Geografias do imaginário: o pensamento geográfico durante a Idade Média

September 12, 2017 | Autor: Jonathan Lopes | Categoria: Medieval History, History of geography
Share Embed


Descrição do Produto

Geografias do imaginário: o pensamento geográfico durante a Idade Média1 Jonathan Felix Ribeiro Lopes Universidade do Estado do Rio de Janeiro Contato: [email protected] Introdução A Idade Média – período que se estende do século VI até o século XV – foi por muito tempo considerada uma época de estagnação científica, cultural e econômica. A concepção moderna de ciência que surge nos séculos XVI e XVII fortaleceu essa imagem de estagnação, conduzida pelo dogma da razão, defendido e resgatado pelo Renascimento. No entanto, estudos históricos recentes têm mostrado uma visão bastante diferenciada com relação à Idade Média, uma visão que vai de encontro às noções de “noite dos mil anos” ou mesmo “Idade das Trevas”, tal qual o pensamento científico posterior taxou esse período. Ao contrário do propagado pelo pensamento científico com locus na razão, a historiografia contemporânea tem se dedicado a preencher o hiato entre a Era Clássica e a Renascença. Tal fato abre caminhos para explorações sobre o período para diversos campos de conhecimento. Assim, já se reconhecem, por exemplo, o barroco enquanto rica manifestação artística e literária e, mesmo, a arquitetura gótica das catedrais espalhadas por diversas cidades européias. A geografia também encontra manifestações expressivas que devem ser resgatadas enquanto parte da história do pensamento geográfico. É evidente que não se podem buscar estudos tais quais os da ciência geográfica moderna, pois essa só será institucionalizada séculos depois – século XIX –, nem mesmo as divisões e especializações dessa ciência enquanto parte de currículos universitários. É importante mencionar que até o século XIX as ciências encontravam-se indistintas entre si e é somente com a emergência do positivismo que se passa a dividir os diversos campos de conhecimento, específicos e bem definidos quanto aos objetos e aos métodos. A separação entre ciência e religião também não existia durante a Idade Média, o que não

1

Trabalho apresentado no X ENG

significa dizer que durante todo esse longo período houve estagnação do conhecimento, mas existem evidencias do contrário tendo sido produzida uma vasta literatura sobre o imaginário do mundo que combinava aspectos do religioso com aqueles da realidade sensível, estabelecendo-se assim um campo fértil de pesquisa. Nesse sentido, este trabalho busca resgatar esse imaginário no que diz respeito à história do pensamento geográfico, tendo como objetivo identificar aspectos e temas da representação do espaço durante a Idade Média. Para isso, a metodologia empregada será análise de fontes secundárias que tratem sobre o período e as imagens espaciais do imaginário místico do mundo. De maneira a tornar o estudo possível, este trabalho se restringe às representações geográficas do imaginário, presentes na cartografia e nos relatos de viajantes da Idade Média. Por ter sido iniciada no início deste ano, a pesquisa já conta com fontes importantes sobre o período e sua relação com o pensamento geográfico, o que permitiu organizar a análise com relação, primeiro, ao imaginário sobre o formato da Terra e a possibilidade de vida em áreas até então desconhecidas, seja por humanos ou por seres místicos, já que alguns eruditos acreditavam que a Terra teria formato circular, consistindo em um hemisfério norte e outro sul, no qual não poderia haver vida, pois os seres seriam jogados no espaço. Em segundo lugar, são abordadas as descrições de viajantes e a busca pelo Éden, tendo em vista que a importância dada ao imaginário religioso é de fundamental importância, pois tem reflexos na organização e representação do espaço mundano e, mesmo, extramundano, como no caso da organização vertical do espaço, proposta por Dante Alighiere, em a Divina Comédia que tem a superfície da Terra no topo, com Jerusalém ao centro e diversas camadas imaginárias sobre inferno, até o centro da Terra ou do inferno, já que faziam parte de um mesmo corpo. Alguns eruditos identificavam, ainda, o Éden com Jerulasém e associavam essa terra ao imaginário de redenção dos pecados, essa idéia, apropriada pela Igreja, serviu como pretexto ideológico às Cruzadas. Existiam ainda aqueles que se esforçaram para representar espacialmente o paraíso na Terra como uma área desconhecida, protegida por barreiras intransponíveis como os oceanos até então, estas serviram de motivação à diversas viagens e mesmo de inspiração à relatos e cartografias fantasiosas do desconhecido. Imaginário esse que permanece durante

as grandes navegações e pode ser assistida, por exemplo, na associação de Colombo entre o “Novo Mundo” e a descoberta do paraíso, diante da paisagem observada nas terras descobertas. Esses são alguns exemplos dos reflexos do imaginário religioso nas ações do período. Fica claro que essa visão geográfica do imaginário teve repercussões concretas nas representações e na organização dos espaços medievais, não podendo ser, portanto, ignoradas pela história do pensamento geográfico. Cosmografia: A herança clássica e os estudos sobre o formato da Terra Grande parte do conhecimento geográfico da Idade Média, constituiu da criação de enormes enciclopédias do pensamento clássico, concentrados nos espaço religiosos dos monastérios os intelectuais do ocidente eram em sua maioria monges. Os teólogos medievais, assim como os eruditos da Era Clássica, tinham grande interesse na origem, no aspecto, no movimento e no povoamento da Terra. Entretanto, esse interesse estava muito mais ligado às necessidades de disseminação da fé cristã do que à curiosidade com relação ao planeta. (KIMBLE, 2005). As explicações sobre a criação da Terra e sua organização a despeito do avanço científico com base na razão, tal qual fizeram os intelectuais da Era clássica, os ilustres do renascimento e mesmo os acadêmicos contemporâneos, estavam submetidas à religião e às interpretações das escrituras, bem como às ordens do alto escalão da Igreja Apostólica. Não havia, por isso, separação entre ciência e religião. Essa dicotomia só será criada anos depois e permanece até os dias atuais. É interessante notar que, ao contrário do que se construiu no Renascimento, essa fusão entre religião e ciência e religião não significou a estagnação do pensamento. Foram muitos os estudos com relação à Terra, chamados de cosmografia. Além disso, cumpriam uma importante função social e orientavam à seu tempo o conhecimento geográfico. Seria um equívoco de nossa parte não reconhecer o valor social das construções medievais, algo como uma injustiça histórica e anacrônica. Como chama atenção (Heers, 1994) é preciso olhar para a Idade Média, com os olhos da época. Nesse sentido, é importante notar que há por trás dos estudos da Terra estavam diferentes métodos. Se pensarmos que a

Cosmografia significa coisas distintas para diferentes homens. Para alguns era simplesmente a descrição da criação do mundo e a distribuição da humanidade sobre a sua superfície, para outros era essencialmente o estudo dos fenômenos do tempo, do clima, das plantas, dos animais, das pedras preciosas e das “maravilhas”; enquanto para o terceiro grupo estava mais próxima do que nós entendemos pelo termo de “história política” (KIMBLE, 2005, p.2)

Temos assim, um campo aberto de investigação que varia desde estudos descritivos dos espaços até àqueles referentes às relações de poder ao longo da história. Trata-se, portanto, do campo geográfico. Nesse sentido, “É deveras interessante pensar sobre essa época – como qualquer outro período de tempo convencional – mais como uma sobreposição à época anterior do que como uma descontinuidade” (KIMBLE, 2005, p. 3). Kimble nos evidencia que não se trata de um hiato entre a era clássica e a Renascença, mas um período de forte influencia religiosa e resgate continuidade do período anterior. Quando tudo foi dito e feito, o temperamento dos escritores medievais não foi muito diferente daqueles antigos. Se a cristandade transformou o povo para pensar na vida após a morte, o mesmo fez a filosofia pagã – testemunhada pelos diálogos de Platão sobre a Imortalidade. Se a Igreja antiga falhou em estabelecer as artes acima do absoluto, isso foi feito por Cícero. De fato, uma vez visto que a cristandade era herdeira de um passado e que negligenciar toda essa herança poderia trazer um desserviço à fé, os doutores da Igreja começaram a recultivar o solo clássico. (KIMBLE, 2005, p. 22)

O mito em torno do renascimento enquanto retorno à Era Clássica é desmistificado na medida em que se percebe a forte influência de pensadores clássicos e mesmo o esforço em traduzir e organizar esses textos tido por muitos monges medievais, como Cassiodorus e o monastério de Viviers, por ele fundado, com o objetivo de encorajar o ensino. Nelson Werneck Sodré (1977) lembra que em meio às expansões comerciais e ao avanço das técnicas de navegação, inicialmente das cidades italianas e, posteriormente de Portugal, estava o conhecimento geográfico. A criação da caravela, de largo velame e bordas altas, reduz a insegurança dos navegantes. Os conhecimentos acompanham esse avanço técnico: a Geografia de Ptolomeu foi traduzida em latim, em 1409, e logo se tornou conhecida em todos os meios interessados. Já em 1436, o veneziano Andréa Blancho apresentava o portulano que trazia as últimas descobertas. É a época de um astrônomo do porte do florentino Toscanelli. Em 1484, o cosmógrafo de Nüremberg Martim Beham, depois de instalar-se em Lisboa, constrói o globo que tomou o seu nome. Eram conhecimentos de natureza

geográfica, ligados à expansão mercantil dos fins do medievalismo, ampliando o chamado “mundo conhecido”. (SODRÉ, 1977, p. 20) Se a Europa Ocidental resgatava e dava continuidade aos ensinamentos da época anterior, é inegável a participação dos árabes nos conhecimentos geográficos do período medieval. Experimentavam um avanço territorial extraordinário e se preocupavam em conservar obras de clássicos gregos. Um século após o estabelecimento em Bagdá, possuíam os mais importantes trabalhos filosóficos de Aristóteles, os mais famosos comentários dos neoplatônicos e a maior parte dos escritos médicos de Galeano, assim como os trabalhos científicos dos persas e hindus. No início, entretanto, essa única herança foi de auxílio, mas foi o suficiente para torná-los capazes de determinar posições astronômicas mais precisas e tornar mais acurados os cálculos dos horóscopos (KIMBLE, 2005, p. 54). As geografias imaginárias: interpretações bíblicas do mundo concreto Se vimos que os intelectuais da Idade Média utilizaram muito do conhecimento do período anterior esse uso, no entanto, se deu de forma bastante diferenciada. Buscando interpretar as escrituras, as interpretações geográficas da Terra constituem em criações híbridas dos ensinamentos Ptolomaicos com as referências bíblicas aos espaços, que podem ser vistas no Mapa-Mundi de 1280 (fig. 1), na qual se apresenta o Mar Vermelho, conhecido até então, somente pelas escrituras. Fig. 1 – Mapa Mundi (1280)

As interpretações geográficas da Terra não se limitam apenas a apresentar espaços mundanos, séculos antes (século X) Isidoro (fig. 2) descreve não apenas os continentes conhecidos até o momento e algumas características físicas, mas também o próprio paraíso à leste da Terra. O Mapa do Salmo (fig. 3, p. 226, séc. XIII), outra representação cartográfica medieval apresenta além do Terra uma bela iconografia com anjos e mesmo Jesus Cristo em meio à corpos celestes e dragões. É interessante perceber Jerusalém no centro da Terra, essa simbologia, evidentemente religiosa já que se tratava da Terra Santa, sagrada às três religiões monoteístas, tinha forte caráter ideológico se lembrarmos das Cruzadas. Assim, “O mesmo respeito excessivo para o tipo de expressão profética no Velho e no Novo Testamentos também explica a ocupação de Jerusalém (frequentemente dominada no século XV) numa posição orbi-cêntrica nos mapa-mundi” (KIMBLE, 2005, p. 227). Fig. 2

Fig. 3

Jerusalém era, portanto, um espaço de disputas, como pode ser visto na figura 4 (Marco Pólo).

Assim, como o Mapa anterior, o mapa de Jerusalém apresenta um

iconografia que o complementa, nela cavaleiros cruzados expulsam cavaleiros muçulmanos.

Fig. 4

A existência de um céu e de um portal para o paraíso que ficava em Jerusalém, deu margem também às descrições espaciais do inferno, é o caso de Dante Aliguiere. Na Divina Comédia este autor medieval elabora um tipo ideal de mundo que concordando com Carvalho (2006) apresenta uma rica cosmovisão. Assim a autora descreve os aspectos geográficos do obra: Como um mapa árabe, o Sul está no topo, mas Jerusalém está na extremidade embaixo, como se encerrasse o mundo. A divisão entre terras e águas está bem estabelecida: o Hemisfério Norte concentra as terras onde estão os continentes: Europeu, Asiático e Africano. Das águas do Hemisfério Sul emerge somente a ilha do Purgatório encimada pelo Paraíso Terrestre. O Inferno está na parte mais profunda da Terra (núcleo) e ligado à superfície na cidade de Jerusalém por um eixo vertical. Isso obedece a concepção aristotélico-ptolomaica de uma Terra esférica, mas a presença da ilha-montanha transforma-a quase no formato de uma pêra. A Terra está imóvel no centro do Universo, envolvida pelas órbitas da Lua, dos planetas, das estrelas fixas, do primum móbile e o Empíreo (Céu). Cada círculo infernal representa o local de determinados “pecados” e quanto mais interior, maior, maior a sua gravidade. (CARVALHO, 2006).

Considerações Finais Mostrar que a Idade Média não foi um período de estagnação, seja científica ou cultural tem sido o objeto de trabalho de muitos pesquisadores, na Geografia merecem

destaque Kimble como referência internacional e no Brasil Márcia Siqueira de Carvalho entre outros que buscam uma releitura da geografia enquanto forma de conhecimento, indo além da visão cientificista perpetuada pelo positivismo do século XIX. Reconhecer que o pensamento geográfico estava presente durante a Idade Média é uma obrigação para cientistas que se propõem a estudar a história do pensamento geográfico. Não se trata de uma tarefa simples, no entanto, possível. Tendo como objetivo apresentar o pensamento geográfico desse período histórico, o artigo tem caráter introdutório. Para isso, foram apresentados alguns pensadores medievais e de maneira a chamar atenção para existência desse pensamento, esses foram ilustrados tornando mais acessível o contato com a temática. Percebemos que a geografia medieval possui caráter descritivo presente nos textos de viajantes e comerciantes, assim como árabes. No entanto, nos círculos intelectuais, isto é, nos monastérios havia uma forte preocupação em compilar o conhecimento anterior, sem avançar em termos teóricos, mas num esforço enorme de interpretar, a partir daquele conhecimento as escrituras bíblicas, surge um conhecimento geográfico místico que mistura cartografia, geografia e religião. Os mapas permitem ainda visualizar o mundo medieval ou o mundo conhecido até então, permite um contato direto com o conhecimento medieval. É evidente que muito à de se estudar sobre a temática, mas um primeiro contato é fundamental. Aqui se introduz a uma temática de rica iconografia e optou-se por utilizar fontes secundárias evidenciando que já existem estudos, ainda que poucos, sobre o período, mas felizmente de muita qualidade. Referências Bibliográficas CARVALHO, M. S. A geografia desconhecida. Londrina: Eduel, 2006 KIMBLE, G. H. T. A geografia na Idade Média. Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005 HEERS, j. A Idade Média, uma impostura. Lisboa: Edições Asa, 1994 TWIST, C. Marco Pólo: Geógrafo de terras distantes. São Paulo: Ciranda Cultural Editora, 2010

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.