Georges Friedmann: uma crítica ao pai da sociologia do trabalho

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GEORGES FRIEDMANN: UMA CRÍTICA AO PAI DA SOCIOLOGIA DO TRABALHO.1 Ricardo Colturato Festi, doutorando em Sociologia e professor do COTIL-UNICAMP. Contato: [email protected].

Esta comunicação analisará e problematizará a obra de Georges Friedmann (1902-1977), um dos fundadores da sociologia do trabalho na França. Ao longo de sua vida, o autor se dedicou a estudar a indústria e o trabalho organizados pelo sistema taylorista-fordista. No período do pós-guerra, Friedmann dirigiu importantes pesquisas empíricas no meio industrial com o objetivo de compreender os impactos das transformações técnicoorganizacionais sobre os trabalhadores. Seu livro Problèmes humains du machinisme industriel (1946) foi uma referência teórica obrigatória a muitas gerações que analisaram o mundo do trabalho. Apesar de crítico do trabalho parcelar, monótono e desumanizador do taylorismo, o autor acreditava que o desenvolvimento das forças produtivas, que apresentaria o seu ponto alto no automatismo industrial, preparava as condições objetivas para a emancipação do trabalho. Nosso estudo entende que a visão contemplativa de Friedmann ao progresso técnico e ao ideário de modernização da sociedade se explica pelo seu entendimento das categorias trabalho produtivo e alienação (trabalho estranhado).

Palavras-chave: Georges Friedmann; sociologia do trabalho; trabalho produtivo; alienação.

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Esta comunicação expõe conclusões parciais da pesquisa que realizamos durante o nosso estágio na França, como estudante de doutorado “sanduíche” na École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris, financiada pela CAPES, entre 2015 e 2016. Elas serão parte de nossa tese de doutorado em sociologia, sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Antunes, pela Universidade Estadual de Campinas.

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I Friedmann foi um dos pioneiros, em seu país, a estudar e a pesquisar, de forma sistemática e acadêmica, desde os anos 1930 até a sua morte em 1973, a indústria e o trabalho organizados sob a lógica taylorista-fordista, modelo de produção predominante ao longo do século XX. Como resultado, publicou livros que se tornaram referências as gerações posteriores dentro e fora da França, tais como La crise du progrès (1936), Problèmes humains du machinisme industriel (1946), Où va le travail humain? (1950) e Le travail en miettes (1956), assim como a organização de um famoso tratado de sociologia do trabalho com Pierre Naville2. A influência de sua obra não é apenas consequência da sua capacidade enquanto pesquisador e escritor, mas é também fruto de um longo intercambio pessoal e intelectual estabelecido com autores de vários países, principalmente aos da chamada “sociologia industrial” norteamericana, e, sobretudo, devido as importantes pesquisas empíricas que dirigiu sobre o mundo industrial junto a jovens e futuros proeminentes acadêmicos no Centre d’Etudes Sociologique (CES), vinculado ao Centre Nationale de la Recherche Scientifique (CNRS)3. O seu livro mais importante, Problèmes humains du machinisme industriel, uma longa reflexão crítica da organização racional do trabalho e da “civilização técnica”, publicado logo após o término da Segunda Guerra Mundial, coincidiu com o início de um processo de hegemonização do sistema taylorista-fordista na Europa ocidental. Neste período, o mundo industrial, que aparecia como o coração e as artérias da economia capitalista, era o centro das preocupações tanto dos representantes e organizações do capital quanto do trabalho. Por conseguinte, neste contexto, suas pesquisas empíricas, realizadas ao longo da segunda metade dos anos 1940 e dos anos 1950, tiveram como uma de suas preocupações centrais as consequências das transformações técnicas e organizacionais do mundo industrial sobre os trabalhadores.

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Optamos por manter os títulos das obras de Friedmann em francês, bem como os nomes das instituições. Encontram-se traduzidas em português, as seguintes obras: O trabalho em migalhas: especialização e lazeres. São Paulo: Perspectiva, 1964; O futuro do trabalho humano. Lisboa: Moraes, 1968; Sete estudos sobre o homem e a técnica. São Paulo: Difel, 1968. Ainda em português, em coautoria com Pierre Naville, Tratado de sociologia do trabalho. 2 v. São Paulo: Cultriz: Edusp, 1973. Na língua espanhol, pode-se encontrar Problemas Humanos del Maquinismo Industrial. Buenos Aires: Sudamericana, 1956. 3 O CES foi criado logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e teve como primeiro presidente Georges Gurvitch, recém ingresso de seu exílio em Nova Iorque, onde participou da experiência da École Libre des Hautes Études ao lado de Claude Levi-Strauss e Roman Jakobson (LOYER, 2007; TANGUY, 2011). Trabalharam no CES, além de Friedmann, Pierre Naville, Alain Touraine, Edgar Morin, Jean-Daniel Reynaud e Charles Bethelheim. Muitos destes acabaram se tornando, a partir dos anos 1960, intelectuais de relevância na vida acadêmica francesa.

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Sua obra contém uma tensão entre uma visão trágica e contemplativa da evolução técnica, transitando ora no pessimismo ora no otimismo sobre o futuro da humanidade. Ainda que Friedmann tenha sido um crítico da industrialização sob a dinâmica do taylorismo-fordismo e apontado, como uma de suas consequências, a perda da autonomia do trabalhador frente ao processo de produção, ele manteve, no conjunto de sua obra, a crença de que o desenvolvimento das forças produtivas prepara as condições objetivas para que a humanidade, num futuro não longínquo, se emancipe e supere o capital. Esta concepção, influenciada pelo ideal de modernização da sociedade, colaborou para que seu autor não percebesse que determinadas transformações técnicas e organizacionais, como foi o caso da automação, apesar de aparentarem em meados do século passado uma potencialidade de melhora na qualidade de vida e do trabalho, acabariam se tornando instrumentos de uma maior exploração e intensificação da força de trabalho.

II Foi a partir da crítica a sociologia industrial norte-americana4 que surgiu a sociologia do trabalho francesa, principalmente pelas elaborações de Friedmann (1946, 1950, 1956), Touraine (1952, 1955; 1961) e Naville (1961, 1963) quando ainda eram membros do Centre d’Etudes Sociologique. As críticas ocorreram após um longo período de aproximação entre a intelectualidade francesa e a norte-americana durante a II Guerra Mundial e na reconstrução da França. Todavia, este processo não se tratou de um simples distanciamento no âmbito puramente teórico. As pesquisas empíricas dirigidas por Georges Friedmann, ao longo da segunda metade dos anos 1940, confrontaram o modelo teórico da sociologia industrial norte-americana com a realidade objetiva e subjetiva do mundo industrial francês. Era difícil aos franceses explicar as relações industriais de seu país pelo estruturo-funcionalismo da Human Relations, inspirado no sistema social de Vilfredo Pareto. Por isso, fundaram um novo domínio de investigação das ciências humanas e sociais, melhor preparado analítica e conceitualmente para compreender o dinamismo da sociedade contemporânea, a sociologia do trabalho.

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Tratava-se do grupo de intelectuais que gravitaram em torno de Elton Mayo e da experiência realizada nas oficinas de Hawthorne, fábrica da Western Electric Company, ao longo dos anos 1930. Suas teses fundaram um movimento intelectual conhecido como Human Relation. Eles compreendiam a fábrica como um sistema social fechado e defendiam que a rentabilidade de uma empresa estava mais relacionada aos fatores interpessoais que as confecções de bons planos elaborados pelos managers. Embora críticos ao taylorismo-fordismo, não chegaram a romper com a sua lógica, já que propunham uma melhor formação dos managers com o objetivo de criar no interior das empresas uma melhor comunicação entre a direção e os operários.

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Propunham um estudo interdisciplinar sobre o mundo do trabalho, envolvendo a psicologia social, a economia, a demografia, a etnologia e a história do movimento operário. Neste sentido, entendiam que a sociologia do trabalho não teria uma fronteira rigorosamente delimitada, já que o trabalho seria uma das questões centrais para compreender o conjunto da sociedade. Diferentemente da sociologia industrial, a sociologia do trabalho francesa buscava explicações que englobassem a totalidade e a historicidade. Portanto, ela deveria ser “considerada, em sua dimensão mais vasta, como o estudo, em seus diversos aspectos, de todas as coletividades humanas que se constituem à ocasião do trabalho” (FRIEDMANN; NAVILLE, 1961, p. 89)5. Isto permitiu uma heterogeneidade de interpretações e de pesquisas sobre o mundo do trabalho ao longo dos anos 1950 e 1960, em um amplo leque de temas, tais como: as atitudes operárias e a consciência operária, a mobilidade social e profissional dos trabalhadores, os impactos sociais das transformações tecnológicas, as formas de organização das empresas, o sindicalismo, dentre muitos outros. Os marcos finais da institucionalização deste novo domínio das ciências sociais foram as aparições da famosa revista Sociologie du travail em 1959 e dos dois volumes do Tratado de Sociologia do Trabalho, organizados por Friedmann e Naville, em 1961 e 1962.

III Em Problèmes humains du machinisme industriel (1946), Friedmann entende que o desenvolvimento do maquinismo6 levou, por sua natureza, a uma crescente divisão do trabalho, criando funções cada vez mais especializadas. Neste processo, o trabalho se tornou parcelar e muitas das operações foram confinadas a uma máquina, que substituiu, num primeiro estágio, as ferramentas antes tidas em mãos dos operários. O taylorismo e a esteira fordista exacerbaram este processo, acelerando a divisão do trabalho, parcelando e fragmentando as tarefas, colocando em extremos opostos o executar e o pensar e criando um trabalho especializado e não qualificado. A parte do homem na produção propriamente dita diminui. Escolha, preparação, decisão, tem tendência a se situar fora da oficina. A inteligência parece pouco a 5

Todas as traduções das citações de Friedmann, Naville e Touraine foram realizadas por nós, direto do francês. Segundo o dicionário Michaelis, o maquinismo representa o conjunto das peças de uma máquina. Entretanto, ao longo da primeira metade do século XX, este termo se popularizou, principalmente entre os franceses (maquinisme), como sinônimo de totalidade de uma sociedade industrializada. A revolução técnica do século XVIII na Inglaterra marcaria o triunfo do maquinismo sobre as demais formas de organização do trabalho e da vida social. A força de seu movimento estaria nas descobertas, inovações, aperfeiçoamento e experimentações que o mundo industrial passou a conhecer a partir, principalmente, da segunda metade do século XIX. Na visão de Friedmann, o automatismo seria a “fase superior” do maquinismo. 6

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pouco se retirar das operações de produção, se concentrar nos desenhos, na concepção, na execução das máquinas e nos escritórios de estudos tayloristas. (FRIEDMANN, 1949, p. 168)

O antigo profissional polivalente foi sendo paulatinamente substituído pelo especializado. A agilidade, a rapidez, a precisão, a destreza sobre pequenos movimentos, passaram a ser algumas das novas habilidades exigidas ao operário parcelar do taylorismofordismo. Como resultado, os conhecimentos que eram adquiridos e acumulados pelos operários industriais foram desprezados. Na compreensão de Friedmann (1946), esta dialética interna da divisão do trabalho encarregou-se de levar o maquinismo em direção a automação. Neste sentido, não seria possível o automatismo sem o parcelamento das funções no trabalho produzido pela “segunda revolução industrial”. Uma vez ocorrido, estavam dadas as condições materiais - desaparecimento do trabalho qualificado, dissociação radical entre o trabalho de execução e as funções de organização, aumento da desqualificação - que permitiram esta inovação nos meios de produção. Apesar disso, grande indústria “tende a reconstruir, sob a máquina automatizada polivalente, uma nova forma de unidade do trabalho, sobre um novo plano” (FRIEDMANN, 1946, p. 171), pois ela concentra uma parte dos homens em trabalhos de ajustes e regulação das maquinas, criando um “novo ofício”, que Friedmann chamou de “novo artesão”. Ou seja, o operário passaria a supervisionar e a controlar o novo maquinário da futura fase do automatismo. Assim, o automatismo, colocado à fundo e exprimindo todas as suas virtudes, pode levar ao caminho da humanização da grande indústria. Não somente ele suscita novas funções qualificadas, integrando uma nova concepção de trabalho, pela criação e o ajuste desta ferramenta delicada e precisa, mas o operário encarregado da simples tarefa de supervisão de um grupo de máquinas poderia se beneficiar de uma suficiente cultura geral e técnica, reencontrar uma qualidade intelectual nitidamente superior a esta que é hoje imposta a mão de obra especializada da fase (semi-automatismo, trabalho na linha de montagem) que precede e prepara o automatismo (FRIEDMANN, 1946, p. 182)

IV O período de euforia da intelectualidade crítica com a automatização industrial e a perspectiva de uma superação do trabalho parcelar, criando-se novas funções profissionais altamente qualificadas e polivalentes e alterando o quadro negativo do trabalho do modelo taylorista-fordista, terminou assim que as suas consequências ficaram mais evidentes com as pesquisas empíricas empreendidas a partir dos anos 1950. Friedmann, que havia alimentado,

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com o desenvolvimento da técnica, a esperança de um reencontro do homem com a sua autonomia e a sua satisfação no trabalho, revisou as suas posições nos prefácios da primeira (1956) e da segunda (1963) edições de Le travail en miettes. Ele, que chegou a anunciar que o automatismo representaria a “terceira revolução industrial”, afirmou que, na verdade, se tratava de uma nova etapa da industrialização. Passou, então, a ver, no processo de implementação da automação e na reorganização da divisão internacional do trabalho, com a expansão dos parques industriais aos países periféricos, como foi o caso da América Latina, os seus aspectos negativos7. Ao invés do “novo artesão”, o que se constatava era o aumento relativo das “antigas” formas de trabalho. Assim, “a automação não elevou, como esperavam muitos teóricos, a qualificação dos operadores médios” (FRIEDMANN, 2012, p. 26). Entre a publicação de Où va le travail humain? (1950) e o segundo prefácio de Le travail en miettes (1963), o automatismo e a automação tornaram-se um dos principais temas da sociologia, da economia e da psicologia que se dedicaram ao campo do trabalho. Foram publicados milhares de artigos e livros e realizadas importantes pesquisas empíricas realizadas em diversos ramos da economia com o objetivo de apontar as mudanças do mundo industrial e as suas consequências sociais. No caso francês, a pesquisa dirigida por Pierre Naville, desde o Centre d’études sociologique, foi a mais expressiva e alimentou os dados para o seu livro Vers l’automatisme social? de 1963. Quando saiu a primeira edição de Le travail en miettes, “o trabalho, nas fábricas e nos escritórios, nas minas e no campo, estava longe de ser automatizado” (FRIEDMANN, 2012, p. 22). Em 1952, a automação não chegava a empregar 8% da população economicamente ativa da indústria norte-americana. A investigação de Naville, realizada entre novembro de 1956 a dezembro de 1958, mostrou que 80% dos que trabalhavam no mais moderno maquinário automatizado era composto de variedades de “operários especializados”, ou seja, nãoqualificados (NAVILLE, 1961). Friedmann, ao apontar os motivos aos quais a automação não pôde, a um curto prazo, revolucionar a sociedade industrial, destacou que “a introdução generalizada da automação dependeria de complexos fatores econômicos e sociais que os técnicos puristas negligenciam” e que a sua integral adoção equivaleria a uma transformação radical do regime capitalista (FRIEDMANN, 2012, p. 23)8.

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Friedmann (1956) destaca a expansão da industrialização para a periferia com a utilização de um maquinário fordista e com a criação de trabalhos não-qualificados (ou especializados). 8 Mesmo que ele não tenha desenvolvido esta tese em seu livro, o autor nos permite compreender a centralidade da luta política na implementação de um determinado revolucionamento da técnica da produção industrial no capitalismo. Esta é uma leitura possível para explicar, por exemplo, tanto o surgimento da moderna indústria

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Quando Friedmann escreveu o prefácio de 1963, ele constatou que, desde a publicação de sua primeira edição, era possível evidenciar alguns efeitos da automação. Nos EUA, por exemplo, onde estava o seu mais avançado estágio, surgiu o “desemprego crônico”. A separação extrema entre o pensar e a execução do trabalho era mantida, seguindo o imperativo da busca incessante de uma maior produtividade do trabalho, em detrimento do métier do trabalhador. O trabalho ganhara uma maior intensidade, já que, com a automação, foi possível implementar uma fábrica fluída e funcionando 24 horas, o que aumentou a dependência e o controle sobre os trabalhadores (FRIEDMANN, 2012). Entretanto, apesar dessas evidências, o autor conclui, em 1963 que os efeitos da automação são tão complexos que é impossível hoje discernir seus efeitos futuros sobre os seres humanos. Os profetas otimistas, frequentes há dez anos, são hoje bem mais moderados e mais raros. Entretanto, é bem certo que a etapa descrita por este livro será um dia inteiramente superada: ele não constituirá, então, mais que um testemunho histórico, entre muitos outros (FRIEDMANN, 2012, p. 27, grifos nossos)

Esta etapa analisada em Le travail en miettes era justamente a do trabalho fragmentado. Portanto, mesmo diante de algumas evidências quanto ao processo de intensificação da precarização do trabalho produzida pela implementação da automação industrial, Friedmann mantinha uma posição de esperança na “dialética do desenvolvimento das forças produtivas”. A crítica aos “profetas otimistas” era também uma autocrítica, mas ela não o fez reavaliar as suas projeções sobre o futuro do trabalho e da humanidade, que, segundo sua análise, encontraria a sua emancipação devido ao desenvolvimento das forças produtivas proporcionado pela evolução técnica. Isso o levou, em seus últimos escritos sobre o tema, a assumir uma posição pragmática e um programa reformista, em busca de amenizar as mazelas e, sobretudo, os abusos do sistema de produção sobre os trabalhadores9. Portanto, a revolução era adiada para um futuro longínquo.

racionalizada depois da derrota da Comuna de Paris em 1871, quanto a constituição da produção flexível depois dos levantes operários em escala mundial iniciados com o maio-junho francês de 1968 9 As suas propostas englobavam um controle obrigatório do trabalho pela fisiopsicologia nas empresas e nas industrias, uma maior participação dos trabalhadores nas medidas de racionalização técnica e nas promoções e um maior esclarecimento aos trabalhadores sobre as tarefas parcelares, além de garantir maior participação destes nas formas de laser ativo fora do trabalho.

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V A visão contemplativa de Friedmann com a evolução técnica e a modernização da sociedade dos Trinta anos gloriosos está associada a sua interpretação da teoria de Karl Marx e do marxismo. Não concordamos com aqueles que o classificam como marxista, por mais que a sua obra esteja repleta de referências a Marx e o próprio Friedmann chegue a se reivindicar enquanto tal. Seu diálogo teórico foi maior com a sociologia estruturo-funcionalista dos EUA, ao qual ele fez duras críticas, do que com a produção marxista de seu tempo. Sua tese de que o marxismo é um “humanismo renovado” evidencia mais o aspecto moralista de sua crítica ao taylorismo-fordismo do que uma crítica radical ao capital10. Seu método empiricista e positivo o aproximou da tradição durkheimniana, de forte influência na academia francesa do pós-guerra (MARCEL, 2001) e que era coerente com o marxismo dominante de sua época, propagado pela burocracia soviética e os partidos comunistas stalinizados. Isso nos explica, também, a forte presença de um determinismo tecnológico em sua teoria. Categorias analíticas chaves de explicação da sociedade empreendidas por Marx e seus seguidores, como luta de classes e maisvalor (absoluto e relativo), por exemplo, estão ausentes em sua obra. E, sobretudo, sua obra é antidialética, o que nos leva a caracterizá-la de um marxismo sem Marx. Em artigo publicado no Tratado de Sociologia do Trabalho (1961), organizado em conjunto com Pierre Naville, Friedmann evoca uma passagem de O Capital em que Marx define o trabalho humano enquanto uma atividade que modifica a natureza e o próprio homem. Para o autor francês, a definição de trabalho humano de Marx seria parcial e restrita a imagem de um homo faber. Segundo Friedmann, as atividades do homem não são necessariamente rurais ou industriais. Elas não se constituem exclusivamente em atividades de transformação. As atividades classicamente ditas terciárias, segundo a terminologia de Collin Clark, repensada por Jean Fourasié, compreendem trabalhos que fogem, em todo caso a primeira vista, à definição que propôs. No século XX, o homem no trabalho não é o mesmo e ele constitui cada vez menos o sentido clássico do termo homo faber

(FRIEDMANN; NAVILLE, 1961, pp. 11–12)

10 Na sua interpretação, o marxismo seria o principal herdeiro (e continuador) de um “espírito helenista”, ou seja, de um projeto de libertação do homem que lhe garantisse a conquista da igualdade e da liberdade individual. “A ideia de progresso está no coração do marxismo, renovado pela dialética”, afirma Friedmann (1936, p. 219). Mas, diferente das ideologias burguesas, ao colocar acento à liberdade humana, o marxismo veria o progresso por outro ângulo. Portanto, ele se apresentaria, nas palavras do autor, como um novo humanismo. Este humanismo estaria em sua crença de que o homem poderia conduzir a humanidade através das suas vontades e pelos seus esforços. Mesmo em situações concretas difíceis, o esforço humano teria provado que pode superar barreiras, como teriam feito os soviéticos depois que os bolcheviques tomaram o poder. Neste sentido, “o marxismo postula a eficiência do esforço humano em condições que ele não escolheu” (FRIEDMANN, 1936, p. 220).

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Ao compreender o conceito trabalho produtivo de Marx enquanto sinônimo de trabalho manual ou de trabalho industrial, a teoria de Friedmann produz conclusões equivocadas e problemáticas. Uma das preocupações centrais das investigações que dirigiu nos anos 1940 e 1950 era sobre os efeitos da evolução técnica sobre as categorias profissionais e a consciência dos operários. Numa época em que o trabalho se tornou extremamente fragmentado, a luta contra a alienação era compreendida por Friedmann como um processo de reapropriação das habilidades e de controle da produção pelos trabalhadores. Contudo este controle não seria o resultado de um processo de revolucionamento das relações de produção e da criação de uma nova sociedade, mas de uma maior participação dos operários nos processos de organização, criação e decisão das empresas. Como a evolução técnica proporcionaria o surgimento de um “novo artesão” e a diminuição da jornada média de trabalho, bastaria, portanto, criar medidas que permitissem a este “novo operário” ter um trabalho dotado de sentidos11. Marx buscou fazer uma definição ampla de trabalho produtivo, atento ao dinamismo e a fluidez da sociedade capitalista. A sua melhor definição seria a de todo trabalho que produz diretamente mais-valor, ou seja, aquele que valoriza diretamente o capital. Nas palavras de Marx, “trata-se, pois, de trabalho que serve diretamente ao capital como instrumento de sua autovalorização, como meio para produção de mais-valor” (MARX, 1978, p. 70)12. O trabalho produtivo é o resultado de um processo socialmente determinado, ou seja, pressupõe uma sociedade em que esteja consolidada a subsunção real do trabalhador ao capital e, portanto, um determinado nível de divisão social do trabalho, com a propriedade privada tendo um caráter determinante, e dividida em classes sociais (sendo as fundamentais a burguesia e o proletariado). A eliminação do trabalho produtivo seria, portanto, o resultado da superação e da supressão das condições materiais que determinam a existência da sociedade capitalista. Numa passagem do manuscrito intitulado Capítulo VI inédito de O Capital, podemos evidenciar uma tensão em Marx por definir o trabalhador produtivo, sem se restringir a uma única categoria ou operação no interior da fábrica: Não é o operário individual, mas uma crescente capacidade de trabalho socialmente combinada que se converte no agente (Funktionär) real do processo 11

O laser, questão chave em Le travail en miettes e que não teremos como desenvolver nesta comunicação, era vista por Friedmann como um momento fundamental do não-trabalho para a aprendizagem e o reencontro do homem com o seu ser genérico. O laser ativo, como ele preferia denominar sua proposta, seria um contraponto ao trabalho parcelar e desumanizador do taylorismo-fordismo. 12 Nas citações de Marx, corrigimos o conceito mais-valia por mais-valor, pela precisão que esta última tradução possui com o alemão.

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de trabalho total, e como as diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo imediato da formação de mercadorias, ou melhor, de produtos – este trabalha mais com as mãos, aquele trabalha mais com a cabeça, um como diretor (manager), engenheiro (engineer), técnico etc., outro, como capataz (overloocker), um outro como operário manual direto, ou inclusive como simples ajudante -, temos que mais e mais funções da capacidade de trabalho se incluem no conceito imediato de trabalho produtivo, e seus agentes no conceito de trabalhadores produtivos, diretamente explorados pelo capital e subordinados em geral a seu processo de valorização e de produção (MARX, 1978, p. 71)13.

A questão, evidentemente, não é simples, e Marx já percebia isso. Quando olhamos para as diversas formas de ser da classe trabalhadora que se desenvolveram do tempo de Marx aos nossos dias, fica claro a necessidade de estar sempre redefinindo e reatualizando o conceito de classe social e, principalmente, de classe trabalhadora, para acompanhar as transformações ocorridas no mundo capitalista. No século XIX, o trabalhador produtivo era praticamente sinônimo de trabalhador manual da indústria. Era aí que residia o núcleo fundamental de valorização do capital. Entretanto, o desenvolvimento e as modificações do capitalismo, como a sua constituição em monopolista e financeiro, e a evolução técnica e organizacional operada ao longo de décadas, tornaram a definição da classe trabalhadora e a explicação do processo de produção e de reprodução do valor ainda mais complexos. O desafio é justamente submeter a realidade ao crivo analítico da teoria e, através dela, reatualizar a própria teoria. O desenvolvimento das forças produtivas acarretou, na concepção de Marx, ao desenvolvimento da capacidade humana. No entanto, o desenvolvimento da capacidade humana não produz necessariamente o desenvolvimento da personalidade humana. Ao contrário, ela pode desfigura-lo (LUKÁCS, 2013). Nos Manuscritos de 1844, Marx afirma que “o trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral” (2004, p. 80). Portanto, na sociedade do capital, em que o objetivo central é a valorização do valor, o trabalho torna-se uma força hostil ao homem e não um meio desenvolvimento da potencialidade humana. O trabalho torna-se estranhado, pois, a organização societal cria barreiras sociais que se opõem ao desenvolvimento da personalidade humana14.

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Marx retratava um mundo fabril pré-taylorista-fordista, o que nos obriga a fazer um destaque fundamental nesta citação para o conceito de classe trabalhadora. Como destaca Antunes, “a classe trabalhadora hoje exclui, naturalmente, os gestores do capital, seus altos funcionários, que detêm papel de controle no processo de trabalho, de valorização e reprodução do capital no interior das empresas e que recebem rendimentos elevados ou ainda aqueles que, de posse de um capital acumulado, vivem da especulação dos juros. Exclui também, em nosso entendimento, os pequenos empresários, a pequena burguesia urbana e rural proprietária” (2009, p. 104). 14 Seguindo a leitura de Jesus Ranieri, separamos o significado de alienação e de estranhamento. Alienação (entäusserung), segundo este autor, significa “remeter para fora, passar de um estado a outro qualitativamente

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Se compreendemos o trabalho produtivo enquanto sinônimo de trabalho manual e trabalho industrial, como fez Friedmann, corremos um sério risco de colocar o problema da alienação (ou do trabalho estranhado) no campo do reformismo. Neste campo, bastaria superar o fardo deste tipo de trabalho monótono, fatigante e parcelar através do desenvolvimento da técnica e de medidas de controle sociais para restabelecer ao homem a sua potencialidade humana. Isso levaria a uma visão oposta ao entendimento de Marx sobre a evolução do maquinário e da técnica, que estão em relação direta ao aumento da extração de mais-valor. Portanto, a superação do trabalho alienado está relacionada a superação da sociedade do capital, produtora de trabalho estranhado. A visão de que o núcleo central da sociedade capitalista está na indústria e no trabalhador de chão de fábrica levou a que muitos autores considerassem que a classe trabalhadora, e até mesmo o trabalho, perderia a sua centralidade na sociedade. A possibilidade de uma produção em larga escala automatizada, informatizada, robotizada, em substituição ao “trabalho manual”, parecia reforçar essas teses.

VI Nosso estudo pretende apontar que aquela geração que fundou a sociologia do trabalho na França tinha uma visão contemplativa da evolução da técnica e da modernização. Esta perspectiva coincidia com as demandas sociais impostas pelo próprio capital na forma ideológica de modernização ao longo dos Trinta anos gloriosos. Ela acabou por limitar o campo da crítica destes intelectuais e as impediram de ver as principais consequências das mudanças técnicas e de gestão sobre o trabalhador, numa época em que imperava o que Alain Bihr (1991) denominou compromisso fordista. Apesar das várias limitações teóricas e analíticas que poderíamos apontar à obra de Friedmann, ela continua sendo uma interessante fonte de reflexões críticas da organização do

distinto”. Estranhamento (entfremdung), ao contrário, “é objeção socioeconômica à realização humana, na medida em que veio, historicamente, determinar o conteúdo do conjunto das exteriorizações – ou seja, o próprio conjunto de nossa sociabilidade – através da apropriação do trabalho, assim como da determinação dessa apropriação pelo advento da propriedade privada. Ao que tudo indica, a unidade entäusserung-entfremdung diz respeito à determinação do poder estranhamento sobre o conjunto das alienações (ou exteriorizações) humanas, o que, em Marx, é possível perceber pela relação de concentricidade entre as duas categorias: invariavelmente as exteriorizações (entäusserung) aparecem no interior do estranhamento, ainda que sejam inelimináveis da existência social fundada no trabalho humano” (Prefácio de Ranieri in Marx, 2004, p. 16). Portanto, o uso da expressão trabalho estranhado e estranhamento e não a de alienação, nos permite separar o aspecto ineliminável de toda objetivação (alienação), das barreiras sociais que se opõem ao desenvolvimento da personalidade humana (estranhamento)

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trabalho sob o imperativo do capital. Mesmo que que muitas de suas análises retratem uma realidade industrial que foi superada pela sociedade pós-fordista, principalmente naquilo que concerne o seu aparato técnico, seus estudos nos elucida as continuidades de estratégias do taylorismo-fordismo nas práticas atuais dos managers em seus objetivos de mobilizar a subjetividade e a cooperação dos trabalhadores a favor das metas empresariais, como tem apontado Danièle (2007, 2015) em seus últimos livros. No caso específico de nossos estudos, Friedmann nos permite reconstruir as bases teóricas e metodológicas que influenciaram a geração de sociólogos dos anos 1950 e 1960 da Universidade de São Paulo, especificamente aqueles que trabalharam no Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT).

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