos sociais de trabalhadores na Europa, rendendo-lhe prisão e exílios, e esse conjunto profícuo da atividade política e das andanças projetou o espectro de suas narrativas do mundo. Esses resultados narrativos têm em seu cerneo desejo de reconciliação do homem com ele mesmo e com a terra, nos trilhos do humanismo fraternalista universal. Todavia, a experiência espacial em Reclus é empírica, é teórica e é também política, por isso ela é dimensão do social, por sua vez, o espaço reclusiano é social. Souza (2000, p. 114) diz que “sob um ângulo mais abrangente, o espaço social pode ser visto como fruto das relações sociais, incluindo-se aí, além da transformação material pelo processo de trabalho, a territorialização através de projeções de poder e a atribuição de significados culturais”. Contudo, a experiência espacial que Reclus projeta em sua obra, por ser oriunda de suas experiências existenciais, está dotada do significado social e das suas múltiplas atribuições. Soja (1993, p. 100), tenciona sua discussão para a importância da “distinção entre o espaço per se, o espaço como um dado contextual, e a especialidade de base social, o espaço criado da organização e da produção sociais”. Neste sentido, a experiência espacial de Reclus está imbuída da compreensão de espaço

enquanto dado contextual, mas que se projeta, através de sua obra e das lutas sociais que ele envolveu pela espacialidade de base social. GEOGRAFIA SOCIAL FRENTE AOS MODELOS HEGEMÔNICOS DE ORDENAMENTO TERRITORIAL Em L’Homme et la Terre (H&T), obra publicada postumamente por Paul Reclus, no período de 1905 a 1908,está contida a evidênciados fatores históricos, sociais e políticos expressados pelos discurso crítico social libertário reclusiano. Por sua vez, será uma obra pioneira na geografia por ultrapassar a simples investigação baseada no homem e na terra, promovendo a partir dessa premissa a investigação da relação entre sociedade e natureza, formato retomado pela geografia crítica radial marxista dos anos de 1970, que evidentemente não deu a devida atenção a H&T, buscando sustentação em Marx e nas proposições de Lefebvre, descaracterizando o legado do geógrafo anarquista. Nessa obra conclusiva de toda sua reflexão geográfica, Reclus buscou demonstrar que do resultado da relação entre a sociedade e a natureza desenvolve-se a produção do espaço geográfico, que por sua vez, a atuação humana, colocada nessa ocasião como protagonista dos processos de transformação espacial, funciona como reprodutora das relações sociais e da configuração do território. Por isso, indiscutivelmente, L&T é o primeiro tratado de geografia social, conforme ressalvaMeynier(1969, p. 26), na qual argumenta que “l’espression [géographiesociale] sembleavoirétécréée par Élisée Reclus (L’hommeetla Terre, Introduction), non par C. VallauxcommelecroitClaval.”3 Segundo o argumento de Frémont (1986, p. 87), desde sua origem na obra de Reclus, passando pelo debate empreendido por Vallaux e as aproximações feitas por Pierre George, “lagéographiesocialeagace”4. E ela irrita, porque incomoda as geografias despolitizadas, descompromissadas com o elemento sócio-político do ordenamento 3

“a expressão [geografia social] parece ter sido criada por Élisée Reclus (L’hommeetla Terre, Introdução), não por C. Vallaux como o crê Claval”. 4 “a geografia social irrita”.

territorial. Para Guy Di Méo (2008, p. 7, 8) o objeto da geografia social é o estudo das relações entre as interações sociais e espaciais, na qual, justamente por abranger esses fatores foi responsável pelo processo de renovação metodológica da ciência geográfica. La géographiesocialemetl’accentsurlesinterations de rapportssociauxetspatiaux, surlesrelations entre dynamiquessociales et spatiales et surles formes géographiques, notammentinégalitaires ou ségrégatives, à lafoismatérielles et idéelles, concrètes et symboliquesquirésultent de cesintersections et superpositionsactives de rapports. [...] C’estsurla base de cesnouvellesdéfinitions d’objets et de cesnouvellesméthodes que lagéographiesociale a pucontribuieraurenouveau de lasciencegéographiqueen general, qu’ellel’asansdouteamenée à acquérir une véritableconsistancesociale et à s’inscriredéfinitivementaucoeurdessciences de l’homme et de lasociété.5

E esse processo de transformação metodológica e principalmente ideológica terá sua gênese nas análises reclusianas contidas em L&T, acrescendo ao sentido dos estudos geográficos a perspectiva combativa do engajamento anti-regime, confrontando os projetos hegemônicos de controle do território. Nessa nova perspectiva de acabamento do seu projeto científico Reclus inova a abordagem metodológica da geografia já no início do século XX, introduzindo a análise materialista histórica, pois, parte da origem da sociedade até os dias atuais, do primeiro ao sexto volume, respectivamente,empreendendo investigação e debate sobre a ocupação e a organização do espaço, a interação e o uso da natureza, a diferenciação e a incorporação de valores dos distintos grupos humanos, enfocando a mobilidade e o hibridismo cultural.Reclus também detalha as transições de níveis técnicos incorporados pela sociedade ao longo da evolução histórica, destacando como essas técnicas são aplicadas irregularmente nas distintas regiões. Toda obra é marcada por discurso científico apurado dos fatores socioespaciais e político-territoriais, por sua vez, delineado por discurso crítico libertário, que claramente defende a luta de classes como fundamento de transformação das desigualdades. 5

A geografia social dá destaque sobre as interações das relações sociais e espaciais, sobre as relações entre dinâmicas sociais e espaciais, e sobre as formas geográficas, notadamente desiguais ou segregativas, por muitas vezes materiais e ideais, concretas e simbólicas resultantes destas intersecções e superposições ativas de interação. [...] É sobre a base destas novas definições de objetos e destes novos métodos que a geografia social pôde contribuir ao renovar a ciência geográfica em geral, tendo sem dúvida subsidiado a adquirir uma verdadeira consistência social, se inscrevendo definitivamente no coração das ciências do homem e da sociedade.

Infelizmente Reclus não viveu para acompanhar a recepção de sua obra síntese derradeira, que com o movimento de supervalorização da geografia lablacheana ocorreu um profundo processo de negligência e descrédito de H&T, conforme discutem Lacoste (1988), Giblin (2005), Creagh (2011) eBoino (2010). Por outro lado, H&T se diferencia significativamente da geografia crítica radical marxista pós 1970, especificamente no que diz respeito à defesa dos indivíduos e da intersubjetividade, da geopolítica pelo viés libertário, da luta pela dissolução do Estado e de facções centralizadoras e pela busca da autonomia, pré-condição indispensável para o desenvolvimento da geografia enquanto saber científico, ensejando o anarquismo e o modelo federalista como fundamentos cruciais na organização e reprodução do espaço pelos indivíduos. O que torna tão especial L’Homme et la Terre é o fato deleter sido o primeiro tratado de geografia anarquista. Paradoxalmente foi uma obra forçosamente negligenciada pela geografia dita radical, por diversos fatores, mas especialmente pela inovação metodológica, por já no início do século XXter utilizado da abordagem histórico-política para explicar o espaço geográfico.Então, esta obra foi responsável por inaugurar a geografia histórica e social, elucidando que“La géographie n’est autrechose que

l’Histoiredansl’Espace,

de

même

que

l’Histoire

est

laGéographiedansleTemps”6(RECLUS, 1905, t. I, p. II), fraturando sismicamente a dualidade espacial e temporal presente no interior da geografia, já antecipando a noção da produção social e histórica do espaço geográfico, falsamente reivindicada pelos marxistas, enaltecendo ainda a rica epistemologia espaço-temporal da ciência geográfica. Por sua vez, L&T também pode ser considerada a primeira obra de geografia crítica radical, com posicionamento político ácrata evidente, especialmente o anarquismo comunista, por defender abertamente que La “luttedes classes”, larecherche de l’équilibre et ladécisionsouveraine de l’individu, telssontlestroisordres de faits que nousrévèlel’etude de lagéographiesociale etqui, danslechaosdeschoses, se

6

“A Geografia não é outra coisa que a História no Espaço, da mesma forma que a História é a Geografia no Tempo”.

montrentassezconstantspourqu’onpuisseleurdonnerlenom de “lois”7 (RECLUS, 1905, t. I, p. IV).

Nesse trecho presente no prefácio de L&T pode-se notar como Reclus evita o comportamento cientificista de sua época que buscava dar leis a toda manifestação intelectual dita neutra, como fez posteriormente La Blache, ao sistematizar a sua geografia humana. Reclus evitava usar a classificação geografia humana acreditando que as relações sociais no espaço eram por demais complexas para serem simplesmente fracionadas e estratificadas em leis classificatórias mecanicistas, optando por introduzir a noção de geografia social, cumprindo seu percurso que partiu da geografia ambiental, jogando nas profundezas abissais a dualidade física e humana, impregnada na geografia. CONSIDERAÇÕES FINAIS É perfeitamente compreensível que as recentes análises de Reclus se atentam excessivamente a seu caráter político libertário e muito pouco ao domínio do pensamento geográfico em si e seus meandros pluridiscursivos, merecendo maior destaque a essas últimas possibilidades de investigação. É preponderante reforçar o valorizo composto explicitamente político, ideológico, libertário, radical, engajado e ao mesmo tempo, acadêmico, técnico, científico do pensamento geográficode Reclus, compondo esse volumoso conjunto pluridiscursivo na direção de uma geografia social do presente e do futuro, guardada suas devidas atualizações, revisões e adaptações. Depois de ter ultrapassado enormes esforços de privação o que fica dessa modalidade de geografia é sua capacidade ideologicamente heterodoxa de projetar a possibilidade de novos caminhos ao saber geográfico enquanto enfrentamento dos modelos hegemônicos, o desvinculando do monologismo ainda presente no discurso do paradigma contemporâneo.

7

A“luta de classes”, a busca do equilíbrio e a decisão soberana do indivíduo, tais são as três ordens de feitos que nos revela o estudo da geografia social e que, no caos das coisas, se mostram bastante constantes para poder dar-lhes o nome de “leis”.

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