Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi - Sociologia e mudança social no Brasil e na Argentina

September 12, 2017 | Autor: Jorge Leite Jr | Categoria: Monsters and the Monstrous
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Descrição do Produto

                                 

SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL  NO BRASIL E NA ARGENTINA                                 



Maria da Gloria Bonelli   Martha Diaz Villegas de Landa  (Orgs.)                               

SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL  NO BRASIL E NA ARGENTINA                           



Copyright © dos autores    Todos  os  direitos  garantidos.  Qualquer  parte  desta  obra  pode  ser  reproduzida,  transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores.        Maria da Gloria Bonelli & Martha Diaz Villegas de Landa [Orgs.)    Sociologia  e  mudança  social  no  Brasil  e  na  Argentina.  São  Carlos:  Compacta Gráfica e Editora, 2013. 340p.    ISBN 978‐85‐88533‐74‐5    1. Sociologia. 2. Mudança Social. 3. Mudança Social no Brasil. 4. Mudança  Social na Argentina. I. Título.   CDD – 300 e 320    Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira  Editor: José Marino     Tradução do espanhol de Beatriz Medeiros de Melo e Deise Mugnaro. 

                            Compacta Gráfica e Editora   São Carlos – SP  2013



SUMÁRIO      Apresentação    Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa    Parte I    Raça, identidade e contingência: esboço para uma reflexão das  experiências latino‐americanas  Maximiliano Gaviglio  Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas  preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira  Valter Roberto Silvério  O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil  André Ricardo de Souza, María Candelaria Sgró Ruata e Maximiliano  Campana  Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi  María Inés Landa, Jorge Leite Jr. e Andrea Torrano    Parte II    Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes  demandas de reconhecimento no Brasil e na Argentina   Richard Miskolci e Maximiliano Campana  A construção de identidades homossexuais na advocacia  paulista: uma abordagem sociológica de profissionalismo e  diferença  Dafne Araújo e Maria da Gloria Bonelli  As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e  Brasil  Camila de Pieri Benedito e Maria Eugenia Gastiazoro  Participação popular e legitimidade judicial: sobre o julgamento  por júri  María Inés Bergoglio   



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Parte III    Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais.   Um estudo do Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e  na Argentina  María Alejandra Ciuffolini e Lúcia Zanin Shimbo  A tradução contemporânea das demandas populares   (ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços  públicos: o caso do Córdoba, Argentina  Gerardo Avalle   Territórios e populações marginais em tempo de  desenvolvimento: modos de gestão do conflito social no Brasil  contemporâneo  Gabriel de Santis Feltran  Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente  Rodrigo Constante Martins                 



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  Apresentação        Este  livro  resulta  da  cooperação  internacional  promovida  pela  CAPES  (Coordenação  de  Aperfeiçoamento  de  Pessoal  de  Ensino  Superior)  e  pela  CONEAU  (Comisión  Nacional  de  Evaluatión  y  Acreditación  Universitária),  da  Argentina,  denominada  Centros  Associados para o Fortalecimento da Pós‐Graduação, entre o Programa  de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  da  Universidade  Federal  de  São  Carlos  e  a  Maestria  em  Sociología,  da  Universidad  Nacional  de  Córdoba. Várias missões de trabalho e de estudo foram realizadas entre  2011‐2014  possibilitando  o  desenvolvimento  de  análises  comparadas  e  da consolidação de grupos de pesquisa com participação de docentes e  discentes brasileiros e argentinos.  Essas interlocuções se materializam nos capítulos deste volume,  que  abordam  sociologicamente  as  mudanças  sociais  no  Brasil  e  na  Argentina  contemporâneos.  São  doze  trabalhos  organizados  em  três  unidades.  A  primeira  delas  “Cultura,  diferença  e  desigualdade”  reúne  análises sobre as ressignificações do conceito de raça no contexto latino‐ americano;  sobre  a  biopolítica  da  monstruosidade  e  de  corpos  que  fogem da norma; e sobre o ativismo cristão na Argentina e no Brasil.  A segunda unidade aglutina estudos que abordam as profissões  jurídicas,  seja  sobre  o  impacto  dessa  formação  na  atuação  dos  advogados  e  do  reconhecimento  à  diferença,  seja  sobre  a  participação  das mulheres e da diversidade sexual nas carreiras jurídicas, seja sobre  o sistema de jurado na Argentina, que introduz a participação popular  visando a democratização do funcionamento da justiça.   A  terceira  parte  focaliza  os  temas  de  políticas  públicas,  conflitualidade,  desigualdade  social  e  apropriação  mercantilizada  de  recursos naturais e sociais. A partir das particularidades desta temática,  os capítulos agrupados nesta parte se caracterizam por compreender a  problemática  que  a  envolve  enquanto  externalidades  da  lógica  capitalista,  que  se  revela  nos  diferentes  processos  de  produção  e  reprodução social que têm lugar tanto na Argentina e no Brasil. Discute‐



se,  desse  modo,  as  políticas  de  habitação  popular  no  Brasil  e  na  Argentina,  as  narrativas  sobre  a  questão  ambiental  e  os  problemas  relativos  ao  uso  e  acesso  à  agua,  o  controle  do  espaço  público  e  os  conflitos  sociais  por  territórios  e  espaços  urbanos  e  como tais  questões  expressam dinâmicas de inclusão/exclusão, segmentações socioespaciais  e racionalizações próprias da, e compatíveis com a, lógica do mercado.  Abrindo  a  primeira  unidade  Maximiliano  Gaviglio  apresenta  a  discussão sobre o conceito de raça e o uso do termo na Argentina, com o  intuito  de  destacar  a  complexidade  semântica  que  este  adquire  no  contexto latino‐americano, enfatizando não só o que há de comum, mas  principalmente as especificidades das representações locais e regionais.  Indo  mais  além  das  polêmicas  em  torno  dos  significados  usuais  e  acadêmicos da palavra raça, e das classificações de corpos e sujeitos que  ela  produz,  o  autor  soma‐se  às  abordagens  que  criticam  a  fundamentação  genética  e  essencialista  da  ideia  de  raça.  Ele  entende o  conceito como “uma construção social historicamente contingente cujo uso  deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas  que,  desde  o  terreno  do  imaginário  e  o  simbólico,  aludem  a  processos  mais amplos de construção de identidades sociais” (p. 24).  Gaviglio destaca que embora as representações sobre o cadinho  de  raças,  o  crisol  de  raças,  a  fábula  das  três  raças  nos  contextos  argentino  e  brasileiro  pareçam  semelhantes,  tais  fenômenos  não  são  idênticos e precisam ser interpretados à luz de suas diferenças, já que tal  percepção  resulta  de  discursos  hegemônicos  de  produção  de  identidades nacionais.    No segundo capítulo Valter Roberto Silvério detém‐se no debate  sobre  racialização  com  o  objetivo  de  vinculá‐lo  às  mudanças  operadas  na  forma  como  a  sociedade  brasileira  se  auto‐representa.  Da  representação  hegemônica  que  assimilava  as  raças  pela  democracia  racial,  a  identificação  no  Brasil  comportaria  agora  a  diferença  étnico‐ racial.  No  argumento  do  autor,  esse  fenômeno  é  “decorrente  do  processo de luta política pela (res) significação / deslocamento do lugar  do ser negro no processo de racialização de sua experiência coletiva” (p.  49).   Na fundamentação de um conceito que se contraponha ao reino  biológico, Silvério apóia‐se na construção teórica de Winant (1996) sobre 



a formação racial, enfatizando três determinações sociais no conceito de  raça:  a  dimensão  política,  a  global  comparativa  e  a  histórico‐temporal.  Com esta abordagem, mostra como o movimento negro atuou para que  a  visão  do  Brasil  como  uma  comunidade  imaginada  homogeneamente  desse  lugar  a  uma  comunidade  que  se  imagina  diversa  culturalmente.  Assim,  analisa  as  políticas  públicas  de  igualdade  racial,  de  educação  étnico‐racial, de relações globais sul ‐ sul e da política externa brasileira  com a diáspora africana.  No terceiro capítulo, André Ricardo de Souza, María Candelária  Sgró  Ruata  e  Maximiliano  Campana  contrastam  a  conformação  do  campo religioso no Brasil e na Argentina, analisando o ativismo político  cristão.  O  catolicismo  tem  peso  demográfico  e  jurídico  maior  na  Argentina, com 76,5%, preservando vínculos com o Estado, enquanto o  protestantismo  fica  na  casa  dos  9%.  No  Brasil,  o  catolicismo  segue  retraindo  sua  porcentagem  na  população,  com  64,6%  enquanto  os  evangélicos crescem em ritmo acelerado representando 22,2%.   Os  autores  observam  que  “em  ambos  os  países  os  segmentos  católicos  e  evangélicos  se  posicionam  no  espaço  público,  mediante  manifestações  organizadas  e  militância  político‐partidária  tanto  na  defesa  de  seus  interesses  como  de  seus  valores  doutrinários”  (p.  64).  Eles  demonstram  como  as  questões  de  moral  sexual  estão  atualmente  na  essência  da  mobilização  do  ativismo  cristão,  de  católicos  e  evangélicos.   No  quarto  capítulo,  Maria  Inés  Landa,  Jorge  Leite  Jr.  e  Andrea  Torrano  tratam  da  biopolítica  da  monstruosidade  sobre  os  corpos  que  se  distanciam  da  normatividade,  como  aqueles  classificados  de  obesidade  epidêmica,  na  perspectiva  biomédica,  ou  os  zumbis,  na  ficção.  O  texto  detalha  como  cada  época  engendra  seus  monstros,  fenômeno que fala sobre as irregularidades imagináveis, expressando as  transgressões  da  fronteira  do  propriamente  humano.  Os  autores  querem destacar como a análise do corpo obeso e do zumbi contrastam  com os discursos tradicionais sobre a monstruosidade, que convertiam  o monstro em alteridade absoluta do humano. Esse monstro atual é um  “interior externalizado” do humano, que está en(tre) nós.    



“O  obeso  e  o  zumbi  seriam  manifestações  de  corpos  que  perdem  sua  forma  humana,  no  primeiro  caso,  por  descuido,  no  segundo,  por  decomposição; o obeso encarna a enfermidade do corpo constituindo‐se  em um perigo contra os princípios sanitário‐empresariais, enquanto que  o  zumbi  perde  toda  possibilidade  de  redenção,  seu  corpo  evoca  um  estigma do corpo corrompido e corruptor” (p. 95).  

  A  obesidade  epidêmica  indicaria  a  monstruosidade  do  corpo  humano  e  o  zumbi  representaria  a  humanidade  do  monstro,  corpo  humano  em  decomposição  borrando  as  fronteiras  entre  o  humano  e  o  monstruoso.  O  quinto  capítulo,  que  abre  a  segunda  parte  do  livro,  é  de  autoria  de  Richard  Miskolci  e  Maximiliano  Campana.  Eles  analisam  o  impacto  da  formação  tradicional  em  Direito  sobre  os  litígios  voltados  para  impulsionar  mudanças  sociais,  como  a  agenda  contemporânea  pelo  reconhecimento  à  diferença.    O  argumento  dos  autores  é  que  as  práticas que buscam nos tribunais a ampliação de direitos difusos e de  equidade  para  minorias  encontram  barreiras  nos  próprios  valores  partilhados  na  socialização  profissional  jurídica,  que  se  inicia  no  curso  superior.    Assim,  analisam  como  as  motivações  por  um  ideal  social  e  humanitário  de  justiça  que  impulsionam  algumas  das  escolhas  estudantis pela formação em Direito vão, ao longo da faculdade, dando  lugar  a  uma  concepção  formal  e  instrumental  de  justiça,  baseada  no  ideário da neutralidade que predomina no profissionalismo.   Neste sentido, destacam a distância entre a atuação e os valores  da  base  do  grupo  profissional  da  advocacia  com  as  decisões  dos  tribunais  superiores,  que  têm  impulsionado  alguns  dos  direitos  que  reconhecem  diferenças,  como  o  do  casamento  homossexual  na  Argentina  e  o  princípio  constitucional  que  valida  a  ação  afirmativa  na  modalidade cota no Brasil.  Apontando  as  possibilidades  de  transformação  da  formação  acadêmica,  voltando‐se  a  uma  perspectiva  educacional  dialógica  e  reflexiva,  Miskolci  e  Campana  abordam  como  o  reconhecimento  à  diferença  amplia  essa  mudança  superando  as  limitações  que  consideram persistir na concepção da diversidade.     

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“Distinguir  entre  diferença  e  diversidade  exige  abandonar  uma  concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela  para  uma  concepção  horizontalizada  de  relações  em  que  se  afasta  o  conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença  é  algo  incomensurável,  mas  potencialmente  mais  democrático  e  promissor.  Uma  perspectiva  informada  pelas  diferenças  pode  questionar  e  até  modificar  hierarquias,  colocar  em  diálogo  os  subalternizados com o hegemônico de forma, quiçá, a mudar a ordem  que mantém e reproduz desigualdades” (p. 155‐156). 

  No  sexto  capítulo,  Dafne  Araújo  e  Maria  da  Gloria  Bonelli  analisam  as  continuidades  e  as  mudanças  que  vêm  ocorrendo  na  advocacia  paulista,  no  que  diz  respeito  ao  profissionalismo  e  à  diferença.  Focalizando  a  diversidade  sexual,  abordam  situações  de  trabalho  nas  quais  as  intersecções  entre  a  identidade  profissional,  de  gênero  e  sexual  se  entrecruzam  de  formas  distintas.  Contrastam  as  experiências  de  atuação  jurídica  no  Grupo  de  Advogados  pela  Diversidade Sexual com a de advogados gays que exercem a advocacia  em escritórios e sociedades de advogados. No primeiro caso, observam  como  a  identidade  homoafetiva  cruza  a  profissionalização,  resultando  em redirecionamento para prática na especialidade dos direitos LGBT.   Segundo elas:     “A  força  da  identificação  sexual  configura  o  caminho  profissional,  mostrando  uma  interseção  na  qual  se  busca  reconhecimento  para  o  valor de sua expertise, rejeitando a desqualificação de seu saber com a  reconversão de seu capital jurídico para a atuação na especialidade dos  direitos homoafetivos” (p. 182). 

  No  segundo  caso,  registram  como  os  advogados  gays  que  não  fazem  essa  reconversão,  atuando  nos  escritórios  que  lidam  com  as  demais  especialidades  jurídicas,  sentem  o  estigma  e  as  pressões  dos  pares para manterem a sexualidade invisível.      “Os  profissionais  gays,  envolvidos  ou  não  em  lutas  contra  a  discriminação sexual apagam as marcas dessa diferença ao agirem em  sintonia com esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida  profissional  e  a  intimidade,  mantendo  no  armário  sua 

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homossexualidade.  Nestes  casos,  a  intersecção  entre  identidades  fica  sujeita  ao  predomínio  do  status  profissional  perante  o  estigma  da  diferença sexual” (p. 182). 

  No sétimo capítulo, Benedito e Gastiazoro realizam uma análise  comparada  da  inserção  profissional  de  mulheres  na  magistratura  brasileira e argentina, e das percepções sobre gênero nessas carreiras do  Judiciário.  Elas partem de abordagens teóricas distintas, mas chegam a  conclusões  que  dialogam  entre  si,  com  semelhanças  na  estratificação  marcada  pelo  gênero.  No  caso  de  Córdoba,  embora  a  segregação  horizontal tenha diminuído em relação ao passado recente, ainda existe  alguma diferença nessa distribuição com maior participação de homens  na  área  penal,  o  que  diminui  na  área  civil  e  comercial.  Nas  magistraturas  estadual  e  federal  paulistas  não  foram  observadas  segmentação  de  gênero,  com  juízes  e  juízas  atuando  na  justiça  civil  e  criminal.  A  justiça  do  trabalho  que  é  mais  feminina,  não  foi  analisada  nessa pesquisa.   Quanto  à  segregação  vertical,  observou‐se  forte  estratificação  por  gênero  no  judiciário  estadual  paulista,  mas  bem  menos  acentuada  no judiciário federal de São Paulo. A explicação dada por elas é o maior  insulamento da carreira decorrente da consolidação do profissionalismo  antes  do  ingresso  feminino  na  magistratura  estadual,  o  que  não  se  passou  na  justiça  federal.  Assim,  o  fechamento  generificado  teria  sido  maior no Tribunal de Justiça de São Paulo, do que no Tribunal Regional  Federal. Na Argentina, a segregação vertical foi observada em todos os  foros.  As  autoras  chegam  à  seguinte  conclusão  sobre  a  relação  entre  profissionalismo e gênero:     “A  implementação  de  sistemas  meritocráticos  pode  ter  efeito  positivo  para  a redução  das desigualdades  de gênero,  porém  tais  sistemas são  mais  exigentes  com  as  mulheres,  inseridas  numa  sociedade  na  qual  persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz com que as diferenças  de  gênero  se  estanquem  no  interior  de  uma  profissão  na  qual  a  proporção de graduadas é cada vez maior” (p. 211). 

 

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O oitavo e último capítulo da segunda unidade é um estudo de  Maria  Inés  Bergoglio  sobre  a  implantação  do  sistema  de  júri  na  Argentina, com objetivo de ampliar a participação popular na justiça e a  legitimidade judicial. A pergunta que a autora se coloca é se o objetivo  de aumentar o reconhecimento popular de um judiciário marcado pela  baixa  confiança  da  população  na  justiça,  foi  alcançado  com  os  ‘Julgamentos por júri’. Para tanto, ela pesquisa a participação leiga em  tribunais  mistos,  que  foram  criados  em  Córdoba,  a  partir  de  2005,  na  esfera  penal,  combinando  a  atuação  profissional  com  a  dos  jurados.   Para  tanto,  ela  compara  pesquisas  de  opinião  pública  realizadas  entre  1993 e 2011, analisando as mudanças de atitude em relação aos juízes e  aos jurados.   Em síntese, Bergoglio conclui que:    “Embora  já  exista  evidência  de  que  aqueles  que  têm  atuado  como  jurados  melhoram  sua  opinião  sobre  o  funcionamento  da  justiça,  por  enquanto o caráter limitado da experiência cordobesa sugere que seus  efeitos  sobre  a  legitimidade  judicial  na  cidadania  geral  podem  ser  muito fracos ainda.” (p. 215). 

  A  terceira  parte  do  livro  começa  com  uma  análise  comparativa  das políticas de habitação social implementadas na cidade de Córdoba‐ Argentina  e  várias  áreas  urbanas  do  Brasil,  no  âmbito  do  programa  ʺMinha  Casa,  Minha  Vidaʺ,  de  caráter  estadual  no  primeiro  caso,  e  de  âmbito  nacional  no  segundo.  As  autoras  Maria  Alejandra  Ciuffolini  e  Lúcia Zanin Shimbo esclarecem que, embora os respectivos programas  tenham a mesma denominação em ambos os países, eles diferem no que  respeita  aos  beneficiários  aos  quais  os  programas  se  dirigem,  aos  mecanismos  de  implementação  e  à  extensão  territorial  de  aplicação.  O  Programa  “Minha  Casa,  Minha  Vida”  foi  lançado  em  2009  no  Brasil,  quase  uma  década  depois  do  programa  homônimo  implementado  em  Córdoba.  O  propósito  das  duas  autoras  é  caracterizar  tais  programas,  destacando  semelhanças  e  diferenças  e,  sobretudo,  reconhecer  o  impacto dessas políticas nas relações sociais e processos de subjetivação  a que dão lugar. Este dado, já observado no caso argentino, por tratar‐se  de um programa mais antigo, poderá replicar em um futuro próximo no  Brasil – em função da própria lógica do programa brasileiro.  13  

O  texto  do  capítulo  nono  está  dividido  em  duas  seções:  a  primeira sobre o caso de Córdoba‐Argentina, e, a segunda, sobre o caso  brasileiro. Ambas as seções dedicam sua primeira parte à descrição das  políticas  habitacionais  que  incorporam  os  programas  estudados,  enquanto que a segunda parte se ocupa da análise crítica do produto de  tais políticas e de seu impacto urbano e social.  A conclusão mais geral que as autoras destacam para cada caso  se resume nos seguintes parágrafos:    (Programa  Córdoba‐Argentina)  “...  favorece  um  tratamento  ágil  e  focalizado  dos  problemas,  em  detrimento  de  uma  ação  integral  que  ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV  atende prontamente a questão da falta de moradia, mas reproduz, em  seu  desenho,  as  formas  de  exclusão  a  ela  associadas.  Nesse  sentido,  vale  destacar  a  intensificação  da  segregação  espacial.  Isso  ocorre  porque  o  programa  opera  um  deslocamento  geográfico  dos  pobres  para  as  margens  da  cidade,  agravando  outras  situações  de  exclusão,  como  as  de  emprego,  de  acesso  a  serviços  básicos,  como  saúde  e/ou  transporte,  etc.  Consequentemente,  criam‐se  novos  ou  reforçam‐se  velhos padrões de desigualdade e de acesso e uso da cidade (p. 249).    (Programa‐Brasil)  “...  não  procura  constituir  propriamente  uma  política  de  habitação,  que  estaria  centrada  numa  lógica  universal  dos  direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública (...).  Trata‐se,  genericamente,  de  “um  programa  de  crédito  tanto  ao  consumidor  quanto  ao  produtor”,  (...).  Portanto,  os  parâmetros  financeiros e a solvabilidade do sistema importam muito mais do que o  conteúdo universalizante da política e a articulação com a produção da  cidade  ‐  que  requisitaria  uma  abordagem  integrada  entre  política  habitacional,  política  urbana,  política  fundiária  e  política  social.”  (p.  261‐262).   

Gerardo  Avalle  introduz  o  décimo  capítulo  “A  tradução  contemporânea das demandas populares (ou do conflito que emerge do  universo popular) nos espaços públicos: o caso do Córdoba, Argentina”,  sugerindo  que  essas  expressões  denunciam  o  pano  de  fundo  de  inclusão/exclusão  que  se  manifesta  em  cada  sociedade,  bem  como 

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evidenciam  as  tensões  que  se  escondem  nas  formas  em  que  as  demandas são processadas pelos dispositivos governamentais.  Através  do  percurso  histórico‐político  dos  últimos  20  anos,  de  processos de demandas populares por emprego, alimentação e moradia  na  Argentina  e  particularmente  em  Córdoba,  recuperado  a  partir  do  relato  de  atores  dos  setores  populares,  Avalle  pretende  testemunhar  a  afirmação de que ʺA gramática popular adverte sobre o avesso de uma  política  de  (des)igualdade  (p.  272)ʺ.  Em  outros  termos,  e  utilizando  novamente  as  palavras  do  autor,  ʺa  inscrição  dos  sujeitos  nos  espaços  públicos  e  as  demandas  por  maior  igualdade  enfrentam‐se  com  um  risco  permanente  de  desativação  política  e  inclusão  degradada  na  linguagem da cidadaniaʺ. (p. 272)  O capítulo está organizado em três seções. A primeira reconstrói,  a  partir  da  percepção  dos  setores  populares,  a  dinâmica  política  argentina  que,  impulsionada  pelo  projeto  neoliberal,  atravessa  os  anos  90  para  desembocar  na  crise  de  2001.  E  se  debruça,  particularmente,  sobre  o  projeto  político  emergente  a  partir  de  2003.  A  segunda  seção  aponta para o surgimento de novos atores coletivos como consequência  da  crise  de  2001.  Por  fim,  analisa  a  ação  do  Estado  e  das  organizações  populares, focalizando seus desdobramentos na província de Córdoba.  O  autor  conclui,  fundamentalmente,  que,  tomadas  as  políticas  públicas a partir da perspectiva dos setores populares, uma dentre suas  consequências,  independentemente  do  objetivo  que  tais  políticas  perseguem, é a desativação da mobilização e iniciativa popular, já que  estas  representam  um  risco,  uma  ameaça  ao  controle  que  o  governo  busca exercer sobre essas populações. Empreende‐se, a partir do Estado,  uma nova técnica de gestão, mais estável, mas que não necessariamente  oferece maiores garantias de direitos.    “O  cenário  que  se  apresenta,  então,  é  de  uma  dupla  aprendizagem,  onde o Estado toma as lutas e a organização popular como doutrinas, e  aquelas fazem de sua prática e da relação com o Estado uma caixa de  ferramentas  e  um  estado  de  coisas  que  estabelece  permanentemente  novos  pontos  de  partida  e  instâncias  de  demandas  (...)  que  permitem  (...), escapar à desativação (...) ʺ(p. 291).   

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O  décimo  primeiro  capítulo,  de  autoria  de  Gabriel  de  Santis  Feltran,  discute  a  relação  paradoxal  entre  conflitividade  social  e  as  transformações  sociais  e  econômicas  induzidas  pelo  significativo  desenvolvimento econômico ocorrido nas últimas décadas no Brasil. O  objetivo  deste  ensaio  é  revelar  questões  analíticas,  teóricas,  metodológicas  e  políticas  implicadas  na  gestão  e  compreensão  contemporânea  da  existência  e  das  práticas  das  populações  marginais  no Brasil urbano. O autor realiza tal discussão partindo de observações  etnográficas de grupos  urbanos composto por: i) adolescentes e jovens  inscritos em atividades criminosas, moradores de bairros das periferias  urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas localizadas nas cidades de  São Paulo e Rio de Janeiro.  As constatações tomadas de investigações já concluídas, que são  a  base  do  ensaio  “Territórios  e  populações  “marginais”  em  tempos  de  desenvolvimento”, e a revisão bibliográfica que as informam, orientam  a  revisão  crítica  dos  três  eixos  tomados  pelo  estudo,  bem  como  a  observação  e  a  formulação  de  políticas  públicas  relacionadas  à  marginalidade.  Um  primeiro  eixo,  de  caráter  teórico‐metodológico,  gira  em  torno do sentido atribuído às noções de marginalidade, e sua associação  com  termos  tais  como  a  pobreza,  desordem,  incivilidade,  imoralidade,  violência, marginalidade, criminalidade.  Uma  segunda  questão  “...  é  aquela  que  percebe  as  dinâmicas  sociais  e  políticas  dos  setores  populares  a  partir  da  mudança,  da  transformação, registrada empiricamente pelos mais variados métodos –  das pesquisas por questionário ao georreferenciamento, das buscas por  trajetórias  individuais  às  que  procuram  captar  transformações  estruturais no Estado ou na economia” (p. 305‐306).   Por fim, o ensaio problematiza a contradição que gera a própria  presença  do  Estado  nos  territórios  marginais,  a  qual  contribui  para  a  construção  de  uma  série  de  bipolaridades  sociais  a  partir  das  quais  se  reforçam a exclusão, o mascaramento e a reconfiguração da pluralidade  que se expressa nos territórios marginais.  Encerra  o  conteúdo  da  terceira  parte  o  trabalho  “Por  uma  sociologia das narrativas sobre o meio ambienteʺ, de Rodrigo Constante  Martins.  O  capítulo  analisa  as  narrativas  hegemônicas  acerca  do  uso  e 

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acesso  aos  recursos  hídricos,  num  contexto  de  narrativas  em  disputa  sobre  a  explicação  e  as  consequências  da  atual  crise  ambiental.  O  crescente interesse pela difusão e aplicação de instrumentos econômicos  de  gestão  ambiental  é  uma  preocupação  emergente,  nacional  e  internacional,  por  implementar  estratégias  eficazes  para  regular  o  consumo social da água.  O  propósito  do  capítulo  é  interpretar  criticamente  a  narrativa  que subjaz e sustenta a confiança nas regulações e disposições contidas  nos  instrumentos  econômicos  de  gestão  ambiental.  Na  primeira  parte  do  texto  são  descritas  experiências  nacionais  de  gestão  da  água,  em  particular a brasileira. Na segunda, se discute os pressupostos teóricos  que justificam as narrativas produzidas pelos especialistas da economia  da água. Aprofundando os aspectos críticos da narrativa hegemônica de  regulação  do  uso  e  do  acesso  à  água,  baseada  nos  princípios  de  uma  economia  política  fundada  no  neoclassicismo  marginalista,  o  autor  atenta, nas últimas duas partes do capítulo, para as noções de ʺofertaʺ,  ʺescassezʺ e ʺgestãoʺ do recurso.  Martins  conclui  sua  análise  destacando  que  um  dos  pontos  cruciais  no  tocante  às  orientações  que  adotam  atualmente  a  gestão  da  água é que “... há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada  no código de recursos socialmente desejáveis” (p. 335)., e o fato de que a  água, como recurso natural, é também um recurso simbólico no qual se  condensam  diversos  sentidos  –  extrapolando  sua  redução  excludente  enquanto  bem  econômico  –  que  variam  de  acordo  com  diferentes  grupos e sociedades.  Os  doze  trabalhos  que  compõem  este  livro  mostram  como  os  diálogos entre o Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da UFSCar  e  a  Maestria  en  Sociología  da  Universidad  Nacional  de  Córdoba  caminham na trilha do mútuo reconhecimento, para a consolidação da  produção acadêmica latino‐americana e das relações institucionais sul –  sul,  o  que  no  caso  da  Sociologia  representa  a  pluralização  do  modelo  hegemônico da internacionalização norte‐sul.   Outros  colegas  em  São  Carlos  e  em  Córdoba  participam  do  programa  “Centros  Associados  para  o  Fortalecimento  da  Pós‐ Graduação”,  colaborando  para  o  avanço  do  conhecimento  sociológico  comparado  sobre  a  mudança  social  no  Brasil  e  na  Argentina,  mas  não 

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puderam  participar  deste  volume.  Agradecemos  a  eles  e  a  elas  as  oportunidades  de  interlocução  em  outras  atividades,  como  as  missões  de  trabalho  e  estudo  que  resultaram  em  uma  compreensão  mais  aprofundada das semelhanças e das especificidades regionais e locais.    Registramos  nossos  agradecimentos  ao  acolhimento  das  coordenadoras  do  PPGS  e  da  Maestria  en  Sociología,  bem  como  ao  apoio  das  secretarias  dessas  unidades  para  que  as  missões  se  viabilizassem.  Institucionalmente,  a  cooperação  da  Universidade  Federal de São Carlos e da Universidad Nacional de Córdoba tornaram  viável a realização do projeto, que só pode ser executado devido a essa  recepção positiva. Contamos também com a pronta atenção dos técnicos  da  CAPES  e  da  CONEAU  no  atendimento  das  várias  solicitações,  inclusive  aquelas  que  viabilizaram  a  organização  deste  livro.  Finalmente,  agradecemos  aos  colegas  que  contribuíram  com  suas  pesquisas e análises para dar vida a este volume, e aos profissionais que  nos ajudaram com os trabalhos de tradução, revisão, e edição.           Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa    Coordenadoras do CAFP e organizadoras do livro         

 

 

 

 

 

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PARTE I     

Raça, identidade e contingência:   esboço para uma reflexão das experiências latino‐americanas    Maximiliano Gaviglio1      ʺos  animais  são  divididos  em  a]  pertencentes  ao  imperador,  b]  embalsamados,  c]  treinados,  d]  leitões,  e]  sereias,  f]  fabulosos  g]  cães  vadios,  h]  incluídos  nesta  classificação, i] que se agitam como loucos, j] inumeráveis,  k]  desenhados  com  um  pincel  muito  fino  de  pêlo  de  camelo, l] etcétera ʺ, m] que acabaram de quebrar o jarro,  n]  que  de  longe  se  parecem  com  moscas”.  Jorge  Luis  Borges.  ʺEl  idioma  analítico  de  John  Wilkinsʺ,  Otras  inquisiciones, 1960. 

  No prefácio de ʺAs palavras e as coisasʺ Michel Foucault (1995)  admite que foi essa inverossímil e inquietante taxonomia que o inspirou  a  refletir  sobre  as  possibilidades  do  conhecimento  humano.  Para  além  da simpatia que provoca o absurdo (e sem pretender cair nos excessos  de  um  esteta),  esta  referência  nos  resulta  verdadeiramente  útil  para  iniciar uma reflexão sobre o tema que nos ocupamos: a categoria ʺraçaʺ  como  uma  forma  de  classificação  (de  corpos  e  sujeitos)  e  suas  representações na América Latina.    1. Introdução    Se  tivéssemos  que  começar  com  uma  pergunta,  o  mais  sensato  seria  questionar‐nos  a  respeito  do  que  falamos  quando  falamos  de                                                               1

 Licenciado em Comunicação Social (Escola de Ciências da Informação – Universidade  Nacional  de  Córdoba);  colaborador  vinculado  às  cadeiras  de  ʺComunicação  em  Publicidade  e  Propagandaʺ  e  ʺWorkshop  de  Imagem  Institucionalʺ  do  curso  de  Comunicação  Social  (ECI‐UNC).  Atualmente  está  finalizando  um  mestrado  em  Sociologia no Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba.   

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ʺraçaʺ?  E  estou  seguro  que,  se  a  pergunta  fosse  realizada  em  um  auditório,  surgiria  um  sem‐número  de  acordos  e  desacordos  parciais  (ou,  talvez,  totais).  Por  evocar  um  universo  de  significação  amplo,  o  termo ʺraçaʺ nos surge como um termo problemático que pode suscitar  um  sem‐número  de  leituras  possíveis  em  relação  direta  com  os  contextos  em  que  ele  tem  lugar:  se  trata  de  uma  categoria  contingente  que,  longe  de  ser  concebida  em  termos  essencialistas,  manifesta‐se  de  modo distinto em discursos historicamente situados.  Para  facilitar  o  desenvolvimento  de  meu  argumento,  abordarei  alguns  dos  usos  do  termo,  a  fim  de  apresentar  de  maneira  breve  uma  série de critérios e definições teóricas que nos permitem definir pautas  (ou  nós  problemáticos)  a  partir  dos  quais  seja  possível  analisar  a  complexidade semântica da ideia em questão em relação à experiência  latino‐americana.   Para começar, podemos tomar uma série de definições formalizadas,  tais como as estabelecidas pela Real Academia Espanhola:  Raça (“raza”): (Do lat. *radĭa, de radĭus).  1. f. Casta ou qualidade de origem ou linhagem.  2. f. Cada um dos grupos nos quais se subdividem algumas espécies  biológicas  e  cujas  características  diferenciais  são  perpetuadas  por  herança.  3. f. Fenda, rachadura.  4. f. Raio de luz que penetra por uma abertura.  5. f. Rachadura que às vezes se forma na parte superior do capacete  das cavalarias.  6. f. Lista, em pano ou outra tela, em que o tecido está mais claro do  que no resto.  7. f. Qualidade de algumas coisas, em relação a certas características  que as definem2.  Um  dos  usos  ou  acepções  mais  comum  ou  ao  menos  mais  reconhecida  ‐  a  definição  número  2  ‐  é  aquela  que  é  utilizada  pela  biologia  para  designar  grupos  nos  quais  se  subdividem  algumas  espécies  biológicas  a  partir  de  uma  série  de  características  que  são  transmitidas  por  herança  genética.  Esta  maneira  de  conceber  a  “raça”                                                               2

 Real Academia Española, http://buscon.rae.es/draeI/. Acessado em: 17/02/13. 

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teve, na esteira das discussões da antropologia física (que tentou definir  os  critérios  de  conhecimento  do  social  a  partir  do  paradigma  das  ciências  naturais),  uma  influência  notável  no  pensamento  social  do  século XIX, dando lugar a um sistema de classificação por meio do qual  se pretendeu ordenar e interpretar as diferenças visíveis ‐ fenotípicas e  socioculturais ‐ da espécie humana. Como conceito analítico, essa ideia de  ʺraçaʺ  passou  a  obscurecer  a  diversidade  cultural  (que  era  diluída,  reduzida  ou,  diretamente,  ignorada)  em  detrimento  das  características  biológicas  ‐  e  sobretudo  as  fenotípicas  ‐,  naturalizando  a  divisão  de  grupos  sociais  diferenciados  sobre  a  base  de  critérios  frequentemente  estigmatizantes  que  se  presumiam  como  condições  invariáveis  (como  uma forma de sentença genética).  Se  retomamos  a  ideia  de  contingência  histórica  e  identificamos  a  ciência  como  uma  leitura  que  emerge  no  e  para  o  Ocidente,  podemos  dizer  que  a  gênese  do  conceito  de  ʺraçaʺ,  enquanto  categoria  socioanalítica,  foi  determinada  pelo  choque  (encontro/desencontro)  e  relação  entre  o  ocidental  e  o  não‐ocidental  (como  transformação  ou  cristalização da tensão que, durante os diferentes períodos de conquista,  se  estabeleceu  entre  o  europeu  e  o  não‐europeu).  Neste  sentido,  podemos definir uma interrogação ‐ Por que eles não são como nós? ‐ como  forma  de  problematizar  a  diversidade  humana  enquanto  conflito  ou  tensão entre a cultura ocidental e as culturas orientais, médio‐orientais,  africanas e americanas (em toda a sua amplitude)3.  Mas  o  termo  não  foi  gestado  exclusivamente  a  partir  do  campo  científico,  a  problematização  da  diferença  e  da  diversidade  constitui  uma  preocupação  que  vem  se  erguendo  durante  séculos.  No  Antigo  Testamento  –  e  em  particular  no  livro  do  Gênesis  ‐,  por  exemplo,  é                                                               3

  Em  princípio,  esta  preocupação  teve  seu  desenvolvimento  acadêmico  mais  acabado  nos denominados países ʺcentraisʺ da Europa (estendendo‐se, posteriormente, para os  Estados Unidos). Ou seja, naqueles países onde a ciência social como tal se gestou e se  consolidou,  originaram‐se  diferentes  tradições  teóricas  que,  à  luz  de  seus  próprios  paradigmas, se posicionavam como lugar central ‐ isto é, como espaço preferencial e  legítimo do debate acadêmico científico. Não obstante, à luz de situações posteriores ‐  como os processos de descolonização na África e Ásia, que tiveram lugar em meados  do  século  XX  ‐,  a  inadequação  dos  esquemas  tradicionais  possibilitou  que  os  progressos  acadêmicos  sofressem  um  descentramento  que  permitiu  o  posicionamento  de estudos e investigações antes considerados periféricos (Slenes, 2010). 

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atribuída aos três filhos de Noé ‐ Sem, Cam e Jafé – a descendência das  raças branca, negra e amarela4. O conceito de raça, assim entendido, está  vinculado  à  definição  número  1  ‐  ʺcasta  ou  qualidade  da  origem  ou  linhagemʺ  ‐,  por  meio  da  qual  a  comunidade  dá  forma a  uma  série  de  discursos  de  origem  que  permitem  afirmar  a  identidade  do  coletivo,  assumindo  suas  raízes  comuns  e  suas  diferenças  em  relação  a  outras  comunidades.  Mas  a  relação  quantidade/qualidade  também  se  manifesta  de  maneira  explícita  na  definição  número  7  ‐  ʺqualidade  de  algumas coisas, em relação a certas características que as definemʺ. Esta  forma de identificar os atributos de raça de acordo com os critérios de  valor  (qualidades  desejáveis  versus  qualidades  indesejáveis),  embora  possa apelar ou não ao recurso de origem, nos permite definir a lógica  de  diferenciação  tanto  como  lógica  de  hierarquização  social,  quanto  como  uma  manifestação  discursiva  do  estado  de  luta  que  caracteriza  uma  determinada  ordem  social  ‐  definida,  particularmente,  pela  distribuição  de  agentes  posicionados  ao  redor  de  capitais  e  valores  disputados e distribuídos de forma desigual.  Com  base  nesta  discussão,  podemos  inferir  que,  para  além  dos  significados  acadêmico‐científicos,  ʺraçaʺ  é  uma  ideia  cujo  uso  generalizado carrega  uma série de  conotações ‐ e efeitos  de sentido  que  tem  lugar  na  e  pela  experiência  objetiva  –  que  permitem  pensar  numa  lógica  mais  ampla  através  da  qual,  a  partir  do  ideológico,  certos  grupos  pensam a si e aos outros, ou seja: outrificam (Segato, 2007). Será, portanto,  necessário  elucidar  o  significado  desta  categoria  em  relação  a  ordens  de  representação  determinadas,  que  não  apenas  devem  pôr  em  causa  as  condições que subjazem e dão suporte aos discursos vernáculos enquanto  fundados na e para a prática5, mas que também deverão problematizar as  categorias  socioanalíticas  construídas  no  interior  do  campo  científico,  posto que nenhum esquema de classificação pode ser esvaziado das lutas                                                                 “E  tendo  Noé  quinhentos  anos,  gerou  a  Sem,  a  Cam  e  a  Jafet”,  Gênesis  5:32.  A  denominação “semita” evoca a origem hebraica enquanto descendência de Sem.  5 Por ʺcategorias da práticaʺ, na direção de Bourdieu, entendemos algo próximo ao que  outros  têm  chamado  categorias  ʺnativasʺ,  ʺfolclóricasʺ  ou  ʺcorrentesʺ:  categorias  da  experiência social cotidiana, desenvolvidas pelos agentes sociais, e que se diferenciam  das categorias da experiência distante, utilizadas pelos analistas sociais (Brubaker &  Cooper, 2001). 

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materiais e simbólicas que tem lugar entre aqueles que compartilham um  ou outro modo de classificação6.   

    Figura  1.  Classificação  das  raças  utilizadas  no  Censo  dos  EUA  de  2010,  anexado às ʺNormas para a classificação dos dados federais sobre raça e etniaʺ  emitidas pela OMB7. 

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 A frequente invocação da autoridade científica ‐ que permite construir uma ordem de  representações  hegemônicas,  na  medida  em  que  tem  a  possibilidade  de  ser  reconhecida como fonte de legitimidade – transforma em realidade e em razão o recorte  arbitrário  que  pretende  impor  (Bourdieu,  2006,  p.  172).  O  ato  de  categorizar,  em  relação  a  seus  efeitos  performativos,  quando  é  reconhecido  enquanto  autoridade  passa a exercer poder por si mesmo e institui uma realidade: ʺo ato de magia social  que  consiste  em  produzir  a  existência  da  coisa  nomeada,  em  fazê‐la  existir  no  ato  mesmo da enunciaçãoʺ. 

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2. Representação, experiência e história    Temos  dito  que  uma  vez  rejeitada  a  ideia  de  ʺraçaʺ  em  sua  fundamentação  genética  ou  essencialista,  o  conceito  passa  a  ser  entendido  como  construção  social  historicamente  contingente,  cujo  uso  deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas  que,  a  partir  do  campo  do  imaginário  e  do  simbólico,  aludem  a  processos  mais  amplos  de  construção  de  identidades  sociais.  Como  categoria  histórica,  é  resultado  das  lutas  passadas  que  conjugam  no  presente  trajetórias  e  situações  de  exclusão  prévias  que,  podendo  atenuar‐se  ou  radicalizar‐se,  atualizam  a  luta  de  classes  em  discursos  culturalmente enraizados. Nas palavras de Segato (2007, p.23.)    “Raça  não  é  necessariamente  sinal  de  povo  constituído,  de  grupo  étnico, de comunidade outra, mas um traço, como rastros no corpo da  marcha  de  uma  história  outrificadora  que  construiu  ‘raça’  para  construir ‘Europa’ como uma ideia epistêmica, econômica, tecnológica  e jurídico‐moral, que distribui valor e significado em nosso mundo.” 

  Por  discurso,  ao  modo  que  a  ele  se  refere  Ernesto  Laclau,  não  devemos entender algo essencialmente restrito aos âmbitos da fala e da  escrita, mas sim um complexo de elementos no qual as relações passam a  assumir um papel constitutivo que, longe de reduzir os significantes ao  campo da retórica superficial, definem os discursos como manifestação  de uma racionalidade particular (Laclau, 2010).  Enquanto  categoria  nativa,  ou  seja,  como  uma  categoria  utilizada  pelos  sujeitos  e  cujo  significado  será  associado  a  seu  mundo  prático e efetivo, se trata de um termo disposicional, que designa o que  Brubaker e Cooper, evocando a idéia de ʺsentido práticoʺ de Bourdieu,  chamam  de  uma  ʺsubjetividade  situadaʺ,  que  se  assume  como  auto‐ afirmação  ‐  cognitiva  e  emocional  ‐  do  sentido  de  quem  somente  é  alguém  em  relação  à  própria  localização  social  (Brubaker  &  Cooper,                                                                                                                                                   7

 Neste quadro pode‐se notar que a definição de raça ʺbrancaʺ não manifesta sinais de  diversidade,  enquanto  que  as  raças  ʺnão‐brancasʺ  se  desdobram  em  oito  categorias  diferentes.  Fonte:  [http://www.whitehouse.gov/omb/fedreg/1997standards.html  ʺRevisions  to  the  Standards  for  the  Classification  of  Federal  Data  on  Race  and  Ethnicityʺ. 

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2001). Portanto, a noção de raça não apenas passa a ser entendida como  uma  categoria  que  se  refere  ao  âmbito  do  que  é  dito,  mas  também  ao  âmbito  do  vivido  como  experiência,  uma  vez  que,  tal  como  evidenciado  por  Avtar  Brah  (2011),  os  discursos  que  repousam  na  estigmatização  das  diferenças  são  baseados  em  relações  de  opressão  que  moldam  a  experiência dos sujeitos, não apenas na relação com o grupo (enquanto  definições  de  identidades  coletivas  aceitas  intersubjetivamente),  mas  também  consigo  mesmos  (em  virtude  da  influência  de  esquemas  subjetivos de apropriação do eu).  Em  referência  às  condições  objetivas  que  fazem  possível  a  emergência  destes  significantes,  a  definição  de  classificações  raciais  ‐  cuja  dinâmica  pode  ser  pensada  como  um  processo  de  racialização  –  traduz, no plano ideológico, algumas das tensões econômicas, políticas  e  culturais  de  dada  sociedade8.  Neste  sentido,  podemos  perceber  uma  dupla dinâmica, onde as condições objetivas dão lugar a manifestações  ideológicas que, mediante a afirmação dos princípios objetivos no plano  simbólico, reproduzem, modelam e cristalizam as oposições estruturais  no plano discursivo. Além disso, retomando as contribuições de Pierre  Bourdieu (2006), a investigação dos critérios ʺobjetivosʺ ‐ marcadores de  diferença  suscetíveis  de  funcionar  como  indicadores  de  identidades  sociais  (cor,  dialeto,  gênero,  língua,  sotaque,  práticas  étnico‐religiosas,  etc) ‐ deve levar em consideração que na prática social tais critérios são  susceptíveis  de  se  manifestar  de  duas  maneiras:  como  objetos  de  representações mentais, ou seja, de atos de percepção e de apreciação, de  conhecimento  e  reconhecimento,  onde  os  agentes  investem  seus  interesses  e  seus  pressupostos;  e  como  representações  objetais,  de  coisas  (emblemas, bandeiras, imagens, etc.) ou atos, estratégias interessadas de  manipulação simbólica, que visam determinar a representação (mental)  que  os  outros  podem  construir  acerca  dessas  propriedades  e  de  seus  portadores.  Características  percebidas  e  apreciadas  (e  descritas  pelos                                                               8

  Se  tomamos  como  exemplo  as  sociedades  escravistas,  a  segregação  racial  sustentada  por discursos racistas pode ser entendida como reflexo da ideologia hegemônica que,  por extensão, põe em manifesto as situações de conflito entre as posições diferenciais  que, no político, no econômico e no cultural, caracterizam as posições dos ʺsenhores  brancosʺ e dos ʺescravosʺ. 

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analistas)  funcionam  como  sinais,  emblemas  ou  estigmas.  E,  tal  como  define Segato (2007): a raça passa a ser concebida como signo.  Do  mesmo  modo  como  pode  se  manifestar  em  discursos  hegemônicos  (como  é  o  caso  dos  discursos  que,  a  partir  do  Estado,  foram  orientados  para  definir  a  constituição  de  uma  identidade  nacional), as situações de desigualdade e marginalidade estrutural têm  a capacidade de unificar coletivos que, embora heterogêneos em relação à  raça, cor ou etnia, podem estabelecer laços de solidariedade em torno de  um estado de necessidade – em suma, uma experiência comum – que os  une (Brah, 2011; Segato, 2007). Dito isto, a raça pode surgir associada a  outros  marcadores  de  diferenças,  adquirindo  um  sentido  e  uma  relevância  particular  em  função  do  contexto  em  que  ocorrem,  o  que  implica  desafios  e  riscos  tanto  para  a  análise  da  constituição  das  identidades  sociais  como  para  a  definição  de  estratégias  políticas  que  tentam ser articuladas pelos grupos envolvidos9.    3. Crisol de representações    A partir do referido anteriormente é possível entrever que uma  análise das representações de raça na experiência latino‐americana que  tomasse  em  conta  o  tratamento  adequado  das  complexidades  que  ela  supõe poderia resultar excessiva para os limites desse artigo. Mas, além  das  limitações  evidentes  e,  a  fim  de  gerar  possibilidades  interessantes  de  definição  de  questões  ou  nós  problemáticos,  tentarei  identificar  um                                                               9

  A  raça  pode  associar‐se  distintivamente  a  outros  significantes,  sob  diferentes  gramáticas (Segato, 2007). Entendidos como o cenário dos processos de construção da  identidade coletiva, um conjunto de significantes tem a capacidade de consolidar um  imaginário  compartilhado  por  meio  do  qual  é  possível  fortalecer  um  vínculo  de  equivalência  que  contribui  para  que  se  estabeleça  a  definição  de  uma  comunidade  imaginada.  Assim,  a  partir  de  uma  dinâmica  de  inclusão/exclusão  baseada  na  afirmação  e  negação  de  elementos  particulares  que  definem  o  todo,  a  adoção  de  significantes  em  uma  cadeia  de  equivalências  permite  instituir  o  pertencimento  de  certos  sujeitos  ao  interior  de  um  grupo,  definindo,  por  consequência,  a  exclusão  de  outros sujeitos que não compartilham de tal vínculo. A ideia de ponto nodal na teoria  de  Zizek  permite  pensar  que  estes  significantes  não  designam  algo  positivamente,  mas possibilitam, em termos performativos, a unidade do campo: a palavra enquanto  palavra unifica um campo determinado constituindo sua identidade. 

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conjunto  de  condicionamentos  que  podem  ser  considerados  ao  se  abordar esse crisol de representações.  Embora  os  países  latino‐americanos  compartilhem  uma  série  de  experiências  (suas  conformações  e  desenvolvimentos  são  marcados  de  modo  particular  pela  experiência  colonial  e  pela  relação  de  tensão  constante  com  os  centros  de  poder  ocidentais),  e  tenham  alcançado  êxitos  no  que  se  refere  à  integração  regional,  devemos  considerar  de  todo modo as diferenças que persistem entre eles, levando em conta:  •  A  trajetória  e  constituição  dos  Estados‐Nação  (que  define  uma  comunidade nacional em seus limites, em função da mobilização  de um discurso hegemônico reconhecido como legítimo);  • As condições geopolíticas e econômicas que  marcaram a relação  com  as  potências  coloniais  (Espanha,  Brasil  e  Portugal),  com  as  potências imperialistas do século XIX (Inglaterra, França), as do  século XX (Rússia e EUA) e as relações (por vezes conflitantes e  contraditórias) entre os países da região;  •  A  presença  e  o  impacto  de  povos  originários  ou  indígenas  (de  composição  e  características  variáveis,  impossíveis  de  serem  reduzidas a um mesmo perfil analítico);  •  O  impacto  da  escravidão  (que  constitui  fator  essencial  da  composição  demográfica  de  países  como  Brasil  e  daqueles  que  compõe a região do Caribe);  • O fator imigratório (no passado e no presente), a diversidade dos  grupos imigrantes em relação aos países de origem e destino, as  variações  no  desenvolvimento  demográfico  e  as  formas  dissimiles de assentamento e integração populacionais;  • As características dos assentamentos rurais, urbanos e das zonas  de  fronteira  (onde  a  coesão  ou  os  limites  do  nacional  podem  parecer  difusos,  parcial  ou  totalmente  transformados  e  resignificados  a  partir  de  uma  experiência  marcada  pelo  entrecruzamento);  • O contexto social, econômico e político de cada Estado, etc.    Estas  variáveis  ‐  que  não  se  pretendem  exaustivas,  mas  que  definem  um  escopo  de  análise  suficientemente  complexo  para  não  ser  subestimado  –  permitem  pensar  que  um  estudo  das  representações 

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associadas  à  ideia  de  ʺraçaʺ  deveria  partir  de  uma  problematização  local  ou regional, posto que os agregados nacionais ou supranacionais podem  colocar problemas no momento de explicar sua diversidade interna. Na  Argentina,  por  exemplo,  as  associações  entre  raça,  cor  e  classe  podem  variar de acordo com a região em questão:    • na região metropolitana do corredor Córdoba‐Rosario‐Buenos  Aires,  onde  a  imigração  européia  (sobretudo  de  italianos  e  espanhóis)  teve  um  impacto  notável  e  onde  a  hierarquização  social  se  manifesta  na  delimitação  de  áreas  de  exclusão  específicas, como é o caso das ʺvilas miseriasʺ (eufemisticamente  chamadas  de  ʺvilas  de  emergênciaʺ),  o  racial  pode  ceder  ou  articular‐se com uma leitura de classe que associa a cor ʺnegraʺ  como estigma ou marcador de diferença visível para o indivíduo  de classe mais baixa (marcadores que podem associar distinções  negativas, inclusive, a grupos de imigrantes de países da própria  região, como é o caso das comunidades peruanas e bolivianas);  •  em  contraste  com  o  caso  anterior,  no  literal  argentino  a  articulação  ʺcor  negraʺ  ‐  “classe  baixa”  perde  força  devido  à  presença de descendentes europeus em situação de pobreza;  •  nas  regiões  com  presença  de  povos  originários  a  discussão  sobre  as  identidades  sociais  incorpora  com  mais  força  o  componente étnico10; 

                                                             10

 De acordo com os relatórios do Instituto Nacional de Assuntos Indígenas (INAI), na  Argentina  existem  18  povos  indígenas  que  contabilizam  um  número  estimado  de  600.329 pessoas que se reconhecem pertencentes e/ou descendentes de primeira geração.  A  maioria  da  população  se  encontra  na  Região  Noroeste  (NOA),  em  13  aldeias  (Atacama,  Ava  Guarani,  Chorote,  Chulupi,  Diaguita  /  Diaguita  Calchaquí,  Kolla,  Omaguaca,  Wichí,  Quechua,  Tapieté,  Chané  e  Maimará),  e  concentram‐se  nas  províncias  de  Salta  e  Jujuy,  seguindo  a  costa  Nordeste  (NEA‐Litoral)  com  6  aldeias  (Chulupi,  Mbya  Guaraní,  Mocovi,  Pilagá,  Toba  e  Wichí)  e  nas  províncias  de  Chaco,  Formosa  e  Santa  Fé;  na  região  da  Patagônia,  com  4  aldeias  (Tehuelche,  Ona,  Rankulche e Mapuche), concentram‐se nas províncias de Chubut, Santa Cruz e Tierra  del  Fuego;  e  na  Região  Central,  com  5  aldeias  (Guarani,  Comechingón,  Huarpe  Sanavirón  e  Tupi  Guarani)  concentram‐se  na  Cidade  de  Buenos  Aires  e  na  Grande  Buenos Aires. 

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•  menção  à  parte  constitui  o  caso  da  herança  africana:  embora  haja  destaque  para  alguns  grupos  de  afrodescendentes  ‐  atualmente entre 12.000 e 15.000 descendentes de imigrantes de  Cabo  Verde  residem  em  Ensenada,  Dock  Sud,  San  Nicolas  e  Rosário  ‐,  a  invisibilidade  do  componente  afro  na  cultura  argentina11 contrasta com a realidade de países vizinhos, como o  caso do Uruguai ou, particularmente, do Brasil.    Estas  assertivas  evidenciam  contextos  distintos  dentro  de  um  mesmo  país.  Embora  seja  possível  e  necessário  realizar  análises  que  tomem  o  Estado  como  unidade  analítica  privilegiada  (especialmente  quando  se  trata  da  análise  de  políticas  e  instituições  formais),  uma  observação  regionalizada  pode  possibilitar  contextualizações  mais  precisas  que  permitam  identificar  as  diferentes  gramáticas  (dimensionando  elementos  que  não  necessariamente  estejam  em  conformidade  com  os  parâmetros  de  formalização  estatais).  Estas  considerações  nos  permitem  argumentar  a  favor  dos  estudos  comparativos  (seja  entre  regiões  de  um  mesmo  país,  entre  países  ou  regiões supranacionais, seja entre as experiências de grupos específicos  em cada um desses contextos), uma vez que a possibilidade de realizar  uma reflexão abrangente das experiências latino‐americanas dependerá  necessariamente da articulação de estudos dessa natureza.  Para  concluir,  nos  interessa  destacar  que  representações  assumidas  como  semelhantes,  como  é  o  caso  das  ideias  de  ʺcrisol  de  razasʺ  (Argentina),  ʺmelting  potʺ  (EUA),  ʺcadinho  de  raçasʺ  ou  ʺfábula  das  três  raçasʺ  (como  se  costuma  fazer  referência  no  Brasil),  longe  de  querer  representar  fenômenos  idênticos  devem  ser  interpretadas  à  luz  de suas diferenças, uma vez que, com frequência, essas manifestações –  enquanto  produções  associadas  a  uma  lógica  discursiva  hegemônica  –  recorrem  a  recursos  homogeneizadores  que,  colocando  o  foco  na  integração  das  diversidades  como  componentes  de  uma  identidade  nacional  única,  permitem,  em  verdade,  sustentar  definições                                                               11

  No  século  XIX,  a  presença  afroamericana  era  reconhecida  e  abertamente  estigmatizada,  ilustração  disso  encontramos  na  obra  de  Martín  Fierro  (livro  emblemático da literatura argentina): Dos brancos fez Deus /dos mulatos, São Pedro/  dos negros fez o diabo/ para brasa do inferno (Capítulo 7). 

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hierarquizadas na medida em que fazem desaparecer as visões opostas  que muitos coletivos assumem como suas.  De  todo  modo,  merecem  atenção  aquelas  manifestações  discursivas  que,  insistentemente,  reproduzem  estereótipos  estigmatizantes,  como  no  caso  dos  discursos  publicitários  ‐  que,  fortalecidos por um sistema de produtos e serviços transnacionalizados,  interpelam  a  um  público  de  consumidores  potenciais  fomentando  valores de consumo assumidos como globais. Conforme defende Segato  (2007),  qualquer  análise  deve  procurar  estabelecer  uma  crítica  a  um  ʺmapa  multicultural  limitado  e  esquemático  que  projeta  uma  diversidade fixa no tempo, reificada em seus conteúdos e despojada das  dialéticas que conferem historicidade, mobilidade e enraizamento local,  regional e nacionalʺ.    4. À guisa de conclusão    A  multiplicidade  de  contextos  de  uso  da  ideia  de  ʺraçaʺ  como  termo  classificatório  pode  suscitar  confusões  ou  resultar,  em  alguma  medida,  bastante  indeterminado.  Mas  é  necessário  considerar  que  esta  indeterminação,  ao  invés  de  simplesmente  aludir  a  uma  forma  de  pobreza  semântica,  pode  representar  o  resultado  de  uma  lógica  de  significação  específica  que  deve  ser  analisada  em  relação  a  contextos  discursivos particulares.  Retomando  aquela  categorização  impossível  desenvolvida  por  Borges,  podemos  nos  questionar  (novamente  ao  modo  de  Foucault)  acerca  das  condições  a  partir  das  quais  era  e  é  possível  demarcar  identidades  fundadas  na  ʺraçaʺ,  levando  em  consideração  critérios  de  certeza que permitem assumir tais taxonomias ou gramáticas como algo  pensável  (susceptível  de  ser  administrado  e  delimitado  em  campos  de  conhecimento  específicos).  Assumindo  sua  contingência,  o  questionamento  acerca  de  um  regime  de  representação  exigirá  determinar  quais  são  as  condições  históricas  que  fizeram  emergir  o  conceito enquanto definindo uma ordem, já que ele impõe, sob a forma  de um discurso hegemônico, uma autoridade semântica capaz de tornar  possível  vislumbrar  a  instituição  de  uma  diferença  social  cristalizada  em  situações  de  exclusão,  instituição  esta  que  encontra  fundamento 

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numa  rede  de  relações  que  se  estabelecem  em  um  campo  social  estruturado e hierarquizado.  A  análise  discursiva  que  se  articula  com  o  estudo  das  práticas,  problematiza,  a  partir  do  real,  a  representação  do  real  (ou  a  luta  pelas  representações  que  buscam  definir  o  real),  ou  seja:  as  lutas  pelo  monopólio de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e reconhecer,  de  impor  a  visão  legítima  das  divisões  do  mundo  social  (Bourdieu,  2006).  O  estudo  da  diversidade  de  experiências  pode  enriquecer  a  integração real de nossos povos. Tal e como se refere Segato: ʺAfirmar a  diferença  das  culturas  em  um  sentido  profundo  é  afirmar  a  possibilidade de que outros valores e outros fins orientem a convivência  humana.ʺ        Bibliografia    BOURDIEU,  Pierre.  La  identidad  y  la  representación:  elementos  para  una  reflexión crítica de la idea de región. Ecuador Debate, nº 67 , 165‐184, 2006.  BRAH,  Avtar.  Cartografías  de  la  diáspora.  Identidades  en  cuestión.  Madrid:  Traficantes de Sueños, 2011.  BRUBAKER, Roger, & Cooper, Frederick.. Más allá de la identidad. Apuntes de  investigación del CECYP, nº7 , 30‐67, 2001.  FOUCAULT,  Michel.  As  palavras  e  as  coisas.  São  Paulo,  Editora  Martins  Fontes, 1995.  LACLAU,  Ernesto.  La  razón  populista.  México  D.F.:  Fondo  de  Cultura  Económica, 2010.  SEGATO,  Rita  L.  La  Nación  y  sus  Otros.  Raza,  etnicidad  y  diversidad  religiosa  en  tiempos de Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.  SLENES, Robert. A Importância da África para as Ciências Humanas. Historia  Social, nº19, 2010. 

         

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Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares  sobre a experiência contemporânea brasileira    Valter Roberto Silvério1      “O  racismo  e  o  colonialismo  deveriam  ser  entendidos  como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver  nele”. (Frantz Fanon)  

    1. Introdução    O  argumento  desenvolvido  no  presente  texto  é  de  que  o  deslocamento  na  forma  como  a  sociedade  brasileira  se  autorrepresentava  é  decorrente  do  processo  de  luta  política  pela  (res)significação/deslocamento  do  lugar  do  ser  negro  no  processo  de  racialização  de  sua  experiência  coletiva.  Com  base  nas  conquistas  do  movimento  negro  é  possível  destacar  alguns  aspectos  que  permitem  sustentar  essa  linha  de  raciocínio,  a  saber:  1)  o  tratamento  político‐ jurídico  da  temática  da  diversidade  e  da  igualdade  racial  na  Constituição  de  1988;  2)  a  alteração  da  Lei  de  Diretrizes  e  Bases  da  educação  brasileira,  e  as  diretrizes  que  a  acompanham,  orienta  para  uma  mudança  significativa  nos  conteúdos  curriculares  nacionais,  ao  prescrever  a  obrigatoriedade  de  uma  educação  que  possibilite  a  construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e  a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena. E, finalmente, a  interação  entre  as  mudanças  internas  e  o  papel  que  o  Brasil  passou  a  representar  transnacionalmente  nos  últimos  anos,  não  exclusivamente,  mas em especial para os países da comunidade de língua portuguesa do  continente africano.  Uma  das  preocupações  centrais  de  Fanon  foi  demonstrar  os  efeitos  do  colonialismo  sobre  o  colonizado,  buscando  entender  as                                                               1

 Professor Associado do Departamento e Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da  Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Coordenador em exercício do Núcleo  de Estudos Afro‐Brasileiros da mesma universidade.  

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implicações para o desenvolvimento nacional depois do sucesso total da  luta anti‐colonial. Neste sentido, fez um conjunto de comentários acerca  da  natureza  do  racismo  em  1956.  Três  de  suas  observações  têm  sido  mais  amplamente  articuladas  recentemente.  Na  primeira,  Fanon  argumentou  que  racismo  não  é  um  fenômeno  estático,  mas  sim  constantemente  renovado  e  transformado.  No  segundo  comentário,  observa  que  o  racismo  primitivo  se  afirmou  no  terreno  da  biologia  correspondendo  a  uma  fase  do  colonialismo,  pois  estes  argumentos  tinham  sido  desacreditados  pelas  consequências  do  fascismo  na  Alemanha. Finalmente, afirmou que racismo foi um aspecto central da  dominação  colonial,  o  qual,  em  conjunto  com  outros  mecanismos,  intencionava  transformar  a  população  colonizada  em  objetos  usados  para os propósitos do colonizador (Fanon, 1970: 41‐54).   Na  perspectiva  de  Fanon,  o  racismo  primitivo  tem  sido  substituído por um racismo cultural que tem como seu objeto não o ser  humano individual, mas uma certa “forma de existência” e que racismo  é  somente  um  elemento  de  uma  vasta  e  sistematizada  totalidade  de  opressão  de  um  povo  (1970:  43).  Tal  sugestão  tem  inspirado  um  conjunto de estudos nas sociedades com passado colonial ou sociedades  racialmente estruturadas de acordo com Hall (Hall, 1980).   Esta  substituição  de  um  racismo  primitivo  (biológico)  por  um  racismo  cultural  foi  retida  e  tem  sido  fundamental  para  a  análise  dos  desdobramentos  da  formação  racial  nos  Estados  Unidos,  por  exemplo,  no período pós‐movimento dos direitos civis, na Europa, especialmente  na Inglaterra, na definição do “New Racism”.   A palavra racismo deriva da ideia de que raça determina cultura  e,  como  consequência,  afirma  a  superioridade  racial  de  alguns  povos  em  relação  a  outros.  Na  atualidade,  este  significado  original  do  termo  nem  sempre  fica  evidente  pelo  uso  diversificado  da  palavra.  No  entanto, o conceito de racialização2, que foi utilizado pela primeira vez                                                               2

  A  ideia  contemporânea  de  “racialização”  ou  “formação  de  raça”  se  baseia  no  argumento  de  que  a  raça  é  uma  construção  social  e  categoria  não  universal  ou  essencial da biologia. Raças não existem fora da representação. Em vez disso, elas são  formadas na e pela simbolização em um processo de luta pelo poder social e político.  O  conceito  de  racialização  refere‐se  aos  casos  em  que  as  relações  sociais  entre  as 

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por Frantz Fanon na discussão sobre as dificuldades enfrentadas pelos  intelectuais  africanos  quando  confrontados  com  os  desafios  da  construção  de  uma  “nova”  cultura  no  pós‐colonialismo,  pode  nos  auxiliar  a  compreender  os  novos  sentidos  do  termo  raça  (Fanon,  1967:  170‐1). Para Banton, racialização está relacionada ao caminho através do  qual  as  teorias  científicas  construíram  tipologias  raciais  que  foram  utilizadas  para  categorizar  populações  (Banton,  1977:  18).  Reeves  distinguiu  entre  racialização  “ideológica”  e  racialização  “prática”  usando  a  primeira  em  referência  ao  discurso  sobre  a  raça  e  a  última  para se referir à formação de “grupos raciais” (Reeves, 1983: 173‐6).   O  conceito  de  racialização,  em  Miles,  focaliza  o  processo  de  atribuição  de  significados  a  características  somáticas,  isto  é,  um  processo  dialético  de  significação.  Ao  imputar  uma  real  ou  alegada  característica  biológica  como  meio  de  definir  o  Outro,  o  Eu  se  define  pelo mesmo critério (Miles, 1989: 73‐7).   Para  Webster,  nenhuma  das  concepções  sociológicas  correntes  de  racialização  identifica  ou  desafia  seu  principal  elemento  que  é  a  afirmação  de  que  raça  é  uma  realidade  social  ou  política.  Assim,  para  Webster,  o  aspecto  científico  social  da  racialização  incorpora  uma  organização  de  estudos  das  relações  sociais  passadas  e  presentes,  em  torno  das  classificações  raciais  que  são  apresentadas  como  reais  e,  então,  justificadas  como  um  objeto  de  estudo  em  termos  de  sua  realidade.  Racialização  é,  por  isso,  classificação  racial  construída  com  características de autoperpetuação (Webster, 1992: 26).   Omi  e  Winant  usam  o  conceito  de  racialização  para  realçar  a  extensão do significado de raça em relações, práticas sociais ou grupais  não classificadas previamente como raciais. Deste modo, racialização é  um  processo  lógico‐ideal,  uma  especificidade  histórica  (Omi  e  Winant,  1986: 64; Winant, 1996: 59). Para Winant, o exemplo deste processo nos  Estados Unidos foi a consolidação da categoria black para os africanos  que anteriormente se identificavam ou eram identificados como Mande,  Akan,  Ovimbundu  ou  Ibo,  paralelamente  à  evolução  do  termo  white  como  uma  forma  crucial  de  autoidentidade  para  os  europeus  que  se                                                                                                                                                   pessoas  foram  estruturadas  pela  significação  de  características  biológicas  humanas,  de tal modo a definir e construir coletividades sociais diferenciadas. 

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autodenominavam,  inicialmente,  como  cristãos,  ingleses  e  livres  (Winant, 1996: 59).   Pouca concordância há nestes vários usos do termo, entretanto, é  possível identificar ao  menos três sentidos distintos em que o conceito  de  racialização  pode  ser  apreendido:  em  um  primeiro  uso,  o  conceito  aparece com referência a um processo representacional através do qual  o  significado  social  é  atribuído  a  certas  características  biológicas  humanas  (usualmente  fenotípicas)  que  se  constituem  na  base,  a  partir  da qual aquelas pessoas que possuem tais características são designadas  como  uma  coletividade  distinta.  O  segundo  uso  do  conceito  se  refere  àquelas  práticas  científicas  e  político‐institucionais  que  perpetuam  a  competição  entre  raças  e  ou  etnias.  Por  último  a  racialização  aparece  como um processo lógico‐ideal constitutivo da própria modernidade.   Nos  dois  primeiros  usos  do  conceito,  aparentemente,  a  racialização  é  uma  característica  erradicável  das  sociedades  humanas,  mas  em  seu  último  uso  ela  aparece  como  um  processo  que  está  nas  origens  da  cultura  ocidental  moderna.  As  variações  do  conceito  estão  associadas ao modo através do qual os autores concebem raça.  A emergência e utilização da idéia de “raça” é uma fase histórica  central da racialização, em termos de periodização, embora não seja seu  solo de origem. De qualquer forma, desde o século XVIII, a população  mundial  tem  sido  classificada  no  pensamento  europeu  em  “raças”.  Miles usa o conceito de racialização para se referir ao processo dialético  pelo qual significado é atribuido a características biológicas particulares  dos  seres  humanos,  resultando  na  possível  alocação  de  indivíduos  em  categorias  gerais  de  pessoas  as  quais  reproduzem  a  si  mesmas  biologicamente. Ela é, portanto, um processo ideológico.   De outra perspectiva, Webster está preocupado em identificar e  refutar o que ele chama de “teoria racial geral”. Segundo ele, há mais de  dois séculos, os estudos sociais e as políticas públicas estão dominadas  por  esta  teoria  nos  Estados  Unidos.  Focando  menos  os  grupos  ou  pessoas e seus motivos políticos, a origem racial ou os atributos raciais,  as  definições  de  termos,  as  premissas  e  as  implicações  lógicas  dos  argumentos científicos presentes no debate, Webster se propõe a refutar  a  afirmação  básica  de  que  raça  tem  sido  uma  força  formativa  e  propulsora da sociedade norte‐americana (Webster, 1992: 2).  

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Winant,  de  uma  outra  perspectiva,  argumenta  que  mais  importante do que negar o estatuto científico da idéia e do conceito de  raça  é  focalizar  a  continuidade  de  sua  significância  e  as  mudanças  no  seu  significado.  Neste  sentido,  este  autor  procura  criticar  quatro  tendências  presentes  na  discussão  contemporânea  em  torno  do  significado  da  raça:  a  primeira  tendência  tenta  demonstrar  o  caráter  ilusório da natureza da raça; a segunda busca a transcendência da raça;  a terceira assegura a morte do conceito de raça e a última simplesmente  substitui  a  categoria  raça  por  categorias  supostamente  mais  objetivas,  como  etnicidade,  nacionalidade  ou  classe.  Para  Winant,  todas  estas  iniciativas  são  equivocadas  e  intelectualmente  desonestas  por  considerarem raça uma construção ideológica ou uma condição objetiva  (Winant, 1996: 14).   Winant  observa  que  mesmo  os  autores  considerados  do  mainstream  (corrente  principal)  teorizam  raça  em  termos  de  sua  exiguidade  e  flexibilidade  e  de  seu  caráter  contingente.  Isto  é,  mesmo  aqueles pensadores que inquestionavelmente rejeitam a teoria racial em  seu  formato  biológico,  não  conseguem  escapar  de  certo  tipo  de  objetivismo.  Daí,  o  surgimento  de  uma  explicação  modal  nos  escritos  sobre raça:     “…as  circunstâncias  sociopolíticas  mudam  através  do  tempo  histórico, os grupos racialmente definidos se adaptam ou falham  em  se  adaptarem  às  mudanças,  adquirem  mobilidade  ou  permanecem na pobreza. O problema é que nesta lógica não há  espaço para a (re) conceitualização da identidade grupal a partir  das constantes alterações de parâmetros através dos quais raça é  pensada,  interesses  de  grupos  são  subscritos,  status  são  atribuídos,  agências  são  criadas  e  papéis  sociais  são  desempenhados” (Winant, 1996: 17).  

  Omi  e  Winant,  afirmam  que,  nas  últimas  décadas,  nós  temos  testemunhado  através  do  espectro  político,  a  tentativa  na  vida  institucional  de,  por  um  lado,  definir  um  significado  apropriado  para  raça  e,  por  outro  lado,  estabelecer  identidades  raciais  coerentes  baseadas  em  tais  significados.  Na  visão  destes  autores,  estes  objetivos  foram  e  continuam  a  ser  impossíveis,  principalmente,  porque  raça  é 

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preeminentemente uma construção social que está inerentemente sujeita  à contestação por seu significado intrinsicamente instável.   Assim,  eles  propõem  que,  no  interior  da  perspectiva  de  uma  formação  racial,  raça  deve  ser  entendida  como  um  complexo  de  significados sociais fluídos, instáveis e “descentrados”, constantemente  transformados pelo conflito político (Omi e Winant, 1986).   Deste  modo,  a  raça  modela  tanto  a  psique  e  os  relacionamentos  entre indivíduos de “cores” diferentes quanto fornece um componente  irredutível  das  identidades  coletivas  e  da  estrutura  social.  Assim,  é  possível  interpretar  o  significado  de  raça  não  em  termos  de  definição,  mas  em  termos  de  processos  de  formação  racial.  Entre  os  elementos  principais destes processos está a construção de identidades raciais e os  significados que Winant chama de racialização (Winant, 1996: 58‐59).   O  argumento  básico  é  que  na  sociedade  contemporânea  existe  uma  amplificação  do  conflito  racial  em  termos  globais.  Sem  assumir  a  existência de qualquer uniformidade neste rápido aumento de tensão e  forte consciência em matéria racial, Winant está interessado em focar a  interação entre estrutura social e significação, levando em consideração  a  grande  variação  entre  ordens  raciais  locais.  Para  Winant,  a  dinâmica  da significação racial é sempre relacional. Esta afirmação o diferencia de  Miles,  para  quem  um  significado  sobre  o  Outro  é,  aprioristicamente  construído  e,  no  momento  posterior,  incorporado  pelo  próprio  Outro.  Da  mesma  forma,  o  diferencia  de  Webster  para quem  o  significado  de  raça é uma construção científica e política.   As  dimensões  globais  da  formação  racial  podem  ser  mais  facilmente observadas através de fenômenos tais como o surgimento da  “diáspora”  negra,  a  criação  de  comunidades  “pan‐étnicas”,  formadas  por latinos e asiáticos nos países do Reino Unido e nos Estados Unidos,  os  quais  evidenciam  uma  derrubada  de  fronteiras  tanto  na  Europa  quanto  na  América  do  Norte.  Tudo  parece  estar  se  hibridizando,  se  transculturando  e  se  racializando  nos  grupos  previamente  nacionais,  culturas  e  identidades. Em  razão  destas  transformações,  a  comparação  das  ordens  política  e  social  local,  baseadas  na  raça,  se  torna  fundamental. Similarmente, pela primeira vez nós começamos a pensar  nas variações na identidade racial, não como desviantes de uma norma  supostamente  modal  (imperialista),  mas  como  parte  flexível  de  um 

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contexto  e  repertório  específico.  Finalmente,  a  dissolução  da  transparência da identidade racial do grupo formalmente dominante, a  crescente  racialização  dos  brancos  na  Europa  e  nos  Estados  Unidos  devem  ser  também  reconhecidas  como  procedentes  da  crescente  dimensão globalizada da raça (Winant, 1996: 118).   Desta  forma,  se  raça  não  é  algo  natural  ou  inato  ou  uma  ilusão,  importa  saber  as  razões  e  condições  nas  quais  o  discurso  sobre  raça  é  empregado  na  tentativa  de  rotular,  constituir,  excluir  ou  incluir  subalternamente coletividades sociais. Segundo Winant, na perspectiva da  formação  racial,  este  percurso  pode  ser  trilhado  a  partir  de  três  determinações  que  devem  ser  incorporadas  teoricamente  ao  conceito  de  raça, de modo a tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem  tangível,  nem  verdadeira,  nem  falsa.  Tais  determinações  indicam:  a  dimensão  política,  a  global  comparativa  e  a  histórico‐temporal.  Com  a  introdução dessas determinações, o conceito teórico de raça seria removido  definitivamente do reino biológico para ser alocado no reino social.   A  dimensão  política  se  refere  às  novas  relações  que  surgiram,  principalmente,  onde  alguns  poderes  contra‐hegemônicos  e/ou  pós‐ coloniais estão presentes, propiciando a proliferação dos significados e  das  articulações  políticas  com  base  na  raça.  Três  aspectos  se  destacam  nesta dimensão: 1) a insuficiência do simples dualismo contido na ideia  da  “Europa  e  seus  Outros”,  captada  pelo  debate  da  ampliação  e  amplificação  da  subjetividade  e  identidade  pós‐colonial,  2)  a  possibilidade de perpetuar a dominação racial sem qualquer referência  explícita  à  raça  por  meio  de  significados  raciais  codificados  subtextualmente  ou  da  simples  negação  de  sua  continuidade  da  significação,  3)  a  possibilidade  de  resistir  inteiramente,  por  novos  caminhos,  à  dominação  racial,  particularmente  pela  limitação  do  alcance e penetração do sistema político na vida cotidiana, pela geração  de  novas  identidades,  novas  coletividades,  novas  comunidades  (imaginadas), relativamente menos permeáveis ao sistema hegemônico  (Winant, 1996: 19).   A  dimensão  global  comparativa  é  aquela  referente  ao  contexto  globalizante no qual raça opera. Isto é, a geografia racial se tornou mais  complexa,  tanto  em  termos  do  seu  alcance  imperial,  colonial  e  migratório,  quanto  pela  globalização  do  espaço  racial  que  se  torna 

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acessível  a  um  novo  tipo  de  análise  comparativa.  Na  perspectiva  de  Winant,  chegamos  a  um  ponto  em  que  os  ex‐sujeitos  (neo)coloniais,  agora  redefinidos  como  “imigrantes”,  desafiam  o  status  dos  grupos  metropolitanos  majoritários  (os  brancos,  os  europeus,  os  “americanos”  ou “franceses” etc.). Ao mesmo tempo, surgem fenômenos tais como a  diáspora  negra,  a  criação  de  uma  comunidade  latina  e  de  uma  comunidade  asiática  “pan‐étnica”  (no  Reino  Unido  e  nos  Estados  Unidos).  Paralelamente,  o  fechamento  de  fronteiras  na  Europa  e  na  América  do  Norte  indica  prévia  racialização  de  políticas  nacionais,  culturas e identidades. O exemplo mais visível é a cultura popular que  mundializa  a  consciência  racial  quase  instantaneamente  como  faz  o  reggae,  rap,  samba  e  vários  outros  estilos  pop  africanos  que  transitam  velozmente de um continente para outro (Winant, 1996: 19‐20).   Para este autor, esta conscientização não é mera reação ou simples  negação  do  domínio  teórico‐cultural  “Ocidental”.  Noções  como  consciência  diaspórica  ou  epistemologias  racialmente  informadas  ganham  mais  atenção  como  um  esforço  para  expressar  a  globalização  contemporânea do espaço racial e apontam para a construção de novas  identidades  raciais  ou  para  a  dinâmica  da  “panetnicidade”,  agora,  global.  A  dissolução  da  transparência  da  identidade  racial  do  grupo  formalmente dominante, isto é, a avançada racialização dos brancos na  Europa  e  nos  Estados  Unidos  deve  também  ser  reconhecida  como  conduzindo  a  uma  dimensão  globalizada  crescente  da  raça.  Dito  de  outra  forma,  a  “brancura”  se  torna  uma  matéria  de  ansiedade  e  preocupação (Winant, 1996: 20).   Quanto  à  dimensão  histórico‐temporal,  Winant  observa  que  muitos dos escritos pós‐estruturalistas, preocupados com as diferenças  entre os seres humanos, têm feito esforço para explicar o “Ocidente” ou  o  tempo  colonial  como  um  vasto  projeto  de  demarcação  das  “diferenças”  humanas  ou  mais  globalmente,  argumentando  sobre  a  formação  parcial  de  identidades  coletivas,  em  termos  de  “Outros”  externalizados como lembra Todorov (Todorov, 1985).  

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Ao criticar o polêmico trabalho de Wilson3, Winant observa que a  análise  ali  contida  demonstra  não  a  existência  de  uma  subclasse  em  uma  sociedade  em  que  a  significância  da  raça  está  em  declínio,  mas  a  continuidade  da  significância  do  racismo  institucional  ou  o  chamado  “metaracismo”, como lembra Kovel (Kovel, 1984).   A  justificativa  sociopolítica  e  legal  oferecida  para  uma  política  supostamente  neutra  do  ponto  de  vista  racial  é  uma  reinterpretação  conservadora  e  individualista  das  medidas  igualitárias  propostas  pelo  movimento  dos  direitos  civis  dos  anos  60.  Esta  é  a  forma  de  racismo  apropriada  para  o  atual  momento  histórico,  no  qual  o  estado  não  organiza  e  força  a  supremacia  branca,  mas  se  esconde  atrás  de  uma  política  oficial  ‐  ou  de  fachada  –  de  neutralidade  racial.  Racismo,  no  presente, toma a forma de supremacia branca ou metaracismo que tem  consequências de classe.   Brasil, África do Sul e Estados Unidos são países em que a forma  de  colonização  condicionou  a  estrutura  da  formação  do  Estado  e  da  sociedade  civil,  bem  como  as  inter‐relações  entre  estas  duas  esferas  da  vida  social,  especificamente,  no  tratamento  da  questão  racial.  Em  que  pese  às  diferenças  em  relação  ao  período  no  qual  ocorreram  os  processos  de  conquista,  colonização  e  independência,  estes  Estados  foram  marcados  por  formas  de  dominação  racial  e,  atualmente  em  proporções diferenciadas e variáveis, comportam uma dinâmica em que  a  estrutura  social  é  racialmente  organizada  o  que,  aparentemente,  tem  impedido a possibilidade do pleno exercício dos direitos fundamentais  de cidadania a todos.   Marx  observa  que,  “nos  três  casos,  a  ordem  racial  certamente  refletiu  e  acelerou  o  desenvolvimento  econômico,  mas  de  forma  complexa.  O  apartheid  e  Jim  Crow  diluíram  a  concorrência  entre  os  brancos  que  ameaçava  a  estabilidade  e  o  crescimento,  embora  o  crescimento  e  a  concorrência  não  tenham  levado  à  aplicação  de  tais  políticas no Brasil. O conflito de classe, real ou potencial, nos três casos,  tinha  de  ser  resolvido  para  assegurar  a  estabilidade,  exigência  mais 

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  The  Declining  Significance  of  Race:  Blacks  and  Changing  American  Institutions,  University of Chicago Press, 1980. 

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fundamental,  tanto  para  o  desenvolvimento  econômico,  como  para  a  consolidação do estado nação” (Marx, 1996: 18‐19).   É na reconciliação entre ingleses e africânderes, após a guerra do  Bôeres, que se encontra os termos para a segregação dos negros, que se  tornaria  um  fator  central  na  construção  do  Estado  sul‐africano.  Como  demonstra  Marx,  através  da  fala  de  um  alto  comissário  britânico  sir  Alfred Milner, em 1897:     “(…) para vencer os holandeses […] basta sacrificar absolutamente ‘os  negros’  e  o  jogo  fica  fácil  […]  governo  autônomo  […]  e  lealdade  colonial  […]  [exigiriam]  o  abandono  das  raças  negras”  (Lemay,  1965:  11‐2; citado em Marx, 1996: 20).  

  O  caso  norte‐americano  tem  muita  similaridade  com  o  sul‐ africano,  embora  o  conflito,  na  consolidação  do  Estado  Nacional,  não  tenha sido entre dois fragmentos de grupos europeus, mas entre grupos  regionais.  A  população  indígena  dos  Estados  Unidos  foi  quase  totalmente  exterminada,  mas  os  escravos  continuaram  sendo  numerosos  e,  portanto,  o  núcleo  da  discórdia  regional.  Um  fato  relevante indicativo da tensão regional foi a decisão denominada Dred  Scott,  de  1857,  que  considerou  que  as  garantias  formais  do  direito  à  igualdade e à cidadania eram inaplicáveis aos negros (Foner, 1970: 292‐ 3; Marx, 1996: 21).   Depois  da  Guerra  Civil  americana,  a  nação  adotou  três  emendas  constitucionais:  a  13ª,  em  1865,  extinguia  a  escravidão;  a  14ª,  em  1868,  tornava  todos  os  negros  cidadãos  dos  Estados  Unidos  e  proibia  leis  estaduais  que  negassem  igual  proteção  aos  negros  e  a  15ª,  em  1870,  proibindo a discriminação racial em votações. No fundamental, a 14ª e a  15ª  emendas  não  eram  cumpridas  em  todo  país,  mas  apresentavam  maior visibilidade no sul.   Esses Estados geraram categorizações raciais distintas. Assim, nos  Estados  Unidos  e  na  África  do  Sul,  onde  o  preconceito  enfatiza  a  origem,  a  identidade  do  indivíduo  ou  do  grupo  será  construída  com  base  na  origem  racial  e  ou  étnica  fundada  no  princípio  de  hipodescendência.  No  Brasil,  a  ênfase  recai  sobre  marca  ou  na  cor,  combinando  a  miscigenação  e  a  situação  sociocultural  dos  indivíduos. 

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Essa distinção implicou no desenvolvimento de dois tipos de racismo, o  diferencialista e o assimilacionista.   Munanga,  por  exemplo,  observa  que  o  racismo  diferencialista  engendrou  o  antirracismo  diferencialista  e  o  racismo  universalista  (assimilacionista)  engendrou  o  antirracismo  universalista.  “O  anti‐ racismo  universalista  busca  a  integração  na  sociedade  nacional,  baseando‐se  nos  valores  universais  da  natureza  humana,  sem  discriminação de cor, raça, sexo, cultura, religião, classe social, etc. É o  chamado integracionismo fundamentado no indivíduo “universal”. De  modo oposto, “o antirracismo diferencialista busca a construção de uma  sociedade  igualitária  baseada  no  respeito  das  diferenças  tidas  como  valores positivos e como riqueza da humanidade. Os quais pressupõem a  construção  de  sociedades  plurirraciais  e  pluriculturais;  defende  a  coexistência no mesmo espaço geopolítico no mesmo pé de igualdade de  direitos, de comunidades e culturas diversas” (Munanga, 1999: 115‐6).   No Brasil, de acordo com Guimarães, é somente a partir dos anos  1980 que  o  movimento  negro passou a assumir um  discurso racialista  e  multicultural.  Assim,  tanto  o  alvo  da  Frente  Negra  Brasileira  (FNB),  na  década de 30, isto é, a luta contra a segregação e a discriminação racial,  quanto o alvo do Teatro Experimental do Negro (TEN) nos anos 50, isto  é,  a  luta  pela  recuperação  da  autoestima  negra,  passam  a  ser  reinterpretadas  pelo  ideário  multiculturalista  em  que  se  revaloriza  a  herança  africana,  procurando  desvencilhá‐la  das  adaptações  e  dos  sincretismos  com  a  cultura  nacional  brasileira.  O  autor  chama  atenção  para  dois  aspectos  fundamentais:  primeiro,  é  a  neutralidade  da  agenda  ou programa delineado nesta mobilização negra, permitindo a aceitação  das mais diferentes tendências ideológicas do movimento negro por meio  de um discurso que evoca o carisma da raça negra visando à formação de  uma identidade racial negra.  Os três pontos básicos da agenda são:     “(a) recuperação da autoestima negra através da modificação de valores  estéticos,  da  reapropriação  de  valores  culturais,  da  recuperação  de  seu  papel na história nacional, do avivamento do orgulho racial e cultural; (b)  combate  à  discriminação  racial  através  da  universalização  da  garantia  dos  direitos  e  das  liberdades  individuais,  incluindo  os  negros,  os  mestiços  e  os  pobres;  (c)  combate  às  desigualdades  raciais  através  de 

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políticas públicas é o discurso que evoca o carisma da raça negra visando  à formação de uma identidade racial negra (Guimarães, (1999: 115).  

  O segundo aspecto observado por Guimarães está relacionado às  dificuldades encontradas pelos grupos e instituições antirracistas para a  mobilização coletiva dos negros. Para esse autor, estas dificuldades têm  recebido  dois  tipos  de  diagnósticos:  ou  se  trata  o  movimento  negro  como  um  movimento  de  classe  média,  distante  do  povo  negro;  ou  se  trata  o  movimento  negro  como  presa  ou  vítima  da  ideologia.  Ao  discordar  desses  diagnósticos,  Guimarães  conclui  que,  diferentemente  dos Estados Unidos e da África do Sul onde a identidade racial tem um  efeito cumulativo natural, isto é, não se sobrepõe à família, no Brasil, a  identidade  racial  continuará  sua  formação  contornando  as  solidariedades  familiares  ou  comunitárias.  Em  outros  termos,  se  nos  Estados Unidos e África do Sul, a identidade racial ou étnica serviu para  a  mobilização  política,  no  Brasil  tem  sido  útil,  primordialmente,  para  reforçar  a  auto‐estima  negra,  embora  não  encontre  a  necessária  ressonância no plano da mobilização política (Guimarães, 1999: 111).   Munanga  observa  que  as  dificuldades  da  mobilização  da  identidade  racial  negra  no  Brasil  estariam  relacionadas  à  categoria  mestiço. Assim, se é verdade que a mestiçagem não conseguiu resolver  os efeitos da hierarquização dos três grupos de origem e os conflitos de  desigualdades  raciais  resultantes  dessa  hierarquização,  também,  é  verdade que não constituem uma categoria estanque pelo fato de ser de  cor e não de origem; portanto, dependendo do grau de mestiçagem e da  condição  socioeconômica,  eles  podem  atravessar  a  linha  de  cor  e  reclassificar‐se no grupo branco (Munanga, 1999: 121).   Para  esse  autor,  a  proposta  dos  movimentos  negros  no  Brasil  esbarra  na  mestiçagem  cultural,  pois  o  espaço  do  jogo  de  todas  as  identidades  não  é  nitidamente  delimitado.  Neste  sentido,  Munanga  reconhece  tanto  os  esforços  dos  movimentos  negros  na  redefinição  e  a  caminho  de  uma  consciência  política  e  uma  identidade  étnica  mobilizadoras,  contrariando  a  democracia  racial,  quanto  à  pequena  efetividade  das  propostas  racialistas  que  nascem  do  antirracismo  diferencialista  e  sustentam  as  propostas  multiculturalistas  em  um  país  de ideologia uniculturalista como o nosso (Munanga, 1999: 125‐126).  

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Quanto aos Estados Unidos, o antirracismo (racialista) se depara com  um discurso semelhante ao discurso sobre a raça existente no Brasil que,  em  poucas  palavras,  nega  a  persistência  do  racismo.  Ao  fazer  isso,  este  discurso  sinaliza  para  o  fim  das  políticas  de  ação  afirmativa,  ao  mesmo  tempo,  que  afirma  que  as  políticas  públicas  para  serem  antirracistas  precisam  ser  universalista  e  “color  blind”  (Guimarães,  1999:  112).  Em  outros  termos,  o  antirracismo  racialista  norte‐americano  convive,  atualmente,  com  o  nascimento  de  um  discurso  universalista  que  tenta  encobrir  e  ou  esconder  as  desigualdades  que  persistem  entre  brancos  e  não‐brancos.  Deste  modo,  ao  discutir  uma  agenda  integrada  do  antirracismo,  Guimarães  acredita  que  o  fato  do  povo  sul‐africano  (multiétnico e multirracial) ter optado pela construção de um Estado não‐ racialista pode nos ensinar alguma coisa. No momento de reconstrução da  nação e do Estado, “a África do Sul não pode, por um lado, definir‐se como  um  prolongamento  da  Europa,  como  o  Brasil  e  Estados  Unidos  fizeram,  sob  pena  de  alienar  a  grande  maioria  da  população  africana;  mas  não  poderá  também  definir‐se  segundo  as  tradições  africanas  mais  provincianas,  ignorando  mais  de  três  séculos  de  contato  cultural”  (Guimarães, 1999: 114). Assim, “é a África do Sul que poderá nos indicar  um  modelo  de  nação  multicultural,  multi‐étnica  e  não‐racialista  para  a  agenda  anti‐racialista  no  Brasil  e  nos  Estados  Unidos”  (Guimarães,  1999:  114).   A  agenda  antirracista  deve  ser  pensada  em  três  dimensões:  o  Estado,  a  nação,  os  indivíduos.  No  plano  do  Estado,  além  de  todas  as  garantias  democráticas  que  já  constam  nas  cartas  constitucionais  dos  três  países,  o  princípio  do  não‐racialismo  não  pode  impedir  a  elaboração e execução de legislações especiais visando combater formas  duradouras  de  opressão  social.  No  plano  da  nação,  para  Guimarães,  o  desafio está na reconstrução das nacionalidades em bases pluriculturais  e  pluriétnicas.  Os  ideais  de  assimilação  e  de  integração  do  Estado‐ Nação  terão  que  ser  substituídos  pela  integração  ao  nível  do  Estado  (dos direitos) (Guimarães, 1999: 114). Isto, por sua vez, pode conduzir à  superação  da  equação  “do  século  XIX  (um  Estado=  uma  nação=  uma  raça=  uma  cultura)”  por  uma  equação  em  que  teremos:  “um  Estado=  várias  heranças  culturais=  várias  raças=  várias  etnias.  Não  que  não  se  possa  desenvolver  uma  cultura  cívica  particular,  mas  tal  cultura  não 

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pode  significar  a  negação  das  diversas  heranças  e  tradições  culturais  que formam a nação” (Guimarães, 1999: 114).   No  plano  individual  e  das  identidades  grupais,  “o  antirracismo  deve visar os estigmas raciais (de cor, raça e classe, no Brasil; de raça e cor  nos Estados Unidos e de etnia, na África do Sul)” (Guimarães, 1999: 114).  Convém  retomar  Mandani  e  lembrar  que  a  forma  de  “tribalização”  ocorrida  durante  o  período  colonial  persistiu  após  a  queda  do  apartheid,  constituindo‐se  em  um  dos  grandes  obstáculos  à  democratização do país. Isto é, para se tornar multicultural, a África do  Sul,  aparentemente,  tem  que  “destribalizar”  a  sociedade  civil,  possibilitando  uma  convivência  democrática  plural  e  criando  a  possibilidade  de  uma  cidadania  equitativa.  A  distinção  entre  pluricultural e multicultural pode desvendar melhor o que está por trás  da oposição não‐racialismo/racialismo. Uma sociedade pluralista (racial  e etnicamente) universalizante ou uma sociedade com projetos raciais e  étnicos particularizantes em disputa por posições nas diferentes esferas  da  vida  social.  A  escolha,  entre  uma  ou  outra  forma  de  sociedade,  implica  em  caminhos  distintos  rumo  à  consolidação  do  processo  democrático em qualquer dos países estudados. Mas, o que se pode ter  certeza é que a racialização do mundo tornou‐se uma realidade global.     2. Desdobramentos contemporâneos na sociedade brasileira    Ao  se  observar  o  preâmbulo  da  Constituição  Federal  de  1988,  tem‐se  a  impressão  de  que  a  concepção  de  “democracia  racial”  permanece presente. No entanto, ela contém uma série de desencontros  e sinonímias decorrentes da pouca precisão na forma de termos como,  por  exemplo,  “preconceito”,  “prática  de  racismo”,  “diferença  de  tratamento” e “discriminação” (Santos, 2010).      “Nós,  representantes  do  povo  brasileiro,  reunidos  em  Assembleia  Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado  a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a  segurança,  o  bem‐estar,  o  desenvolvimento,  a  igualdade  e  a  justiça  como  valores  supremos  de  uma  sociedade  fraterna,  pluralista  e  sem  preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e  internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a 

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proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do  Brasil.” (Brasil, 1998, Preâmbulo; grifo nosso).  

  A  tensão  entre  a  visão  de  que  somos  uma  comunidade  imaginada homogênea, fraterna e harmônica está em contradição com o  próprio texto constitucional, e pode ser explicada pela erosão paulatina  do  discurso  da  “democracia  racial”  e  pela  emergência  de  um  “novo”  discurso,  em  tese  mais  representativo,  das  aspirações  populares  em  se  ver representada em suas diferenças de origem étnico‐racial, isto é, uma  comunidade  que  se  imagina  diversa  culturalmente.  Do  ponto  de  vista  institucional,  a  criação,  no  primeiro  governo  do  Presidente  Lula  da  SEPPIR4 e da SECAD5, sinalizaram para um avanço na compreensão do  Estado em relação ao problema racial presente na sociedade brasileira e,  também,  em  relação  a  possíveis  caminhos  para  equacioná‐lo  em  resposta à pressão dos setores organizados da população negra.  Nesse sentido, ao se revisitar o argumento de Anderson (2008) de  que  a  identidade  nacional  é  uma  “comunidade  imaginada”  em  suas  consequências,  nem  sempre  analisadas  em  nosso  país,  é  possível  uma  nova  compreensão  das  mudanças  sociais  em  curso,  em  especial  no  que  diz respeito à diversidade étnico‐racial brasileira, como segue: a primeira  é  que  as  culturas  nacionais  são  compostas  não  somente  de  instituições  culturais, mas de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um  discurso  –  uma  maneira  de  construir  significados  que  influenciam  e  organizam  tanto  nossas  ações,  quanto  nossas  concepções  sobre  nós  mesmos; a segunda é que tais culturas nacionais constroem identidades  ao produzirem significados sobre a  “nação”  com os  quais  podemos nos                                                                A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), criada pelo governo  federal  no  dia  21  de  março  de  2003,  no  Dia  Internacional  pela  Eliminação  da  Discriminação Racial, objetiva o reconhecimento das lutas históricas do movimento negro  brasileiro e o estabelecimento de iniciativas contra as desigualdades raciais no país.  5  A  Secretaria  de  Educação  Continuada,  Alfabetização  e  Diversidade  do  Ministério  da  Educação  (SECAD/MEC),  oficialmente  criada  em  julho  de  2004,  reúne  temas  como  alfabetização  e  educação  de  jovens  e  adultos,  educação  do  campo,  educação  ambiental,  educação  escolar  indígena  e  diversidade  étnico‐racial,  temas  antes  distribuídos  em  outras  secretarias.  A  criação  da  Secad  marcou  a  valorização  da  diversidade da população brasileira, por meio da formulação de políticas públicas e  sociais como instrumento de cidadania.  4

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identificar. Estes significados estão contidos nas histórias que são contadas  sobre ela, nas memórias que conectam seu presente com seu passado, e  nas imagens que são construídas a propósito delas [nações].  De  acordo  com  Bhabha  (2010:  11),  “as  nações,  como  narrativas,  perdem  suas  origens  nos  mitos  do  tempo  e  somente  percebem  inteiramente seus horizontes nos olhos da mente”. Daí a importância de  nos perguntarmos: Como a narrativa da cultura nacional é contada?  Segundo  Hall,  cinco  aspectos  importantes  se  destacam,  dentre  muitos, para uma resposta compreensível à questão:  1) A  narrativa  da  nação,  contada  e  recontada  nas  histórias  e  literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular, oferece um  conjunto  de  histórias,  imagens,  paisagens,  cenários,  eventos  históricos,  símbolos  e  rituais  nacionais  que  sustentam,  ou  representam,  as  experiências,  as  tristezas  compartilhadas,  os  triunfos e desastres que dão sentido à nação;  2) Há  ênfase  nas  origens,  na  continuidade,  na  tradição  e  na  atemporalidade.  A  identidade  nacional  é  representada  como  primordial. O essencial do caráter nacional permanece imutável  através de todas as vicissitudes da história;  3)  “(...)  a  tradição  inventada  [significa]  um  conjunto  de  práticas,  (...) de uma natureza simbólica ou ritual que procuram inculcar  certos valores e normas de comportamento através da repetição  que  automaticamente  implica  a  continuidade  de  um  passado  histórico adequado” (Hobsbawn & Ranger, 1983: 1);  4) O mito fundante é uma história que localiza a origem da nação,  as pessoas e suas características nacionais como tão antigas que  elas estão perdidas na névoa do tempo, não “real”, mas mítico;  5) A  identidade  nacional  é  também,  muitas  vezes,  baseada  simbolicamente na ideia de um povo ou “folk” puro, original.  Desse  modo,  uma  cultura  nacional  funciona  como  uma  fonte  de  significados  culturais,  como  um  foco  de  identificação  e  como  um  sistema de representação. Em seu famoso ensaio sobre o assunto, Renan  (2010)  nos  diz  que  três  coisas  constituem  o  princípio  da  unidade  da  nação:  a  posse  comum  de  um  legado  de  memória  (memórias  do  passado);  o  desejo  de  viver  conjuntamente  (o  desejo  de  vida  em 

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comum);  a  vontade  de  perpetuar  a  herança  que  se  recebeu  em  uma  forma indivisível (a perpetuação da herança).  Thimothy Brenan nos lembra que a palavra nação refere‐se “tanto  ao  Estado  nacional  moderno  quanto  a  algo  mais  antigo  e  nebuloso  –  a  natio –, uma comunidade local, domicílio, família, condição de pertença”  (Brennan,  2010:  66).  As  identidades  nacionais  representavam  precisamente  o  resultado  da  junção  destas  duas  metades  da  equação  nacional – oferecendo tanto a filiação política ao Estado nacional, quanto  a  identificação  com  a  cultura  nacional:  “tornar  cultura  e  política  congruentes”  e  favorecer  “as  culturas  razoavelmente  homogêneas,  cada  qual com seu próprio teto político” (Gellner, 1983: 43).  De  acordo  com  Santos,  a  representação  da  mestiçagem6  encarnou nos brasileiros, por meio do ideal da democracia racial, o não  reconhecimento  da  existência  e,  consequentemente,  da  relevância  das  raças  na  formação  e  na  dinâmica  social  brasileira,  estas  entendidas  como  cordiais  e  assimilacionistas.  Este  não  reconhecimento  das  raças  resultou na dedução da inexistência do racismo, ou melhor, confiaram  que  o  antirracialismo  promoveria  o  antirracismo  no  país.  Entretanto,  sorrateiramente,  as  práticas  racistas  permaneceram  (e  permanecem),  marginalizando,  simbólica  e  materialmente,  os  negros  (Santos,  2010).  No entanto, com base na perspectiva de Winant se verifica, a partir da  agência  do  movimento  social  negro,  a  possibilidade  de  analisar  o  caso  brasileiro com base na incorporação das três determinações de modo a  tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem tangível, nem                                                               6

  O  conceito  de  mestiçagem  é  uma  construção  que  só  adquire  sentido  quando  considerada em relação com seu par, a noção de raça. Ele nos conduz a um paradoxo  básico da ideia de mestiçagem. Um mestiço se forma a partir de duas ou mais raças.  Assim,  o  paradigma  dominante  das  ciências  biológicas  afirma  veementemente  que  não existem raças, que só existe uma raça humana. De acordo com esta concepção foi  se  convencionando  a  noção  de  populações  humanas  como  um  substituto  heurístico  do conceito obsoleto de raça, de modo que nos permite continuar usando a ideia de  mestiçagem.  Contudo,  a  palavra  mestiçagem  encontra  sua  maior  difusão  no  sentido  ideológico  de  caracterizar  alguns  grupos  humanos  que  se  autodefinem  estrategicamente, frente a outros considerados “puros” ou  homogêneos racialmente,  como mestiços. Esta ideologia da mestiçagem é especialmente importante na America  Latina que se vê mestiça em oposição aos Estados Unidos da América e a África do  Sul  (durante  o  regime  do  Apartheid);  nações  que  se  definem  como  segregadas  e,  em  consequência, não mestiças (Barañano et al., 2007).  

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verdadeira, nem falsa. Tais determinações indicam: a dimensão política,  a global comparativa e a histórico‐temporal.  A  nossa  hipótese  é  de  que  o  deslocamento  na  forma  como  a  sociedade  brasileira  se  autorrepresentava  é  decorrente  do  processo  de  luta  política  pela  (res)significação/deslocamento  do  lugar  do  ser  negro  no processo de racialização de sua experiência coletiva.   No  plano  político,  o  questionamento  ao  ideário  da  democracia  racial  e  a  demonstração  empírica  da  desigualdade  de  tratamento  de  brancos  e  não‐brancos  no  mercado  de  trabalho  têm  provocado  uma  rediscussão  em  torno  da  forma  e  conteúdo  da  presença  das  culturas  africanas  na  formação  social  brasileira.  É  possível  destacar  alguns  aspectos  que  permitem  sustentar  essa  linha  de  raciocínio,  a  saber:  1)  o  tratamento político‐jurídico da temática da diversidade e da igualdade  racial na Constituição de 1988; 2) a alteração da Lei de Diretrizes e Bases  da educação brasileira, e as diretrizes que a acompanham, orienta para  uma  mudança  significativa  nos  conteúdos  curriculares  nacionais,  ao  prescrever  a  obrigatoriedade  de  uma  educação  que  possibilite  a  construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e  a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena.   De  acordo  com  Silva  Jr.,  a  Constituição  de  1988  representa,  também,  um  marco  no  tratamento  político‐jurídico  da  temática  da  diversidade  e  da  igualdade  racial,  como  um  dos  reflexos  da  atuação  política  do  movimento  negro.  Para  o  autor,  alguns  aspectos  merecem  destaque:  1) A  reconsideração  do  papel  da  África  na  formação  da  nacionalidade brasileira;  2) O reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira  como fundamento constitucional do currículo escolar;  3) O  direito  constitucional  à  identidade  étnica  como  fundamento do currículo escolar;  4) A cultura negra como base do processo civilizatório nacional  e como um eixo estruturante do currículo escolar.   Uma  leitura  possível  das  diretrizes  e  de  seu  plano  nacional  de  implementação,  verifica  que  estas,  em  suas  questões  introdutórias,  procuram  oferecer  uma  resposta  na  área  de  educação  à  demanda  da  população  afrodescendente  por  políticas  de  ação  afirmativa,  entendida 

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tanto na dimensão reparatória quanto na dimensão do reconhecimento e  valorização de sua história, cultura e identidade. “Trata, ele, [o parecer],  de  política  curricular,  fundada  em  dimensões  históricas,  sociais,  antropológicas oriundas da realidade brasileira, com o objetivo explicito  de combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente  os  negros”  (Diretrizes,  2004:  6).  Para  tanto,  de  forma  propositiva,  as  diretrizes  recomendam  a  divulgação  e  produção  de  conhecimentos;  a  formação  de  atitudes,  posturas  e  valores  que  eduquem  cidadãos  orgulhosos de seu pertencimento étnico‐racial; a criação de condições, no  ambiente escolar, para que professores e alunos interajam na construção  de  uma  nação  democrática;  e  sugerem  a  consolidação/obtenção  de  direitos  que  garantam  a  valorização  de  sua  identidade.  No  que  diz  respeito às metas, as diretrizes estabelecem as seguintes:   1)  o  direito  dos  negros  se  reconhecerem  na  cultura  nacional,  manifestarem  seus  pensamentos  com  autonomia,  individual  e  coletiva, e expressarem visões próprias de mundo;   2)  o  direito  dos  negros  cursarem  cada  um  dos  níveis  de  ensino  das  diferentes  áreas  de  conhecimento,  com  formação  para  lidar  com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações  sensíveis e capazes de conduzir à reeducação das relações entre  diferentes grupos étnico‐raciais.  Em  consonância  com  o  debate  sobre  políticas  de  reparação,  de  reconhecimento  e  valorização  da  população  negra  e,  também,  com  o  artigo  205  da  Constituição  Federal  de  1988,  as  diretrizes  acentuam  o  papel  do  Estado  em  promover  e  incentivar  políticas  de  reparações.  Quanto  à  educação  das  relações  étnico‐raciais,  elas  sugerem  a  necessidade  de  reeducá‐las.  Assim,  as  diretrizes  enfatizam  que,  para  reeducar as relações étnico‐raciais, impõe‐se à educação aprendizagens  entre  negros  e  brancos,  trocas  de  conhecimento,  quebra  de  desconfianças,  projetos  conjuntos  para  a  construção  de  uma  sociedade  justa,  igual,  equânime.  Para  tanto,  impõe‐se  a  necessidade  de  rever  e  atualizar o papel da escola, onde a formação para um tipo de cidadania  regulada  tem  se  tensionado  com  a  construção/preservação  da  identidade particular dos afrodescendentes.  Em  relação  à  formação  de  professores,  as  diretrizes  orientam  no  sentido  de  se  desfazer  a  mentalidade  racista  e  discriminadora  secular; 

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para  a  necessidade  de  superar  o  etnocentrismo  europeu;  para  a  desalienação dos processos pedagógicos; para a construção de projetos  pedagógicos,  e  pedagogias  que  desvendem  os  mecanismos  racistas  e  discriminatórios  com  o  objetivo  de  reeducar  as  relações  étnico‐raciais.  Nesse  sentido,  elas  arrolam  algumas  providências  a  serem  tomadas  pelos  gestores  dos  sistemas  de  ensino  e  autoridades  responsáveis  pela  política pública educacional:  1) Ampliar  o  foco  dos  currículos  escolares  para  a  diversidade  cultural, racial, social e econômica brasileira;   2)  A  autonomia  dos  estabelecimentos  de  ensino  para  compor  os  projetos pedagógicos, no cumprimento ao exigido pelo artigo 26  da Lei n. 9.394/1996, permite que eles se valham da colaboração  das  comunidades  a  que  a  escola  serve,  do  apoio  direto  ou  indireto de estudiosos e do movimento negro;  3) Caberá aos sistemas de ensino, às mantenedoras, à coordenação  pedagógica  dos  estabelecimentos  de  ensino  e  aos  professores,  com base no Parecer, estabelecer conteúdos de ensino, unidades  de  estudos,  projetos  e  programas,  abrangendo  os  diferentes  componentes curriculares;  4) Caberá  aos  administradores  dos  sistemas  de  ensino  e  das  mantenedoras  prover  as  escolas,  seus  professores  e  alunos  de  material bibliográfico e de outros materiais didáticos, relativos à  educação  das  relações  étnico‐raciais  e  do  ensino  de  história  e  cultura  afro‐brasileira  e  africana,  além  de  acompanhar  os  trabalhos  desenvolvidos  tanto  na  formação  inicial  como  continuada de professores.  

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De  acordo  com  as  diretrizes7,  bem  como  o  plano  nacional  de  sua  implementação,  tais  condições  são  necessárias,  tanto  para  a  (des)racialização de uma sociedade que se utiliza da desvalorização da  cultura  de  matriz  africana  e  dos  aspectos  físicos  herdados  pelos  descendentes  de  africanos,  quanto  para  o  processo  de  construção  da  identidade negra no Brasil, de forma condizente com o legado histórico  das culturas africanas no país.   A História Geral da África (HGA), desde a publicação do primeiro  dos  oito  volumes,  pela  Unesco  de  Paris,  passou  a  inspirar  jovens  descendentes  de  africanos  em  diferentes  regiões  do  globo  e,  especialmente, no Brasil. As denúncias sobre discriminação e racismo e a  demonstração pública do conteúdo de uma leitura recriada das culturas  africanas na diáspora, por exemplo, por meio dos blocos afros tais como o  Olodum  e  o  Ilê  Ayê,  são  aspectos  fundamentais  do  processo  da  luta  política  para  construção  de  uma  identidade  negra  que  tem  revelado  menos a erosão e mais a resignificação do mito da democracia racial.   A  junção  entre  cultura  e  política  é  constitutiva  do  tipo  de  ação  das  denominadas,  por  seus  próprios  membros,  entidades  ou  organizações  negras.  Assim,  a  reivindicação  por  educação  surge  em  consonância  com  o  legado  das  gerações  anteriores  de  militantes  da  causa negra, mesmo antes do processo de redemocratização do Estado  brasileiro.  A  questão,  a  saber,  é  a  seguinte:  Há  algo  novo  a  se  dizer  sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo? A resposta é sim. E a  novidade  é  decorrente  da  centralidade  que  a  política  pública  educacional  passou  a  adquirir,  para  o  movimento  negro                                                               7

  O  Plano  Nacional  de  Implementação  das  Diretrizes  Curriculares  Nacionais  para  a  Educação  das  Relações  Étnico‐Raciais  e  para  o  Ensino  de  História  e  Cultura  Afro‐ Brasileira  e  Africana  é  o  resultado  das  solicitações  advindas  dos  anseios  regionais,  consubstanciadas  pelo  documento  Contribuições  para  a  Implementação  da  Lei  n.  10.639/2003:  Proposta  de  Plano  Nacional  de  Implementação  das  Diretrizes  Curriculares  Nacionais  da  Educação  das  Relações  Étnico‐Raciais  e  para  o  Ensino  de  História  e  Cultura  Afro‐Brasileira  e  Africana,  fruto  de  seis  encontros  denominados  Diálogos  Regionais  sobre  a  Implementação  da  Lei  n.  10.639/03,  do  conjunto  de  ações  que  o  MEC  desenvolve, principalmente a partir do surgimento da Secad, em 2004, documentos e  textos  legais  sobre  o  assunto.  Cabe  aqui  registrar  a  participação  estratégica  do  Setor  de  Educação  da  Unesco  do  Brasil,  do  movimento  negro,  além  de  intelectuais  e  ativistas da causa antirracista. 

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contemporâneo, como lugar de disputa da articulação de dois tipos de  demandas  que  se  tenta  equacionar  em  seu  interior.  A  primeira,  em  relação  à  qualidade  da  educação  formal  que  é  vista  tanto  como  um  direito, quanto como a forma por excelência de mobilidade ocupacional  e social. A segunda é a luta política por mais e melhor educação a qual  continua  tendo  como  exigência  o  resgate  da  contribuição  das  culturas  africanas para a formação social brasileira.  Dessa forma, a obrigatoriedade, em todo o sistema de ensino, de  conteúdos que proporcionem o conhecimento de história e cultura afro‐ brasileira  e  africana,  em  toda  a  educação  básica,  por  um  lado,  exige  mudanças no conteúdo curricular de todos os cursos superiores do país  e, por outro lado, é uma oportunidade de uma ressignificação do país e  de  sua  história,  levando‐se  em  conta  a  perspectiva  daqueles  considerados como o “outro”.   Nesse  aspecto,  a  comparação  com  os  Estados  Unidos  e  com  a  África do Sul é inevitável quando se considera a globalização do espaço  racial;  não  é  mais  possível  o  simples  contraste  entre  preconceito  de  origem  (EUA  e  África  do  Sul)  e  preconceito  de  marca  (Brasil).  Novas  pesquisas  poderão  desvendar  como  os  movimentos  de  luta  de  libertação  no  continente  africano,  o  movimento  dos  direitos  civis  nos  EUA, a derrocada do apartheid na África do Sul, impactaram nas lutas  dos  afro‐brasileiros  a  partir  da  percepção  de  que  a  diferenciação  dos  processos  de  colonização  não  impediu  que  o  elemento  africano  fosse  racializado  nos  diferentes  contextos.  Ao  mesmo,  tais  movimentos  geraram novas formas de solidariedade e uma consciência renovada em  termos da dimensão global da discriminação racial e do racismo.    Quando  se  considera  o  papel  que  o  Brasil  tem  desempenhado  como  potencial  ator  global,  em  especial,  na  última  década,  no  diálogo  sul‐sul  e  com  atenção  à  relação  com  o  continente  africano,  as  expectativas da União Africana em relação à sexta região8 e os sentidos                                                               8

  O  Protocolo  de  Emendas  ao  Ato  Constitutivo  da  União  Africana,  adotado  pela  Sessão  Extraordinária da Primeira Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo em Addis  Abeba,  Etiópia,  em  Janeiro  de  2003,  e  em  particular  o  artigo  3º  (q),  que  convida  a  diáspora  africana  a  participar  como  um  importante  componente  na  construção  da  União  Africana.  O  protocolo  insiste  na  ideia  de  que  os  descendentes  de  africanos,  em  especial os residentes no continente americano, formariam a sexta região do continente. 

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da ação do movimento negro brasileiro no que diz respeito à diáspora, é  possível  pensar  a  seguinte  questão:  o  que  o  discurso  sobre  a  diáspora,  efetivamente, pode articular?  O  discurso  sobre  a  diáspora  articula,  a  partir  do  simbolismo  e  de  representações que ele emana, expectativas, ações, resultados práticos e  dimensões institucionais distintas, a saber:   1) a  União  Africana  se  caracteriza  como  uma  confederação  de  Estados nacionais, na qual têm assento 53 chefes de Estado. De  acordo  com  seu  ato  constitutivo,  foi  inspirada  nos  ideais  que  nortearam os fundadores da organização continental e gerações  de  pan‐africanistas  em  sua  determinação  de  promover  a  unidade, a solidariedade, coesão e cooperação entre os povos da  África  e  os  Estados  africanos;  posteriormente,  foram  acrescentados  no  ato  constitutivo  todos  os  afrodescendentes  dispersos pelo mundo;  2) a partir da influência das culturas africanas  que  participaram da  formação  social  brasileira  e  da  presença  de  um  grande  contingente  de  população  negra,  o  Estado  operacionaliza  um  discurso  pelo  qual  molda  atitudes,  representações  e  políticas.  Estas  se  assentam,  sobretudo,  na  crença  da  ausência  de  racismo,  na  harmonia  social  brasileira  e  nas  virtudes  da  brasilidade.  A  ideia de diáspora africana, portanto, pode ser pensada como um  dos sustentáculos da política externa brasileira para construção do  país  como  ator  global  e  como  o  principal  elo  comercial  e  econômico  com  os  países  africanos,  além  de  possibilitar  um  discurso intranacional em resposta a setores do movimento negro;  3) o  movimento  negro  não  pode  mais  ser  lido  como  unitário,  em  termos  de  sua  perspectiva  de  ação  a  partir  do  conceito  de  diáspora;  em  particular,  na  perspectiva  de  Brah  (1996),  que  propõe  a  distinção  entre  o  conceito  teórico  de  diáspora  e  a  experiência de diáspora. Com tal distinção, a autora sugere que  este  conceito  seja  apreendido  como  “genealogias”  historicamente  contingentes,  no  sentido  de  Foucault,  ou  seja,  como um  conjunto de tecnologias de pesquisa que constroem a  história das trajetórias das diferentes diásporas e analisam seus  relacionamentos  através  dos  campos  sociais,  da  subjetividade  e 

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da identidade. Para a autora, o conceito de diáspora oferece uma  crítica  aos  discursos  que  fazem  exame  preconcebido  de  determinadas  origens  imutáveis,  tendo  em  conta  o  desejo  de  voltar  para  casa,  que  não  é  o  mesmo  que  voltar  à  “pátria”.  A  distinção  é  importante  porque  nem  todas  as  diásporas  mantêm  uma  ideologia  de  “retorno”;  mais  ainda,  Brah  (op.  cit.)  afirma  que  o  subtexto  “lar”,  que  compreende  o  conceito  de  diáspora,  permite  a  análise  da  problemática  da  posição  do  sujeito  “autóctone” e sua precária relação com os discursos “nativistas”.    Em  relação  aos  negros  brasileiros,  se  não  encontramos  uma  ideologia de retorno físico à origem africana, identificamos pelo menos  dois discursos distintos: um que dilui a origem africana na brasilidade;  outro,  no  qual  a  origem  africana  é  discursivamente  constitutiva  da  identidade, daí a utilização recente de expressões como afrodescendente  e afro‐brasileiro. A impossibilidade de voltar para a casa da mãe África  em  ambos  os  discursos  permite  observar  lógicas  distintas  no  uso  do  conceito de diáspora: uma que contigencia e restringe a origem africana  a uma dinâmica nacional; outra na qual aquela origem é utilizada como  elemento  de  crítica  da  posição  do  sujeito  negro  na  sua  relação  com  a  sociedade que, ao racializar sua pertença étnica, o hierarquiza, podendo  ele,  no  entanto,  ao  recriar  sua  origem  para  além  da  fronteira  nacional  numa  perspectiva  diaspórica,  denunciar  a  forma  como  a  diferença  é  transformada  em  desigualdade  social  no  Brasil,  e  em  vários  Estados  nacionais latino‐americanos.  Do  ponto  de  vista  de  uma  nova  agenda  de  pesquisa  sobre  o  negro  no Brasil a dimensão histórico‐temporal, proposta por Winant, pode nos  reorientar  para  uma  aproximação  teórica  aos  escritos  pós‐ estruturalistas, preocupados com as diferenças entre os seres humanos  em  especial  aqueles  que  têm  feito  esforços  para  explicar  o  “Ocidente”  ou  o  tempo  colonial  como  um  vasto  projeto  de  demarcação  das  “diferenças”  humanas,  ou  mais  globalmente,  argumentando  sobre  a  formação  parcial  de  identidades  coletivas,  em  termos  de  “Outros”  externalizados.      

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O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil    André Ricardo de Souza1  María Candelaria Sgró Ruata2  Maximiliano Campana3      1. Introdução    Este  texto  apresenta  dados  e  reflexões  sobre  alguns  aspectos  do  cristianismo  no  Brasil  e  na  Argentina4.  Em  ambos  os  países  os  segmentos  católicos  e  evangélicos  se  posicionam  no  espaço  público,  mediante  manifestações  organizadas  e  militância  político‐partidária,  tanto  na  defesa  de  seus  interesses  como  de  seus  valores  doutrinários.  Tentam  e,  às  vezes,  conseguem  pressionar  os  governos  instituídos,  sobretudo através de sua representação parlamentária. Alguns ativistas  cristãos,  bastante  identificados  com  as  igrejas,  chegam  inclusive  a  ocupar cargos executivos relevantes.   A  questão  da  moral  sexual  ocupa  lugar  de  destaque  em  termos  de  mobilização  de  militantes  católicos  e  evangélicos,  exercendo  influência  também  sobre  os  processos  eleitorais.  O  texto  traça  um  panorama  religioso desses países, destacando a presença cristã e discutindo como  suas instituições e lideranças se articulam em questões controversas.                                                                  Doutor  em  Sociologia  pela  Universidade  de  São  Paulo  e  professor  adjunto  do  Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos.  2  Licenciada  em  Comunicação  Social  pela  Universidade  Nacional  de  Córdoba  (UNC‐ Argentina).  Mestranda  em  Sociologia  e  Doutoranda  em  Estudos  Sociais  da  América  Latina do Centro de Estudos Avançados (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET‐ CIECS.   3  Advogado.  Universidade  Nacional  de  Córdoba.  Doutorando  em  Direito  e  Ciências  Sociais (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET – CIJS.  4  Por  opção  metodológica,  uma  importante  vertente  cristã  foi  deixada  de  lado  neste  texto:  o  espiritismo  kardecista.  Tal  exclusão,  evidentemente  sociológica,  e  não  teológica, se deve ao fato de que os espíritas promovem a materialização do princípio  cristão  da  caridade  em  significativas  obras  de  assistência  social  e  em  função  da  centralidade  do  culto  a  Jesus  Cristo  em  seus  preceitos  doutrinários.  (Arribas,  2010;  Souza,  2012).  Ainda  que  seja  a  terceira  maior  religião  no  Brasil  (2%),  sua  expressão  política e demográfica na Argentina é quase nula.   1

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Para  isso  este  trabalho  se  divide  em  duas  grandes  sessões.  Na  primeira,  são  apresentadas  algumas  dimensões  e  características  particulares em relação à conformação do campo religioso no Brasil e na  Argentina. Apesar das diferenças entre ambos os países no registro de  dados  sobre  variáveis  religiosas  na  população,  se  pretende  configurar  um  panorama  geral  que  servirá  para  levantar  alguns  elementos  comparativos.  Na  segunda  sessão,  por  meio  de  exemplos,  são  levantados  debates  sobre  políticas  de  sexualidade  e  reprodução,  em  ambos os contextos, a fim de delinear o ativismo dos setores religiosos  ao redor da busca de definições da moral sexual.    2. O campo religioso    2.1 A demografia religiosa no Brasil    A sociologia da religião no Brasil, assim como em muitos outros  países,  têm  se  debruçado  principalmente  ao  cristianismo,  caracterizando‐se  como  uma  “Sociologia  do  catolicismo  em  queda”  (Pierucci,  2004:19),  fenômeno  que  origina  uma  ainda  modesta  diversificação  religiosa.  Em  1940,  os  católicos  representavam  96,2%  no  primeiro censo demográfico em que o Instituto Brasileiro de Geografia  (IBGE)  considerou  a  questão  religiosa.  Esta  cifra  chegou  em  2010,  ano  do  último  censo  com  dados  disponíveis,  a  64,6%.  Por  outro  lado,  os  protestantes,  tanto  os  missionários  ou  históricos  como  os  pentecostais,  formavam  naquele  primeiro  censo  2,6%,  passando  a  compor  sete  décadas depois a 22,2% da população total. Mas o contingente que mais  cresceu foi o dos “sem religião”, que de 0,2% passou a 8,0%5.   Os  dados  mostram  que  em  1970  os  ‘sem  religião’  dobraram  de  tamanho  e  na  década  posterior  tiveram  um  notável  crescimento  de  quase 200%. Já os anos 90 foram marcados por um grande crescimento  evangélico  (73%),  devido  a  uma  explosão  Pentecostal,  provocada  principalmente  pela  expansão  da  Igreja  Universal  do  Reino  de  Deus  (IURD), fundada no Rio de Janeiro em 1977. Como consequência disso e                                                               5

  Fernandes  e  Pita  (2006:131)  apontam  um  dado  curioso  sobre  os  sem  religião:  33,2%  deles  eram  antes  pentecostais,  enquanto  que  23,1%  e  11,8%,  respectivamente,  eram  católicos e protestantes históricos.  

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do também contínuo crescimento dos sem religião, o segmento católico  teve  uma  redução  proporcionalmente  maior  que  o  crescimento  evangélico  (128%).  Conclui‐se  que,  ao  final  do  século  XX,  tornou‐se  bastante  mais  fácil  não  ser  católico  e  abraçar  o  protestantismo  ou,  inclusive, nenhum credo religioso.             Tabela 1. Religiosidade no Brasil – 1940‐2010.  Outras  Sem religião  religiões  2,6  1,9  0,2  3,4  2,4  0,3  4,3  2,4  0,5  5,2  2,3  0,8  6,6  2,5  1,6  9,0  2,9  4,7  15,6  3,5  7,4  22,2  5,2  8,0  Fonte: IBGE ‐ censos demográficos (% da população nacional). 

Ano 

Católicos 

1940  1950  1960  1970  1980  1991  2000  2010 

95,2  93,7  93,1  91,8  89,0  83,3  73,9  64,6 

Evangélicos 

  No  universo  católico  existe  certa  diversidade,  sendo  ainda  a  distinção  básica  aquela  que  se  refere  ao  catolicismo  nominal  e  ao  internalizado.  Os  católicos  nominais  abrangem  a  versão  tradicional,  tanto  rural  como  urbana  (Camargo,  1973).  No  âmbito  do  catolicismo  internalizado,  as  duas  grandes  vertentes  são:  a  Renovação  Carismática  Católica  e  a  Teologia  da  Libertação/Comunidades  eclesiásticas  de  base  (CEBs).                Tabela 2. Diversificação dos católicos em 1994.  Vertentes  Tradicionais ou Nominais  Identificados com a Renovação Carismática  Identificados com as Comunidades Eclesiásticas de Base  Identificados com outros movimentos  Total  Fonte: Datafolha (1994) – Pierucci & Prandi (1996). 

 

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%  61,4  3,8  1,8  7,9  74,9 

A pesquisa realizada por Pierucci e Prandi (1995), com dados do  Instituto Datafolha sobre as eleições presidenciais de 1994, mostrou que  havia  61,4%  de  católicos  tradicionais  ou  nominais,  3,8%  de  católicos  carismáticos, 1,8% de participantes das CEBs e 7,9% vinculados a outros  movimentos internos da igreja. Havia, portanto, 14% de praticantes do  catolicismo internalizado.     Em  termos  de  protestantismo,  a  divisão  básica  ocorre  entre  as  igrejas protestantes históricas ou missionárias e as pentecostais. Entre as  históricas  se  encontram:  a  Batista,  a  Presbiteriana,  a  Luterana  e  a  Metodista. No âmbito do pentecostalismo, temos três categorias básicas  de igrejas: pentecostais clássicas, instaladas no Brasil no início do século  XX  (Congregação  Cristã  do  Brasil  e  Assembleia  de  Deus),  pentecostais  de cura divina, inseridas ou criadas no país entre as décadas de 50 e 60  (Evangelho  Quadrangular,  Brasil  para  Cristo  e  Deus  é  Amor),  e  neopentecostais,  formadas  a  partir  da  década  de  1970.  As  principais  denominações neopentecostais são: Igreja Universal do Reino de Deus,  Igreja Internacional da Graça de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Mundial  do  Poder  de  Deus  e  Renascer  em  Cristo  (Souza,  1969;  Freston,  1993,  Mariano,  1999).  Em  termos  de  tamanho,  o  pentecostalismo  clássico  aparece  em  primeiro  lugar,  seguido  pelo  neopentecostalismo.  A  IURD  novamente  se  destaca  em  função  da  relação  entre  seu  tamanho  e  seu  tempo  de  existência.  Enquanto  as  instituições  que  possuem  mais  adeptos  que  ela  são,  no  mínimo,  centenárias,  esta  instituição  religiosa  tem  somente  trinta  e  cinco  anos  de  idade.  Ou  seja,  conta  com  uma  trajetória de expansão bastante acelerada.    

2.2 O campo religioso na Argentina   

Na  Argentina6  a  crença  em  Deus  se  encontra  amplamente  enraizada,  representando  91,1%  da  população.  Entretanto,  esta  média  varia de acordo com o gênero7, a idade8 e a escolaridade9.                                                                6

  Nos  censos  populacionais  realizados  na  Argentina,  somente  se  revelaram  dados  relacionados à religião nos dos anos 1875, 1947 e 1960 (DGEC, 2010) pelo que se sabe  de informações atualizadas provenientes do INDEC (Instituto Nacional de Estatística  e Censos). Para a reconstrução do panorama religioso na Argentina foram usados os  dados  coletados  pela  “Primeira  pesquisa  sobre  crenças  e  atitudes  religiosas  na  Argentina” (Mallimaci y Esquivel, 2008). 

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Em  relação  às  filiações  religiosas,  76,5%  das  pessoas  se  consideram  católicas,  9%  evangélicas10,  1,2%  testemunhas  de  Jeová,  0,9%  mórmons,  1,2%  professa  outras  religiões  e  11,3%  se  consideram  indiferentes11.   No  entanto,  embora  90%  dos  argentinos  creiam  em  Deus,  essa  proporção  diminui  em  relação  ao  ato  de  frequentar  lugares  de  culto:  quase  76%  disseram  que  raramente  ou  nunca  frequentam  tais  lugares  (embora  no  caso  dos  evangélicos,  mais  de  60%  disseram  que  frequentemente  estão  presentes).  Neste  sentido,  é  interessante  também  apontar que 86% acham que podem ser bons religiosos sem frequentar a  igreja  ou  um  templo,  76,3%  acham  que  deveria  ser  permitido  o  casamento  de  padres  católicos  e  60,3%  que  deveria  ser  permitido  o  sacerdócio às mulheres.  Estes  dados,  entretanto,  apresentam  importantes  disparidades  segundo  a  região  argentina  tratada.  Assim,  o  noroeste  argentino,  mais  tradicional  e  conservador,  possui  os  índices  mais  altos  de  católicos,  representando 91,7% do total. A região patagônica, por outro lado, é a  menos  católica  (61,5%),  e  a  que  possui  os  índices  mais  altos  de  evangélicos, mórmons e testemunhas de Jeová (25,3%). Buenos Aires e  sua área metropolitana, em contrapartida, concentra o maior número de  pessoas indiferentes frente às religiões e crenças religiosas (18%).                                                                                                                                                      As  mulheres  creem  mais  em  Deus  que  os  homens,  representando  93,6%  e  88,3%,  respectivamente.  8 A porcentagem de pessoas acima de 65 anos que se considera crente é de 96,7%, caindo  progressivamente até a faixa etária que vai dos 18 aos 29 anos, na qual se consideram  crentes 85,1%.  9 Em geral, quanto maior a escolaridade, menor a porcentagem de argentinos que creem  em Deus. Neste sentido, os percentuais se classificam do seguinte modo: pessoas sem  estudos:  95,7%;  com  nível  elementar  completo:  93%;  com  nível  médio:  88%;  técnico:  83,1% e superior: 84,5%.   10 Entre elas se incluem: Pentecostal, Batista, Luterana, Metodista, Adventista e a Igreja  Universal do Reino de Deus.   11 Neste caso, se incluem agnósticos, ateus e os que não possuem nenhuma religião.  7

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Vale  destacar  que  atualmente  a  Argentina  determina12  em  sua  constituição  nacional  (artigo  segundo)  que  “O  governo  federal  apoie  o  culto católico apostólico romano” pondo em destaque, desta maneira, um  reconhecimento privilegiado da Igreja católica na ordem jurídica, política e  econômica do país13. Deste modo, o Estado (com suas forças de segurança)  e  a  Igreja  Católica  são  tomados  como  fundadores  e  garantidores  da  argentinidade desde as origens da nação. (Mallimaci, 2001).   E, ademais, Esquivel (2010) lembra que     “[a]s  iconografias  católicas  que  decoram  os  organismos  oficiais  e  a  convocação  para  a  realização  do  Tedeum  não  estão  prescritas  na  legislação, mas sua permanência e continuidade denotam com clareza  o  indiscutido  e  naturalizado  papel  protagonista  que  a  Igreja  Católica  detém  no  cenário  público  argentino.  Se  a  relação  entre  o  Estado  e  a  Igreja Católica é regida pelo Acordo de 1966, a Constituição Nacional e  a miríade de leis (…), o vínculo com os credos restantes se canaliza por  meio do Registro Nacional de Cultos. Criado nos tempos da ditadura  militar, em 1978 (Lei N° 21.745), o Registro Nacional de Cultos supõe  que todas as entidades religiosas que exerçam suas atividades de culto  na  Argentina,  com  exceção  da  Igreja  Católica,  devem  promover  sua  inscrição  e  reconhecimento  oficial,  como  condição  prévia  para  sua  atuação.” 

  No entanto, a pesar da forte supremacia política e legal da Igreja  católica recém descrita desde a sanção da constituição nacional em 1853  e  até  à  atualidade,  o  artigo  14  dispõe  que  “Todos  os  habitantes  da  Confederação  gozam  dos  seguintes  direitos:  (…)  de  professar                                                                 Apesar  dos  inúmeros  processos  de  reforma  constitucional,  o  artigo  segundo  de  reconhecimento  privilegiado  da  Igreja  católica  segue  vigente.  Vale  mencionar  que  a  constituição  argentina  foi  reformada  nos  anos  1860,  1866,  1898,  1949  (embora  esta  reforma tenha sido anulada), 1957, 1972 e 1994.  13  Apesar  de  negar  a  existência  de  um  projeto  de  nação  secular,  impulsionado  principalmente durante as presidências de Domingo F. Sarmiento e Júlio A. Roca, “[a]  secularização da sociedade argentina realizada pela burguesia liberal, que importou o  modelo  econômico  de  Londres  e  o  modelo  cultural  de  Paris,  estava  incompleta.  As  leis  do  ensino  laico  e  do  registro  civil  de  nascimentos,  matrimônios  e  mortes  reduziram a influência eclesiástica. Mas, ao contrário de países vizinhos, a dinâmica  das reformas não foi suficiente para separar o Estado da Igreja.ʺ  12

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livremente seu culto.” Esta liberdade de cultos data de 1825, quando se  celebrou  o  tratado  de  amizade,  comércio  e  navegação  com  a  Coroa  Britânica,  que  concedia  aos  imigrantes  ingleses  a  possibilidade  de  celebrar seu culto de forma privada, sendo o pontapé inicial para o que  logo constituiria o campo evangélico na Argentina.     Em  relação  ao  denominado  “campo  religioso  evangélico”,  Wynarczyk (2003) adverte que devem se distinguir três movimentos no  tempo:  um  primeiro,  vinculado  àqueles  herdeiros  da  Reforma  Protestante do século XVI e chegados à Argentina durante os processos  migratórios impulsionados no fim do século XIX; um segundo formado  por  aqueles  evangélicos  afiliados  às  ideias  da  denominada  “Reforma  Radical”  do  século  XVI,  e  que  chegaram  à  Argentina  através  das  missões  conversionistas;  e  por  último,  um  terceiro  movimento,  com  características  pentecostais,  que  se  estabeleceu  principalmente  nos  setores  populares  do  país.  Durante  os  anos  noventa,  os  setores  evangélicos começaram a ganhar adeptos e, dessa maneira, chegaram a  se  fortalecer  como  a  primeira  minoria  religiosa  do  país  (Frigerio  e  Wynarczyk, 2008).   Atualmente,  na  Argentina  os  evangélicos  formam  a  minoria  religiosa  mais  importante,  cujo  percentual  varia  de  5  a  10%  da  nação.  Isso seria equivalente a uma população de 3,5 a 5 milhões de habitantes.  Neste  sentido,  um  dado  interessante  é  que  há  divergências  associadas  aos  níveis  socioeconômicos.  Em  geral,  se  estima  que  o  percentual  de  evangélicos  nos  setores  populares  urbanos  pode  alcançar  ‐  e  inclusive  superar  ‐  20%  da  população  (principalmente  os  pentecostais).  Os  percentuais  diminuem  quando  se  trata  de  setores  com  população  de  renda média e média alta, onde os evangélicos representam entre 3% e  5%. (Esquivel et al., 2001; Frigerio e Wynarczyk, 2008).    Além de representar a principal minoria religiosa na Argentina,  os evangélicos representam cerca de 75% do total de cultos não católicos  matriculados  nos  registros  da  Secretaria  de  Culto  da  Nação  (Wynarczyk, 2003), evidenciando que o campo evangélico, longe de ser  um  todo  homogêneo,  se  apresenta  como  um  campo  complexo  e  fragmentado,  com  grandes  igrejas  e  templos  que  possuem  uma  certa  independência e que nem sempre apresentam os mesmos objetivos nem  são regidos pelos mesmos princípios doutrinários. 

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3. Religião e política    3.1. O cristianismo brasileiro e a política partidária       Em  termos  de  engajamento  com  o  mundo  político,  os  católicos  têm  um  envolvimento  histórico  através  de  seus  intelectuais  e  instituições, tendo exercido uma grande influência sobre os governos da  República Velha e do presidente Getúlio Vargas. Mais tarde, no período  mais difícil da ditadura militar, as pastorais sociais e as CEBs católicas  exerceriam  um  importante  papel  na  resistência,  abrigo  e  apoio  aos  ativistas de esquerda (Mainwaring, 1989). Nos anos noventa, a Teologia  da  Libertação  perdeu  forças,  abrindo  um  grande  espaço  à  Renovação  Carismática  Católica,  por  meio  de  um  processo  de  despolitização  (Prandi e Souza, 1996). Mais recentemente, os carismáticos católicos têm  escolhido parlamentares que estejam envolvidos com a defesa de causas  particulares  do  catolicismo  (Mianda,  1999;  Mariz,  2001;  Senna,  2008;  Reis, 2011).     O  crescimento  demográfico  dos  evangélicos  no  Brasil  se  traduziu também em uma maior força política desse segmento religioso.  Durante  a  maior  parte  do  século  XX,  predominava  uma  postura  evangélica  dupla:  aprovação  dos  governos  e  rejeição  da  política  partidária. Consequentemente, a participação do segmento religioso no  Congresso  foi  relativamente  pequena  até  a  primeira  metade  dos  anos  80,  contando  quase  que  exclusivamente  com  alguns  parlamentares  adeptos das igrejas protestantes missionárias.    Em  1985,  quando  o  país  voltou  a  ter,  com  José  Sarney,  um  presidente  civil  e  viveu  a  expectativa  das  eleições  de  uma  Assembleia  Constituinte  para  o  ano  seguinte,  os  evangélicos  pentecostais  se  lançaram  efetivamente  em  direção  a  uma  política  partidária.  Preocupados  com  um  possível  aumento  de  privilégios  constitucionais  para a Igreja Católica, eles passaram a reivindicar a liberdade religiosa,  e  a  perceber  também,  nas  eleições  de  1986,  uma  oportunidade  para  aumentar  os  lucros  para  as  suas  igrejas,  principalmente  na  forma  de  concessões de emissoras de rádio. (Pierucci, 1989; Freston, 1993).    Enquanto  que  em  1982  haviam  sido  eleitos  12  deputados  federais  evangélicos,  sendo  apenas  dois  pentecostais,  nas  eleições 

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seguintes  foram  eleitos  32  parlamentares  desse  segmento,  sendo  18  deles  pentecostais.  Com  este  significativo  crescimento  de  900%  de  representação  pentecostal,  a  prevalência  foi  da  Assembleia  de  Deus,  com 13 deputados eleitos.  A  representação  evangélica  nas  eleições  seguintes  cresceria  ainda  mais,  atingindo  o  número  de  30  deputados  em  1994  e  49  deputados  quatro  anos  depois.  Com  parlamentares  de  diferentes  partidos,  mas,  principalmente,  do  Partido  Social  Cristão  (PSC),  a  Assembleia  de  Deus  perdurou  como  a  igreja  com  maior  representação  parlamentar até 1998. Naquele ano, surgiram a partir dela 12 deputados  federais, sendo superada pela IURD, que ganhou 14 cadeiras. (Freston,  2001; Fonseca, 2002:126).   Os deputados evangélicos têm sido bastante ativos em questões  relacionadas  à  reprodução  humana  e  à  moral  sexual,  opondo‐se  firmemente  às  reivindicações  homoafetivas.  Eles  se  destacam  também  na  apresentação  de  emendas  parlamentares  do  tipo  assistencial,  sendo  algumas  delas  algo  questionáveis.  Desde  2003,  existe  a  Frente  Parlamentar  Evangélica  (FPE),  marcada  pela  heterogeneidade  partidária  e  também  denominacional,  garantindo  certa  coesão  nos  temas  que  envolvem  a  moralidade  cristã  tradicional  e  nos  interesses  institucionais das igrejas.  No Senado, os evangélicos conquistaram duas cadeiras em 1998,  sendo  uma  delas  de  Íris  Rezende,  do  PMDB  e  da  Comunidade  Cristã  Evangélica.  A  outra  era  de  uma  adepta  da  Assembleia  de  Deus  e  ex‐ militante  católica  de  CEBs  e,  portanto,  do  PT  (Partido  dos  Trabalhadores), Marina Silva. O número de senadores vinculados a esse  segmento  religioso,  incluindo  os  suplentes  que  assumiram  o  cargo,  chegou a ser de seis, atualmente é de três: Eduardo Lopes (IURD) e os  batistas  Walter  Pinheiro  e  Magno  Malta.  Destaca‐se  o  evangélico  Marcelo  Crivella,  atualmente  em  licença  e  que  será  mencionado  posteriormente neste texto.    Embora não seja proporcional ao tamanho de sua população, os  evangélicos  têm  uma  significativa  presença  também  em  outros  parlamentos  brasileiros.  Um  levantamento  realizado  no  segundo  semestre  de  2012,  utilizando  portais  de  internet  do  PFE,  das  Assembleias  Legislativas  Estaduais,  da  Câmara  do  Distrito  Federal  e 

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das  câmaras  municipais  de  todas  as  capitais  brasileiras  mostrou  que  nesses  locais  havia  238  parlamentares  reconhecidamente  evangélicos  (10% do total).  No  âmbito  do  Poder  Executivo,  os  evangélicos  também  vêm  exercendo  uma  forte  influência,  chegando  inclusive  a  ocupar  cargos  importantes. O primeiro a se destacar foi Íris Rezende, eleito prefeito da  capital de Goiânia, em 1965. Ao bater a disputa no estado de Goiás, em  1982,  Rezende  tornou‐se  o  primeiro  governador  evangélico.  Em  1986,  assumiu  o  Ministério  da  Agricultura  durante  o  governo  de  Sarney.  Também foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso durante  seu primeiro mandato presidencial, entre 1997 e 1998.     Outros  governadores  evangélicos  foram  eleitos  no  Rio  de  Janeiro:  o  casamento  de  Anthony  Garotinho  e  Rosinha  Matheus.  Garotinho chegou a concorrer à presidência da  República pelo Partido  Socialista  Brasileiro,  em  2002.  Sem  sucesso  na  disputa  presidencial,  conseguiu  ao  menos  que  sua  esposa  Rosinha  Matheus  se  tornasse  governadora do Rio pelo mesmo partido no primeiro turno.    Em  1989,  os  evangélicos  tiveram  uma  participação  significativa  na  primeira  eleição  presidencial  direta  após  a  reabertura  democrática.  Uma articulação entre pastores, líderes e parlamentares desse segmento  influenciou  a  disputa  eleitoral.  Os  evangélicos  rejeitavam  o  candidato  Luiz  Inácio  Lula  da  Silva,  percebendo‐o  como  um  defensor  dos  interesses  católicos,  dada  a  vinculação  entre  o  Partido  dos  Trabalhadores (PT) com as CEBs e as pastorais sociais. O candidato do  PT era visto também como um ʺrepresentante do comunismo ateuʺ, que  deveria  ser  fortemente  combatido.  Como  resultado  desse  processo,  os  pentecostais votaram em massa em Fernando Collor no segundo turno  a fim de impedir a vitória do PT (Pierucci e Mariano, 1992).    Na eleição de 1994, os evangélicos continuaram posicionando‐se  contra  Lula,  apoiando  enfaticamente  o  candidato  do  Partido  da  Social  Democracia  Brasileira  (PSBD),  Fernando  Henrique  Cardoso  (Pierucci  e  Prandi,  1996).  Os  parlamentares  evangélicos  também  votaram  a  favor  da  mudança  constitucional,  viabilizando  assim  a  candidatura  à  reeleição do presidente do PSBD, chegando a apoiá‐la exitosamente na  segunda campanha. 

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   Em 2002, os evangélicos tinham diante de si um quadro eleitoral  mais  complexo.  O  desgaste  da  gestão  de  Cardoso  fez  com  que  parte  deste  segmento  religioso  não  aderisse  ao  candidato  do  PSBD,  o  ex‐ ministro do Planejamento e Saúde do governo, José Serra, apoiado pela  Assembleia  de  Deus.  Além  disso,  pela  primeira  vez,  havia  um  candidato  evangélico  competitivo  na  disputa:  Anthony  Garotinho14.  A  transmissão  do  programa  de  rádio  do  então  governador  do  Rio  de  Janeiro para outros estados, bem como a sua propagação para as igrejas  de  outros  estados,  foram  estratégias  adotadas  para  aumentar  sua  popularidade e viabilizar sua candidatura presidencial. (Fonseca, 2002:  207‐214).  Garotinho  conseguiu  que  51,3%  dos  evangélicos  votassem nele,  sendo, no entanto, rejeitado pelos católicos que lhe deram apenas 6% de  seus votos (Bohn, 2004:323). O presbiteriano terminou em terceiro lugar,  dando um importante apoio no segundo turno ao vencedor ʺLulaʺ, que  finalmente acabou  entrando  na  disputa  presidencial  com  apoio  parcial  do  eleitorado  Pentecostal:  a  IURD15.  Naquela  que  foi  a  quarta  disputa  presidencial seguida de Lula, houve uma aliança inusitada entre o PT e  o Partido Liberal, fortemente marcada pela influência da IURD.  No  primeiro  ano  da  presidência  de  Lula,  houve  mais  uma  mostra da força política evangélica no país: a participação no processo  de  regulamentação  do  novo  Código  Civil.  Na  versão  de  1916,  as  organizações  religiosas  tinham  privilégios  no  tratamento  legal,  mas,  com a legislação aprovada, elas passariam a receber o mesmo controle  estatal exercido sobre organizações laicas sem fins lucrativos. Mais uma  vez,  denunciando  uma  suposta  perseguição  ideológica,  constitucionalmente  proibida,  os  evangélicos  se  articularam  com  representantes  católicos,  conseguindo  assim  aprovar  mudanças  na  redação de dois artigos da lei 10.406, que instituiu o novo Código Civil.  A  sanção  presidencial  para  tal  mudança  foi  destacada  por  Lula  como  um ʺgrande ato em favor da liberdade religiosaʺ (Mariano, 2006).                                                                  O  primeiro  presidente  protestante  do  Brasil  foi  o  general  luterano  Ernesto  Geisel,  governante entre 1974 e 1979, e que teve uma vida religiosa bastante discreta.  15  Duas  grandes  igrejas  pentecostais  permaneceram  sem  envolver‐se  na  política  partidária: a Congregação Cristã do Brasil e “Deus é Amor”.  14

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A  partir  daquela  penetração  inicial  no  eleitorado  pentecostal,  Lula  procurou  estreitar  relações,  participando  de  eventos  evangélicos,  formando  comitês,  pedindo  votos  e  orações  e  prometendo  parcerias  (Mariano et al., 2006:66). Com esse capital político, ele conseguiu evitar  a candidatura de Garotinho e enfrentou a reeleição.  Outra  líder  política  oriunda  do  universo  evangélico  emergia.  Depois de exercer por cinco anos o cargo de Ministra do Meio Ambiente  do governo Lula, Marina Silva volta ao Senado e, em seguida, passou a  atuar  no  Partido  Verde  em  2009  para  se  tornar  então  candidata  presidencial  no  ano  seguinte.  O  terceiro  lugar  na  disputa  pelo  Palácio  do Planalto seria mais uma vez para uma pessoa evangélica. Ainda que  uma missionária da Assembleia de Deus, paradoxalmente, tenha feito a  campanha  mais  laica  entre  os  principais  candidatos,  uma  vez  que  a  presença da religião foi realmente muito forte nesta disputa.  Mais  uma  vez  candidato  pelo  PSBD,  José  Serra  contava  com  o  forte  apoio  da  Convenção  Nacional  das  Assembleias  de  Deus  (CONAMAD),  a  maior  agremiação  da  Assembleia  de  Deus.  Teve  também a adesão de outras igrejas: a Igreja Mundial do Poder de Deus e  a Igreja Bola de Neve. Na frente evangélica pró‐Serra se destacava Silas  Malafaia,  líder  da  Associação  Vitória  em  Cristo  (derivação  da  Assembleia de Deus). Serra capitalizou a indignação evangélica contra a  terceira  versão  do  Plano  Nacional  de  Direitos  Humanos  (NHDP  III),  lançado  pelo  Governo  Federal  em  2009.  Parlamentares  evangélicos  e  católicos  se  mobilizaram  principalmente  contra  a  proposta  de  descriminalização  do  aborto16.  Os  pentecostais  também  se  opuseram  firmemente  contra  o  projeto  de  Lei  nº  122  de  2006  (PL  122/2006),  apresentado pela deputada Iara Bernardi (PT de SP) que tornava crime  os atos de homofobia no país. As questões da legalização do aborto e a  criminalização  da  homofobia  acabaram  sendo  usadas  como  armas  eleitorais pelo candidato do PSDB.  Por outro lado, já na segunda etapa da disputa, estava a ex‐chefe  da Casa Civil do governo Lula, Dilma Rousseff, que tinha se declarado                                                               16

 Em maio de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posicionou  firmemente  contra  a  III  PNHD  em  um  documento  e  recomendou  aos  fiéis  que  votassem  em  ʺpessoas  comprometidas  com  o  respeito  incondicional  à  vidaʺ  (Gold  e  Mariano, 2010:25). 

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agnóstica  em  uma  entrevista  concedida  à  revista  Época  em  2007,  mas  que  durante  a  carreira  eleitoral  participava  de  eventos  religiosos  e  missas  para  mostrar‐se  católica.  Líderes  e  parlamentares  evangélicos  determinavam que Dilma se comprometesse em resguardar a liberdade  religiosa  e  vetar,  caso  fosse  eleita,  qualquer  projeto  ʺcontra  a  vida  e  os  valores da famíliaʺ, ou seja, projetos que favorecessem o aborto, a união  civil  e  adoção  de  crianças  por  parte  de  casais  homossexuais,  a  regulamentação  da  atividade  para  aqueles  trabalhadores  do  sexo  e  assuntos  relacionados  a  estas  temáticas.  A  campanha  do  PT  se  voltou  fortemente  em  direção  aos  eleitores  evangélicos,  ressaltando  que  o  III  NHDP já estava sendo analisado pelo governo, que a candidata estava “a  favor  da  vida”  e  que,  portanto,  não  tomaria  nenhuma  iniciativa  de  mudança  na  legislação  a  respeito  do  aborto,  tampouco  de  questões  relacionadas à família e à liberdade religiosa. (Oro e Mariano, 2010:24‐29).  A  campanha  do  PSBD,  por  outro  lado,  continuou  com  seu  tom  religioso  conservador,  utilizando  a  mídia  religiosa  (católicos  e  protestantes),  as  redes  sociais  e  inclusive  os  cultos  nas  igrejas  para  ʺdefender a vidaʺ e a moral sexual cristã tradicional.  Sua  esposa,  Mônica  Serra,  que  chegou  a  acusar  Dilma  de  ser  a  favor da ʺmatança de criançasʺ, foi questionada por uma nota publicada  no  jornal  Folha  de  S.  Paulo  de  16  de  outubro  daquele  ano.  O  jornal  apresentava  o  relato  de  uma  ex‐aluna  da  Sra.  Serra,  da  Universidade  Estadual de Campinas, a quem ela tinha confessado ter feito um aborto,  o  que  foi  confirmado  por  outra  ex‐aluna.  Devido  a  esses  acontecimentos, José Serra acabou ganhando a antipatia da classe média  e  de  setores  intelectuais  e  liberais  da  população,  perdendo  assim  sua  segunda eleição presidencial.    3.2 Liderança política e moral sexual    Sobrinho  do  fundador  e  líder  da  IURD,  Edir  Macedo,  o  Bispo  Marcelo  Crivella  ganhou  popularidade  no  meio  evangélico  com  seus  sucessos  como  cantor  gospel.  Crivella  conquistou  uma  cadeira  no  Senado  em  2002,  sendo  reeleito  oito  anos  depois.  Ajudou  Dilma  Rousseff a enfrentar a polêmica sobre o aborto no mundo evangélico e a  vencer as eleições presidenciais de 2010. Apesar de novamente se aliar 

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ao  governo  petista  que  estava  sendo  instalado  em  2011,  o  senador  da  IURD não deixou de tirar proveito de sua posição Pentecostal durante a  presidência de Dilma, algo que provavelmente iria beneficiá‐lo.   Os  parlamentares  evangélicos  conseguiram  impedir,  durante  o  primeiro ano do novo governo, a distribuição de material didático anti‐ homofobia,  rotulado  de  ʺkit  gayʺ,  que  tinha  sido  encomendado  pelo  Ministério  da  Educação,  com  Fernando  Haddad.  Dilma  Rousseff  determinou  a  suspensão  da  medida  educativa.  Desde  o  início  do  governo,  os  representantes  políticos  dos  pentecostais  também  mostraram enfaticamente sua insatisfação com a nomeação da socióloga  do  PT  Eleonora  Menicucci  para  a  Secretaria  de  Políticas  para  as  Mulheres.  A  militante  feminista,  amiga  de  Dilma  desde  os  tempos  da  guerrilha  contra  o  regime  militar,  é  uma  reconhecida  defensora  da  descriminalização do aborto, tendo inclusive abortado duas vezes.  Irritados  com  o  governo  Dilma,  os  parlamentares  evangélicos  exigiram  e  obtiveram  em  fevereiro  de  2012  uma  retratação  pública  do  titular  da  Secretaria  Geral  da  Presidência  da  República,  Gilberto  Carvalho.  Ex‐seminarista  católico  e  interlocutor  do  governo  junto  às  igrejas  e  movimentos  sociais,  Carvalho  havia  encorajado  os  militantes  presentes no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, no mês anterior, a  realizarem uma ʺdisputa ideológica pela nova classe médiaʺ, que estaria  sob  a  hegemonia  evangélica.  Em  resposta  à  indignação  parlamentar  Pentecostal  com  Carvalho,  Dilma  Rousseff  nomeou  Marcelo  Crivella  como  Ministro  da  Pesca.  Com  a  medida,  a  presidente  tentou  acalmar  seus aliados religiosos, inclusive em relação às eleições na cidade de São  Paulo,  onde  Fernando  Haddad  se  apresentava  como  candidato  a  prefeito  pelo  PT.  Crivella  assumiu  seu  novo  cargo  ressaltando  que  era  totalmente leigo naquela área e que a sua nomeação não significaria dar  uma  trégua  ao  governo  federal  em  relação  a  qualquer  iniciativa  favorável  ao  aborto  e  à  união  civil  entre  homossexuais.  A  presidente  teve  de  tolerar  a  imposição  evangélica  e  o  ʺfogo  amigo  do  fiel  aliado  evangélicoʺ.  Inclusive antes de ser confirmado como candidato do PT para a  Prefeitura  de  São  Paulo  em  2012,  Fernando  Haddad  já  contava  com  a  animosidade  Pentecostal  devido  ao  “kit  gay”.  Teria  de  enfrentar  também  um  candidato  representante  dos  interesses  da  IURD:  Celso 

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Russomanno.  Ex‐apresentador  de  televisão,  Russomanno  era  o  candidato do Partido Republicano Brasileiro (PRB), da mesma linha de  Crivella,  tendo  como  braço  direito  o  Bispo  da  IURD  Marcos  Pereira,  presidente  nacional  desta  linha  e  ex‐vice‐presidente  da  Rede  Record,  pertencente a Macedo.  Do  outro  lado  da  disputa,  novamente,  estava  José  Serra,  que  também tentaria tirar proveito da fragilidade do PT no meio Pentecostal  devido  à  questão  da  homofobia.  Serra  continuava  com  o  apoio  da  Assembleia  de  Deus  CONAMAD  e  contava  também  com  Valdemiro  Santiago  e  a  sua  crescente  Igreja  Mundial  do  Poder  de  Deus.  Lula  e  o  candidato do PT escolhido por ele, Fernando Haddad, tinham diante de  si,  como  principais  obstáculos,  o  tradicional  adversário  do  PSDB  e  o  inusitado candidato da Igreja Universal do Reino de Deus.  No segundo turno, a Assembleia de Deus ‐ Ministério Madureira  no bairro paulistano do Brás em São Paulo, liderada pelo pastor Samuel  Ferreira,  passou  a  apoiar  José  Serra  devido  ao  famoso  ʺkit  gayʺ.  O  ataque  a  essa  medida  anti‐homofóbica,  atribuída  ao  ex‐ministro  da  Educação  e  candidato  do  PT,  Haddad,  teria  ressoado  fortemente  nos  discursos  de  Silas  Malafaia,  que,  mais  uma  vez,  era  uma  espécie  de  porta‐voz de Serra dentro do eleitorado Pentecostal17. A tônica ofensiva  da campanha de Serra contra o adversário do PT se baseou, em grande  medida, na questão religiosa, mas o efeito eleitoral foi contrário a ele, já  que foi outra vez derrotado.  Como se vê, os evangélicos vêm apresentando uma considerável  participação  na  vida  político‐partidária  do  Brasil  desde  sua  redemocratização.  Se  a  eleição  constituinte  de  1934  levou  o  primeiro  pastor protestante a se tornar deputado federal, a de 1986 fez com que  os  pentecostais  se  mobilizassem  de  maneira  efetiva  para  eleger  seus  representantes,  impulsionando  o  crescimento  evangélico  no  Congresso  Nacional  e  nos  demais  parlamentos  brasileiros.  Surgiam  assim,  no  cenário político, figuras de representantes oficiais de diferentes credos.  No Senado, os pioneiros evangélicos foram Marina Silva e Íris Rezende,  tornando‐se  também  ministros  de  estado,  e  este  último  o  primeiro                                                               17

 O fato de que o governo paulista de Serra tinha distribuído em 2009 cartilhas contra a  homofobia em escolas de ensino médio ‐ segundo a edição de 16 de outubro da Folha  de S. Paulo ‐ foi ignorado ou deixado de lado pelos evangélicos.  

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governador  Pentecostal18. Porém o primeiro chefe de governo estadual  vinculado  explicitamente  ao  seu  perfil  evangélico  foi  Anthony  Garotinho,  que  usaria  isso  também  como  uma  estratégia  para  sua  candidatura à presidência da República.   A  maior  denominação  evangélica  do  Brasil,  a  Assembleia  de  Deus,  foi  também  uma  precursora  na  inserção  Pentecostal  na  política  partidária,  tendo  parlamentares  em  diferentes  partidos,  mas  principalmente  no  PSC.  Em  segundo  lugar,  em  termos  demográficos,  está  a  IURD,  cujo  braço  político  é  o  PRB.  O  bispo  licenciado,  e  agora  ministro  de  Pesca,  Marcelo  Crivella,  personifica  a  força  política  da  Frente Parlamentar Evangélica junto ao governo federal.   O  chamado  “kit  gay”  representou  para  as  eleições  de  2012  na  cidade de São Paulo o que o aborto havia representado para as eleições  presidenciais do ano anterior. Nas duas situações, o candidato do PSDB  José  Serra  procurou  tirar  proveito  do  moralismo  evangélico  nas  questões da reprodução e moral sexual, ainda que sem sucesso. Assim  como  há  uma  barreira  nas  eleições  majoritárias  para  um  candidato  fortemente  identificado  com  um  determinado  segmento  religioso,  também  no  catolicismo  hegemônico  há  um  limite  para  o  uso  de  bandeiras tingidas com forte apelo religioso. Ainda que os candidatos a  cargos  executivos  visitem  bispos,  pastores,  missas,  cultos  e  outras  manifestações, esse apoio parece ser necessário, mas não suficiente para  ganhar as eleições.   Os parlamentares evangélicos atuam há muito tempo no cenário  político  brasileiro,  sendo  que  os  representantes  oficiais  ou  “despachantes”  das  igrejas  surgiram  somente  com  a  ascensão  política  Pentecostal  (Campos,  2005).  Em  nome  da  liberdade  religiosa,  os  interesses  das  igrejas  são  estrategicamente  defendidos  durante  as  campanhas  eleitorais,  as  legislaturas  e  os  mandatos  do  executivo.  No  caso  da  IURD,  a  representação  parlamentar  se  combina  com  o  poder  midiático,  exercido  por  meio  de  sua  rede  de  televisão  de  canal  aberto,  levando  a  uma  maior  influência  junto  ao  governo  federal.  Os  evangélicos  podem  não  ter  força  suficiente  para  decidir  eleições  em                                                               18

 Sobre a existência anterior de governadores pentecostais, se sabe que Leonel Brizola  tinha sido metodista em sua juventude.  

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favor  seus  candidatos  religiosos  ou  apoiados  por  suas  igrejas,  mas  provavelmente  continuem  a  ser  elogiados,  cortejados  e  atendidos  em  algumas de suas exigências em “nome do Senhor”.    3.3. Argentina: as crenças religiosas no campo legislativo    Diferentemente  do  caso  brasileiro,  o  Congresso  Nacional  argentino  carece  de  blocos  e/ou  partidos  que  se  relacionem  a  alguma  instituição  religiosa.  Entretanto,  a  partir  dos  dados  gerados  por  um  estudo  realizado  por  Esquivel  e  Vaggione  (2011)19  é  possível  explorar  algumas  das  maneiras  com  que  as  instituições  religiosas  se  conectam  com  as  decisões  e/ou  posições  dos  legisladores  quando  se  discute  políticas de sexualidade e reprodução.  Assim,  este  estudo  nos  permite  reconhecer  que  65%  dos  parlamentares acessados pela pesquisa declararam crer em Deus. Neste  sentido,  60%  se  dizem  “católicos”  e  46%  se  consideram  “muito  religiosos”  enquanto  que,  ao  contrário,  26%  dizem  “não  ter  religião”.  Além  disso,  um  fato  interessante  é  que  quase  a  totalidade  dos/as  deputados/as e senadores/as questionados acreditam que as convicções  religiosas dos parlamentares influenciam o conteúdo dos projetos de lei  e nas votações do Congresso Nacional. No entanto, esta percepção gera  opiniões  divergentes:  49%  concordam  com  a  influência  das  crenças  religiosas  nas  tomadas  de  decisão,  enquanto  que  49%  discordam  (2%  não opinaram).  Em  relação  aos  projetos  de  lei  ‐  que  no  momento  da  realização  da  pesquisa  se  mostravam  controversos  devido  à  manifesta  oposição  das  confissões  religiosas  majoritárias  (por  estar  vinculados  ao  avanço                                                               19

  Nesta  seção  vamos  utilizar  os  dados  gerados  por  Esquivel  e  Vaggione  (2011)  no  âmbito  do  projeto  PIP  CONICET  359/08  “Disputas  en  el  espacio  público  argentino.  Dirigencia  política,  instituciones  religiosas  y  organizaciones  sociales  pro‐derechos,  frente a las políticas estatales en materia educativa y de regulación familiar y sexual”.  Os dados foram extraídos de uma pesquisa do tipo questionário estruturado, aplicado  à totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e Senadores, com uma margem  de  erro  de  5%  ‐  para  95%  de  confiança  ‐,  e  o  período  de  levantamento  de  dados  se  estendeu  de  novembro  de  2009  a  maio  de  2010.  Essa  pesquisa  foi  publicada  pelo  jornal Página 12. Consulte “A Dios rogando, pero en la gente pensando” (2012, 14 de  janeiro).  

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dos direitos sexuais e reprodutivos) – os parlamentares se mostraram a  favor  da  autonomia  de  decisão  e  liberdade  de  consciência.  Assim,  os  projetos  de  fertilização  assistida  e  identidade  de  gênero20  são  os  que  registram  maior  grau  de  aprovação  (84  e  75%,  respectivamente).  No  mesmo  sentido,  uma  parcela  importante  se  manifestou  a  favor  da  descriminalização  do  aborto  nas  primeiras  doze  semanas  de  gestação  (64%)21.  Com  menor  peso  ‐  ainda  que  superando  50%  ‐  houve  um  acordo  em  relação  ao  casamento  entre  pessoas  do  mesmo  sexo22,  à  autorização  para  a  criopreservação  de  embriões  (56%),  a  eutanásia  (52%)23 e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo (51%).                                                                A lei de identidade de gênero (Lei 26743) foi aprovada por unanimidade no Senado, e  por  ampla  maioria  na  Câmara  dos  Deputados,  sendo  promulgada  em  9  de  maio  de  2012.  21O  aborto  tem  sido  (e  continua  sendo)  um  tema  bastante  polêmico  na  Argentina,  por  isso esses dados chamam a atenção. As opiniões pessoais dos parlamentares sobre o  aborto  indicaram  que  a  maioria  (83%)  acredita  que  ele  deve  ser  permitido.  No  entanto, 36% dos parlamentares não votariam a favor da descriminalização do aborto  e apenas 6% acreditam que deve ser “banido para sempre”. Outro fato interessante é  que  quase  a  metade  deles  atribui  alguma  conduta  moral  reprovável  em  relação  às  mulheres  que  abortam  espontaneamente.  Atualmente,  o  aborto  é  referido  em  vários  artigos do Código Penal. Embora seja considerada uma prática criminosa, há exceções  em que o direito penal não se aplica. Essas exceções estão relacionadas com o risco à  saúde  ou  à  vida  da  mãe,  em caso  de  estupros  ou,  finalmente,  atentado  ao  pudor  de  uma  mulher  demente  (art.  86  do  Código  Penal).  No  entanto,  este  artigo  tem  gerado  fortes  controvérsias  doutrinárias  dentro  do  campo  jurídico  entre  os  que  lutam  por  uma  aplicação  restritiva  e  os  que  interpretam  que  deveria  ser  mais  ampla.  Por  esta  razão, a Corte Suprema de Justiça da Nação, no conhecido caso “F.A.L”, emitido no  final  de  2012,  esclareceu  os  limites  e  alcances  das  exceções.  Apesar  disso,  as  discussões doutrinárias não têm sido solucionados, e na prática, um posicionamento  restritivo, que impede a realização do aborto em todos os casos, continua impondo‐se  no país.   22Lei n. 26.618, sancionada em 15 de julho de 2010, e que permite não só a celebração do  casamento civil para pessoas do mesmo sexo, mas também a possibilidade de adoção.  Lembramos  que  a  pesquisa  referida  foi  realizada  antes  da  aplicação  e  aprovação  de  tais alterações no Código civil.   23Lei n. 26.742, denominada “lei da morte digna” ou da eutanásia passiva, que concede  aos  doentes  terminais  internados  o  direito  a  recusarem  procedimentos  de  prolongamento da vida quando estes lhes causarem um  sofrimento significativo, foi  sancionada em 9 de maio (a mesma data em que se sancionou a lei de identidade de  gênero, mencionada na nota 9).  20

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Além  disso,  é  comum  que  os/as  parlamentares  se  reúnam  com  diferentes líderes religiosos24 na condição de parlamentares. Isto é, mais  da  metade  declarou  que  se  encontrou  com  um  bispo  e  45%  com  um  padre católico no último ano.   Outro  fato  significativo  é  a  opinião  sobre  a  relação  do  Estado  com  os  credos  religiosos.  Neste  sentido,  a  maioria  declara  que  todos  devem  ser  tratados  da  mesma  maneira  e  considera  que  o  Estado  não  deveria apoiar economicamente os cultos25.   Esta  pesquisa  mostra  que,  embora  as  ideias  religiosas  estejam  profundamente  enraizadas  nos  senadores  e  deputados  acessados  pela  pesquisa26, não há um vínculo tão forte entre essas ideias e as decisões  que tomam durante as votações e deliberações no Senado27, fato que de  alguma forma contesta os dados obtidos em nível populacional.     3.4 O cristianismo na Argentina e a mobilização social    Em  julho  de  2010,  na  Argentina  é  sancionada  a  alteração  do  código civil que permite o reconhecimento da instituição matrimonial a  casais compostos por pessoas do mesmo sexo (Lei 26.618).   Assim como em outros países em que o casamento entre pessoas  do  mesmo  sexo  entra  na  agenda  política  (assim  como  outras  políticas  em torno da demanda de DDSSRR), as mobilizações de rua se colocam                                                               Um  fato  interessante  que  surgiu  foi  que  embora  haja  um  amplo  apoio  aos  projetos  relacionados  aos  direitos  civis,  mais  de  90%  dos  parlamentares  entrevistados  acreditam  que  outros  parlamentares  colocam  em  jogo  suas  convicções  religiosas  ao  votarem  as  leis.  Neste  sentido,  observa‐se  um  contraste  entre  o  posicionamento  individual (a favor dos projetos de lei) e a percepção coletiva com forte influência da  Igreja Católica.  25No entanto, os recursos estatais dos colégios religiosos recebem uma maior aceitação  por  parte  dos/as  representantes  nacionais.  Em  relação  à  presença  de  símbolos  religiosos  nas  escolas  públicas,  apenas  3  de  cada  10  consideram  que  devem  ser  proibidos.  26Embora  as  pesquisas  tivessem  sido  enviadas  a  todos/as  os/as  deputados/as  e  senadores/as nacionais, apenas 102 responderam, representando cerca de um terço do  total.   27Durante  o  debate  sobre  o  denominado  “casamento  igualitário”,  muitos/as  parlamentares  se consideravam católicos/as e se posicionaram contra o  projeto. Veja  Vaggione, Juan Marco (2011).   24

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como uma das práticas comuns por parte dos grupos ou setores sociais  que  procuram  impedir  as  reformas28.  Na  Argentina,  um  dia  antes  (ou  seja,  13  de  julho  de  2010)  da  votação  definitiva  do  projeto,  diferentes  setores  sociais  convocaram  uma  marcha  nacional  na  Praça  do  Congresso  (na  capital  federal)  para  exigir  dos  senadores29  votos  em  “defesa do casamento e da família”.   Os  organizadores  foram  o  Departamento  de  Leigos  da  Conferência  Episcopal  da  Argentina  (DEPLAI),  a  Aliança  Cristã  das  Igrejas  Evangélicas  da  Argentina  (ACIERA),  a  Federação  Confraternidade  Evangélica  Pentecostal  (FECEP)  e  as  Famílias  Argentinas Autoconvocadas. A partir daí a chamada foi levada adiante  pela  associação  de  uma  diversidade  de  atores  pertencentes  tanto  a  organizações civis como eclesiásticas.   ACIERA  e  FECEP30  são  duas  organizações  que  reúnem  igrejas  evangélicas  pentecostais  que  integram  o  denominado  “polo  conservador  bíblico”  (Wynarczyk,  2009)  e  se  posicionam  como  os                                                               Neste  sentido,  por  exemplo,  uma  história  interessante  é  a  mobilização  realizada  na  Espanha  durante  as  discussões  sobre  o  casamento  em  2005,  organizada  pelo  Fórum  Espanhol da Família, a Igreja católica e o partido popular, entidades que formavam a  frente  de  oposição  no  debate  espanhol  (Etxazarra,  2007).  Vale  mencionar  que  acontecimentos parecidos ocorreram mais recentemente na França, onde segundo os  meios de comunicação, mais de 300 mil pessoas se mobilizaram para recusar o projeto  de  lei  de  casamento  entre  pessoas  do  mesmo  sexo  (La  Nación,  2010,  14  de  janeiro;  Clarín, 2010, 12 de janeiro).   29 O projeto tinha conseguido metade da aprovação na Câmara dos Deputados em maio.  Posteriormente, foi discutido na Comissão de Legislação Geral do Senado, que a 6 de  julho assinou o parecer para o tratamento em sessão da Câmara dos Senadores em 14  de julho de 2010.   30  A  ACIERA  foi  fundada  na  Argentina  na  década  de  oitenta,  no  período  de  transição  democrática do país; compunha um subsetor evangélico (de igrejas batistas e irmãos  livres, principalmente) (Jones e Cunial, 2011). A ACIERA se define como uma aliança  entre  “denominações,  congregações  locais  e  entidades  livremente  associadas  a  fins  específicos, que reconhece como hierarquia única e absoluta o Pai, o Filho e o Espírito  Santo e aceita as Sagradas Escrituras como regra de fé e conduta” (Informação obtida  em  www.aciera.org).  Enquanto  que  a  segunda  se  difunde  quase  uma  década  antes,  nos  anos  setenta,  e  era  formada  pelas  “Igrejas  locais,  organizações  e  instituições  pentecostais argentinas, inscritas no Registro Nacional de Cultos” (Informação obtida  em www.fecep.org.ar)  28

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setores  evangélicos  mais  visíveis  na  organização  da  marcha  nacional  e  na sua militância contra a aprovação da lei.   Por  sua  vez,  a  DEPLAI  é  um  organismo  que  pertence  à  Comissão Episcopal de Leigos e da Família e se dedica a articular ações  de  apoio  à  comissão  para  a  difusão  dos  princípios  doutrinais.  A  DEPLAI  se  posiciona  como  o  setor  representante  da  igreja  católica  na  organização  da  mobilização.  Entretanto,  um  considerável  número  de  bispos  também  participou  na  difusão  da  convocação,  o  que  provocou  um  grande  impacto  na  sua  mediatização.  Por  exemplo,  o  então  arcebispo  de  Buenos  Aires,  o  Cardeal  Mario  Bergoglio,  pediu  publicamente  aos  párocos  das  igrejas  do  país  que  difundissem  a  convocação para a mobilização nacional:     “(...)  [DEPLAI]  organizou  para  a  terça‐feira,  13  de  julho,  às  18:30  um  ato em frente ao Congresso Nacional sob o lema “Queremos mãe e pai  para nossos filhos” (...) A proposta é que seja um ato no qual não haja  mais  do  que  bandeiras  argentinas  ou  valores  positivos  sobre  o  casamento  homem‐mulher  (...)  peço  que  se  informem  sobre  isso  e  facilitem  a  participação  de  teus  fiéis,  assim  como  que  nas  Missas  de  domingo, 11 de julho, se leia a declaração do Episcopado e nas preces  haja  intenções  pela  família.  Também  peço  que  concedam  lugares  aos  leigos  do  DEPLAI  que  recolherão  assinaturas.  (...)  (AICA,  2010,  22  de  junho).  

  Aos setores religiosos se unem outros setores da sociedade civil  que  se  associam  sob  a  denominação  de  “Famílias  Argentinas  Autoconvocadas”. Neste sentido é interessante mencionar a agremiação  criada sob o nome de “Argentinos pelas crianças” (AxC)31. Deste modo,  a  mobilização  nacional  tentou  se  instalar  como  uma  manifestação  “cidadã”,  ativando  uma  série  de  elementos  neste  sentido,  que                                                               31

  Segundo  publicação  da  AICA  (Agência  de  Informação  Católica  Argentina,  18  de  junho  de  2010)  AxC  é  um  espaço  de  associação  entre  diferentes  classes  sociais  que  buscam defender os valores da família. Fruto do grupo “Famílias Argentinas”, o AxC  foi  criado  como  uma  página  no  Facebook,  cujo  objetivo  é  defender  o  casamento  heterossexual  e  servir  como  instância  de  articulação  para  a  geração  de  ações  neste  sentido.  

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permitiram uma identificação não necessariamente ligada a uma igreja  ou dogma religioso em particular.  Se  por  um  lado  os  organizadores  da  marcha  aglutinam  e  dão  visibilidade  a  setores  conservadores  católicos  e  evangélicos,  por  outro  também  procuram  agregar  a  ideia  de  “família”  (em  geral)  como  parte  da  ação.  Para  isso  foram  criados  diferentes  materiais  que  procuram  destacar  uma  identificação  desvinculada  de  discursos  confessionais,  e  afirmar  uma  identificação  política.  Neste  sentido,  um  dos  elementos  criados para funcionar como identificador da defesa da família foi a cor  alaranjada  (Sgró,  2011;  Rabbia  e  Iosa,  2010).  Usando  esta  cor  (e  diferentes  lemas,  que  todavia  são  coincidentes  na  defesa  da  família  fundada  em  uma  união  heterossexual)  se  produziram  uma  multiplicidade de produtos gráficos e audiovisuais que circularam e se  reproduziram  pelas  redes  de  comunicação  digitais.  O  alaranjado  também  foi  adotado  como  marca  nacional  da  marcha,  e  nas  chamadas  era solicitado que se levasse essa cor para a manifestação.   Um  exemplo  significativo  foi  a  adoção  de  um  logo  usado  tanto  por  organizações  envolvidas  na  difusão  da  convocação  como  usuárias/os  para  se  identificarem  com  a  recusa  da  reforma  do  código  civil  (ver  Figura  1).  Nesse  sentido,  a  concentração  na  Praça  do  Congresso Nacional foi visivelmente marcada por bandeiras argentinas  e bandeiras alaranjadas com variados slogans, tais como: “casamento =  homem e mulher”, “O que importa é a família”, “Argentina = Sodoma”,  “Salvemos a família”, entre outros.     Figura 1:Logo Casamento 

 

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No ato foi lido o “Manifesto pelo casamento e direito prioritário  das crianças32” a partir dos quais se apresenta o posicionamento político  em  relação  às  demandas  dos  setores  reunidos  na  manifestação33.  Os  setores  conservadores,  ainda  quando  se  mostravam  visivelmente  alinhados  à  igrejas  católica  e  evangélica,  insistiam  em  declarar  no  encerramento do ato que a manifestação é produto de uma articulação  cidadã,  de  uma  maioria  que  “deve”  ser  escutada  e  representada  no  Congresso Nacional. Essa “maioria silenciosa”34  que “se fez escutar” é a  que  compõe  a  mobilização  e  reivindica  o  direito  das  crianças.  Deste  modo  se  explicita  a  condição  de  ativismo  em  defesa  da  vida  e  da  família,  significantes  centrais  do  posicionamento  das  hierarquias  religiosas conservadoras quando se discutem políticas de sexualidade e  reprodução.     4. Considerações Finais    Muito  além  da  questão  do  espiritismo  kardecista,  já  mencionado, o cristianismo apresenta diferentes características nos dois  países  tratados  neste  texto.  Na  Argentina,  o  catolicismo  tem  um  peso  demográfico (76,5%) e jurídico maior, já que ainda mantém seu vínculo  com  o  Estado,  enquanto  que  o  protestantismo  (9,0%)  é  relativamente  pequeno.  No  Brasil,  ao  contrário,  o  catolicismo  se  encontra  mais  reduzido  (64,6%)  face  a  um  acelerado  crescimento  evangélico  (22,2%),  duas  vezes  maior  em  relação  ao  país  vizinho.  Na  Argentina  há  um  pouco  mais  de  pessoas  sem  religião  que  no  Brasil,  mas  em  contrapartida, a diversidade religiosa é menor.  Em termos de presença no espaço público, em ambos os países o  catolicismo  exerce  um  papel  significativo,  ainda  que  na  Argentina  atualmente  haja  certo  enfrentamento  ao  governo.  No  Brasil,  onde  a                                                                 Consultar  http://www.aicaold.com.ar/docs_blanco.php?id=488  [Último  Acesso:  3  de  abril de 2013]  33 O “Manifesto” além de ressaltar as noções de família e casamento defendidas, serviu  para realizar uma revisão das várias ações levadas adiante pelo ativismo conservador  e  afirmar  o  apelo  aos  legisladores  que  votariam  no  dia  seguinte  o  casamento  igualitário.   34  O  Manifesto  expressa:  “...se  fez  ouvir  a  «maioria  silenciosa».  Esta  voz  deve  ser  escutada e respeitada por nossos representantes políticos”.  32

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Teologia  da  Libertação  foi  muito  mais  expressiva  e  ativa,  a  igreja  exerceu um importante papel de apoio a militantes políticos e sindicais  durante  o  enfrentamento  com  a  ditadura  militar.  A  relação  com  o  regime  é  um  aspecto  bastante  controverso  do  catolicismo  argentino,  debate  que  tem  sido  retomado  em  função  da  eleição  do  cardeal  de  Buenos  Aires,  Jorge  Mario  Bergoglio  para  Papa.  Ainda  que  o  Papa  Francisco seja coerente em termos de vida simples e proximidade com  os  pobres,  não  foi  assim  quando  era  bispo  e  defensor  da  Teologia  da  Libertação.  Com  relação  a  isso,  ele  recebe  desde  o  início  de  seu  pontificado  o  apoio  explícito  e  entusiasmado  do  maior  expoente  dessa  vertente  católica,  o  teólogo  e  ex‐frade  franciscano  brasileiro:  Leonardo  Boff.  Do  lado  evangélico,  a  inserção  na  vida  político‐partidária  ganhou  importância  no  Brasil  na  década  de  1980,  quando  os  pentecostais  decidiram  ocupar  seu  espaço  na  Assembleia  Constituinte.  Ainda  que  na  Argentina  a  reinstauração  da  democracia  ocorreu  em  1983,  a  inserção  político‐evangélica  somente  começou  a  ocorrer  na  década seguinte.   Houve no Brasil uma mobilização de católicos e evangélicos em  torno  da  preservação  de  privilégios  de  organizações  religiosas  no  Código Civil sancionado em 2003. Na Argentina, a reforma do Código  Civil aprovada em 2010 permitiu o casamento entre pessoas do mesmo  sexo, algo que provocou a reação enfática e organizada de instituições e  líderes católicos e evangélicos.   Em  ambos  os  países,  as  questões  de  moral  sexual  estão  atualmente na essência da mobilização de ativistas cristãos, evangélicos  e católicos. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha e publicada no Brasil  em  24  de  março  de  2013  no  jornal  Folha  de  S.  Paulo  permite  a  comparação  com  alguns  dados  da  realidade  argentina.  Enquanto  que  76,3%  dos  argentinos  se  mostram  favoráveis  à  união  matrimonial  de  sacerdotes católicos, no Brasil o percentual é de 56%; da mesma forma,  60,3%  dos  argentinos  se  mostram  a  favor  do  sacerdócio  de  mulheres,  enquanto que 58% dos brasileiros defendem essa posição. Com relação  ao  polêmico  tema  do  aborto,  64%  da  população  argentina  tolera  em  todos  ou  alguns  casos  sua  prática,  enquanto  que  no  Brasil  essa  porcentagem cai quase pela metade, ou seja, 37%. Esses dados apontam 

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um caráter mais liberal da Argentina em relação ao Brasil. Uma maior  presença evangélica neste último está diretamente ligada a esse fator. E  como  consequência,  tendem  a  ocorrer  mais  manifestações  públicas  e  político‐partidárias de ativistas cristãos, em ambos os países, em torno  dessas questões.         Bibliografia     ARRIBAS,  Célia.  Afinal,  espiritismo  é  religião?  São  Paulo:  Alameda  e  FAPESP,  2010..  BOHN,  Simone  Rodrigues.  “Evangélicos  no  Brasil:  perfil  socioeconômico,  afinidades  ideológicas  e  determinantes  do  comportamento  eleitoral”.  Opinião  Pública. v. X, nº 2, p. 288‐338, 2004.  CAMPOS,  Leonildo  Silveira.  De  políticos  evangélicos  a  políticos  de  Cristo:  la  trayectoria de las acciones y mentalidad política de lós evangélicos brasileños  em El paso del signo XX al siglo XXI. Ciencias Sociales y Religión. nº 7, p. 157‐186,  2005.   CAMPOS, Leonildo Silveira. De políticos evangélicos a políticos de Cristo: uma  análise do comportamento político de protestantes históricos e pentecostais no  Brasil.  In:  BURITY,  Joanildo  &  ORO,  Ari  Pedro  (Orgs.).  Os  votos  de  Deus:  evangélicos,  política  e  eleições  no  Brasil.  Recife:  Fundação  Joaquim  Nabuco  e  Ed.  Massangana, 2006.  ESQUIVEL,  Juan  Cruz.  “¿Religión  oficial?  La  preponderancia  católica  en  la  legislación  nacional  y  provincial”,  2010.  Versión  online,  disponible  en  http://www.nuevatierra.org.ar/2010/10/248/, último acceso, 10/02/13  ESQUIVEL,  Juan  Fabián  García;  HADIDA,  María,  HOUDIN,  Victor.  Creencias  y  religiones en el Gran Buenos Aires: el caso de Quilmes. Buenos Aires: Universidad  Nacional de Quilmes, 2001.   ESQUIVEL,  Juan  y  VAGGIONE,  Juan  Marco.  Informe  de  Trabajo  Proyecto  “Disputas  en  el  espacio  público  argentino.  Dirigencia  política,  instituciones  religiosas y organizaciones sociales pro‐derechos, frente a las políticas estatales  en materia educativa y de regulación familiar y sexual” (MIMEO), 2011.  ETXAZARRA, L “La legalización del matrimonio homosexual (el cómo y el por  qué  de  una  movilización)”.  Papeles  del  CEIC,  vol.  1,  número  26.  España:  Universidad del País Vasco, 2007.   FERNANDES, Silvia Regina e PITTA, Marcelo. Mapeando as rotas do trânsito  religioso no Brasil. Religião e Sociedade, nº 26 (2), pp.121‐154, 2006. 

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FONSECA, Alexandre Brasil Carvalho da. Secularização, pluralismo religioso e  democracia  no  Brasil:  um  estudo  sobre  a  participação  dos  principais  atores  evangélicos  na  política  (1998‐2001).  Tese  de  doutorado  em  sociologia.  São  Paulo: USP, 2002.  FRESTON, Paul. Protestantes e políticas no Brasil: da Constituinte ao impeachment.  Tese de doutorado em ciências sociais. Campinas: Unicamp, 1993.  FRESTON,  Paul.  Evangelicals  and  politics  in  Ásia,  África  e  Latin  América.  Cambridge, Press University Cambridge, 2001.  FRIGERIO,  Alejandro  y WYNARCZYK,  Hilario.)  “Diversidad  no es  lo  mismo  que pluralismo: cambios en el campo religioso argentino (1985‐2000) y lucha de  los  evangélicos  por  sus  derechos  religiosos”.  Sociedade  e  Estado.  Num.  3.  Brasilia, 2008.   JONES,  Daniel  y  CUNIAL,  Santiago.  “Evangélicos  contra  el  ‘matrimonio  homosexual’  en  Argentina:  el  activismo  político  de  la  federación  Alianza  Cristiana  de  Iglesias  Evangélicas  de  la  República  Argentina  (ACIERA)”.  En:  PEÑAS DEFAGO, María Angélica y VAGGIONE, Juan Marco (comps.). Actores  y discursos conservadores en los debates sobre sexualidad y reproducción en Argentina.  Córdoba, Ferreyra‐CDD‐EU, 2011.  MAINWARING, Scott. Igreja Católica e a política no Brasil: 1916‐1985. São Paulo:  Brasiliense, 1989.   MALLIMACI,  Fortunato.  Prólogo.  En:  ESQUIVEL,  Juan;  Fabián  García;  HADIDA, María; HOUDIN, Víctor. Creencias y religiones en el Gran Buenos Aires:  el caso de Quilmes. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2001.  MALLIMACI, Fortunato y ESQUIVEL, Juan. “Primera encuesta sobre creencias  y  actitudes  religiosas  en  Argentina”,  2008.  Disponible  en  http://www.culto.  gov.ar/encuestareligion.pdf . Último acceso: 01/02/2013.  MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no  Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.  MARIANO, Ricardo. “A reação dos evangélicos ao novo Código Civil”. Civitas,  v. 6, nº 2, p. 77‐99, 2006.   MARIANO,  Ricardo;  HOFF,  Márcio;  DANTAS,  Toty  Ypiranga  de  Souza.  “Evangélicos  sanguessugas,  presidenciáveis  e  candidatos  gaúchos:  a  disputa  pelo voto dos grupos religiosos”. Debates do NER (UFRGS), v. 7, p. 65‐78, 2006.  MARIZ,  Cecília  Loreto.  “Pentecostalismo,  Renovação  Carismática  e  Comunidade de Base: uma análise comparada”. Cadernos do Ceris. V. 1, nº 2, p.  11‐42, 2001.  MIRANDA, Julia. Carisma, sociedade e política: novas linguagens do religioso  no político. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.  ORO,  Ari  Pedro  e  MARIANO,  Ricardo.  “Eleições  2010:  Religião  e  política  no  Rio Grande do Sul e no Brasil”. Debates do NER. nº 16, p. 9‐34, 2010. 

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Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi    María Inés Landa1  Jorge Leite Jr.2  Andrea Torrano3      1. Introdução    Cada  época  engendra  seus  monstros,  os  quais,  a  partir  de  diferentes  perspectivas,  nos  contam  sobre  as  irregularidades  imagináveis desta particular encruzilhada histórica. Aqui nos propomos  abordar  os  monstros  contemporâneos  enquanto  locus  de  significado  pelos  quais  transita  a  inteligibilidade  do  presente,  expressando  aquilo  que põe em causa o normal do humano.  Definir o que e quem é um monstro é uma tarefa que apresenta  grandes dificuldades. Como assinala Kappler ʺnão existe uma definição  de  monstro,  mas  algumas  tentativas  de  definir  que  variam  segundo  os  autores  e,  sobretudo,  segundo  as  épocas.  Num  sentido  mais  geral,  o  monstro  é  definido  em  relação  à  normaʺ  (Kappler,  1993:  291.  Grifos  e  tradução do autor).  O  conceito  “monstro”,  mais  exatamente,  funciona  como  um  ʺoperador  conceitualʺ  (Gil,  2012:  13),  na  medida  em  que  representa  o  desenvolvimento  de  todas  as  irregularidades  possíveis,  e  afronta  ‐  ou  coloca em questão – a norma do humano. Neste sentido, afirma Foucault,  o monstro é ʺum princípio de inteligibilidadeʺ de todas as anomalias, e,  ainda  assim,  é  um  ʺprincípio  verdadeiramente  tautológicoʺ,  porque  a  propriedade  do  monstro  consiste  em  se  afirmar  enquanto  tal,  “explicar  em si mesmo todos os desvios que podem resultar dele, mas sem que seja                                                               Investigadora  asistente  do  CONICET,  CIECS‐CONICET/UNC,  Centro  de  Investigaciones y Estudios sobre la Cultura y la Sociedad (CIECS), Consejo Nacional  de  Investigaciones  Ciéntificas  y  Técnicas  (CONICET),  Universidad  Nacional  de  Córdoba (UNC) – Argentina.   2  Professor  adjunto  do  Departamento  de  Sociologia,  da  Universidade  Federal  de  São  Carlos (UFSCar), Brasil .  3Professora assistente da Facultad de Direito e Ciências Sociais, UNC, bolsista doutoral  IDH‐CONICET, Universidad Nacional de Córdoba – Argentina.   1

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em  si  mesmo  inteligívelʺ  (Foucault,  2000:  62‐63)4.  Portanto,  mais  do  que  tentar  definir  o  monstro  em  sentido  afirmativo,  se  trata  de  mostrar  seu  sentido em função daquilo a que ele se opõe.  De  nossa  perspectiva,  o  monstro  deve  confrontar‐se  com  o  que  considera  normativamente  humano.  Mas  isso  não  significa  que  o  monstro  represente  a  alteridade  absoluta,  mas  sim,  nos  termos  de  Agamben, ele é uma exclusão inclusiva, “uma forma extrema de relação  que inclui qualquer coisa através de sua exclusão” (Agamben, 2003: 31).  Ou seja, o humano e o monstro se encontram em uma tensão tal que um  é  o  reverso  e  o  complemento  do  outro.  Neste  sentido,  embora  se  confronte  com  a  norma  do  humano,  o  monstro  não  é  ʺexterior  e  pura  alteridade  em  relação  ao  homem,  mas  sim  um  ‘interior  externalizado’  do ser humanoʺ (Giorgi, 2009: 325).  Desse modo, o monstro não apenas se confronta com a norma do  humano, como se se tratasse exclusivamente de um desafio à ordem da  vida,  onde  a  monstruosidade  é  posta  em  jogo  no  campo  da  ʺnormatividade da vidaʺ5. Como expressa Canguilhem:                                                               No  curso  Os  Anormais  (1974‐1975),  Foucault  se  refere  ao  ʺmonstro  humanoʺ  distinguindo  dois  momentos:  o  primeiro,  desde  a  Idade  Média  até  o  século  XVIII,  onde o monstro é considerado um conceito jurídico‐biológico, uma mistura de reinos,  de  individualidades  e  de  gêneros.  E  um  segundo  momento,  entre  o  final  do  século  XVIII  e  início  do  século  XIX,  quando  ele  é  identificado  com  as  más  formações,  que  serão  a  explicação  de  determinadas  condutas  criminosas,  é,  portanto,  um  conceito  jurídico  moral.  A  primeira  manifestação  do  monstro  jurídico  moral  é  o  ʺmonstro  políticoʺ,  o  criminoso  político,  aquele  que  está  fora  do  pacto  social.  Esta  monstruosidade é a do tirano, dos revolucionários e, ainda, do delinquente comum.  Daí o autor conclui afirmando que, em finais do século XIX, o conceito de monstro é  abandonado  pelo  de  anormal.  Isso  ocorre  porque  a  monstruosidade  deixa  de  ser  entendida  como  uma  categoria  jurídico‐política  e  se  converte  em  uma  noção  fundamental da psiquiatria criminal.  5  De  acordo  com  Canguilhem,  viver  significa  aceitar  algumas  coisas  e  recusar  outras,  eliminar  obstáculos,  abandonar  o  que  impede  o  pleno  desenvolvimento,  mas,  ao  mesmo tempo, aceitar e impulsionar aquilo que reafirma a possibilidade de viver. A  vida  significa,  portanto,  ʺpolaridade  dinâmicaʺ  traduzida  em  juízos  de  valor,  em  normas. Apenas o vivente tem a capacidade de produzir padrões biológicos, porque  ʺao não se submeter ao meio ambiente, mas instituir seu próprio meio ambiente, ele  mesmo  atribui  valores  não  apenas  ao  meio  ambiente,  mas  também  ao  próprio  organismoʺ  (Canguilhem,  1976:  175).  Essa  atividade  é  chamada  de  ʺnormatividade  biológicaʺ, ou seja, a capacidade de cada indivíduo de impor a si mesmo uma norma  4

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ʺdevemos,  portanto,  compreender  na  definição  de  monstro  sua  natureza viva. O monstro é o vivente de valor negativo. (...) o que faz  dos  viventes  seres  valorizados  em  relação  ao  modo  de  ser  do  seu  ambiente físico é sua consistência específica (...). Assim, o monstro não  é apenas um vivente de valor diminuído, ele é um vivente cujo valor é  repelir  (...)  é  a  monstruosidade,  e  não  a  morte,  o  contravalor  vitalʺ  (Canguilhem, 1976: 202‐203). 

  Pelo contrário, a partir do momento que a vida do homem como  indivíduo biológico está imbricada na do homem como sujeito político, ou,  nos  termos  de  Foucault,  se  ʺo  homem  moderno  é  um  animal  em  cuja  política é posta em causa sua vida de ser viventeʺ (Foucault, 2002b: 173),  a vida e a política entram em uma relação de implicação tal que se pode  inferir uma biologização da política e uma politização da biologia (Esposito,  2008‐2009), em suma, uma biopolítica.  Assim,  é  possível  afirmar  que  o  monstro,  ao  irromper  na  ordem  da  vida,  irrompe  também  na  ordem  da  política.  Como  expressa  Lucchese  e  Bove:  ʺse  a  presença  de  monstros  biológicos  questiona  a  ordem da vida, o monstro também interpela necessariamente a ordem e  as  hierarquias  no  universo  ético  e  político  da  históriaʺ  (Del  Lucchese,  Bove,  2008:  21.  Tradução  dos  autores).  Consequentemente,  o  monstro  impacta a ordem do biopolítico, é um conceito biopolítico.  Tal como advertia Foucault, os dispositivos de poder não podem  funcionar  senão  mediante  a  formação  e  circulação  de  um  saber:  ʺo                                                                                                                                                   biológica,  diferente  em  relação  ao  ambiente  em  que  vive.  Portanto,  somente  em  relação ao indivíduo é que se pode estabelecer o normal e o patológico ou, em outros  termos,  a  saúde  e  a  enfermidade.  Isto  significa  que  a  fronteira  entre  o  normal  e  o  patológico  apenas  pode  ser  definida  se  se  toma  em  conta  sucessivamente  um  único  indivíduo. Em condições determinadas, o normal pode converter‐se em patológico se  estas  condições  mudam  e  o  indivíduo  permanece  o  mesmo.  Mas  esta  delimitação  entre  o  normal  e  o  patológico  não  pode  ser  determinada  para  a  totalidade  dos  indivíduos. Neste sentido, normalidade e a patologia seriam dois conceitos de valor  não  redutíveis  quantitativamente.  No  entanto,  esta  normatividade  biológica  do  indivíduo  é  convertida  pela  ciência  em  uma  medida  quantitativa.  Assim,  o  normal  vivente  é  substituído  pelo  normal  científico.  O  homem  de  ciência  encontra,  no  conceito  de  média  um  equivalente  objetivo  e  cientificamente  válido  do  conceito  de  normal  ou  de  norma.  E  como  considera  que  a  média  tem  uma  significação  mais  objetiva, tenta reduzir a norma à média (Canguilhem, 1971: 115‐123). 

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poder  produz  saber  (...);  poder  e  saber  se  implicam  diretamente  um  sobre o outro; não existe relação de poder sem a constituição correlata  de um campo de saber, nem de saber que não suponha e não constitua  ao  mesmo  tempo  relações  de  poderʺ  (Foucault,  2002a:  34).  Em  nossas  sociedades se produz um saber sobre a população humana, através de  estatística  e  da  probabilidade,  que  permite  identificar  suas  regularidades  (nascimento,  mortalidade,  saúde,  expectativa  de  vida,  etc.) e a partir daí é possível estabelecer a norma do humano. Ou seja,  toma‐se  os  processos  da  vida  para  administrá‐los,  controlá‐los  e  modificá‐los,  em  outras  palavras,  se  utilizam  os  dados  da  realidade  como suporte para influir sobre a realidade (Foucault, 2006).  Neste sentido, podemos dizer que os monstros não são excluídos,  já que são parte da realidade que se quer administrar. Assim, eles não se  encontram fora da distribuição do normal, mas são localizados mais ou  menos distantes da norma. A monstruosidade pode ser estabelecida em  termos de graus: o mais ou menos monstruoso é definido em função da  distância  em  relação  à  norma.  Consequentemente,  a  monstruosidade  desafia  a  norma  a  partir  de  sua  própria  interioridade,  é  uma  ameaça  inerente à norma do humano.  A monstruosidade é algo que convive em(entre) nós e, como parte  da  realidade  que  habitamos,  é  algo  que  se  deve  administrar,  já  que  é  parte (ameaçadora) da população. Quando se assume esta concepção de  monstruosidade  como  um  mal  necessário,  a  gestão  da  população  considera  que  o  monstro  se  apresenta  como  um  risco  que  se  deve  controlar,  prognosticar  e  prevenir  (OʹMalley,  2006:  21).  Portanto,  a  gestão  da  vida  é  exercida,  em  maior  medida,  sobre  os  chamados  ʺgrupos produtores de riscoʺ, ou seja, sobre sujeitos sociais coletivos (De  Giorgi,  2005:  39)  que  são  considerados  uma  ameaça  para  a  população  que se pretende proteger6.                                                               6

  A  categoria  ʺgrupoʺ,  como  conjunto  de  indivíduos  que  apresentam  certas  características comuns e aos quais são atribuídos uma identidade, torna‐se o objeto e  o objetivo do poder. A gestão não é exercida tanto sobre corpos individuais – o que  Foucault  denomina  anatomopolítica  ‐  nem  sobre  a  totalidade  da  população  ‐  a  biopolítica  (Foucault,  2002b: 168‐169),  mas  sim  sobre  os  grupos  caracterizados  como  perigosos. 

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A  partir  desta  consideração  são  implementadas  estratégias  que  permitem identificar estes grupos e que possibilitam a intervenção das  autoridades administrativas sobre eles de forma preventiva. O governo  sobre a vida dos grupos de risco é realizado através da vigilância e do  controle que, como adverte Deleuze, nas sociedades de controle (Deleuze,  1991)  em  que  vivemos  trata‐se  inclusive  de  uma  (auto)vigilância  e  (auto)controle.  Deste modo, a monstruosidade explicita como o “poder funciona  diferentemente, tomando como alvo certas populações, administrando‐ as,  realizando  a  humanidade  de  sujeitos  que  poderiam  constituir  uma  comunidade  unida  por  leis  comuns  a  todosʺ  (Butler,  2006:  98).  Isto  significa  que  sobre  o  continuum  da  população  são  produzidos  cortes  entre a população que se quer defender (os que representam a norma) e  os  grupos  de  risco  (aqueles  que  se  desviam  da  norma)  que  podem  ser  caracterizados  como  monstros.  Em  outras  palavras,  sobre  o  plano  neutro  da  população  o  poder  distingue  a  ʺvida  que  não  merece  ser  vivida (...) e a vida digna de ser vivida (ou viver)ʺ (Agamben, 2003: 173),  entre vidas vivíveis com mortes lamentáveis e vidas inumanas que não  ʺmerecem  ser  choradasʺ  (Butler,  2010b:  13‐56),  entre  ʺcorpos  que  importamʺ e os corpos descartáveis (Butler, 2010a: 53‐94).  Assim,  advertimos  que  o  conceito  monstro,  enquanto  ʺoperador  conceitualʺ,  permite  compreender,  por  um  lado,  ʺa  precariedade  da  identidade humanaʺ, e, por outro, a representaçãoda antítese da ordem  social, enquanto um risco sempre ameaçador de romper com esta, e, por  fim,  como  o  elemento  necessário  para  legitimar  e  justificar  a  implementação de estratégias de prevenção de riscos e de aumento do  controle social (Neocleous, 2005: 5).  É  nesta  dupla  dimensão  da  monstruosidade,  enquanto  questionamento  de  uma  identidade  humana  normativa  e  como  caracterização  do  risco  que  apresentam  certos  grupos  populacionais,  que  encontramos  neste  conceito  a  possibilidade  de  uma  aproximação  analítica  em  relação  às  estruturas  de  poder  tecno‐somáticas  nas  quais  repousam as corporalidades do presente. O monstro desafia a norma do  ʺhumanoʺ  e  sua  aplicação,  se  instala  no  centro  de  uma  política  do  vivente que deve distribuir os corpos segundo um regime específico de  poder para sua utilização e descarte.  

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Se,  como  adverte  Haraway,  assistimos  na  atualidade  a  uma  ficção  política  (ciência  política)  na  qual  a  definição  do  que  é  o  corpo  humano se torna cada vez mais problemática7, a obesidade epidêmica e os  zumbis, sobre os quais refletiremos neste artigo, evidenciam, um a partir  do discurso da ciência (biomédica), e outro, da ficção, manifestações de  transgressões de fronteira do propriamente humano.  Do  ponto  de  vista  do  enfoque  biomédico  a  obesidade  se  configura  tanto  como  fonte  de  enfermidades  e  de  riscos  (incluindo  a  manifestação  de  disposições  subjetivas  de  marginalização  social),  quanto  como  ameaça  somático‐política  que  atenta  contra  a  crença  sanitário‐empresarial  da  (auto)liderança  individual  e  comunitária.  A  volumosidade,  flacidez  e  carnalidade  amorfa  do  corpo  obeso  se  constituem  em  marcas  somáticas  que  confessam,  através  do  registro  visual,  a  transgressão  dos  cidadãos  biológicos,  que  se  apresentam  em  sua  condição  de  desvio  radical  entre  os  limites  do  humano/não‐ humano.  O  zumbi,  ou  morto‐vivo,  é  um  corpo  que  se  situa  na  zona  que  separa  a  vida  da  morte,  sua  presença  não  apenas  manifesta  um  corpo  decomposto,  mas  também  põe  em  causa  estas  duas  ordens  diferenciadas. Desse modo, o zumbi representa tanto uma transgressão  à constituição orgânica do corpo humano, como uma ameaça aos limites  que  separam  o  mundo  dos  vivos  e  o  mundo  dos  mortos,  em  outras  palavras,  a  vida  humana  da  vida  não‐humana.  Como  assinala  Cortés‐ Rocca  ʺo  zumbi  define  uma  nova  tipologia  do  monstruoso,  na  medida  em  que  implica  um  perigo  –  como  todo  monstro  –  que  todavia  não  se  define  a  partir  da  simples  diferença,  tal  como  ocorre  com  os  monstros  clássicos como o dragão, o energúmeno ou o fantasma, mas a partir de  uma deformação do humanoʺ (Cortés‐Rocca, 2009: 341‐342). 

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 Haraway se apropria da noção de cyborg, organismo cibernético, enquanto criatura de  realidade  social  e  também  de  ficção,  para  representar  as  transgressões de  fronteiras,  as fusões poderosas e as possibilidades de resistência dos corpos em sua composição  orgânico‐artificial.  Em  sua  perspectiva,  o  cyborg  reúne  três  rupturas  cruciais:  1)  a  fronteira  entre  o  humano  eo  animal,  2)  a  distinção  entre  os  organismos  (animais,  humanos) e  máquinas e 3) as fronteiras entre o físico e o não‐físico (Haraway, 1995:  256‐262). 

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Precisamente  o  que  queremos  evidenciar  através  da  análise  do  corpo  obeso  e  do  zumbi  é  que,  ao  contrário  dos  discursos  tradicionais  sobre  a  monstruosidade  que  transformam  o  monstro  na  alteridade  absoluta  do  humano,  o  monstro  é  um  ʺinterior  externalizadoʺ  do  humano, está en(tre) nós.  O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perdem  sua  forma  humana,  no  primeiro  caso,  por  descuido,  e  no  segundo,  por  decomposição; o obseso encarna a enfermidade do corpo, constituindo‐se  em  um  perigo  contra  os  princípios  sanitário‐empresariais,  enquanto  o  zumbi  perde  qualquer  possibilidade  de  redenção,  seu  corpo  evoca  um  estigma do corpo corrompido e corruptor.    2. O governo do tamanho e do peso corporal: o dispositivo discursivo  de obesidade (epidêmica)    Um  dos  discursos  mais  influentes  nos  modos  de  perceber  o  próprio  corpo  e  o  dos  outros  na  atualidade  é  o  da  obesidade  epidêmica  (Wright,  2009:1).  No  entanto,  sua  força  e  proliferação  não  podem  ser  compreendidas  se  não  consideramos  também  as  tecnologias  de  normalização corporal e de otimização de si, que supõe as políticas de  consolidação  de  uma  ʺcidadania  biológicaʺ8  que  redefine  suas  prioridades vitais e regimes subjetivos (Rose, 2012:270).  Um  cenário  comum  em  várias  metrópoles  de  nossa  contemporaneidade  é  o  da  coexistência  de  um  discurso  que  promove  um estilo de vida ativo e saudável, que se vincula com uma aparência                                                               8

 Para Rose (2012: 270) o conceito de cidadania biológica permite, por um lado, explorar  a biologização da política a partir da perspectiva da cidadania e, por outro, analisar as  reterritorializações  da  cidadania,  em  termos  biológicos,  nos  cenários  locais  e  transnacionais  contemporâneos.  Segundo  este  autor,  na  atualidade  se  estaria  produzindo  uma  redefinição  do  valor  humano  como  consequência  do  intenso  desenvolvimento que têm se dado nas últimas décadas na biologia, na biotecnologia e  na  genômica.  Esta  redefinição  supõe  uma  progressiva  biologização  da  cidadania  e,  portanto, também da política e da sociedade. Entre outras práticas políticas e sociais,  tais  como  as  práticas  de  aborto  seletivo  ou  de  diagnóstico  genético,  Rose  oferece  o  exemplo dos processos de implementação de políticas de saúde pública. As políticas  preventivas da OMS para minimizar a epidemia da obesidade e a pandemia do vírus  de gripe A são casos paradigmáticos deste tipo de políticas. 

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harmônica  e  tonificada,  e  a  propagação,  por  diversos  meios,  de  narrativas  em  tom  catastrófico  sobre  os  perigos  que  representam  a  obesidade e o sobrepeso à saúde individual, comunitária e mundial.  Apesar da naturalização desses discursos, é necessário assinalar  que a forma como percebemos a corpulência, que associamos à idéia de  obesidade,  é  uma  característica  de  nossa  época.  A  não  mais  de  um  século  atrás,  a  obesidade,  longe  de  representar  feiura  ou  enfermidade,  augurava bonança e saúde promissora (Jutel, 2009: 60). Como observam  Lebesco e Fraziel (2001:2), foi necessário construir uma cultura obcecada  pelo  peso  e  pela  magreza  para  que  os  significantes  gordura,  sobrepeso,  obesidade adquirissem o tom inquietante que apresentam na atualidade.  Nesta  seção  nos  propomos  a  desembaraçar  alguns  dos  fios  que  enlaçam  as  redes  que  configuram,  na  atualidade,  o  dispositivo  discursivo  da  obesidade  (epidêmica).  Para  tanto,  em  primeiro  lugar  analisamos  o  discurso  que  circula  na  e  que  é  difundido  pela  Organização  Mundial  de  Saúde  (OMS)  a  respeito  do  sobrepeso  e  da  obesidade  quando  incorpora  a  perspectiva  biomédica  sobre  estes  estados  corporais  particulares.  Encontramos  na  invenção  e  no  uso  de  um  instrumento  de  medição,  o  índice  de  massa  corporal  (IMC),  uma  das condições de possibilidade para a construção, por parte de diversos  organismos  governamentais  e  sanitários,  de  um  discurso  que  define  a  obesidade  como  uma  epidemia  do  século  XXI.  Mostramos,  finalmente,  como  através  da  circulação  de  um  conjunto  de  biopedagogias,  que  operam  tanto  através  de  um  registro  prescritivo  como  de  um  registro  escópico,  se  instala  uma  maquinaria  moralizante  que  infunde  na  população aversão em relação à figura do obeso, de tal forma que ela é  exibida como uma condição de anomalia e monstruosidade.    2.1. A patologização da obesidade no discurso virtuoso da OMS    Nas  últimas  trinta  décadas  a  obesidade  tem  sido  considerada,  em escala mundial, como um problema de saúde global que apresenta  crescimento significativo (Flegal et. Al., 2011). Seu incremento não seria  objeto  de  preocupação  governamental  e  social  não  fosse  a  quantidade  de  efeitos  adversos  à  saúde  que  a  ela  estão  associados  (Flegal,  2006). 

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Uma  das  instituições  que  tem  proposto  intervenções  a  respeito  da  questão, a nível mundial, é a Organização Mundial de Saúde (OMS).  A  OMS  é  um  dos  organismos  de  referência  em  matéria  de  concepção  e  implementação  de  políticas  de  saúde  pública  a  nível  mundial.  A  partir  dessa  entidade  se  têm  dirigido  e  coordenado  ações  sanitárias  no  sistema  das  Nações  Unidas  (WHO,  2013a).  A  função  que  esta  cumpre,  no  tocante  à  saúde  pública,  é  a  de  definir  diretrizes  em  relação  às  questões  sanitárias  mundiais,  configurar  a  agenda  das  investigações  em  saúde,  fornecer  apoio  técnico  aos  países,  estabelecer  normas  e  supervisionar  as  tendências  sanitárias  mundiais  (WHO,  2013b).  Para  a  OMS,  a  obesidade  e  o  sobrepeso  representam  o  quinto  principal fator de risco de morte no mundo, e são definidos ʺcomo um  acúmulo  anormal  ou  excessivo  de  gordura  que  pode  ser  prejudicial  à  saúdeʺ (WHO, 2012. Grifos do autor). Conforme informações da página  da instituição ʺmorrem a cada ano, pelo menos, 2,8 milhões de pessoas  adultas  como  consequência  de  sobrepeso  ou  obesidade.  Ademais,  44%  dos  casos  de  diabetes,  23%  das  cardiopatias  isquêmicas  e  entre  7%  e  41%  da  ocorrência  de  alguns  tipos  de  câncer,  podem  ser  atribuídos  ao  sobrepeso e à obesidadeʺ (WHO, 2012).  Nesta  definição,  o  componente  ruim  é  atribuído  ao  excesso  de  gordura.  Este  excesso  é  calculado  por  um  instrumento  de  medição  denominado  índice  de  massa  corporal  (IMC),  que  é  usado  para  a  construção  das  categorias  abaixo  do  peso,  peso  normal,  sobrepeso  e  obesidade,  e  para  a  posterior  identificação  das  mesmas  na  população.  Consequentemente,  a  conceitualização  desses  estados  para  a  OMS  se  completa  incorporando  um  limiar  numérico  que  padroniza  as  categorias e permite sua diferenciação entre um IMC igual ou superior a  25, enquanto que ao grupo classificado como obeso corresponde um IMC  igual ou superior a 30. Daí se deduz uma relação linear e de graus entre  um estado e outro.  O  IMC  deriva  do  índice  de  Quetelet  desenvolvido  entre  1830  e  1850 ecriado pelo estatístico Adolphe Quetelet para registrar a variação  de  peso  e  altura  dos  recrutas  do  serviço  militar  francês  (Oliver,  2006;  Halse, 2009: 46). Em suas observações, Quetelet percebe a existência de  uma  distribuição  gaussiana  (normal)  dos  níveis  de  peso  e  altura  na 

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população estudada, a partir do qual cria um índice para realizar uma  descrição  estatística  do  “homem  tipo”  (Oliver,  2006).  Atualmente,  o  IMC  é  uma  representação  matemática  que  fornece  uma  estimativa  da  composição  corporal,  e  é  calculado  dividindo  o  peso  corporal  em  quilogramas  pelo  quadrado  da  altura  do  corpo  em  metros  (Wilmore  e  Costill, 2001: 492).  A  centralidade  que  adquire  este  índice  nas  definições  de  peso  corporal  cunhadas  pela  OMS  responde  ao  que  essa  entidade  necessita  para cumprir sua função de proporcionar à comunidade de governos e  agências  internacionais  de  financiamento  dados  confiáveis  sobre  o  problema da obesidade, a partir dos quais permite diferenciar os grupos  normais dos patológicos no interior de uma população específica, e assim  justificar a implementação de políticas de prevenção.  Neste sentido, o IMC supõe um índice que requer tão somente a  aplicação de uma fórmula para realizar o cálculo, e desse modo confere  aos  estudos  uma  aura  de  objetividade  e  transparência  que  é  sempre  bem  recebida  pela  comunidade  de  especialistas  que  atuam  nesses  organismos. Além disso, a padronização de pesos corporais a partir de  um  mesmo  conceito  e  de  uma  mesma  medida  facilita,  portanto,  a  realização de estudos estatísticos de tipo comparativo, uma vez que, ao  homogeneizar  as  categorias  e  reduzir  sua  complexidade,  ignora  as  diferenças  conceituais  e  neutraliza  as  variações  no  interior  das  categorias estabelecidas.  Isso  não  tem  passado  despercebido  por  estudiosos  da  questão  (Halse,  2009;  Jutel,  2009;  Stuart,  2013).  Entre  outras  questões,  Stuart  (2013) argumenta que a redução da complexidade inerente às noções de  obesidade e sobrepeso, o estabelecimento do sobrepeso como um estado  de  proto‐enfermidade  e,  fundamentalmente,  a  migração  de  descrições  de  tipo  qualitativas  sobre  a  obesidade  em  direção  a  outras  definidas  unilateralmente  por  medições  de  tipo  estatísticas,  tem  catalisado  a  produção  não  apenas  da  obesidade  epidêmica,  mas  também  da  pandemia.  Não obstante, e apesar dessas polêmicas e controvérsias, o IMC  tem  prevalecido  como  discurso  virtuoso  que  classifica  em  normal  e  anormal,  em  saudável  e  patológico  e  em  seguro  e  arriscado,  os  pesos  e  tamanhos corporais de populações e indivíduos. 

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Um discurso virtuoso é constituído por um conjunto de valores,  crenças,  práticas  e  ações  que  estabelecem  regimes  de  verdade  destinados a moldar os sujeitos através da construção de determinados  comportamentos  como  valiosos,  desejáveis  e  saudáveis  (Halse,  2009:  47). O que distingue um discurso virtuoso de outros discursos é que o  virtuosismo  se  configura  como  um  estado  cuja  dinâmica  de  comportamento é assintótica. Isso significa que não há limite nas ações  que  se  pode  empreender  para  alcançar  o  ideal  normativo  imposto  por  aquilo que o ICM postula como o peso normal. Isso se torna evidente na  oferta  de  um  sem‐número  de  produtos  e  serviços  que  são  colocados  à  disposição  dos  consumidores  e  usuários  que  desejam  se  aproximar  do  dito corpo ideal.  Se googleamos as palavras peso ideal e IMC o instrumento de busca  levantará  cerca  de  100.000  páginas  dentre  as  quais  uma  porcentagem  considerável  corresponde  a  empresas  ou  profissionais  liberais  (nutricionistas,  personal  trainers,  cirurgiões  estéticos,  entre  outros)  que  oferecem  programas  de  nutrição  e  de  atividades  físicas,  entre  outros  produtos,  para  reduzir  o  peso  corporal  e  a  massa  de  gordura.  Escolhendo  uma  página  ao  acaso  encontramos  um  teste  que  o  próprio  internauta pode realizar para saber se seu peso está adequado para sua  altura.  Note‐se  a  menção  à  OMS  enquanto  entidade  que  legitima  a  informação que é publicada no site.    Peso Ideal ‐ Calcule seu peso ideal de acordo com sua altura  “O  peso  está  diretamente  relacionado  ao  nosso  bem‐estar.  Por  isso,  a  Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Espanhola para o  Estudo  da  Obesidade  (seedo)  recomendam  controlá‐lo  e  mantê‐lo  em  equilíbrio. [...]  Com esta ferramenta você poderá saber o seu peso ideal em segundos,  preenchendo os campos abaixo. No resultado você obterá o seu Índice  de Massa Corporal (IMC) [...]”  (Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado  em “Dietas a tu medida”, 2011). 

  Apesar de se ter afirmado, em diferentes lugares, que o IMC não  é  válido  como  ferramenta  para  o  diagnóstico  clínico,  e  muito  menos 

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para  o  auto‐diagnóstico  (Kuczmarski  e  Flegal,  2000)9,  esta  medida  se  está enraizando no tecido social como parâmetro normativo.    “Se seu resultado é o “normopeso”, você está em uma forma ideal     [...]  Por outro lado, quando você tem mais quilos do que é aconselhado em  função de sua altura e data de nascimento, as opções apresentadas são  duas: sobrepeso (de grau I ou II), dado que mostra que deve se cuidar  um  pouco,  mas  sua  saúde  não  se  encontra  em  risco  grave;  ou  obesidade (de tipo I, tipo II, tipo III ou mórbida, e tipo IV ou extrema).  [...]  Se  seu  resultado  é  este,  você  deve  procurar  por  um  nutricionista,  depois de consultar seu médico generalista, pois sua saúde pode estar  em perigo...”  (Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado  em “Dietas a tu medida”, 2011) 

  O  IMC,  por  ser  um  índice  que  pode  ser  aferido  por  qualquer  pessoa  que  tenha  conhecimentos  mínimos  de  matemática,  tem  sido  amplamente  adotado  tanto  pelos  órgãos  de  saúde  pública,  nacionais  e  internacionais,  como  por  empresas  que  oferecem  produtos  e  serviços  para  o  emagrecimento.  Portanto,  esta  medida  não  apenas  se  torna  um  ideal  dificilmente  realizável,  mas  também  se  ajusta  a  uma  norma 

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 Os conceitos de obesidade e sobrepeso cunhados pela OMS remetem a um excesso de  gordura no corpo humano. Uma das críticas centrais que tem sido feito ao ICM é que  ele  não  é  um  método  adequado  para  medir  massa  magra,  mas  que  o  que  ele  efetivamente  mede  é  a  massa  corporal.  A  variável  “peso  do  corpo”  medida  em  quilogramas  compreende  a  massa  magra,  mas  também  se  correlaciona  com  a  densidade  óssea  do  corpo  e,  especificamente,  a  massa  corporal  (Finer,  2012,  apud  Stuart 2013). Métodos como medição de dobrascutâneas, pletismografia corporal ou a  obsorciometria  de  raio‐X  e  de  energia  dupla  (DEXA)  seriam,  em  todos  os  casos,  os  métodos  apropriados  para  medir  a  massa  magra  do  corpo  em  nível  individual  (e,  possivelmente, também seriam mais confiáveis do que o ICM em nível populacional).  Todavia  sua  implementação  supõe  um  custo  mais  elevado  que  o  ICM.  Ademais,  o  ICM foi criado, nas suas origens (índice de Quetelet), com a finalidade de determinar  médias  em  uma  população,  e  não  para  ser  aplicado  em  nível  individual,  e  muito  menos em contextos clínicos. 

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estratégica  no  marco  de  um  discurso  altamente  moralizante  que  opera  sobre a base de uma noção alargada de saúde10.    “O índice de massa corporal (IMC) é um indicador simples da relação  entre  o  peso  e  a  altura,  que  é  comumente  usado  para  identificar  o  sobrepeso e a obesidade em adultos.   [...]  O  IMC  fornece  a  medida  mais  útil  do  sobrepeso  e  da  obesidade  na  população,  uma  vez  que  ela  é  a  mesma  para  ambos  os  sexos,  e  para  adultos de todas as idades.” (WHO, 2012) 

  O ICM, ao classificar pesos corporais, também classifica pessoas.  Por  exemplo,  a  valoração  geral  de  pessoas  em  condição  normal  ou  patológica  contribui  para  a  geração  de  estereótipos  em  um  sentido  estigmatizante,  como  acontece  com  a  conhecida  associação  entre  a  obesidade,  a  gordura  e  termos  como  doença,  preguiça,  passividade,  gula, lerdeza, falta de autoestima, entre outros.  O ICM invoca e se baseia em uma lógica binária e normalizadora  na  qual  aqueles  que  se  aproximam  do  ideal,  do  peso  normal,  estão  a  salvo  das  enfermidades  e  dos  riscos  associados  aos  estados  (potencialmente)  patológicos,  que  são  aqueles  que  se  desviam,  por  excesso ou déficit, dos valores definidos como ʺnormaisʺ.    “Um  IMC  elevado  é  um  importante  fator  de  risco  para  enfermidades  não  transmissíveis,  como:  diabetes,  transtornos  do  aparato  locomotor  (especialmente  a  osteoartrite),  doenças  cardiovasculares  (principalmente cardiopatia e acidente vascular cerebral). [...]  O  risco  de  contrair  estas  doenças  não  transmissíveis  cresce  com  o  aumento do IMC.” (WHO, 2012) 

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 Saúde, para a OMS, já não significa ausência de doença, mas estende seu significado a  uma idéia ambivalente, subjetiva, de bem‐estar individual. Esta redefinição do termo  inagura  uma  nova  episteme  em  saúde,  na  qual  o  processo  de  medicalização  indefinida,  tão  lucidamente  descrito  por  Foucault  (1996:  75‐80),  move‐se  de  um  paradigma  centrado  na  doença,  e  em  seu  diagnóstico,  em  direção  a  outro  que  amplifica  o  mecanismo  da  vigilância,  incorporando  as  funções  orgânicas  em  equilíbrio,  a  vitalidade  física e a disposição sócio‐mental dos cidadãos: ʺA saúde é um estado de  completo bem estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou  enfermidadesʺ (OMS, 1948). 

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As crônicas do risco ganham peso político‐sanitário por meio de  uma  narrativa  de  matiz  epidemiológica  que  correlaciona  a  prática  de  estilos  de  vida  específicos  com  a  probabilidade  de  desenvolver  determinadas  doenças  degenerativas.  O  sedentarismo  e  uma  dieta  desequilibrada  (rica  em  gorduras)  aparecem,  nos  marcos  de  tal  narrativa,  como  os  principais  fatores  de  risco  que  contribuem  para  elevar  as  taxas  de  morbidade  e  mortalidade  por  doenças  não  transmissíveis em todo o mundo.  Este  epidemiologiado  risco  legitima  a  promoção  de  um  estilo  de  vida ativo, apontando que tipo de condutas são prejudiciais à saúde, ao  mesmo  tempo  em  que  adverte  a  população  acerca  do  tipo  de  precauções  que  devem  ser  tomadas  para  se  ter  uma  vida  livre  de  tais  enfermidades (Lupton , 1999, citado em Fraga, 2005: 81).    “O  sobrepeso  e  a  obesidade,  assim  como  seus  males  associados  não  transmissíveis,  são  em  grande  parte  preveníveis.  Para  apoiar  as  pessoas no processo de fazer escolhas, de modo que a opção mais fácil  seja  a  mais  saudável  em  matéria  de  alimentação  e  atividade  física  periódica,  e,  em  consequência,  de  prevenção  da  obesidade,  são  fundamentais as comunidades e os contextos favoráveis.” (WHO, 2012) 

  Isso  envolve  o  estabelecimento  de  territórios  de  fronteira  onde  os sujeitos são categorizados em ir/responsáveis, a/normais, e saudáveis ou  doentes.  Estas  narrativas  colocam  nas  mãos  dos  cidadãos  a  responsabilidade  por  suas  escolhas  vitais  e  pelas  consequências  des/favorável que resultam delas.    “No nível individual, as pessoas podem:  ‐  limitar  a  ingestão  energética  procedente  da  quantidade  de  gordura  total;  ‐  aumentar  o  consumo  de  frutas  e  verduras,  bem  como  legumes,  cereais integrais e frutas secas;  ‐ limitar a ingestão de açúcares;  ‐ realizar uma atividade física períodica, e  ‐ atingir o equilíbrio energético e um peso saudável.” (WHO, 2012) 

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  Mapa 1. O quadro global da obesidade. Publicado em Daily Downey Obesity Report em junho del 2012. 

É  traçada,  desta  forma,  uma  cartografia  dos  novos  marginais,  identificados como ameaças ao bem‐estar nacional e mundial. O obeso e  a obesa integram esta extensa lista.   

“Muitos  países  de  baixa  e  média  renda  atualmente  estão  enfrentando  uma  ʺdupla  cargaʺ  da  morbidade.  [...]  Enquanto  continuam  lidando  com  os  problemas  de  doenças  infecciosas  e  desnutrição,  estes  países  estão  experimentando  um  aumento  brusco  nos  fatores  de  risco  para  doenças  não  transmissíveis,  como  a  obesidade  eo  sobrepeso,  especialmente em ambientes urbanos.” (WHO, 2012).   

Em  torno  desta  topografia  moral  se  ergue  um  aparato  político‐ pedagógico que organiza e dissemina um conjunto de saberes e técnicas  de  autogestão  que  o  coletivo  social  deve  interiorizar  e  incorporar  se  deseja  alcançar  esse  respeitado  estado  saudável.  Tal  como  Hardwood  (2008:15‐30),  denominaremos  esse  conjunto  de  práticas  de  ʺbiopedagogiasʺ.  As  biopedagogias  operam  sobre  a  base  de  uma  concepção neoliberal de ʺindivíduoʺ, capaz de gerir sua própria saúde e  controlar os riscos que a cercam. É depositada, assim, total confiança em  sua ação empreendedora e em sua capacidade de (auto)transformação,  (auto)correção  e  adaptação.  A  implementação  de  dispositivos  discursivos moralizantes que estimulam as pessoas a adotar práticas de  (auto)controle  e  (auto)viligância,  alguns  dos  quais  apresentamos  neste  artigo, são baseados neste paradigma.   

“A  responsabilidade  individual  só  terá  eficácia  plena  quando  as  pessoas  tiverem  acesso  a  um  estilo  de  vida  saudável.  Portanto,  em  matéria social é importante:  ‐  Apoiar  as  pessoas  no  cumprimento  das  recomendações  acima,  mediante  um  compromisso  político  sustentado  e  a  colaboração  das  múltiplas partes interessadas, públicas e privadas, e  ‐  Fazer  com  que  a  atividade  física  regular  e  os  hábitos  alimentares  saudáveis  sejam  economicamente  acessíveis  e  inteligíveis  por  todos,  especialmente os mais pobres. (WHO, 2012) 

 

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Aquilo  que  se  tem  chamado  de  obesidade  epidêmica11  tem  dado  origem  a  novas  modalidades  de  disciplinamento  e  controle,  em  outras  palavras,  biopedagogias.  Estas  se  organizam  como  práticas  de  governo  orientadas  para  a  gestão  dos  corpos  com  o  propósito  explícito  de  reduzir  a  porcentagem  de  população  obesa,  assinalando  os  riscos  implicados em tal condição.    A  OMS  estabeleceu  o  Plano  de  Acção  2008‐2013  para  a  estratégia  mundial de prevenção e controle de doenças não transmissíveis, a fim  de  ajudar  os  milhões  de  pessoas  que  já  estão  afetadas  por  estas  doenças,  que  passam toda a vida enfrentando e prevenindo suas complicações secundárias.  O  Plano  de  Acção  se  baseia  na  Convenção‐Quadro  da  OMS  para  o  Controle  do  Tabaco  e  na  Estratégia  mundial  da  OMS  sobre  dieta  alimentar,  atividade  física  e  saúde,  e  fornece  um  roteiro  para  a  criação  e  fortalecimento de iniciativas de vigilância, prevenção e tratamento das doenças  não transmissíveis. (WHO, 2012) 

  Neste  deslizamento  do  poder  se  instaura  uma  biopolítica  que,  em  articulação  com  as  formações  disciplinares,  funciona  como  um  controle  aberto  e  contínuo,  sancionando,  desta  maneira,  uma  nova  educação corporal e sanitária (Fraga, 2005: 77; Deleuze, 1991).  Neste  regime  os  indivíduos  não  estão  apenas  submetidos  a  condições contínuas de vigilância empreendida por estas biopedagogias,  mas  também  pressionados  a  realizar  automonitoramentos  constantes  através  de  saberes  (conhecimentos  científicos)  que  os  orientam  sobre  como comer de modo saudável e manter‐se ativo, ao mesmo tempo  em  que informam sobre a obesidade e seus riscos associados.  O estilo de vida ativo que a OMS promove glorifica a vida ativa e  demoniza a obesidade e os desvios que a ela são atribuídos (Fraga, 2005;  Rail et.al., 2010). Este paradigma opera sobre a base de: a) uma ideia de  perigo  vinculada  à  existência  de  formas  de  vida  classificadas  como  arriscadas:  sedentarismo,  alcoolismo,  consumo  de  tabaco,  etc.  (Rail  et                                                               11

Vale  destacar  o  terreno  escorregadio  sobre  o  qual  respousa  o  conceito  de  epidemia  da  obesidade, já que esta não é uma doença contagiosa (não se espalha através do contato  entre as pessoas) e é difícil pensar que se poderá fazer um antídoto para sua redução  na população global. 

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al., 2010); b) o mito de que atividade física é saúde12, e que sua prática  sistemática  pode  impactar  positivamente  na  prevenção  dos  riscos  relacionados  à  obesidade  (Carvalho  de  1998,  Fraga,  2005);  c)  uma  perspectiva  sobre o saudável representada por uma forma/composição  corporal/muscular  mensurável,  que  identifica  no  acúmulo  de  gordura  o  agente  do  perigo;  d)  uma  noção  neoliberal  de  pessoa  entendida  como  um  indivíduo  responsável  por  si  e  por  suas  ações,  capaz  de  modificar  seus  hábitos  e  estilos  de  vida  através  da  incorporação  de  técnicas  de  (auto)disciplinamento  (Vazquez  Garcia,  2005);  e,  finalmente,  e)  uma  política de prevenção que valoriza a divulgação como forma de educar  quanto  aos  benefícios  da  prática  regular  de  atividade  física  para  a  saúde,  por  um  lado,  e  por  outro  como  meio  de  informar  sobre  as  novidades,  em  matéria  de  riscos,  que  os  diferentes  estilos  de  vida  identificados  como  prejudiciais  à  saúde  representam  para  a  vida  individual e coletiva (Fraga, 2005).  Em  resumo,  o  estilo  de  vida  ativo,  e  a  consequente  estigmatização do sedentarismo e da obesidade, operamsobre a base de                                                               12

  A  noção  de  mito  é  tomada  da  investigação  realizada  por  Yara  Maria  Carvalho  intitulada ʺEl ʹMitoʹ de la Actividad Físicaʺ, no qual se correlaciona a noção de mito  com a crença generalizada de que atividade física é saúde. A autora adverte que, para  além da validade de certas hipóteses sobre a questão da saúde e da prática sistemática  de  atividades  físicas,  de  rituais  e  de  relações  repetitivas  que  os  sujeitos  contemporâneos  estabelecem  em  torno  desta  crença,  em  grande  parte  impulsionada  pelos  meios  de  comunicação,  naturalizam  os  saberes  científicos  da  medicina  e  da  fisiologia  do  exercício  como  verdades  últimas.  Neste  sentido,  é  importante  resgatar  também  o  trabalho  de  Eric  Oliver  Fat  Politics  The  Real  Story  Behind  America’s  Obesity  Epidemia  no  qual  se  discute  alguns  discursos  extremistas  que  associam  a  obesidade  com  riscos  de  morbilidade  e  mortalidade  na  população  norteamericana.  Ademais,  inversamente,  há  uma  infinidade  de  exemplos  que  mostram  que  a  atividade  física  pode ou não ser saudável, e que isso é condicionado por quem, quando, onde e como  se praticam as atividades esportivas e a ginástica. Em resumo: o mito é um discurso  que se converte em uma crença concebida como verdade inquestionável, e em torno  da qual se organizam rituais e práticas que são naturalizados na esfera do social e do  religioso. A partir desta perspectiva, a equação atividade física e saúde transforma‐se  num  mito  na  sociedade  contemporânea,  na  medida  em  que  é  incorporada  na  vida  familiar  e  comunitária,  naturalizando  (ou  seja,  ritualizando)  a  relação  entre  os  sujeitos, as tecnologias corporais, a medicina e os corpos, e reproduzindo dispositivos  de  saber‐poder  e  de  espe(ta)cularização  que  sacralizam  as  associações  entre  beleza,  saúde e cuidado do corpo como formas universais. 

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um  conjunto  de  estratégias  biopedagógicas  que  ensinam/orientam  as  pessoas  a  respeito  de  como  e  o  que  é  ser  um  bom  biocidadão  (Halse  de  2009; Harwood, 2009).    2.2. As confissões carnais de obesidade do corpo     Os biopedagogías sobre as quais fizemos menção na seção anterior  operam na base de dois registros: um prescritivo e outro escópico.  O  registro  prescritivo  coloca  em  circulação  saberes  e  narrativas  tendentes a inscrever os corpos no conceito amplo de saúde e bem‐estar.  Para isso, usa uma retórica que pode transitar entre um tom informativo  ou  de  conselho,  a  outro  entusiasta  e  amigável.  Pode  ainda  adotar  um  estilo intimidante que beira o terror.  O regime escópico ativa uma dinânima de produção de imagens  que  operam  a  partir  da  criação  de  figuras  dicotômicas  tais  como  a/normal e in/desejável, associadas à lógica de operação binária do ICM  e do par ʺmodelo (exemplo)/estigmaʺ (Barthes, 1974: 48, Goffman, 2003).  É  interessante  observar  como  são  apresentadas,  em  diferentes  meios de comunicação de massa, a idéia de beleza, cuja imagem está em  acordo com o estabelecido pelo regime prescritivo e, por sua vez, com a  perspectiva  hegemonizante  do  discurso  sanitário.  Por  exemplo,  a  obsessão  paranóica  por  reduzir  os  excedentes  abdominais  até  a  conquista da pureza muscular parece enraizada no diagnóstico mítico da  chamada obesidade andróide, ʺo padrão típico de acúmulo de gordura em  um  homem,  no  qual  a  gordura  se  deposita  principalmente  na  parte  superior do corpo, especialmente no abdômenʺ (Wilmore e Costill, 2001:  541). O mesmo ocorre com a obesidade ginóide, tipicamente feminina, cuja  concentração  de  gordura  e  volume  se  concentrado  na  região  dos  glúteos,  quadris  e  coxas,  ou  seja,  os  mesmos  locais  do  corpo  que  constituem  o  foco  da  preocupação  estética  de  diversos  produtos  e  técnicas de emagrecimento (Wilmore e Costill, 2001: 541).  Do mesmo modo como um abdômen magro, fibroso, musculoso  em  um  homem  é  um  sinal  de  sensualidade  e  vitalidade,  uma  barriga  proeminente  de  cerveja  é  percebida,  pelo  contrário,  não  apenas  como  um  desagradável  fator  estético,  mas,  principalmente,  como  um  fiel  indicador de desvios em sua forma corporal. 

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Figura  2.  Imagen  exibida  no  artigo  “As  gorduras  são  imprescindíveis  para  a  vida?” Publicado em Revista Muy Interesante (8/1995: 8). 

  A  gordura  que  se  acumula  na  região  central  do  corpo  é  anunciada  metabolicamente  como  a  mais  perigosa  para  a  saúde.  Os  fatores que são reconhecidos como responsáveis por sua produção são,  em  maioria,  aqueles  associados  a  um  estilo  de  vida  sedentário  e  degenerado.  Daí  se  conclui  que  sua  redução  ou  aumento  estão  relacionados  às  práticas  in/sanas  do  indivíduo  afetado  pelo  nocivo  excedente  corporal.  Se  este  persiste  na  forma  insana,  diz‐se  que  o  indivíduo é merecedor dos riscos auto‐degenerativos.  O peso moral que regula o entendimento social é organizado em  torno do princípio normativo neocapitalista que clama a que cada um se  responsabilize  por  seu  próprio  bem‐estar.  Seu  des/cumprimento  se  evidencia por meio da (própria) ʺapresentação pessoalʺ (Goffman, 1989).  Metafórica  e  conceitualmente,  e  a  partir  de  um  registro  quase  religioso,  a  obesidade  é  tratada  pelo  dispositivo  da  saúde  e  do  bem‐ estar  como  um  pecado  contra  o  credo  sanitário‐empresarial  da  (auto)liderança  individual  e,  portanto,  da  (auto)gestão  corporal  e  pessoal.  O  obeso  e  o  sedentário  representam,  desse  modo,  o  fora  do 

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ideal,  que  regula  a  performatização  dos  corpos  saudáveis,  bonitos  e  produtivos (Fuss, 1999). É demarcada, assim, uma ordem moral que se  polariza em uma série de dicotomias, onde o primeiro elemento do par  converge com o ideal empresarial enquanto o segundo, sustentando seu  oposto,  condena  o  desvio  de  maior  visibilidade.  O  pecador  é  representado,  então,  como  o  sujeito  irresponsável,  incapaz  de  autocontrole,  desorganizado,  passional,  impulsivo,  cuja  compulsão  o  leva ao caminho da ruína, do vício e da consequente destruição.    Figura  3.  Fotografia  exibida  no  artigo  “É  verdade  que  se  sou  obeso  terei  disfunção  erétil?”  (Gómez,  2008)  publicado  na  Revista  Men’s  Health  (2/2008: 8). 

  O  corpo  do  obeso  ingressa  em  uma  trama  confessando  sua  transgressão.  Sua  volumosidade,  flacidez  e  carnalidade  amorfa  não  fazem  mais  que  narrar  o  conglomerado  de  faltas  que  este  mortal  comete  em  seu  dia  a  dia.  Tal  diagnóstico  clínico  e  governamental  implica  em  um  conjunto  de  práticas  visuais:  a  observação  social,  a  espionagem  em torno das formas corporais dos  ʺoutrosʺ  e  até  mesmo  a  confissão  dos  ʺtrangressoresʺ,  são  fruto  de  um  olhar estigmatizante e inquisitor (Scholz, 2009).  O obeso é situado neste imaginário nos limites do humano/ não‐ humano e do bárbaro/ civilizado, a partir de um repertório de figurações  que vão desde o grotesco e o monstruoso até o alienígena, assexuado e  infantil.  Os  obesos,  pecadores  por  terem  se  distanciado  das  normas  de  sua sociedade, tornam‐se espetáculo cujo castigo é posto no duplo efeito  de  sua  aparência:  da  perspectiva  estética,  seus  excessos  comunicam  monstruosidade  física,  enquanto  que  a  partir  da  abordagem  santitária, 

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os  mesmos  são  tidos  como  enfermidades,  riscos  e  até  mesmo  tomados  como fatores subjetivos de marginalização social. 

 

Figura  4.  Empresa:  Del  Mar  ‐  Medical  Spa  Empresa,  especialista  em  programas  de perda de peso. (Mercado Fitness, 5,6/2010: 82). 

  Figura 5. Imagen de uma campanha de  2009  do  Ministério  de  Saúde  de  Portugal.  Texto:  Os  sedentários  nao  conseguem  escapar  das  doenças.  Faça  exercício.  (Mercado  Fitness,  5,  6/2010:  83) 

  A  exposição  ridicularizada  destes  sujeitos  pelos  diversos  meios  de  comunicação  opera  como  um  biopedagogia que mostra o que pode  acontecer  com  quem  se  afasta  da  regra  compulsória  da  vida  saudável  e  ativa.  Como  reflete  Prosa  (2010,  s.  p.):    Os  super‐heróis  da  gula,  de  Gargantúa  até  Diamond  Jim  Brady,  têm  sido  relegados  a  um  passado  distante,  ignorante  e  atrasado.  Seus 

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herdeiros  –  os  grandes  comilões  de  hoje  –  são  costumeiramente  considerados seres anormais ou sociopatas ou, ainda mais comumente,  perdedores  medíocres,  desajustados  ou  espécimes  humanos  desgraçados.  Ocasionalmente,  pessoas  extremamente  obesas  (nais  quais  talvez  vejamos  imagens  aterradoras  do  que  pode  nos  acontecer  se  ignoramos  os  escrúpulos  de  controle  social  e  nossos  próprios  superegos vacilantes) aparecem no noticiário do jornal da noite ou nos  programas com testemunhos de violência em horário nobre. 

  O  bom,  a  massa  magra,  e  o  ruim,  a  massa  gorda,  se  enfrentam,  como num território de batalha, na própria corporalidade. Assim, corpos  obesos  convertem‐se  em  textos  nos  quais  se  pode  ler  a  diferença,  a  enfermidade,  a  dis/funcionalidade,  a  in/docilidade  e  a  monstruosidade  (Torras,  2007:17).  Esta  textualidade  pode  ser  reescrita,  corrigida,  adaptada,  ou  ao  menos  simular  normalidade,  em  uma  aparência  espe(ta)cular e/ou em um organismo que se move, produz, figura, opera  segundo a norma de uma forma‐função normalizada.  Portanto,  o  discurso  do  saudável,  cuja  finalidade  é  sustentar  a  ficção  do  sujeito  empreendedor  e  a  representação  positiva  de  si  mesmo  (também  fictícia  em  si),  deve  se  estruturar  como  dialeticamente  polissêmico/a  e  ambivalente  para  que  possa  nomear,  apropriando‐se  e  suprimindo  todos  os  possíveis  comportamentos  dos  outros,  toda  a  multiplicidade  subversiva  derivada  de  um  excesso  simbólico  que  pode  vir  a  afrontar  a  hegemonia  sanitária  da  cultura  ativa  (Figari,  2009:  225;  Boltanski, 2002: 167).    3. O (des)governo dos zumbis    Através  da  figura  do  morto‐vivo,  este  ser  que  trai  um  dos  tabus  sociais  mais  antigos  e  firmemente  estabelecidos,  uma  série  de  valores,  medos  e  conflitos  históricos  socialmente  delimitados  podem  ser  analisados.  Este  parece  o  caso  dos  zumbis  contemporâneos,  personagens  da  cultura  do  entretenimento  que,  de  origem  colonial  e  religiosa,  alcançaram  no  início  do  século  XXI  o  status  midiático  de  uma  das  principais metáforas do caos social (Drezner, 2011), conforme exemplifica o 

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Centro  de  Controle  e  Prevenção  de  Doenças  do  governo  estadunidense13  em sua campanha Prontidão zumbi, criada para explicar como a população  deste país deve agir caso aconteça um ataque destes seres: se você está bem  equipado  para  lidar  com  um  apocalipse  zumbi,  você  estará  preparado  para  um  furacão, uma pandemia, um terremoto ou um ataque terrorista14.  No  mundo  do  entretenimento  contemporâneo,  seja  em  filmes,  livros,  quadrinhos  ou  videogames  (Russel,  2010),  os  zumbis  predominam  como  o  principal  exemplo  fantástico  e  ficcional  de  um  inimigo  instintivamente  agressivo,  numericamente  superior,  absolutamente  sem  compaixão  (porque  não  possui  nenhum  tipo  de  emoção),  irracionalmente  eficaz,  devorador  literal  de  vidas  e  cuja  origem  é  misteriosa  e  confusa.  Este  último  fator  é,  inclusive,  um  dos  elementos  característicos  deste  morto‐vivo  pós‐moderno:  sua  procedência  tem  versões  distintas  nas  mais  variadas  narrativas,  indo  desde  um  efeito  desconhecido  da  radiação  nuclear15  (que  causa  a  “ressurreição”  dos  cadáveres)  à  manipulação  genética  de  vírus  desenvolvidos  para  guerras  bacteriológicas  e  que  fogem  ao  controle16  (causando  a  agressividade,  a  decomposição  dos  corpos  e  a  urgente  necessidade  de  se  alimentarem  de  carne  humana).  Para  este  artigo,  a  origem  histórica  deste  monstro  tão  recente  e  ocidental  quanto  internacionalmente expressivo17 é fundamental.    3.1. Cadáveres famintos    Conforme  Mary  Del  Priore,  em  seu  estudo  sobre  monstros,  durante o século XVII na região dos Balcãs, na Grécia, na parte oriental  do  Império  Austro‐Húngaro  e  na  Rússia,  houve  uma  grande                                                               Center for Disease Control and Prevention – CDC ‐ http://www.cdc.gov/  Zombie  preparedness.  Disponível  em:  http://www.cdc.gov/phpr/zombies.htm.  Acesso  em: 05/03/2013. Todas as traduções são dos autores.  15 Como no filme fundador da figura do zumbi contemporâneo, A noite dos mortos vivos  (Night of the living dead, dir: George Romero, EUA, 1968).  16 Como no filme Extermínio (28 days later, dir: Danny Boyle, Reino Unido, 2002).  17  Existem  filmes  de  zumbis  produzidos  em  vários  países  do  mundo,  com  culturas  políticas e temores sociais tão distintos quanto África do Sul, Bélgica, Brasil, Canadá,  Coréia do Sul, Cuba, Filipinas, Haiti, Itália, Japão, México, Nigéria, Nova Zelândia e  Romênia, entre outros (Russel, 2010).  13 14

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propagação  de  ideias  a  respeito  de  mortos‐vivos,  pessoas  que  por  castigo  divino  ou  ligações  com  demônios,  depois  de  mortas  “mastigavam” em seus túmulos e podiam sair para sugar o sangue (ou  carne)  de  outras  pessoas  (Del  Priore,  2000).  Estes  seres  conhecidos  na  Grécia  como  vrykolakas,  se  tornaram  política  e  popularmente  importantes  durante  as  epidemias  de  vários  tipos  de  pestes  que  ocorreram  no  início  do  século  XVIII  em  grandes  regiões  do  leste  europeu e em parte da Europa ocidental, deixando centenas de doentes  e cadáveres insepultos pelas vilas e estradas.   Ainda conforme a autora, um caso de repercussão internacional  no  período  foi  o  de  Arnaldo  Paole  acusado,  depois  de  sua  morte,  do  desaparecimento  de  várias  pessoas  da  cidade  de  Medwegya,  na  Hungria.  Após  as  autoridades  investigarem  o  caso  e  colherem  depoimentos  de  policiais  e  médicos,  um  relatório  oficial  escrito  em  alemão foi publicado em 1732 e, no mesmo ano, divulgado em jornais e  revistas  de  língua  francesa  e  inglesa.  É  graças  a  este  relatório  e  suas  traduções  que  aparece  escrita  pela  primeira  vez,  com  diferença  nas  grafias regionais, a palavra “vampiro” (Del Priore, 2000: 108).  Este  é  um  dado  extremamente  importante:  os  primeiros  relatos  modernos  ocidentais  sobre  mortos  que  saem  de  suas  tumbas  procurando devorar pessoas e transformando suas vítimas também em  mortos‐vivos, vão se desenvolver na personagem do vampiro18 que, até  a metade da década de 80 do século XX, era o representante do mal, da  luxúria  e  da  desumanização  antropofágica  na  cultura  de  massas.  A  partir  desse  período,  a  grande  maioria  das  personagens  vampiros  tornam‐se  cada  dez  mais  sentimentais,  envolvidas  em  crises  de  identidade  e  em  profundo  conflito  entre  sua  natureza  assassina  e  o  amor‐paixão romântico burguês.  

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 Na passagem do século XIX para o XX, a figura da múmia também vai contribuir para  o imaginário sobre mortos que saem de suas tumbas (Loudermilk, 2003). Mas, apesar  de  intimamente  associado  ao  colonialismo  europeu  e  de  seu  caráter  de  realeza  da  Antiguidade, este morto‐vivo de inspiração egípcia não se desenvolveu com a mesma  vitalidade  que  o  vampiro.  Talvez  tenha  contribuído  para  isso  a  sua  falta  de  sensualidade e o completo distanciamento do universo erótico, tão importante para a  literatura de horror da época. 

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Em  exata  oposição  aos  tradicionais  defuntos  mastigadores  dos  relatos  oitocentistas  ou  aos  clássicos  e  sensuais  bebedores  de  sangue  inspirados em Drácula, na primeira década do século XXI os vampiros  que  fazem  sucesso  na  literatura  e  no  cinema  são  adolescentes  que  desejam, mais do que tudo, casar virgens e não lembram em nada um  cadáver  ambulante19.  Com  o  crepúsculo  dos  aristocráticos  e  erotizados  mortos‐vivos  vampiros,  vem  o  amanhecer  das  massas  putrefatas  de  mortos‐vivos zumbis.    3.2. O espírito colonial     Conforme  Kyle  Bishop  (2008),  a  primeira  vez  que  o  termo  “zombie”  aparece  escrito  é  em  1792,  no  texto  do  francês  Moreau  de  Saint‐Méry,  definindo‐o  como  “palavra  criola  que  significa  espírito,  aparição” (apud Bishop, 2008; 143) e, no século XIX, este mesmo termo  aparece  associado  ao  nome  do  revolucionário  haitiano  Jean‐Jacques  Dessalines, também conhecido como Jean Zombie (Bishop, 2008). Ele foi  um dos principais atores da sangrenta revolta de escravos que, em 1794,  levou  este  país  a  ser  o  primeiro  a  abolir  a  escravidão  e,  expulsando  as  tropas  dos  colonizadores  franceses  em  1804,  declarar‐se  independente,  tornando‐se também a primeira república governada por negros.   Já  para  Jamie  Russel,  o  termo  zumbi  aparece  no  mundo  anglo‐ saxão em 1889 em um artigo no Harper´s Magazine do jornalista Lafcadio  Hern  sobre  o  Haiti  intitulado  “A  terra  dos  que  voltam”  (Russel,  2010:  23). Em 1819 a palavra aparece no Oxford English Dictionary, afirmando  que  foi  escrita  pela  primeira  vez  na  língua  inglesa  em  uma  obra  do  mesmo ano chamada História do Brasil, de Robert Southey, e ressaltando  que zumbi era sinônimo de diabo (Russel, 2010: 23).   Segundo o dicionário brasileiro Aurélio,     “Zumbi.  [Do  quimb.  nzumbi,  ‘duende’.]  S.  m.  1.  Bras.  O  chefe  do  quilombo  dos  Palmares,  na  sua  fase  final;  zambi.  2.  Bras.  Fantasma  que,  segundo  a  crença  popular  afro‐brasileira,  vaga  pela  noite  morta; 

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 Como na saga literária “Crepúsculo” de autoria da norte‐americana Stephanie Meyer  e  suas  continuações,  todas  transformadas  em  uma  série  homônima  de  cinema  pela  Paris Filmes. 

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cazumbi. 3. Bras. Indivíduo que só sai à noite. 4. Bras., Al. Designação  dada  no  interior,  à  alma  de  certos  animais,  como,  p.  ex.  O  cavalo  e  o  boi. 5. Bras. Lugar deserto no sertão” (Ferreira, 2004: 2097). 

  Não podemos nos esquecer que o último e mais famoso líder do  maior  quilombo  que  o  Brasil  teve,  o  de  Palmares,  no  século  XVII,  também  era  conhecido  como  Zumbi  ‐  conforme  lembra  o  primeiro  significado  deste  dicionário20.  Sua  fama  de  guerreiro  chegou  até  Portugal  e,  como  a  etimologia  de  seu  nome  parece  indicar,  evocava  o  medo  provocado  por  uma  figura  valente,  inteligente,  espectral  e  que  lutava  ferozmente  contra  a  ordem  escravocrata  estabelecida.  Sua  inspiração  libertária  não  se  restringiu  a  seu  período  histórico,  sendo  resgatada  no  fim  do  século  XX  pelos  movimentos  sociais  negros  e  transformando  a  data  de  sua  morte,  20  de  novembro,  no  Dia  da  Consciência Negra no Brasil.   Se  Jamie  Russel  (2010)  estiver  correto  e  a  primeira  vez  que  o  termo zumbi aparece em língua inglesa é num livro do século XIX sobre  a  história  do  Brasil,  podemos  perceber  o  quanto  este  nome  já  amedrontava  o  poder  colonial  nas  Américas  provavelmente  há  alguns  séculos,  evocando  em  uma  mesma  palavra  insinuações  de  rebelião  política  e  forças  sobrenaturais.  Zumbi  dos  Palmares  e  Jean  Zombi  corporificaram  o  espírito  que  assombrou  o  colonialismo  de  suas  respectivas  épocas  históricas  e  culturas  locais  nas  quais,  não  por  caso,  tal  espírito  foi  interpretado  como  força  maligna  e  demoníaca.  Ao  contrário dos dois líderes negros, o termo zumbi vai se desenvolver não  como inspirador de coragem e rebeldia contra as injustiças sociais, mas  como  sinônimo  de  um  escravo  sem  vontade  e  autonomia  –  e  depois  como  um  monstro  irracional  e  desumano  ‐  mostrando  o  quanto  a  opressão  colonial  e  o  medo  do  colonizador  ajudou  a  formar  o  imaginário deste ser.  Mas  é  apenas  em  1929 que  a  figura  do  zumbi  chegou  à  cultura  de  massas  norte‐americana,  alcançando  pela  primeira  vez  pessoas  que  não  viviam  nas  colônias  caribenhas nem  estavam  ligadas  nos  assuntos  de  administração  colonial  ou  política  internacional.  Depois  de  um                                                               20

  Russel  (2010)  e  Bishop  (2008)  mostram  como  existe  uma  controvérsia  entre  vários  pesquisadores sobre a origem etimológica da palavra zumbi. 

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grande  período  interno  de  instabilidade  política  e  econômica,  em  1915  os  Estados  Unidos  invadem  o  Haiti  sob  o  pretexto  de  pacificar  os  conflitos  e  reorganizar  a  economia  local,  controlando  política  e  militarmente  o  país21  (Russel,  2010).  Neste  contexto,  o  aventureiro  e  jornalista  William  Seabrook  chegou  a  esta  terra  em  1928  e,  um  ano  depois, lançou o livro “A ilha da magia” (Seabrook, sem data).   É este livro que vai divulgar massivamente para um público que  se  considerava  moderno,  racionalista,  urbano  e  ávido  por  novidades  exóticas, a religião vodu como algo primitivo e a figura do zumbi como  sendo um infeliz escravo rural morto‐vivo (Bishop, 2008; Russel, 2010).  O  texto  tornou‐se  um  sucesso  imediato  em  vários  países  ocidentais  e  iniciou uma crescente busca no mundo do entretenimento22 por pessoas  mortas  de  culturas  e  nações  subalternas  que,  através  de  poderes  mágicos e sobrenaturais, permaneciam vivas e mortas ao mesmo tempo.  Hoje, essa imagem parece ser uma excelente metáfora para a situação de  tantos  povos  que  viviam  sob  o  domínio  de  nações  estrangeiras  e  sua  brutal e desumanizante maneira de lidar com as populações e culturas  nativas  mas,  na  época,  tal  imagem  foi  compreendida  como  um  sinal  inequívoco da barbárie, ignorância e depravação sexual em que viviam  os  negros  quando  deixados  a  seu  autogoverno,  justificando  a  invasão  militar e a política segregacionista.  Curiosamente,  o  encontro  deste  aventureiro  com  um  zumbi  é  apenas  uma  breve  –  e  impactante  ‐  passagem do  livro.  Ao  narrar  suas  conversas  com  Polynice,  um  fazendeiro  da  região  que  não  acreditava  nas crenças nativas, o autor se surpreende com a crença nos zumbis por  parte  deste  poderoso  senhor.  Ressaltando  a  ligação  fundamental  encontrada na lenda entre o zumbi e o trabalho escravo, Seabrook narra  seu encontro com esses trabalhadores amaldiçoados e infelizes em uma  das passagens mais impactantes do livro:    “Minha  primeira  impressão  dos  três  zumbis,  que  continuavam  a  trabalhar, foi a de que eles tinham realmente alguma coisa de estranho. 

                                                             21 22

 As tropas norte‐americanas se retiram apenas em 1934.   Inicialmente o entretenimento literário não ficcional, depois o cinematográfico e, daí  em  diante,  adquirindo  formas  em  todos  os  tipos  de  produções  culturais:  games,  televisão, quadrinhos, literatura, música etc. 

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Seus gestos eram de autômatos. Não podia ver seus rostos, por estarem  próximos  ao  chão,  mas  Polynice  segurou  um  deles  pelos  ombros  e  pediu  que  endireitasse  os  ombros.  Dócil  como  um  animal,  o  homem  levantou‐se  e  o  que  vi  então  causou‐me  um  choque  desagradável.  O  mais  horrível  era  o  olhar,  ou  melhor,  a  ausência  de  olhar.  Os  olhos  estavam mortos, como se fossem cegos, desprovidos de expressão. Não  eram  olhos  de  um  cego,  mas  de  um  morto.  Todo  o  semblante  era  inexpressivo, incapaz de expressar‐se” (Seabrook, sem data: 84). 

  Procurando justificar o que vira através de causas naturais para  este estado humano, como a letargia23, o autor vai concluir que o zumbi  é  um  dos  grandes  mistérios  do  Haiti,  terra  onde  a  razão  ocidental  encontra seu limite operacional.   Outro trabalho extremamente importante sobre o tema dos zumbis  haitianos foram os livros do antropólogo e etnobiologista canadense Wade  Davis, chamados “A serpente o e arco‐íris”, lançado em 198524 e “Passage of  darkness:  the  ethnobiology  of  the  haitian  zombie”,  de  1988.  Nestes  relatos,  o  autor narra sua pesquisa no Haiti patrocinada por médicos americanos em  busca  de  explicações  químicas  e  científicas  para  o  processo  de  zumbificação. O tema estava novamente na mídia internacional decorrente  dos conflitos políticos que estavam ocorrendo naquele país, com o auge da  crise  do  governo  ditatorial  de  Jean  Claude  Duvalier,  o  Baby  doc,  e  que  culminaria em sua deposição por um golpe militar.  Além  disso,  o  Haiti  se  tornaria  na  década  de  80  o  país  mais  pobre  da  América  Latina.  Como  se  não  bastasse,  os  Estados  Unidos  nesse  período  o  culpam  pela  epidemia  de  AIDS  (através  de  sangue  contaminado  usado  para  transfusões),  mais  uma  vez  associando  o  desregramento  sexual  dos  negros  à  catástrofe  e  consequente  ruína  da                                                                Este hipótese será pesquisada apenas na década de 80 do século XX, nos estudos de  Wade Davis.  24  Fazendo  tanto  sucesso  quanto  a  obra  de  Seabrook,  rapidamente  este  livro  foi  adaptado para o cinema e lançado em 1988 com o mesmo título. No filme, a aventura  do pesquisador e o interessante debate conceitual sobre religião e ciência expostos no  início  da  película  rapidamente  dão  lugar  a  um  terror  simplório  e  incapaz  de  desenvolver  a  importante  questão  de  fundo  que  a  própria  obra  apresenta:  a  relação  entre política e a religião vodu no Haiti, especialmente no período Duvalier. No Brasil  o  filme  foi  lançado  com  o  assombroso  título  “A  maldição  dos  mortos‐vivos”  (The  serpent and the rainbow, dir: Wes Craven, EUA, 1988).  23

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civilização  branca.  Apenas  depois  de  protestos  diplomáticos,  o  Centro  de  Controle  e  Prevenção  de  Doenças25  reviu  sua  posição  desresponsabilizando  as  pessoas  negras  haitianas  pelo  avanço  da  doença  nos  EUA  (Parker  e  Aggleton,  2001).  Mesmo  assim,  ficou  reforçada  a  íntima  relação  entre  o  Haiti  e  o  perigo  do  contágio  de  doenças  altamente  mortais,  sendo  este  último  elemento  fundamental  para o imaginário do zumbi contemporâneo.    Em busca do poderoso veneno/ anestésico encontrado no baiacu  e  que  seria  o  elemento  principal  de  uma  poção  que  transformaria  pessoas vivas em mortas‐vivas, Davis percebeu o quanto a crença neste  seres era um dos elementos mais importantes de controle social através  da  religião.  Nas  muitas  sociedades  secretas  voduistas  que  se  espalhavam  por  um  Haiti  predominantemente  rural,  ser  transformado  em  zumbi,  ou  seja,  alguém  cujo  destino  após  o  túmulo  seria  tornar‐se  um escravo sem vontade ou autonomia, era visto como a mais terrível  punição  contra os inimigos sociais. Conforme entrevista recente com o  autor,     “[Na  lenda]  um  zumbi  é  alguém  que  teve  sua  alma  roubada  por  um  feitiço  e  que  fica  capturado  em  um  estado  de  purgatório  perpétuo  e  que acaba sendo mandado para trabalhar como escravo em plantações.  Hoje  sabemos  que  não  há  nenhum  tipo  de  incentivo  para  criar  uma  força de escravos‐zumbis no Haiti, mas dada a história colonial aliada  à ideia de perder a sua alma – o que significa perder a possibilidade de  ter  uma  morte  digna  para  o  vuduista  ‐,  tornar‐se  um  zumbi  é  um  destino  pior  do  que  a  morte.  É  por  isso  que  no  Haiti  não  se  teme  os  zumbis, mas se tornar um zumbi” (Assis, 2010). 

 

  Outro elemento fundamental dos trabalhos de Davis foi mostrar  a  morte  como  um  dado  muito  mais  cultural  e  social  do  que  biológico.  Ao  passar  pelos  rituais  de  velório  e  sepultamento,  o  indivíduo  é  considerado  morto  pela  comunidade,  independente  de  seu  funcionamento  biológico.  Desta  forma,  uma  pessoa  que  foi  velada  e 

                                                             25

  O  mesmo  órgão  governamental  que  em  2012,  como  vimos,  vai  lançar  a  “Prontidão  zumbi”. 

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enterrada, se for reencontrada novamente andando ou trabalhando, não  será vista como alguém vivo como antes, mas sim como um morto‐vivo.   Desta forma, podemos perceber o quanto o zumbi “tradicional”,  ou  “haitiano”  era  associado  a  um  imaginário  colonial  e  religioso.  Sua  figura evocava o trágico destino de uma morte sem descanso, tornando  a pessoa zumbificada um eterno trabalhador escravo, sempre à serviço  de  seu  mestre  e  senhor,  sem  desejos,  esperanças  ou  qualquer  grau  de  liberdade. O zumbi representava, entre outras coisas, um conflito entre  a  tradicional  ordem  escravocrata  e  o  moderno  sistema  capitalista,  cuja  solução  provisória  era  apoiada  e  consagrada  pelo  discurso  religioso.  Seja política, econômica ou espiritualmente, o zumbi das colônias era o  grande paradoxo e pesadelo do sonho liberal: a liberdade econômica de  um capitalismo que escraviza.    No  cinema  da  primeira  metade  do  século  XX,  foram  dois  os  principais  filmes  que  trataram  do  zumbi  haitiano:  White  zombie26,  de  1931 e I walked with a zombie27, de 1943 (Russel, 2010). Ambos os filmes  (mas  principalmente  o  primeiro)  espetacularizaram  para  as  grandes  audiências  cinematográficas  um  monstro  originado  dos  países  colonizados  do  Novo  Mundo,  insinuando  que  a  “barbárie  nativa”  dos  povos subalternizados era uma ameaça real e constante. Em seu artigo  sobre  White  zombie,  Bishop  (2008:  141)  afirma:  em  outras  palavras,  o  verdadeiro horror nestes filmes está na perspectiva de um ocidental tornando‐se  dominado, subjugado e efetivamente “colonizado” por um nativo pagão.  Depois  de  algumas  décadas  de  filmes  com  baixo  orçamento,  originados  de  vários  países,  apresentando  mortos  quase  vivos  assombrando vivos quase mortos e misturando magia, extraterrestres e  terror  psicológico,  é  o  cinema  norteamericano  independente  que  vai  criar a figura do zumbi contemporâneo e iniciar o contágio deste tema  em todo o universo do entretenimento.                                                                        26 27

White zombie, dir: Victor Halperin, EUA, 1931.  I walked with a zombie, dir: Jacques Tourneur, EUA, 1943 

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3.3. O zumbi contemporâneo    Em  1968,  George  Romero  lança  o  filme  “A  noite  dos  mortos‐ vivos”. Causando um choque na época, este filme de baixo orçamento e  imagens consideradas extremamente violentas, vai originar a figura do  zumbi  contemporâneo:  um  morto  que  retorna  à  vida  sem  consciência,  comumente  atacando  em  grupo  e  cujo  único  objetivo  é  devorar  os  humanos vivos, transformando aqueles que foram mordidos em novos  zumbis.  Neste filme em preto e branco, um grupo de pessoas que não se  conhecem é encurralado dentro de uma casa abandonada e cercada por  estas criaturas, cuja origem ninguém compreende – embora as notícias  da televisão digam que os mortos vivos devem ter alguma ligação com  a  radiação  atômica.  Liderados  por  um  homem  negro,  o  grupo  tenta  sobreviver  e  descobrir  o  que  está  acontecendo,  enquanto  os  vários  conflitos  entre  eles  apenas  pioram  a  situação  e  aceleram  seu  final  trágico.  “A  noite  dos  mortos  vivos”  foi  considerado  subversivo28  sob  vários  aspectos:  imagens  explícitas29  de  violência;  a  completa  ausência  de  confiança  nas  forças  estatais  e  nas  instituições  públicas  (como  a  polícia e o próprio governo); a descrença na solidariedade e capacidade  de ajuda mútua entre as pessoas e, principalmente, colocar um homem  negro  não  como  um  zumbi  (igual  aos  zumbis  do  colonialismo),  mas  como  a  personagem  principal  e  líder  da  “resistência”,  mostrando‐se  o  único sensato e altruísta naquele grupo. Conforme Russel (2010: 112): “o  que  torna  a  visão  apocalíptica  de  Romero  tão  desconcertante  é  o  niilismo  que  a  anima.  O  levante  dos  mortos  contra  os  vivos  é  representado  por  um  ataque  repetido  contra  toda  a  verdade,  valor  e  conforto que a civilização se apega”. 

                                                              Conforme Russel (2010) a quase totalidade da crítica do período viu no filme apenas o  exemplo  de  um  enredo  fraco  e  solto  que  servia  de desculpa  para  cenas  de  violência  desmedida e gratuita.  29  Revivendo  a  tradição  do  Grand‐guinol  europeu  (Hand  e  Wilson,  2002)  e  ajudando  a  iniciar  o  chamado  cinema  “gore”  ou  “splatter”,  com  imagens  exageradas  e  das  mais  realistas  até  então  realizadas,  apresentando  cenas  de  sangue,  mortes,  mutilações  e  violências físicas.  28

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Entre  todos  os  autores  pesquisados,  é  unânime  a  ideia  de  que  esta  película  é  um  marco  do  cinema  de  horror  e  a  obra  que  criou  a  figura  contemporânea  do  zumbi,  estabelecendo  inclusive  os  principais  elementos  narrativos  que  formarão  este  gênero  de  filme30.  Podemos  citar  em  primeiro  lugar  as  imagens  diretas  e  explícitas  de  mutilação  e  morte,  onde  o  corpo  humano  é  apresentado  em  detalhes  apenas  para  realçar o efeito causado pelas imagens de sua violenta destruição.   As  pessoas  sendo  perseguidas  e  encurraladas  como  uma  caça  também é outra constante destas produções. Seja cercadas em uma casa,  presas  em  uma  ilha,  isoladas  em  um  bunker  ou  shopping  Center,  a  sensação  de  clausura  e  muitas  vezes  de  claustrofobia  está  sempre  presente31.  Outro  elemento  importante,  normalmente  surgido  como  consequência  do  acossamento  é  o  convívio  forçado  entre  sujeitos  totalmente  distintos  em  vários  níveis:  social,  econômico,  cultural  e  moral.  Disto  resultam  conflitos  internos  muitas  vezes  emocionalmente  tão  violentos  quanto  os  ataques  dos  zumbis.  No  universo  destas  produções,  o  bom  convívio  humano  é  um  ideal  tão  ilusório  quanto  destrutivo.   A  origem  dos  zumbis  e  a  causa  de  sua  necessidade  de  exterminar  os  vivos  também  nunca  é  clara,  ajudando  a  construir  o                                                                 Não  queremos  com  isso  dizer  que  todos  os  filmes  de  zumbis  sigam  à  risca  estes  elementos;  apenas  sugerimos  que  eles  são  os  mais  comuns  e  que  os  filmes  mais  criativos e originais sobre este tema justamente são os que conseguem subverter estes  elementos‐chave que caracterizam as narrativas e o “gênero” sobre zumbis.  31 A ideia de um grupo de humanos cercado por inimigos não humanos representando  o colapso da vida social e da civilização remete ao final de um dos clássicos da ficção  científica,  a  peça  “R.U.R.”,  do  tcheco  Karel  Tchápek  (lançada  no  Brasil  como  “A  fábrica  de  robôs”).  Escrita  em  1920  e  encenada  em  1921,  ela  narra  a  estória  de  uma  empresa  que  constrói  empregados‐escravos  meio‐mecânicos  meio‐orgânicos  para  trabalharem  em  fábricas,  que  revoltam‐se  contra  seus  empregadores  humanos.  Foi  esta  obra  que  criou  o  termo  robô,  originado  do  tcheco,  significando  “servidão,  trabalho  forçado”.  Cansados  de  serem  explorados,  os  robôs  se  unem  para  destruir  seus  opressores.  Escrita  como  clara  referência  ao  socialismo  e  sua  crítica  ao  capitalismo,  o  texto  trabalhava  a  tomada  de  consciência  dos  trabalhadores  robôs  escravos  e  a  derrocada  capitalista  pela  organização  e  ascensão  desta  nova  classe  social.  Da  ficção  científica  do  início  do  século  XX  ao  terror  fisiológico  do  fim  deste,  uma  mudança  parece  clara:  o  capitalismo  atual  não  teme  mais  a  tomada  da  consciência  de  classe  pelos  organizados  e  politizados  trabalhadores,  mas  a  revolta  daqueles que já são considerados “mortos” por este modelo.  30

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ambiente  de  insegurança  e  desconfiança  presente  nestas  obras.  Da  mesma forma, a multidão de zumbis é fundamental: eles são inúmeros  e sua quantidade cresce na mesma proporção em que fazem vítimas. Os  zumbis  nunca  estão  sozinhos,  mas  sempre  em  grupos.  Mais  que  inteligência  ou  habilidade  física,  os  zumbis  representam  uma  ameaça  pela sua incontrolável e crescente quantidade.   Mas  os  elementos  mais  inovadores  criados  por  Romero  e  que  definitivamente rompem a continuidade do zumbi contemporâneo com  seu homônimo haitiano são o canibalismo e o contágio. A partir de “A  noite  dos  mortos  vivos”,  os  zumbis  se  desenvolveram  como  seres  que  perseguem  as  pessoas  para  devorá‐las  e  que,  tendo  contato  com  as  secreções,  mordidas  ou  arranhões  deles,  os  humanos  estão  fatalmente  condenados à tornarem‐se também um cadáver faminto32.   Ora, o zumbi haitiano não era canibal. Seabrook inclusive fala das  lendas a respeito de sua alimentação, que deveria ser completamente sem  sal,  pois  este  tempero  poderia  trazer  da  volta  sua  consciência  adormecida.  A  dieta  deste  resignado  monstro  colonial  era  estritamente  regulada,  enquanto  que  a  do  monstro  contemporâneo  e  globalizado  é  descontrolada e insaciável, na mesma proporção em que o outro monstro  analisado neste artigo – o obeso – deve controlar seu apetite.  Como vimos, o zumbi caribenho era principalmente um escravo,  indissociável  de  um  senhor  e  de  uma  relação  de  servidão,  encarnando  uma  punição  contra  aqueles  que  desafiavam  o  poder  estabelecido  e  assombrando o imaginário colonial. Já o zumbi contemporâneo pertence  a  um  imaginário  global  e  apocalíptico,  onde  imperam  o  caos  e  a  desordem.  O  primeiro  inspirava  medo  por  sua  evocação  à  manutenção  aterrorizantemente  imposta  da  ordem  social;  o  segundo  provoca  medo  por sua referência violenta à falta de qualquer ordem social.  Se  no  Haiti  rural  os  inimigos  sócio‐políticos  eram  as  vítimas  preferidas  da  zumbificação,  no  imaginário  do  mundo  globalizado  qualquer  pessoa  pode  vir  a  se  tornar  um  zumbi.  Para  isso,  não  é  necessário  ser  encarada  como  uma  ameaça  política,  mas  simplesmente                                                               32

 Curiosamente, em nenhum momento desta película fundante, a palavra “zumbi(s)” é  proferida.  O  termo  usado  é  sempre  “mortos  vivos”  ou,  mais  comumente,  apenas  “mortos”.  Talvez  com  isso  o  diretor  já  quisesse  deixar  claro  a  não  relação  entre  o  zumbi haitiano e os defuntos ambulantes contemporáneos. 

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ser vitima de um contágio. O trágico zumbi haitiano era um miserável  físico  e  um  amaldiçoado  espiritual,  enquanto  o  agressivo  zumbi  contemporâneo  é  um  contagioso  cadáver  decomposto,  afastado  de  qualquer referencial transcendente ou sagrado. Ao perder a relação com  a  magia  e  a  religião  (Filho  e  Suppia,  2011),  o  morto  vivo  atual  se  biologizou e se medicalizou33. Sua principal característica não é mais a  alma aprisionada e abatida, mas o corpo putrefato e sempre pronto para  contaminar e corromper os ideais de saúde física e social.   A  corporeidade  do  zumbi  contemporâneo  é  um  de  seus  traços  definidores.  Enquanto  estes  seres  haitianos  possuíam  estrutura  física  intacta,  machucada  pela  rudeza  da  vida  escrava,  mas  viva  o  suficiente  para  trabalhar,  os  mortos  vivos  contemporâneos  são  cadáveres  decompostos. O locus da morte do zumbi caribenho estava na alma e se  manifestava espiritualmente. O do zumbi contemporâneo está no plano  biofisiológico,  manifesto  no  apodrecimento  explícito  de  sua  carne  e  órgãos.  Ora,  a  visão  da  interioridade  do  corpo  humano  é  justamente  uma das características da cultura visual de nossa época. Seja na ciência,  com  os  avanços  das  tecnologias  médicas;  na  arte,  com  o  cinema  de  vísceras  expostas  ou  na  mídia  em  geral  –  que  apresenta  imagens  que  vão de exames clínicos dos órgãos internos ao cadáver despedaçado de  uma  vítima  de  violencia  ‐  a  imagem  do  corpo  aberto,  fragmentado,  desmembrado  e  expondo  seu  interior  é  uma  constante  (Moraes,  2010,  Ortega, 2013).    “Numa  cultura  na  qual  a  intimidade  deixou  de  ser  valorizada  e  protegida,  passando  a  ser  exposta  nos  mais  ínfimos  detalhes  em  realityshows,  programas  de  auditório,  diários  na  Internet  e  outros  teatros  do  eu  contemporâneos,  a  interioridade  visceral  revelada  pelas  novas imagens acompanha esse processo de externalização. Apesar de  essas imagens serem tão pessoais e ‘íntimas’ por pressagiar de maneira  tão  eficaz  nossa  condição  mortal,  estamos  nos  acostumando  à  sua  difusão e reprodutibilidade.” (Ortega, 2013: 91). 

                                                               33

  Entre  os  filmes  que  pretendem  explicar  a  origem  dos  zumbis,  o  argumento  de  um  vírus ou de uma experiência laboratorial mal‐sucedida é uma constante. 

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Assim, a figura do zumbi apresenta a maneira como estamos nos  adaptando a ver o corpo humano: um agrupamento de vísceras, ossos e  secreções cada vez mais expostas. Nesta nova maneira de apresentar e  representar o corpo, a pele perde sua função de velar pelo encobrimento  de  seu  interior,  acabando  com  o  “pudor  orgânico”.  A  função  primeira  da  carne  nestas  imagens  passa  ser  a  de  demonstrar  sua  fragilidade  e  declarar que não existem mais segredos fisiológicos escondidos.     3.4 A precariedade da vida zumbificada    Como vimos, este específico morto vivo ameaça não apenas por  sua fome insaciável de carne humana e do elemento contagioso de sua  condição,  mas  por  estar  sempre  associado  a  um  colapso  civilizacional.  Não  por  acaso,  o  termo  “apocalipse  zumbi”  é  constante  em  tais  obras.  Assim,  podemos  afirmar  que  o  zumbi  contemporâneo  representa  primeiramente  o  inumano  ou,  melhor  dizendo,  um  ser  humano  que  já  não é mais humano.   Este  é  um  elemento  extremamente  importante,  principalmente  nos filmes: o constante aviso que os zumbis já foram humanos, mas não  o são mais. Parentes, amigos, vizinhos, amantes ou filhos, todas aquelas  pessoas  que  antes  possuíam  um  forte  laço  afetivo  e  constituíam  uma  rede  de  solidariedade,  após  o  “contágio”  passam  a  ser  vistas  como  inimigas,  ameaças  que  devem  ser  unicamente  exterminadas  sem  o  menor  traço  de  afeto  ou  compaixão.  Os  zumbis  parecem  legitimar  a  noção de que ser reconhecido como humano é um privilégio de poucos  – privilégio esse que pode ser retirado a qualquer momento.  O  tema  do  reconhecimento  do  Outro  como  humano  e  a  fragilidade  deste  vínculo  é  um  dos  temas  trabalhados  pela  filósofa  estadunidense Judith Butler. Em muitos de seus trabalhos (Butler, 2006;  2010; 2011), esta autora analisa o que chama de “vida precária”, ou seja,  o  caráter  contingente  e  vulnerável  da  própria  noção  do  que  pode  ser  considerado  como  “vida  humana”  e,  assim,  conferir  a  determinadas  pessoas  ou  grupos  o  status  de  humanos,  merecedores  de  afetos,  cuidados, proteção e inteligibilidade.  Para a autora, a “vida” não é pensada como um dado natural e  biológico,  mas  como  uma  relação  de  forças  sociais,  simbólicas  e 

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biopolíticas  que  legitimam  determinadas  “vidas”  a  serem  vistas  como  importantes  e  merecedoras  de  reconhecimento  enquanto  outras  são  encaradas como supérfulas, desnecessárias e incovenientes.   Refletindo  sobre  a  guerra  –  especialmente  a  “guerra  ao  terror”  estadunidense ‐ e sua lógica de desumanizar o inimigo, em um esforço  que  envolve  não  apenas  propaganda  e  campanhas  militares  mas  necessita  da  cumplicidade  e  apoio  da  mídia,  Butler  nos  mostra  como,  nestas  relações  de  poder,  determinados  grupos  ou  pessoas  não  são  compreendidos  como  totalmente  humanos.  Sendo  assim,  essas  vidas  podem  ser  arruinadas,  tornadas  miseráveis  ou  mesmo  destruídas  sem  que  isso  venha  a  abalar  aqueles  que  as  destroem  ou  mesmo  os  que  apenas  “se  informam”  sobre  tais  acontecimentos.  Conforme  a  autora  (2006: 58): “certas vidas estão altamente protegidas e o atentado contra  sua  santidade  basta  para  mobilizar  as  forças  da  guerra.  Outras  vidas  não  gozam  de  um  apoio  tão  imediato  e  furioso  e  não  se  qualificam  inclusive como vidas que ‘valham a pena’”.  Ora,  como  vimos,  a  figura  do  zumbi  contemporâneo  parece  se  encaixar perfeita e literalmente neste modelo de vidas que não são mais  reconhecidas  como  vidas,  tornando  seus  sujeitos  não‐humanos.  Seguindo a lógica da guerra, as obras sobre zumbis parecem proclamar  que  existem  pessoas  ou  grupos  que  não  são  humanos  (mesmo  que  já  tenham sido algum dia) e que seu extermínio é necessário, não devendo  ser  pensado  como  algo  cruel  ou  “desumano”.  Ainda  conforme  Butler  (2010, 54), “por isso, quando tais vidas se perdem elas não são objeto de  dor, pois na retorcida lógica que racionaliza sua morte, a perda de tais  populações é considerada necessária para proteger a vida dos ‘vivos’”.  Exatamente o mesmo discurso usado nas obras com zumbis.  Assim,  visto  como  uma  relação  política  de  legitimação  de  determinados  grupos,  valores  e  ideias  sobre  outros,  a  figura  do  zumbi  contemporâneo  com  sua  ameaça  civilizacional  pode  ser  pensada  não  apenas como metáfora do caos social internacional que se instalaria com  um ataque destes seres (Drezner, 2011), mas como o incontável números  de  pessoas  e  vidas  em  todo  o  planeta  que  são  encaradas  como  perigosas,  repugnantes  e  desimportantes.  Como  os  zumbis,  muitas  vezes  o  fim  destes  seres  que  não  são  mais  vistos  como  humanos  é  o 

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extermínio,  sem  direito  ao  luto  ou  mesmo  ao  reconhecimento  de  sua  humanidade.  Neste  sentido,  o  zumbi  globalizado  contemporâneo  é  igual  ao  seu  antecessor  caribenho  e  colonizado:  ambos  são  monstros  por  não  conseguirem  ser  pensados  como  humanos.  Suas  “vidas  mortas”  representam  nem  tanto  o  questionamento  dos  limites  culturais  entre  a  vida  e  a  morte,  mas  principalmente  um  jogo  de  poder  político  que  determina quem deve ser visto como um morto, uma ameaça impura e,  consequentemente, ser descartado como uma vida que não vale a pena  ser vivida.    “São  vidas  nas  quais  não  cabe  nenhum  pesar  porque  já  estavam  perdidas  para  sempre  ou  porque  na  verdade  nunca  o  “foram”,  e  devem  ser  eliminadas  desde  o  momento  em  que  parecem  viver  obstinadamente nesse estado moribundo. A violência se renova frente  ao caráter aparentemente inesgotável de seu objeto. A desrealização do  ʺOutroʺ  quer  dizer  que  ele  não  está  vivo  nem  morto,  mas  em  uma  interminável condição de espectro”. (Butler, 2006: 60). 

  Em  um  mundo  em  que,  apesar  dos  esforços  em  contrário,  o  racismo, o sexismo, as discriminações por etnias, sexos, gêneros, classe,  nação,  cultura  ou  traços  físicos,  entre  outras,  não  apenas  continuam  vivas mas renascem quando acreditava‐se que elas não existissem mais,  uma  questão  fica  no  ar:  se  ideias  que  já  deveriam  estar  mortas  e  enterradas continuam saindo de suas tumbas e encontrando abrigo em  nossas  mentes  e  atitudes,  talvez  os  zumbis  não  sejam  apenas  uma  personagem de ficção. Talvez zumbis sejamos nós.    4. Reflexões finais    Tal como aponta Foucault, desde o alvorecer do século XVIII, o  corpo  e  a  vida  foram  convertidos  nos  objetos  e  objetivos  do  poder  (cf.  Foucault,  2002a,  2002b).  Quando  a  vida  do  homem  biológico  está  imbricada  na  do  homem  político,  se  assiste  a  uma  reconfiguração  da  política.  A  política  se  converte  em  vigilância  e  gestão  de  corpos  e  da  vida. 

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O  corpo  perde  sua  caracterização  naturalista  e  essencialista,  e  passa  a  ser  compreendido  como  uma  configuração  do  poder.  Como  expressa Haraway ʺos corpos (...) não nascem, eles são fabricados. Eles  foram  completamente  desnaturalizados  enquanto  símbolo,  contexto  e  tempoʺ  (Haraway,  1995:  357).  O  corpo  e  a  vida  não  são  um  fato  biológico,  mas  um  complexo  campo  de  inscrição  de  códigos  socioculturais que devem ser decifrados.  Neste contexto, podemos dizer que tanto o corpo monstruoso do  obeso  como  a  vida  monstruosa  do  zumbi  –  questões  sobre  as  quais  nos  detivemos  nesse  artigo  ‐,  são  duas  imagens  da  monstruosidade  que  devem  ser  decifradas  a  partir  deste  horizonte  biopolítico.  O  monstro é  um conceito biopolítico, definido na identidade entre vida e política.  Enquanto  operador  conceitual,  o  monstro  se  opõe  à  norma  do  humano. O monstro é uma figura transgressora das categorias estéticas,  epistêmicas,  jurídicas  e  políticas  a  partir  das  quais  se  reconhece  o  humano. O monstro encarna o limite entre o bonito e o feio, o saudável  e  o  enfermo,  o  humano  e  o  inumano,  o  vivo  e  o  morto,  o  natural  e  o  artificial. Representa uma figura específica do poder que ameaça o que é  definido  como  humano.  Portanto,  o  monstro  tensiona  a  pretensão  classificatória e normalizadora do biopoder.   Embora  os  limites  do  humano  e  do  monstruoso  pareçam  estar  delimitados  e  fixados,  a  presença  de  corpos  monstruosos  e  vidas  monstruosas  problematiza  tais  demarcações  e  aponta  uma  zona  onde  esses limites tendem a se confundir. A obesidade epidêmica e os zumbis, do  ponto  de  vista  do  discurso  da  ciência  (biomédica)  e  da  ficção,  questionam  as  definições  sobre  o  que  é  um  corpo  e  uma  vida  propriamente humanos.  Por  um  lado,  a  obsesidade  epidêmica  aponta  para  a  monstruosidade  do  corpo  humano,  a  monstruosidade  (a  gordura)  que  assombra  o  corpo  a  partir  de  seu  interior  até  apoderar‐se  dele.  A  obesidade é a manifestação, transcrita no corpo, da monstruosidade que  está  no  humano,  é  um  humano  convertido  em  monstro.  A  volumosidade,  flacidez  e  carnalidade  amorfa  do  corpo  são  marcas  somáticas que confessam, em seu corpo, a transgressão dos limites entre  o humano (saudável e belo) e o não‐humano (enfermo e feio). 

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Por outro lado, o zumbi representa a desumanidade do monstro, é  um corpo humano em decomposição, um morto‐vivo que perdeu certas  manifestações  humanas:  rosto,  linguagem,  afetividade.  O  zumbi  é  também  um  humano  convertido  em  monstro,  portador  de  uma  vida  menos que vida, de uma vida que conduz à própria morte.  Ambas as imagens da monstruosidade informam que, apesar de  sua constituição em oposição à norma do humano, não se trata de uma  alteridade  radical  com  relação  ao  humano,  mas  de  uma  ʺexclusão  inclusivaʺ (Agamben, 2005), uma exteriorização do monstro que habita,  que  está  incluído,  no  humano.  A  monstruosidade  desafia  a  norma  a  partir  de  sua  própria  interioridade,  é  um  perigo  inerente  à  norma  do  humano.  Os critérios normativos sobre os quais se estabelece ʺo humanoʺ  permitem  uma  gestão  desigual  sobre  a  população  considerada  ʺhumanaʺ e aquela que se tem desumanizado. O monstro, como perda  de humanidade, seja por portar um corpo monstruoso – o obeso –, seja  por  levar  uma  vida  monstruosa  –  o  zumbi  –,  é  objeto  de  uma  gestão  política que o define como um ser carente de valor. Consequentemente,  sobre o continuum da população se produzem cortes entre a população  que  se  quer  defender  (os  que  representem  a  norma)  e  os  monstros  (os  que  se  desviam  dela),  ou,  em  outros  termos,  entre  os  ʺcorpos  que  importamʺ  e  ʺas  vidas  dignas  de  serem  vividasʺ,  e  os  ʺcorpos  descartáveisʺ e as ʺvidas que não merecem ser vividasʺ.  A  monstruosidade  se  lança  em  uma  economia  política  da  vida,  na  qual  se  decide  o  que  constitui  e  o  que  não  constitui  uma  forma  de  vida  humana.  Produz  uma  vida  qualificada  positivamente,  uma  vida  que  deve  ser  protegida,  e  uma  vida  qualificada  negativamente,  em  termos de monstruosidade.  O monstro não é apenas um ser sem valor, mas, como expressa  Canguilhem,  é  um  vivente  com  valor  negativo  cuja  função  é  repelir.  Neste sentido, o monstro é portador de um corpo e de uma vida que é  considerada  como  uma  ameaça,  uma  vida  que  é  excluída  do  que  é  considerado vida ʺnormalʺ ou ʺvivívelʺ, uma vida com valor negativo.  Isso  coloca  em  evidência  o  sentido  moralizante  que  se  esconde  por  detrás  da  identificação  do  monstro.  O  obeso  e  o  zumbi  seriam  manifestações  de  corpos  que  perderam  sua  forma  humana  em  função 

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do desvio de seu comportamento. O obeso não apenas apresentaria um  corpo  doente,  mas  também  um  estado  vital  atribuído  ao  abandono,  à  falta  de  vontade  e  autoestima.  É  um  corpo  que  foi  monstrificado  por  descuido  e  se  apresenta  como  um  perigo  para  os  princípios  sanitário‐ empresariais.  Por  outro  lado,  o  zumbi  é  um  corpo  em  decomposição,  que perdeu toda a possibilidade de redenção, que evoca um símbolo do  corpo corrompido e de uma vida corruptora.  As  figuras  da  obesidade  epidêmica  e  do  zumbi  permitem  compreender a instabilidade da norma do humano e, por outro lado, a  oposição  à  ordem  social  que  a  caracteriza.  Os  monstros  são  uma  epidemia que ameaça, a partir da interioridade, a ordem normativa do  humano.  Os  monstros  irrompem  no  campo  da  biopolítica  para  nos  mostrar a fragilidade do humano, para nos ensinar que a humanidade  monstrifica, que somos monstros.        Bibliografia    AGAMBEN, G. Homo sacer. Poder soberano y vida desnuda. Valencia: Pre‐Textos,  2003.  ASSIS,  Diego.  Cientista  defende  verdades  por  trás  do  mito  dos  zumbis  –  entrevista  com  Wade  Davis.  Portal  G1,  28/01/2010.  Disponível  em:  .  Acessado  em:  15/03/2013  BARTHES, Roland. Mitologías. Buenos Aires: Siglo XXI, 1980.  BISHOP,  Kyle.  The  sub‐subaltern  monster:  imperialist  hegemony  and  the  cinematic  voodoo  zombie.  In:The  Journal  of  American  Culture,Volume  31,  Issue  2, 12 may 2008.  BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. El nuevo espíritu del capitalismo. Madrid:  Akal, 2002.  BUTLER,  Judith.  Vida  precária.  In:  Contemporânea  –  Revista  de  sociologia  da  UFSCar,  São  Carlos,  Departamento  de  Programa  de  Pós‐Graduação  em  sociologia  da  UFSCar,  2011,  n.1,  disponível  em:  http://www.contemporanea.  ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18/3  BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Buenos Aires: Paidós, 2010 

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PARTE II     

Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes demandas  de reconhecimento no Brasil e na Argentina     Richard Miskolci1   Maximiliano Campana2      1. Introdução    Martha  Minow,  ao  escrever  sobre  a  relação  entre  direito  e  mudança social começa expressando o seguinte:     “Penso  que  existem  duas  classes  de  pessoas  quando  se  trata  do  tema  do  direito  e  mudança  social:  aquelas  que  pensam  que  o  direito  é  um  importante  instrumento  de  mudança  social  e  aquelas  que  não  creem  que  seja.  […]  Quando  se  trata  das  relações  entre  direito  e  mudança  social, não posso dizer quem está errado” (2000, p.1).   

  Essa  reflexão  parece‐nos  interessante  como  um  pontapé  inicial  para  realizar  algumas  considerações  em  torno  da  utilização  do  litígio  como  instrumento  de  mudança  social  nas  demandas  por  reconhecimento de direitos. Mas para entender melhor como e para que  se  mobiliza  o  direito,  é  interessante  primeiro  adentrar  no  processo  de  formação  e  socialização  profissional  dos/as  estudantes  de  advocacia  para seu futuro exercício profissional.                                                                Richard Miskolci é professor do Departamento e do Programa de Pós‐Graduação em  Sociologia  da  UFSCar  e  pesquisador  do  CNPq.  Tem  publicações  na  área  de  sexualidade, gênero e direitos humanos.   2 Advogado pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC). Doutorando em Direito e  Ciências  Sociais  (UNC),  coordenador  do  Programa  dos  Direitos  Sexuais  e  Reprodutivos  da  Faculdade  de  Direito  (UNC)  e  coordenador  da  área  de  litígio  estratégico da Clínica de Interesse Público de Córdoba.    1

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A maioria das pessoas vê o Direito como a área profissional de  quem  se  sente  vinculado/a  às  demandas  por  justiça.  Não  é  incomum  ouvir  jovens  às  vésperas  de  entrar  na  universidade  refletindo  sobre  a  advocacia como uma possibilidade atraente por causa de seus ideais de  fazer  valer  a  igualdade  de  todos  perante  a  lei  e  contribuir  para  uma  sociedade  mais  justa.  No  entanto,  pesquisas  em  vários  contextos  nacionais  indicam  que  se  o  impulso  inicial  para  a  carreira  pode  ser  a  busca  por  justiça,  a  estrutura  formativa  no  Direito  tende  a  frustrá‐la  e  até mesmo substituí‐la por objetivos mais práticos.3    Neste  artigo,  buscamos  discutir  como  a  formação  de  advogados/as  poderia  ser  vinculada  proficuamente  a  um  comprometimento  com  a  justiça  e  a  igualdade.  O  compromisso  (commitment)  com  esses  valores  poderia  ter  um  efeito  positivo  de  democratização  de  sociedades  com  uma  história  marcada  por  desigualdades,  injustiças  e  autoritarismos.  Em  especial,  nos  casos  brasileiro  e  argentino,  essas  três  chagas  culturais  demandam  que  a  atuação da área da justiça se engaje em um processo em andamento de  gradativa transformação social pelo qual passam nossos países desde o  fim de suas últimas ditaturas militares.    2. Formação jurídica e socialização dos advogados    Voltemo‐nos  para  a  formação  de  advogados/as.  Para  compreendê‐la melhor podemos nos basear em Basil Bernstein (1977) e  seu conceito de “código de conhecimento educativo”, o qual se compõe  pelo currículo, a pedagogia e a avaliação:    “Ao  aplicar  a  ideia  de  código  à  transmissão  educativa  que  tem  lugar  nas  escolas,  Bernstein  trata  de  demostrar  que  a  organização,  a  transmissão  e  a  avaliação  do  conhecimento  (ou  seja,  o  currículo,  a  pedagogia  e  a  avaliação  respectivamente)  estão  intimamente 

                                                             3

 Dentre essas pesquisas destacamos as de Carlos Lista e sua equipe na Argentina e a de  Boaventura  de  Souza  Santos  (2012)  em  Portugal.  No  Brasil,  há  várias  investigações  sobre o tema e também uma vertente que analisa o contraste entre os ideais de justiça  e neutralidade e a forma como a profissionalização os impede ou frustra. Sobre esse  último tópico consulte as pesquisas de Bonelli et alli (2008) e Bonelli (2011).  

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relacionadas  com  os  padrões  de  autoridade  e  de  controle  social  vigentes  na  sociedade.  […]  Enfim,  o  código  educativo  explica  a  estrutura de poder e os princípios de controle vigentes na instituição”  (Brígido, 2006a, p.45).  

  Dessa  maneira,  aquele/as  alunos/as que  tenham  internalizado  o  “código de conhecimento educativo” da instituição de maneira correta,  terão  assegurado  o  êxito  na  carreira  educativa  e  universitária.  Desse  modo,  o  triunfo  e  a  imposição  de  determinados  “códigos”  nas  faculdades  de  direito  redundará  em  determinadas  concepções  de  justiça,  equidade,  liberdade  e  direitos,  concepções  que  atualmente  se  caracterizam  por  serem  conservadoras  e  individualistas.  Essa  questão  não  deixa  de  ser  relevante  ao  levar  em  conta  que  em  países  como  a  Argentina,  o  acesso  à  justiça  só  é  possível  pela  mão  de  um/a  advogado/a, o que implica a conversão de estudantes de advocacia em  profissionais  que  finalmente  custodiariam  a  liberdade  individual  e  a  propriedade  privada,  dois  valores  sumamente  importantes  na  sociedade argentina.4   Diante  desse  panorama,  quais  são  as  motivações  dos/as  estudantes  no  momento  de  escolher  a  carreira  de  advocacia  e  quando  devem inserir‐se no mercado de trabalho?  Para  responder  essa  pergunta,  Tessio  Conca  (2006)  nos  adverte  que existe uma importante variação na resposta dos/as estudantes. Em  geral,  essas  motivações  podem  se  enquadrar  em  quatro  grupos5:  o  primeiro  deles  se  vincula  com  a  influência  de  um  círculo  próximo,  constituído  por  familiares  e  amigos/as  advogados/as,  que  influenciam  na decisão. Um segundo grupo, por sua parte, manifesta ter escolhido a  profissão  por  sentir  certa  inclinação  por  disciplinas  vinculadas  às  ciências  sociais  e,  depois  de  ter  considerado  opções  como  ciência                                                                A representação de um advogado matriculado é obrigatória para atuar frente às cortes  de justiça, e a condição de advogado condição necessária para ocupar alguns cargos  públicos,  em  particular  para  ser  juiz  em  qualquer  instância  do  sistema  de  justiça.  É  por isso que se deve sublinhar que, na Argentina, os advogados têm o “monopólio”  do acesso à justiça e as faculdades de direito um grande poder político.   5 Havia um quinto grupo, que manifestou ter escolhido a carreira “por eliminação”, por  não  saber  o  que  estudar  ou  não  ter  podido  ingressar  em  outras  carreiras  de  seu  agrado.    4

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política,  serviço  social  ou  sociologia,  escolhem  a  advocacia  por  considerá‐la uma carreira que abre perspectivas seguras de trabalho, ao  que  também  incluem  a  posição  de  prestígio  e  poder  que  ela  permite  alcançar. O terceiro tipo de motivações está vinculado à busca de uma  carreira  que  abra  as  portas  de  uma  profissão  tradicional,  prestigiosa  e  economicamente  rentável.  Finalmente,  encontramos  como  principal  motivação  da  escolha  da  carreira  a  necessidade  de  dar  resposta  a  um  ideal social e humanitário.  No  caso  desses  ideais,  os/as  estudantes  manifestam  que  sua  verdadeira motivação se vincula ao seu interesse pela justiça, a busca de  una sociedade mais igualitária e a defesa dos direitos dos demais: “[…]  o que me levou a escolher essa profissão [foi] a sede de justiça, e se me  perguntam o que é, digo: buscar que se respeitem as instituições, as leis  e  as  constituições”  (apud  Tessio  Conca,  2006, p.63)  Com  essa  resposta,  um  estudante  se  associa  claramente  com  esse  último  grupo  de  alternativas. Com certeza, a autora adverte que:     “Conforme vão avançando no curso, suas motivações iniciais começam  a  se  ver  contrariadas.  A  própria  estrutura  da  agência  educativa,  os  conteúdos  que  se  transmitem  e  as  metodologias  de  ensino  vão  defendendo uma percepção mais ajustada das possibilidades reais que  têm  o  advogado  para  mudar  situações  de  injustiça”  (Tessio  Conca,  2006, p.63).  

  Desse  modo,  os/as  alunos/as  que  alguma  vez  acreditaram  na  possibilidade  de  satisfazer  seu  desejo  por  uma  sociedade  mais  justa  como  advogados/as  terminam  convencendo‐se  de  que  o  papel  verdadeiro  do/advogado/a  se  centra  principalmente  em  “litigar  e  ganhar”  e  que  aqueles  valores  vinculados  à  proteção  de  direitos  de  pessoas desprotegidas e a busca de maior justiça e igualdade social são  ideais dificilmente realizáveis no exercício profissional.  Isso  se  deve,  principalmente,  ao  modo  em  que  se  estrutura  a  educação legal em países como o Brasil e a Argentina. Neles, a maioria  dos advogados e advogadas são formados dentro de disciplinas em que 

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a formação se caracteriza por ser marcadamente teórica,6 e nas quais se  encontram dois  núcleos  temáticos claros:  um  central  que  se  vincula  ao  direito positivo (como é o direito civil, penal ou comercial) e outro, mais  periférico,  formado  por  disciplinas  consideradas  auxiliares  ou  meramente  informativas  (entre  as  quais  se  encontram  a  história,  a  economia e a sociologia). Tudo isso implica uma ausência de conteúdos  e  debates  que  fomentem  nos/as  estudantes  perspectivas  críticas  que  discutam  com  os  discursos  jurídicos  dominantes.  A  consequência  de  tudo  isso  é  que  as  carreiras  de  advocacia  acabam  promovendo  uma  identidade  profissional  pouco  comprometida  socialmente,  carente  de  crítica  diante  dos  discursos  sócio‐jurídicos  tradicionais  e  altamente  individualistas,  onde  os  futuros  advogados  e  advogadas  se  limitam  a  reproduzir a ordem social existente (Brígido, 2006b).     Segundo  Lista  (2011),  a  predominância  de  uma  concepção  formal e instrumental de justiça na formação de estudantes de direito na  Argentina  faz  com  que  eles/as  não  percebam  ou  reconheçam  a  existência de relações de poder. É como se a “neutralidade” da justiça a  impedisse  de  reconhecer  desigualdades  e,  principalmente,  diferenças.  Denominamos  desigualdade  o  contraste  relacional  entre  sujeitos  detentores  de  condições  econômicas,  culturais  e  mesmo  de  acesso  privilegiado  à  justiça  e  aqueles/as  que  não  detém  essas  condições  no  mesmo  nível.  Diferenças,  por  sua  vez,  referem‐se  à  forma  como  cada  sociedade  distingue/marca  as  pessoas  com  relação  ao  gênero,  à  sexualidade, à raça, etnia, geração, entre outras categorias.   Se  em  relação  às  desigualdades  socioeconômicas  a  esfera  jurídica  até  busca  fazer  frente  ainda  é  menor  o  reconhecimento  das  diferenças  como  também  engendrando  desigualdades,  as  quais  não  se  resumem  à  renda  ou  classe  social,  antes  a  experiências  sociais  de  discriminação, preconceito e outras formas de violência simbólica.                                                                6

  De  qualquer  forma,  nos  últimos  28  anos  de  transição  democrática  argentina  experimentamos diversas mudanças curriculares que apontam para a inclusão em um  núcleo  de  formação  prática,  a  associação  do  segundo  núcleo  temático  com  matérias  interdisciplinares  que  flexibilizariam  o  currículo,  também  a  diminuição  dos  anos  de  curso e a incentivar uma perspectiva crítica na aproximação pedagógica. Nem todos  esses  objetivos  foram  alcançados  e  a  implementação  dessas  reformas  ainda  está  em  execução. 

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  Os contextos brasileiro e argentino são similares na formação de  advogados/as, em ambos predominam os aspectos ressaltados por Lista  como  a  predominância  da  transmissão  de  conhecimento  sobre  o  desenvolvimento  de  habilidades  que  combina  três  aspectos:  “a  centralidade do direito e da monodisciplinaridade, fragmentação, forte  classificação  e  hierarquização  do  conhecimento  e  a  reprodução  da  abordagem  legal  positivista  e  formalista  como  modelo  hegemônico”  (2011, p.5).   Nesse  modelo  de  ensino  e  aprendizado,  o  Direito  tende  a  ser  isolado  de  suas  origens  sociais  e  políticas,  portanto  apagando  sua  contingência  de  forma  a  reproduzir  violências  simbólicas  típicas  da  sociedade  em  que  ele  se  estabeleceu.  O  passado  autoritário  e  classista  em  que  o  acesso  à  justiça  foi  mantido  um  privilégio  das  elites  dominantes  é  ignorado  de  forma  a  preservar  intocadas  as  estruturas  legais  e  culturais  que  as  beneficiam  até  hoje.  Assim,  não  é  de  se  estranhar o contraste, ao menos no caso argentino, entre os ideais com  os  quais  estudantes  ingressam  nos  cursos  e  o  pragmatismo  desencantado com que os deixam tornando‐se profissionais às custas da  adoção  de  um  apoliticismo  alienante.  Afinal,  a  neutralidade  da  justiça  não  pode  ser  confundida  com  cegueira  com  relação  às  condições  de  desigualdade  em  que  ela  é  aplicada  ou,  inclusive,  não  é  aplicada,  mantendo  boa  parte  da  população  apartada  de  seus  direitos  e  do  reconhecimento de sua cidadania.  Em  parte,  isso  se  passa  porque  o  sociológico  e  o  histórico  tendem  a  ser  mantidos  fora  ou  apenas  parcialmente  incorporados  na  formação  legal,  por  meio,  por  exemplo,  da  filtragem  das  reflexões  de  cunho  sociológico  e  político  pela  perspectiva  do  direito.  É  clara  a  tendência  dos  cursos  brasileiros  a  priorizarem  a  contratação  de  advogados  para  oferecerem  disciplinas  que  permitiriam  maior  permeabilidade  da  formação  às  discussões  históricas,  sociológicas,  antropológicas  e  políticas.  Buscando  evitar  esses  contatos  e  trocas,  os  cursos levam a uma formação que prioriza a manutenção – e até mesmo  o  reforço  ‐  de  um  hermetismo  do  direito,  o  que  contribui  para  que  estudantes  passem  a  ver  com  desconfiança  fontes  que  poderiam  problematizar  conteúdos  apresentados  como  doutrinas  e/ou  verdades  inquestionáveis. 

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No  Brasil,  como  analisado  por  Lista  na  Argentina,  o  discurso  pedagógico do direito tem quatro características que clamam por crítica:  a centralidade e autoridade dos professores, a passividade e indiferença  dos  estudantes,  o  estilo  ritualístico  e  dogmático  do  ensino  e  a  arbitrariedade  e  o  antagonismo  nas  discussões  (Cf.  Lista,  2011,  p.8).  Trata‐se de características não apenas da área do Direito, mas também  de sociedades latino‐americanas que vivenciaram uma história comum  marcada pelo autoritarismo e pela manutenção do acesso à justiça como  privilégio das elites.   Nossas  sociedades  mudaram  e  se  democratizaram  nas  últimas  décadas  e  análises  críticas  como  esta  ou  a  de  Lista  são  produtos  dessa  nova  realidade  político‐institucional,  a  qual,  infelizmente  ainda  não  interferiu ou modificou a esfera de formação dos aplicadores do direito.  Segundo Boaventura de Souza Santos:     “O principal desafio que se coloca nesse contexto é que todo o sistema  de  justiça,  incluindo  o  sistema  de  ensino  e  formação,  não  foi  criado  para  responder  a  um  novo  tipo  de  sociedade  e  a  um  novo  tipo  de  funções.  O  sistema  foi  criado,  não  para  um  processo  de  inovação,  de  ruptura,  mas  para  um  processo  de  continuidade  para  fazer  melhor  o  que sempre tinha feito” (2012, p.81). 

  Estudantes  de  Direito  formam  um  contingente  grande  e  potencialmente  poderoso  de  profissionais  que  poderia  auxiliar  no  aprofundamento  da  democracia  em  nossos  países.  Infelizmente,  sua  potencialidade  democrática  mantém‐se  controlada  por  valores  historicamente  arraigados  e  que  tendem  mais  a  frear  processos  de  mudança  social  do  que  os  aprofundar.  É  paradoxal  que  as  recentes  conquistas  no  Supremo  Tribunal  Federal  brasileiro,  como  o  reconhecimento  das  uniões  entre  pessoas  do  mesmo  sexo  e  a  constitucionalidade  das  cotas  raciais,7  se  deem  em  um  país  em  que  a  graduação  em  Direito  mantém  um  perfil  dogmático  e  conservador.  Qual a origem desse descompasso?                                                               7

 A respeito das discussões sobre a constitucionalidade das cotas consulte Silvério (2012)  e sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo veja Oliveira (2012). 

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Estudos  como  os  de  Bonelli  (2008;  2011)  demonstram  que  as  carreiras  jurídicas  brasileiras,  marcadas  por  alta  competitividade,  tendem a inculcar nos jovens profissionais discursos universalistas que  apagam  as  problemáticas  das  diferenças.  Quem  quer  conseguir  e  manter um emprego como advogado é induzido a adotar estratégias e  discursos  em  que  o  profissionalismo  se  confunde  com  neutralidade.  Bonelli  et  alli  (2008)  mostra  como  isso  se  passa  com  mulheres  advogadas que, na base da profissão, afirmam não reconhecer nenhuma  particularidade ou dificuldade extra por serem mulheres em uma área  de  atuação  majoritariamente  masculina.  Compreensivelmente,  depois  de  ascender  profissionalmente  o  discurso  ganha  nuances  e  muitas  mulheres reconhecem e trazem ao discurso as dificuldades enfrentadas  para  serem  reconhecidas  como  boas  profissionais  em  contextos  historicamente masculinos.8  Assim,  o  paradoxo  entre  as  recentes  decisões  do  Supremo  Tribunal  Federal  brasileiro  e  os  discursos  predominantes  na  base  profissional  –  em  especial  na  esfera  de  formação  –  se  torna  mais  compreensível.  A  lógica  de  entrada  na  área  de  trabalho  ainda  é  a  da  adoção,  o  mais  irrestrita  possível,  das  concepções  mais  tradicionais  e  arraigadas  do  que  é  o  Direito,  a  profissão  de  advogado/a,  do  que  é  passível de discussão ou não. O reconhecimento das diferenças sociais,  das desigualdades ou mesmo do acesso desigual à justiça ainda é quase  um  privilégio  de  quem  conseguiu  um  emprego  e  certa  estabilidade  profissional.     3. O caso argentino dos advogados/as ativistas: os avanços LGBT e o  poder conservador dos movimentos contra o aborto     Em  contraste  com  o  cenário  brasileiro  mencionado  no  item  anterior,  vale  a  pena  conhecer  uma  particularidade  argentina.  Conforme  alguns  teóricos  (Lista,  2012,  Manzo,  2011,  Vecchioli,  2006),  uma nova classe de advogados/as litigantes estaria emergindo no país,  fundamentalmente  por  meio  das  transformações  sociopolíticas  e                                                               8

 Bonelli et alli (2008) conceitua como “apagamento de gênero” a característica marcante  de como a incorporação de mulheres na base da profissão tem se dado em nosso país. 

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jurídicas  que  se  deram  desde  a  reinstauração  da  democracia.  Esses  novos  profissionais  poderiam  ser  chamados  de  “ativistas”  e  se  caracterizam  por  estarem  vinculados  a  movimentos  sociais  e/ou  organizações não‐governamentais e compreenderem que o direito pode  ser  entendido  também  como  uma  ferramenta  de  mudança  e  transformação social e que o acesso à justiça não pode ser considerado  apenas  de  um  ponto  de  vista  formal,  antes  ser  plenamente  exercido  pelos/as  afetados/as.  Em  relação  a  isso,  e  ao  referir‐se  aos/às  advogados/as ativistas, Lista (2012, p.148) reflete:    “Quem adota e promove uma definição de acesso à justiça mais ampla,  dinâmica  e  com  base  substantiva  […]  tende  a  conceber  a  politização  dos  conflitos  sociais  como  uma  estratégia  jurídica  na  demanda  e  na  defesa  dos  direitos  dos  peticionantes.  Por  sua  vez,  ao  promover  a  participação  e  a  incorporação  dos  setores  mais  desprotegidos  nas  relações  de  desigualdade  social,  tendem  a  reforçar  o  poder  de  tais  setores e fortalecer sua autonomia”.  

   A  origem  desses  novos  “ativistas”  foi  favorecida  por  diversos  fatores,  entre  os  quais  se  destacam  a  reforma  constitucional  de  19949,  um  maior  nível  de  mobilização  de  organizações  não‐governamentais  em  defesa  dos  direitos  de  incidência  coletiva10,  uma  situação  política  favorável  para  a  mobilização  do  direito,  a  incorporação  por  parte  dos  movimentos  sociais  de  profissionais  legais  em  suas  fileiras,  a  adoção  por  parte  desses  movimentos  de  um  discurso  de  direitos  humanos  e  fundamentalmente  pelas  ajudas  econômicas  recebidas  por  parte  de  organismos internacionais que exigiam, em troca, que entre as medidas 

                                                               Tal  reforma  implicou  a  incorporação  do  reconhecimento  de  direitos  de  incidência  coletiva e instrumentos jurídicos próprios para a defesa desse tipo de direitos, como o  amparo coletivo e a ação de habeas data.  10  Por  “direitos  de  incidência  coletiva”  entendemos  aqueles  direitos  que  possuem  um  número  indeterminado  de  indivíduos,  os  quais  podem  ver‐se  afetados  diante  de  determinadas  ações  ou  medidas  tanto  do  Estado  como  de  outros  indivíduos.  Se  incluem  nos  direitos  de  usuários  e  consumidores,  direitos  a  um  ambiente  sadio,  direitos das minorias (sexuais, raciais, etc), entre outros.   9

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a  serem  implementadas  deviam  se  desenhar  estratégias  de  litígio  de  interesse público.11   Dentro desse contexto, surgem as primeiras clínicas jurídicas na  Argentina  (incentivadas  pelo  financiamento  externo  e  aplicando  um  modelo e uma metodologia de trabalho que surgiu nos Estados Unidos  na década de 1920 e foi transplantada para a América Latina quase um  século  depois)  que  pretendiam  ser  espaços  de  reflexão  e  formação  de  futuros/as advogados/as, com a ideia de alterar a concepção tradicional  do  direito  em  dois  sentidos:  por  um  lado,  educando  advogados/as  diferentes,  com  maior  sensibilidade  social  em  defesa  dos  direitos  dos  mais  desprotegidos,  bem  treinados  em  questões  de  interpretação  e  crítica ao direito e às instituições; também, a médio e longo prazo, que o  direito  fosse  mobilizado  como  uma  verdadeira  arma  de  transformação  social,  diminuindo  as  desigualdades  sociais  e  protegendo  direitos  historicamente postergados (Puga, 2002).   Desde  então,  advogados  e  advogadas  comprometidos/as  com  causas  de  interesse  público  ou  com  a  defesa  de  interesses  de  movimentos sociais não deixaram de proliferar, e os tribunais em todo  país conheceram e resolveram causas novas que vão desde pedidos de  proteção ao meio ambiente sadio, saneamento de rios e bacias hídricas,  proteção  a  usuários  e  consumidores,  discriminação  racial  ou  por  motivos  de  gênero,  sexualidade,  direitos  de  propriedade  dos  povos  originários,  entre  muitos  outros.  E apesar  do  incômodo  e da  reticência  que  essas  demandas  causaram  (e  ainda  causam)  nos  distintos  órgãos  judiciais, uma posição favorável por parte da Corte Suprema de Justiça  da Nação diante desse tipo de demandas, na última década, incentivou  a  utilização  estratégica  do  direito  por  parte  desses/as  novos/as  profissionais.   Nos últimos anos, em matéria de direitos sexuais e reprodutivos,  diversos  grupos  vinculados  ao  movimento  da  diversidade  sexual12                                                               11

Por litígio de interesse público entendemos a estratégia de judicializar diversos casos  com a finalidade de penetrar nas agendas públicas, gerar mudanças políticas e sociais  ou  impactar  nas  políticas  de  governo.  Em  relação  à  ajuda  econômica  recebida  por  parte dessas organizações, foi particularmente importante a proveniente da Fundação  Ford, que exigia a utilização desse tipo de litígio (Teles, 2008) 

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tiveram  um  grande  êxito  no  momento  de  obter  respostas  às  suas  demandas.  Essas  se  vincularam  fundamentalmente  ao  reconhecimento  de  direitos,  por  parte  do  Estado,  para  conseguir  o  matrimônio  em  condições  iguais  às  dos  casais  heterossexuais  e,  posteriormente,  para  que  fosse  reconhecida  a  identidade  de  gênero  autoconferida  de  toda  pessoa  que  assim  o  deseje.  Durante  as  campanhas  desenvolvidas,  se  desenharam estratégias judiciais e políticas tendentes a obter respostas  judiciais aos seus pedidos, e, em alguns casos, dando bons resultados. É  por  isso  que  se  deve  considerar  que  esse  movimento  soube  mobilizar  com grande efetividade o direito (Manzo, 2011).  No  caso  das  estratégias  para  o  casamento  entre  pessoas  do  mesmo sexo, sua origem data do ano de 2006, quando um conjunto de  organizações LGBT13 decidiram nuclear‐se em uma federação (imitando  o  mesmo  modelo  que  tinha  demonstrado  êxito  na  Espanha).  Assim,  surgiu a FALGBT: Federación Argentina de Lesbianas, Gays, Bisexuales  y  Trans14.  Um  ano  mais  tarde,  essa  federação  lançou  a  campanha  pelo  reconhecimento  do  direito  ao  casamento  para  casais  formados  por  pessoas  do  mesmo  sexo  (denominada  “Campanha  pelo  Casamento  Igualitário”), com apresentações diante da justiça. A principal estratégia  não  consistia  tanto  em  obter  uma  sentença  judicial  favorável,  antes  o                                                                                                                                                     Cabe  esclarecer  que  o  movimento  pela  diversidade  sexual  na  Argentina  não  é  um  bloco  unitário  e  homogêneo.  Ao  contrário,  existem  diversas  e  importantes  divisões  dentro  dele  (Meccia,  2006).  O  mesmo  se  passa  no  Brasil,  país  em  que  não  se  dá  unificação  similar  à  observada  na  Argentina.  A  ABGLT,  com  sede  em  Curitiba,  não  foi criada a partir de uma coalizão das diversas vertentes LGBT brasileiras tampouco  tem  um  discurso  e/ou  metas  partilhados  com  elas.  Em  outras  palavras,  no  Brasil  há  mais divergências e menos coesão do que na Argentina no que toca às demandas de  diversidade sexual.   13 A sigla LGBT faz referência a “Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros/as”.   14  Em  relação  a  isso,  Litardo  (2009:171)  menciona  que  a  FALGBT  surge  como  consequência da “experiência espanhola, FELGBT – Federación Estatal de Lesbianas,  gais,  bisexuales  y  trans  ‐  (…)  a  que  possibilitou  a  reforma  do  código  civil  espanhol  para  o  direito  ao  casamento  entre  pessoas  do  mesmo  sexo”  no  ano  de  2005  e  que  a  federação na Argentina “tem uma série de objetivos que se destacam a priori por uma  nacionalização  da  questão  GLTTTBI  em  todo  território  argentino.  A  Federación  se  instalou  como  um  espaço  de  integração  regional  em  busca  de  uma  articulação  em  nível  federal  como  estratégia  de  integração  na  luta  e  demanda  por  direitos  civis  e  políticos da comunidade GLTTTBI”.   12

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que  se  buscava  era  instalar  o  debate  sobre  a  reforma  do  casamento  na  agenda  pública  de  então.  Foi  por  isso  que,  alguns  meses  mais  tarde,  diversos  deputados  apresentaram  na  Câmara  um  projeto  de  lei  de  “casamento igualitário” no marco da mesma campanha.  De maneira surpreendente, a estratégia judicial funcionou e, no  dia  10  de  novembro  de  2009,  uma  juíza  da  cidade  de  Buenos  Aires  resolveu  o  caso  declarando  a  inconstitucionalidade  dos  artigos  do  Código  Civil  que  regulavam  o  matrimônio,  classificando‐a  de  discriminatória. Em poucos meses, na cidade de Buenos Aires, distintos  juízes  reconheceram  novamente  esse  direito,  gerando  uma  importante  jurisprudência  vinculada  ao  reconhecimento  dessas  demandas.  Com  esses  precedentes  favoráveis,  a  FALGBT  anunciou  que  lançaria  uma  “campanha judicial em  todo o território nacional” com a finalidade de  obter  novas  sentenças  desse  tipo  em  lugares  diferentes  do  país.  As  representações  se  fariam  por  parte  de  advogados  e  advogadas  da  Federación e contariam com a colaboração do Instituto Nacional contra la  Discriminación,  la  Xenofobia  y  el  Racismo  (INADI)  (Campana,  2011).  As  respostas  a  essas  novas  demandas  não  foram  favoráveis  e  a  questão  caiu nas mãos da Corte Suprema de Justicia de la Nación.   Não  foi  necessário  que  o  órgão  máximo  judicial  do  país  resolvesse: no dia 15 de julho de 2010, o Congresso argentino aprovava  as  modificações  no  Código  Civil15,  permitindo  o  acesso  ao  casamento  para os/as homossexuais.   Obtido o direito ao casamento, a FALGBT lançava uma segunda  campanha denominada “Derecho a la identidad, derecho a tener derecho” e,  com  ela,  o  reconhecimento  da  identidade  de  gênero  se  convertia  na  nova  demanda  do  movimento  pela  diversidade  sexual  na  Argentina.  Nesse  caso,  a  estratégia  seguida  foi  a  mesma:  pressionar  tanto  no  âmbito  legislativo  quanto  no  judicial.  No  primeiro,  se  apresentaram  vários  projetos  de  lei  e,  em  novembro  de  2011,  as  comissões  de  “Legislación General” e “Justicia” da Câmara dos Deputados discutiram e  aprovaram  um  deles16,  começando  assim  o  processo  legislativo.  No                                                               15 16

 Lei nacional número 26.618.    Veja  “Un  paso  hacia  la  identidad  de  género”.  Disponível  em  http://www.  pagina12.com.ar/diario/sociedad/3‐180876‐2011‐11‐09.html.  (último  acesso:  30  de  novembro de 2011).  

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âmbito judicial, levaram‐se a cabo vários pedidos de reconhecimento de  identidade de gênero diante da justiça e autorização para mudar nomes  nos  documentos  públicos.  A  novidade  dessas  solicitações  foram  que  os/as afetados/as alegavam que era sua identidade autodeclarada a que  deveria  se  levar  em  conta  no  momento  de  resolver,  e  não  o  fato  de  terem sido submetidos/as a intervenções cirúrgicas ou perícias médicas,  psicológicas  ou  psiquiátricas.17  Essas  demandas  obtiveram  uma  recepção  favorável  nos  mesmos  tribunais  de  Buenos  Aires  que  consideraram  que  a  instituição  civil  do  matrimônio  compreendido  apenas como entre homem e mulher era inconstitucional (enquanto que,  nos  tribunais  do  resto  do  país,  diante  da  mesma  demanda,  a  resposta  era  muito  diferente),  autorizando  aos  demandantes  a  mudarem  suas  identidades  sem  obrigá‐los/as  a  submeterem‐se  a  perícias  médicas  ou  psicológicas, e levando em consideração somente a autonomia de quem  demandava.  Essa  demanda  também  se  resolveu  no  âmbito  legislativo,  com  a  lei  nacional  26.743,  a  qual  reconhece  a  identidade  de  gênero  de  todas as pessoas do país.   Nesse caso, resulta difícil aferir a influência que a estratégia judicial  pôde ter na decisão do Congresso Nacional argentino. Na verdade, o que  se pode supor é que a lei de identidade de gênero seria o primeiro passo de  um  processo  de  transformações  em  diferentes  instituições  estatais  (nas  quais se incluem a justiça) que já havia começado.18                                                                  É  importante  sublinhar  que  até  o  momento,  os  pedidos  de  reconhecimento  de  identidade  de  gênero  para  realizar  intervenções  cirúrgicas  de  mudança  de  sexo  ou  retificar documentos públicos, em sua maioria se caracterizavam por:  1.  Outorgar  uma  grande  relevância  às  distintas  perícias  a  que  as  pessoas  trans  deveriam  submeter‐se  e  os  informes  de  experts  (médicos  forenses,  psiquiatras,  psicólogos, entre outros) que, em consequência, se produziam.   2. O relato de uma vida de sofrimento. Esses casos, em geral, tratavam sobre pessoas  trans que já tinham sofrido intervenções cirúrgicas, e que por suas histórias de vida,  caracterizadas  pelo  sofrimento  constante  e  a  discriminação  permanente,  logravam  convencer  ao  juíz  sobre  a  necessidade  de  intervenção  cirúrgica  e/ou  retificação  dos  registros documentais.  18  Já  existia  o  reconhecimento  da  identidade  de  gênero  das  pessoas  trans  em  distintas  repartições públicas no momento de aprovação e sanção da lei. Assim, por exemplo,  na  província  de  Córdoba,  no  ano  de  2011,  o  Ministério  da  Saúde  reconheceu  a  identidade  de  gênero  de  travestis  e  transsexuais  que  foram  atendidas  em  hospitais  públicos  da  Província  (Resol.  Ministerial  146/2001).  A  Universidade  Nacional  de  17

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Quando  se  faz  referência  ao  uso  estratégico  do  direito  na  Argentina,  em  geral  os  teóricos  têm  uma  perspectiva  otimista,  e  entendem  que  a  mobilização  do  direito  pode  ser  entendida  como  uma  ferramenta  capaz  de  conseguir  mudanças  sociais  significativas  no  reconhecimento  de  direitos  por  meio  de  vitórias  em  campos  judiciais  (Böhmer,  1997;  Courtis,  2003;  CELS,  2008).  Inclusive  quando  as  respostas dos juízes não são favoráveis, se considera que o mero feito de  ter  utilizado  os  tribunais  produz  “efeitos  indiretos”  benéficos,  pois  em  alguns casos as demandas se instalaram na opinião pública, nos meios  de  comunicação  e  nos  setores  políticos  e  acadêmicos.  Dessa  maneira,  mantém‐se  justificada  a  estratégia  jurídica.  Essa  postura  se  baseia  na  visão  estadunidense  exposta  por  Michael  W.  McCann,  o  qual,  em  sua  obra  Rights  at  Work  (1994),  considera  que  o  direito  pode  participar  diretamente em um processo político de contestação contra uma ordem  estabelecida.  Como  sublinha  esse  autor  em  um  artigo  mais  recente,  o  direito  proporciona  “simultaneamente  princípios  normativos  e  estratégicos para a direção das lutas sociais” (McCann, 2004, p.508).  Dentro dessa perspectiva se poderia entender porque uma parte  importante  do  movimento  da  diversidade  sexual  optou  por  uma  inclusão  de  estratégias  judiciais  em  suas  campanhas  pelo  reconhecimento  de  direitos.  Além  disso,  nos  permitiria  justificar  como  as  decisões  da  justiça  asseguraram  direta  e  indiretamente  o  êxito  das  campanhas lançadas. Desse modo, o uso estratégico do direito por parte  do  movimento  LGBT  seria  um  claro  exemplo  de  quanto  os  tribunais  podem contribuir à mudança social.   Com certeza, se fizermos uma leitura mais detalhada, em ambos  os  casos,  as  demandas  se  resolveram  definitivamente  no  Congresso  Nacional e não na justiça. Além disso, não é possível encontrar vínculos  diretos  entre  essas  sentenças  que  reconheciam  direitos  e  a  decisão  do                                                                                                                                                   Córdoba, por sua parte fez o mesmo em outubro, sendo a primeira universidade na  Argentina  que  legislou  sobre  esse  assunto,  garantindo  o  respeito  à  identidade  de  gênero  autopercebida  de  seus  membros  (Ord.  HCS  9/11),  e,  posteriormente,  viria  a  resolução 1181/2011 do Ministério de Seguridad de la Nación, estabelecendo que “Las  personas trans deberán ser  reconocidas por la identidad de género adecuada a su percepción,  tanto en el trato personal como para cualquier tipo de trámite, comunicación o publicación al  interior de las Fuerzas”.  

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Poder Legislativo. E mais, em quase todos os casos, as sentenças que se  ditaram  fora  da  cidade  de  Buenos  Aires  não  reconheciam  os  direitos  que  o  movimento  demandava.  Assim  mesmo,  a  maior  parte  da  imprensa  escrita  se  centrou  no  debate  parlamentar  e  houve,  comparativamente,  uma  escassa  cobertura  dos  fatos  judiciais  (Sgró  Ruata e Rabbia, 2011). Tudo isso nos leva a duvidar da efetividade que  tiveram realmente as estratégias judiciais empregadas pelo movimento  e  quanto  essas  estratégias  trouxeram  para  suas  lutas  por  reconhecimento.   Ainda  que  não  possamos  concluir  que  o  movimento  pela  diversidade  sexual  tenha  sido  exitoso  pelo  emprego  de  estratégias  judiciais, é possível admitir que outros setores, aos quais denominamos  “pró  vida”  têm  uma  grande  eficácia  no  momento  de  usar  os  tribunais  argentinos.  Esses  setores  se  caracterizam  por  serem  marcadamente  conservadores,  estarem  relacionados  com  instituições  católicas,  manterem uma concepção estática e tradicional da sexualidade (à qual  vinculam  exclusivamente  com  seu  papel  reprodutivo)  e  expressar  que  seu  principal  objetivo  é  a  defesa  da vida  desde a  concepção.  Ademais,  esses setores se caracterizam por ter utilizado tradicionalmente a arena  judicial  para  impedir  o  avanço  em  matéria  de  sexualidade  e  (não)  reprodução.  De  fato,  atualmente,  o  Ministerio  de  Salud  de  la  Nación  enfrenta nove demandas judiciais somente contra o Programa Nacional de  Salud Sexual y Procreación Responsable19 (Peñas Defagó, 2009).  De todos os casos, o mais emblemático foi o “Portal de Belén”20. O  caso  se  originou  quando  um  laboratório  farmacêutico  obteve  uma  autorização do Ministerio de Salud de la Nación para produzir a pílula de  anticoncepção hormonal de emergência (conhecida como “pílula do dia  seguinte”). Essa autorização fez com que uma ONG chamada “Portal de  Belén”  se  apresentasse  diante  da  justiça  argumentando  que  tais  pílulas  atentavam  contra  a  vida  das  crianças  por  nascer,  e  solicitou  que  se  tirasse  sua  autorização  e  se  proibisse  sua  fabricação,  distribuição  e  comercialização  em  todo  país.  A  Corte  Suprema  de  Justicia  de  la  Nación  aceitou  a  demanda  considerando  que  a  vida  humana  começa  desde  a                                                               19 20

 Lei 25.673    Caso  “Portal  de  Belén  Asociación  Civil  sin  fines  de  lucro  c/Ministerio  de  Salud  y  Acción Social de la Nación s/Amparo”. 

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concepção  e  tal  fármaco  devia  ser  considerado  abortivo  e,  em  consequência, ilegal.   Os  casos  não  se  esgotam  aqui.  Esses  grupos  obtiveram  resoluções judiciais favoráveis que impediram as realizações de abortos  permitidos  pela  lei,  o  ensino  de  educação  sexual  nas  escolas,  a  distribuição  de  métodos  contraceptivos  em  hospitais  públicos  e,  inclusive, a anulação dos primeiros casamentos entre pessoas do mesmo  sexo  a  que  fizemos  referência  anteriormente  (Campana,  2011).  Se  a  maioria  desses  casos  se  caracteriza  por  utilizar  o  sistema  judicial  para  impedir o avanço dos direitos, os tribunais em todo país se mostraram  bastante receptivos a esse tipo de demanda, convertendo‐se em aliados  importantes quando se disputam essas questões.   O  caso  dos  avanços  alcançados  pelas  demandas  de  direitos  LGBT  argentinos  e  a  manutenção  de  uma  visão  negativa  do  aborto  podem  ser  pensados  dentro  da  dinâmica  maior  em  que  se  enquadram  essas  disputas  judiciais  no  período  democrático  recente:  uma  rediscussão  do  que  é  a  nação  argentina.  De  forma  paralela,  o  mesmo  tem  se  passado  no  Brasil,  no  qual  não  apenas  o  aborto  continua  criminalizado como os direitos LGBT têm avançado mais timidamente.  É  perceptível  que  a  partir  do  Governo  Dilma  Rousseff  a  agenda  geral  dos direitos humanos sofreu uma freada, o que o caso recente da eleição  de um parlamentar da frente evangélica para a presidência da Comissão  do Congresso sobre Direitos Humanos vem corroborar.   De forma apenas parcial e controlada, o que temos assistido em  terras brasileiras são algumas conquistas envolvendo nossa diversidade  étnico‐cultural,  em  especial  o  reconhecimento  da  constitucionalidade  das  cotas  nas  universidades  pelo  Supremo  Tribunal  Federal.  Compreensivelmente,  devido  às  diferentes  composições  populacionais  e às diferentes histórias, o caso argentino se desenvolve de maneira que  demandas de reconhecimento e direitos se dão em uma sociedade que  (ainda)  se  vê  de  forma  mais  homogênea  enquanto  no  Brasil  a  problemática de uma sociedade multirracial se impõe.   A despeito das diferenças, ambas as sociedades passam por um  processo  democrático  de  reavaliação  do  que  se  compreende  como  a  nação  argentina  ou  brasileira.  A  seguir  refletimos  preliminarmente  como  essa  transformação  da  forma  como  compreendemos  quem  faz 

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parte  de  nossas  respectivas  nações  tem  se  dado  a  partir  de  um  enquadramento  multiculturalista,  o  qual  tem  marcas  das  sociedades  que  criaram  a  noção  de  diversidade  e  podem  limitar  os  avanços  e  as  conquistas em dois países do Sul Global.    4. Diversidade e diferenças: para onde caminham as nações?    Em  relação  ao  caso  argentino  e  suas  conquistas  recentes,  a  sociedade  brasileira  e  seu  legado  cultural  autoritário  parece  amortecer  as  conquistas  democráticas  recentes  em  uma  das  esferas  em  que  elas  mais  poderiam  florescer.  Afinal,  como  já  observamos,  entre  as  motivações que levam estudantes a optarem pelo Direito se encontram  ideais  como  o  de  prestar  um  serviço  à  sociedade  e  aos  que  mais  precisam.  Trata‐se  de  algo  similar  ao  que  se  passa  em  outras  esferas  profissionais  e  políticas  que  mantém  esses  compromissos  vinculados  a  vertentes  de  reflexão  sobre  diversidade  e  multiculturalismo.  As  melhores  das  intenções  terminam  por  traduzir  demandas  de  transformação  das  relações  de  poder  e  diminuição  das  desigualdades  sociais  em  discursos  que  apelam  à  retórica  da  tolerância  e  da  incorporação  de  grupos  sociais  minoritários  sem  modificar  os  privilégios dos socialmente majoritários, leia‐se, frequentemente não os  mais  numerosos,  antes  os  que  detém  o  poder  regulador  da  ordem  social.   O  fato  acima  é  perceptível  no  contrassenso  de  chamar  as  mulheres  ou  os  negros  de  minorais  em  uma  sociedade  como  a  brasileira,  em  que  eles/as  são  metade  ou  mais  da  população.  Na  verdade,  minorias,  diversidade  e  multiculturalismo  formam  um  vocabulário  tímido  e  conservador  para  lidar  com  desigualdades  e  injustiças. O termo diversidade é uma noção teórico‐política que surgiu  na  América  do  Norte  em  meio  à  preocupação  com  conflitos  étnico‐ raciais,  e  mesmo  culturais,  entre  a  década  de  80  e  a  de  90  do  século  passado.  Nesse  período,  havia,  por  exemplo,  desde  conflitos  culturais  entre  diferentes  comunidades  de  imigrantes  de  ex‐colônias  na  Inglaterra,  na  França  e  na  Holanda  até,  na  América  do  Norte,  a  rivalidade  entre  as  partes  de  fala  francesa  e  inglesa  no  Canadá  que 

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levou a uma tentativa de transformar o Quebec em um outro país. Nos  Estados  Unidos,  no  início  da  década  de  1990,  entraram  para  a  história  episódios  de  conflitos  raciais  entre  negros  e  brancos  como  os  que  se  passaram em Los Angeles.   É neste contexto histórico de grande preocupação social que surge  a  demanda  por  reflexões  acadêmicas  e  políticas  apaziguadoras  e  conciliatórias. Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema, The  Politics of Recognition [A política do reconhecimento] do filósofo canadense  Charles Taylor. Nesse artigo há uma reflexão que serve de base para boa  parte  do  que  foi  produzido  daí  por  diante  sobre  diversidade,  tanto  em  termos  acadêmicos  como  na  forma  de  políticas  sociais.  A  noção  de  diversidade busca compreender as demandas por respeito, das demandas  por acesso a direitos por parte de pessoas que historicamente não tiveram  esses direitos reconhecidos como negros, povos indígenas, homossexuais,  mas de forma a que esses direitos particulares sejam reconhecidos dentro  de um contexto institucional universalista.  O  universalismo  se  revela  intransigente  e  incapaz  de  lidar  com  transformações  históricas  e  sociais  em  que  o  apelo  à  igualdade  se  sobrepõe  ao  reconhecimento  das  injustiças  sobre  o  qual  sua  tradição  intelectual, social e legal se assentou desde ao menos o final do século  XVIII  (cf.  Miskolci,  2010).  O  multiculturalismo,  por  sua  vez,  menos  do  que antagonizar com o universalismo busca atualizá‐lo para a realidade  contemporânea,  em  particular  das  nações  mais  heterogêneas  ou  –  melhor  dizendo  –  mais  abertas  ao  reconhecimento  de  sua  diversidade  interna. A despeito dos avanços, o multiculturalismo mantém intocado  e inquestionado o olhar hegemônico sobre o qual assenta seus ideais, o  qual pode ser claramente definido como os dos grupos estabelecidos e  detentores do poder econômico, cultural e político desde a colonização.    No  Brasil,  um  país  marcado  por  séculos  de  colonização  exploratória e pela escravidão, a República foi criada em fins do XIX de  forma a preservar os privilégios das classes dominantes brancas, ricas e  letradas.  Desde  então  predominou  o  discurso  universalista  e  os  ideais  de um liberalismo aparentemente fora de lugar, mas cuja lógica servia a 

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manter a imensa maioria da população sem cidadania plena.21 De forma  simplificada, pode‐se dizer que apenas após o final da última ditadura  militar  (1964‐1985)  é  que  surgiram  condições  políticas  abertas  a  demandas de reconhecimento de diferenças anteriormente ignoradas ou  violentamente negadas.   A  Assembleia  Constituinte  de  meados  da  década  de  1980  foi  um  marco  ao  impulsionar  debates  democráticos  sobre  nossa  sociedade  e  seu  resultado, a Constituição de 1988, estabeleceu o marco institucional dentro  do qual floresceriam as demandas por reconhecimento das diferenças em  fins do século XX. Dentre elas, algumas das mais visíveis foram a demanda  de  igualdade  de  direitos  por  parte  de  homossexuais,  a  luta  dos  movimentos negros pelas ações afirmativas e de indígenas e quilombolas  por demarcação de suas terras e reconhecimento de suas culturas.   Na  Argentina,  a  situação  não  é  muito  diferente.  O  modelo  agroexportador,  desenhado  no  final  do  século  XIX,  por  uma  elite  capitalista e liberal quase não se modificou até hoje. E ainda que, formal  e  legalmente,  a  cidadania  plena  se  alcançou  em  1947,  quando  se  reconheceu  o  direito  ao  voto  feminino,  e  os  movimentos  operários  e  sindicais  estavam  bem  estabelecidos,  não  foi  antes  de  1983,  com  a  reinstauração  da  democracia,  que  os  diversos  movimentos  sociais  e  atores  coletivos  começaram  a  ter  participação  na  vida  política  e  institucional do país.   A  crescente  importância  política  e  institucional  que  começou  a  cobrar  a  sociedade  civil  na  arena  política  foi  juridicamente  respaldada  pela  reforma  constitucional  de  1994.  Essa  reforma  implicou  uma  importante transformação nas instituições do país, o reconhecimento de  novos direitos e instrumentos jurídicos tendentes a garantir o exercício  efetivo  deles.  Mas,  além  disso,  durante  a  década  de  1990  se  produziu  uma importante retirada por parte do Estado de várias de suas funções  tradicionais e, consequentemente, o surgimento de muitas organizações  políticas  e  sociais  tendentes  a  suprir  esse  vazio.  Dentro  desse  contexto  político  e  institucional  favorável  é  que  floresceram  diversas  das  demandas por reconhecimento de direitos e das diferenças.                                                                21

  Sobre  essa  profícua  linha  de  reflexão  sobre  os  aparentes  paradoxos  brasileiros  consulte a clássica discussão de Roberto Schwarz intitulada “As ideias fora de lugar”  (2000). 

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Apenas dentro do que as pessoas de fala inglesa denominam de  constitutional  law  e  que  podemos  traduzir  por  Estado  de  Direito  podemos  debater  os  termos  de  convivência  em  uma  sociedade  que  pretende um dia ser plenamente democrática. Muito além das também  fundamentais  conquistas  das  eleições  diretas,  do  voto  universal,  a  democracia é um construto histórico e cultural que depende do grau de  liberdade de rediscussão dos limites da cidadania, sobretudo buscando  ampliá‐la  para  aqueles  e  aquelas  que  não  têm  reconhecida  sua  humanidade,  seus  direitos,  sua  igualdade  jurídica  e  social.  Apenas  depois  dos  anos  oitenta  que  as  sociedades  brasileira  e  argentina  passaram a viver dentro dessas condições, portanto há apenas menos de  três décadas, um curto período dentro de nossa longa história.   Quando  alguém  se  pergunta  por  que  ainda  vivemos  em  uma  sociedade injusta e autoritária é só refletir sobre como nossa experiência  democrática é recente e curta. No caso brasileiro, vinte e cinco anos são  muito  pouco  tempo  dentro  desses  séculos  de  experiência  histórica  colonial,  escravagista  e  mesmo  imperial  ou  republicana  dentro  dos  quais  se  forjou  uma  sociedade  altamente  desigual  não  apenas  em  termos  econômicos,  mas  também  em  outros  aspectos  não  menos  importantes  como  raça/etnia,  gênero,  sexualidade,  etc.  De  qualquer  forma,  o  Brasil  conquistou  muito  neste  quarto  de  século  e  avançou  a  passos  largos  em  comparação  com  muitas  outras  nações  com  histórias  similares. Ainda há muito o que fazer, mas vivemos dentro de um clima  democrático  profícuo  para  as  transformações  que,  quiçá,  possam  vir  a  nos  tornar  uma  sociedade  plenamente  democrática  e  com  justiça  para  todos/as.   No caso argentino, os contínuos golpes de estado, a instabilidade  das  instituições  políticas,  a  alternância  entre  regimes  ditatoriais  e  democráticos, um modelo baseado na exportação de matérias agrícolas  e  importação  de  manufaturas  e  a  dependência  econômica  das  grandes  potências produziram um paulatino empobrecimento da maior parte da  população, convertendo‐se também em um país altamente desigual.   É em meio ao cenário inaugurado pelas novas Constituições e a  rearticulação dos movimentos sociais na década de 1990 que começa a  surgir  uma  nova  forma  de  compreensão  da  nação  e  do  acesso  à  cidadania. As políticas criadas sob o rótulo da diversidade buscam fazer 

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frente  a  este  novo  cenário  cultural  e  político  tão  recente  quanto  imprevisível.  Não  é  de  se  estranhar  que  em  sociedades  marcadas  pelo  comando por elites temerosas com relação ao povo e à possibilidade de  perda  de  sua  posição  de  comando22  busquem,  ao  menos  inicialmente,  fazer frente às demandas sociais de reconhecimento das diferenças por  meio  do  filtro  político  que  as  traduz  na  linguagem  da  tolerância  da  diversidade.   Tolerar  é  muito  diferente  de  reconhecer  alteridades,  de  valorizá‐ las em sua especificidade e conviver com a diversidade também não quer  dizer aceitá‐la. Em termos teóricos, diversidade é uma noção derivada de  uma  concepção  estática  de  cultura  que  advoga  a  tolerância  dos  “diferentes”,  mas  mantendo  a  cultura  dominante  intocada  por  esses  “Outros”  sociais.  É  como  se  da  ignorância  ou  do  apagamento  das  diferenças  sociais  passássemos  apenas  a  reconhecê‐las  recusando  nos  relacionarmos/transformarmos  pelo  contato  com  elas.  A  retórica  da  diversidade  busca  manter  intocada  a  cultura  dominante  criando  apenas  condições de tolerância para os diferentes, os estranhos, os “outros”. Seu  resultado, o multiculturalismo, tende a criar condições sociais e políticas  de gestão das diferenças ou, sendo mais direto e claro, o estabelecimento  de  um  regime  atualizado  das  antigas  formas  de  segregação  que  caracterizaram historicamente sociedades como a norte‐americana.   A  retórica  da  diversidade  tem  forte  apelo,  e  não  apenas  no  Brasil,  na  Argentina  ou  na  esfera  da  política,  pois  apresenta  o  mundo  como  podendo  ser  diverso  sem  modificar  hierarquias  ou  relações  de  poder.  Alguns  falam  de  diversidade  por  meio  do  termo  multiculturalismo,  essa  utopia  euro‐norte‐americana  da  convivência  com imigrantes, não‐brancos, não‐heterossexuais, entre outros, a partir  de  uma  perspectiva  que  mal  encobre  sua  origem  branca,  cristã,  ocidental e masculina. Trata‐se de uma utopia dos nostálgicos do poder  branco  colonial,  na  qual  as  diferenças  seriam  toleradas  sem  modificar  profundamente  os  valores  e  os  privilégios  dos  grupos  sociais  dominantes.                                                                22

 Sobre as origens históricas desse medo da elite brasileira em relação ao povo consulte  Miskolci (2012) e Azevedo (1987). Azevedo mostra que o temor da Abolição originou  o  medo  dos  negros  no  Brasil,  Miskolci  por  sua  vez  analisa  como  esse  temor  dos  negros foi transformado em medo do povo após a proclamação da República. 

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Distinguir  entre  diferença  e  diversidade  exige  abandonar  uma  concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela  para  uma  concepção  horizontalizada  de  relações  em  que  se  afasta  o  conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença é  algo  incomensurável,  mas  potencialmente  mais  democrático  e  promissor.  Uma  perspectiva  informada  pelas  diferenças  pode  questionar  e  até  modificar  hierarquias,  colocar  em  diálogo  os  subalternizados  com  o  hegemônico  de  forma,  quiçá,  a  mudar  a  ordem  que mantém e reproduz desigualdades.  Os discursos jurídicos e a formação em Direito ainda constituem  um conjunto de técnicas que buscam fazer o Outro se enquadrar ou ser  reconhecido  sem  modificar  as  concepções  hegemônicas  de  justiça  e  igualdade.  Ou  seja,  demandas  de  reconhecimento  e  igualdade  a  partir  da diferença tendem a ser enquadradas em um modelo legal autoritário,  normativo,  violento.  Podemos  reavaliá‐lo  de  forma  que,  ao  invés  de  homogeneizar ou alocar confortavelmente cada um em uma gaveta por  meio  das  diferenças  possamos  modificá‐lo  e  atualizá‐lo  de  forma  a  mudar  sua  histórica  conformação  aos  interesses  dos  grupos  dominantes.   Nas sábias palavras de Adriana Vianna:    “Falar de “direito à diferença” implica, em primeiro lugar, reconhecer  a possibilidade de heterogeneidade cultural e social como algo legítimo  em  universos  políticos  mais  amplos,  dotados  de  uma  suposta  “unidade”,  como  se  dá  nos  Estados‐nação  modernos.  Mais  do  que  apreender a diferença como condição inerente aos grupos sociais, isso  equivale  a  defendê‐la  como  algo  relevante  na  constituição  da  especificidade  de  indivíduos  e  coletividades  que  não  desejam  negá‐la  para  serem  reconhecidos  como  participantes  legítimos  de  unidades  abrangentes” (Vianna, 2012, p. 204‐205). 

    Percebe‐se como as demandas de reconhecimento e acolhimento  das diferenças questionam a compreensão ainda corrente do que seria a  nação brasileira ou mesmo a argentina. Esse construto cultural e legal, a  nação,  pode  ser  repensado  e  adquirir  uma  acepção  mais  inclusiva  e  democrática.  A  noção  de  diversidade  busca  amortecer  as  críticas  e  incorporar  de  forma  controlada  e/ou  subalterna  grupos  sociais  cuja  156  

história se confunde com uma de luta constante contra o aniquilamento  de suas singularidades. A perspectiva das diferenças tende a ser temida  como  trazendo  consigo  necessariamente  o  conflito  e  a  discórdia,  interpretação  dos  estabelecidos  sociais  que  deixa  de  reconhecer  as  alteridades  internas  à  sociedade  brasileira  ou  argentina  como  interlocutoras em nível de igualdade.   As  diferenças  podem  incitar  o  debate,  fazer  com  que  as  divergências  se  traduzam  em  diálogos  e  negociações.  Talvez  o  maior  desafio  de  nossas  democracias  seja  o  de  deixar  para  trás  os  temores  elitistas  sobre  o  povo  ou  as  demandas  subalternas  como  ameaças  à  ordem. Superar este medo dos grupos sociais injustamente mantidos à  margem  do  reconhecimento,  do  respeito  e  da  justiça  exige  modificar  a  histórica aversão de nossas elites políticas, intelectuais e econômicas às  divergências  ou  ao  conflito.  Em  um  contexto  plenamente  democrático  todos/as  –  e  especialmente  cada  um/a  –  tem  o  direito  de  divergir  ao  mesmo  tempo  que  demanda  seu  reconhecimento  como  parte  da  coletividade.   É nesse contexto em que o papel da formação dos advogados e  das  advogadas,  na  Argentina  e  no  Brasil,  cumpre  um  papel  central.  Concepções  jus‐naturalistas,  arcaicas,  positivistas  e  conservadoras  continuam  dominando  o  currículo  quando  se  tratam  de  profissões  jurídicas. Os estudantes são meros receptores passivos de discursos que  não  podem  ser  colocados  em  dúvida  tampouco  discutir,  são  formados  sem  ferramentas  críticas  e,  em  sua  maioria,  carecem  de  compromisso  social  e  ideal  de  justiça.  Desse  modo,  se  formam  operadores  jurídicos  cujo papel é reproduzir a ordem existente.   No  caso  argentino,  os/as  advogados/as  ativistas  têm  pouca  margem  para  produzir  mudanças  significativas  no  que  se  refere  ao  reconhecimento  de  direitos.  Nesse  mesmo  contexto,  aqueles/as  advogados/as  que  se  oponham  ao  avanço  dos  direitos  encontram  na  justiça um campo propício para tornar efetivas suas demandas. Cenário  similar se encontra no Brasil, de forma que em ambos os países o direito  e a mudança social parecem não se dar bem.   Uma modificação na esfera formativa do Direito seria uma bem‐ vinda  contribuição  para  o  aprofundamento  de  nossas  democracias.  A  transformação  poderia  começar  pela  incorporação  de  uma  perspectiva 

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educacional  dialógica,  o  incentivo  ao  debate  em  sala  de  aula  e  a  incorporação  de  fontes  históricas  e  sociológicas  que  tensionam,  mas  também  enriquecem,  o  aprendizado  legal  por  meio  do  incentivo  à  reflexão  e  a  contextualização  da  prática  profissional.  Dessa  maneira,  o  próprio  Direito  passaria  a  incorporar  as  diferenças  reconhecendo  seu  papel social não apenas de mantenedor da tradição ou do estabelecido,  mas também de veículo de transformação social.  A  prática  profissional  pode  adaptar‐se  às  demandas  atuais  por  maior  acesso  à  justiça,  reconhecimento  de  diferenças  historicamente  ignoradas  ou  negadas  pela  ordem  jurídica  herdada  de  nosso  passado  autoritário.  Em  suma,  o  Direto  pode  manter  seu  compromisso  com  a  ordem  sem  deixar  de  incorporar  as  demandas  que  apontam  para  a  construção  de  uma  sociedade  mais  justa,  a  qual  não  alcançará  seus  ideais de igualdade sem o apoio da esfera jurídica.           Bibliografia    AZEVEDO,  Celia  Maria  Marinho  de.  Onda  negra,  medo  branco:  o  negro  no  imaginário das elites do XIX. São Paulo, Paz e Terra, 1987.  BERNSTEIN,  Basil.  “Class,  codes  and  control”.  Londres.  Routledge  &  Keegan  Paul, 1977.   BONELLI,  Maria  da  Gloria.  Profissionalismo,  gênero  e  significados  da  diferença entre juízes e juízas estaduais e federais. In: Contemporânea – Revista  de  Sociologia  da  UFSCar.  São  Carlos,  Departamento  e  Programa  de  Pós‐ Graduação em Sociologia, pp. 103‐123, 2011.  BONELLI,  Maria  da  Gloria;  CUNHA,  Luciana  G.;  OLIVEIRA,  Fabiana  L.  De;  SILVEIRA,  M.  Natália  B.  da.  Profissionalização  por  gênero  em  escritórios  paulistas de advocacia In: Tempo Social‐ Revista de Sociologia da USP. São Paulo:  PPGS‐USP, v. 20, n.1, pp. 265‐290, 2008.   BOHMER,  Martín  F.  “Sobre  la  inexistencia  del  derecho  de  interés  público  en  Argentina”.  En  Revista  Jurídica  de  la  Universidad  de  Palermo.  Buenos  Aires,  1997.   BRÍGIDO,  Ana  María.  “Claves  teóricas  para  interpretar  el  proceso  de  socialización  profesional  de  los  futuros  abogados”.  En  La  socialización  de  los  estudiantes  de  abogacía.  Crónica  de  una  metamorfosis.  Brígido,  Ana  María  et  al.  Córdoba. Hispania Editorial, 2006a.  

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A construção de identidades homossexuais na advocacia paulista:  uma abordagem sociológica de profissionalismo e diferença     Dafne Araújo1    Maria da Gloria Bonelli2      1. Introdução    Este  texto  procura  mostrar  as  continuidades  e  as  mudanças  que  vêm ocorrendo na advocacia no que diz respeito à diversidade sexual3  no  exercício  profissional.  Introduzindo  novas  questões  para  reflexão  acerca  da  homossexualidade,  identidade  e  diferença,  visa  ampliar  a  perspectiva  binária  heterossexual  que  predomina  nos  estudos  sobre  gênero  nas  profissões  jurídicas,  centrada  numa  dimensão  relacional  restrita ao masculino e feminino. Complementando a investigação sobre  profissionalismo e diferença no mundo do Direito, este estudo focaliza  advogados e advogadas na cidade de São Paulo, que se identificam ou  não  como  homoafetivos  e  que  trabalham  com  a  problemática  da  diversidade, em especial na defesa de vítimas de discriminação sexual.  A  abertura  para  a  diversidade  dentro  das  carreiras  jurídicas  é  fruto de várias transformações que tiveram origem na década de 1990,  no  Brasil.  Até  essa  data,  a  advocacia  era  exercida  em  escritórios  de  pequeno e médio porte. Posteriormente, os escritórios foram crescendo  de  acordo  com  o  cenário  da  globalização  e  efervescência  econômica.  Essas  grandes  mudanças  no  mundo  jurídico  se  deram  principalmente  pela  privatização  das  grandes  empresas  públicas  naquele  contexto.  A  demanda  por  operadores(as)  de  direito  cresceu  e  houve  um  aumento                                                                 Dafne  Araújo  é  mestranda  do  Programa  de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  da  Universidade  Federal  de  São  Carlos  e  pesquisadora  do  grupo  Sociologia  das  Profissões, da UFSCar.   2  Maria  da  Gloria  Bonelli  é  professora  titular  do  Departamento  de  Sociologia  da  Universidade Federal  de  São  Carlos,  onde coordena  o  grupo  de  pesquisa  Sociologia  das Profissões, que conta com apoio do CNPq.   3  Mantivemos  o  uso  da  expressão  diversidade  sexual,  embora  trabalhemos  com  a  abordagem  da  diferença,  pela  opção  de  manter  a  forma  como  o  grupo  estudado  se  nomeia.   1

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significativo  na  oferta  de  cursos  superiores.  Como  consequência,  a  participação feminina na carreira se ampliou.4   Além da feminização das carreiras jurídicas, a visibilidade de gays  no  mercado  de  trabalho  também  é  fruto  de  transformações  culturais  e  comportamentais  que  foram  atribuídas  às  situações  de  trabalho  e,  ass  do  im, reduziram as oposições às mudanças na forma tradicional de se  exercer  a  profissão  no  Brasil.  Este  capítulo  discute  as  diferentes  dinâmicas  que  ocorrem  na  situação  de  trabalho  dos  advogados  que  assumem sua homossexualidade.    O  estudo  se  destinou  a  desenvolver  os  seguintes  aspectos:  a  investigação  a  respeito  das  mudanças  ocorridas  entre  operadores  e  operadoras  do  direito  sobre  a  diversidade  sexual  e  a  visibilidade  dos  homossexuais no mercado de trabalho jurídico; e como os entrevistados  equacionam  os  possíveis  conflitos  entre  a  visibilidade  homoafetiva  e  o  ideário da neutralidade profissional.  Para  compreender  melhor  essas  mudanças,  procurou‐se  captar  como  se  dá  a  inserção  de  advogados  e  advogadas  no  mercado  de  trabalho,  articulando‐a  com  as  abordagens  teóricas  referentes  a  gênero  que  fornecem  fundamentação  para  análise.  Essa  bibliografia  trata  as  diferenças  na  profissionalização  segundo  o  gênero  que  se  desloca  do  binarismo e do determinismo biológico. Dessa maneira, aponta como o  gênero é produto de uma construção social que fixa identidades a partir  de diferenças percebidas entre os sexos.  A pesquisa de campo ocorreu em dois momentos: inicialmente, a  equipe  do  projeto  Profissionalismo,  gênero  e  diferença  nas  carreiras  jurídicas  entrevistou  quatorze  advogados  atuantes  em  escritórios  e  sociedades de advogados da capital e do interior, abordando a questão  da  diferença  de  gênero  e  sexualidade  na  prática  jurídica.  Depois  focamos  exclusivamente  o  Grupo  de  Advogados  pela  Diversidade  Sexual  –  GADvS,  na  cidade  de  São  Paulo.  Para  compor  esta  parte  do  estudo,  realizamos  cinco  entrevistas,  sendo  três  com  advogados  gays  militantes  da  causa  LGBT  (lésbicas,  gays,  bissexuais  e  transexuais);  houve  também  o  acompanhamento  de  eventos  no  GADvS,  o  levantamento de notícias e artigos através de redes sociais e do site da                                                               4

 Bonelli, et. al., 2008. 

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Ordem  dos  Advogados  do  Brasil,  seccional  São  Paulo  (OAB  –  SP).  Procuramos  delinear  e  comparar  suas  trajetórias  profissionais,  compreendendo  as  formas  como  percebem  e  vivenciam  a  homossexualidade na profissão.     2. O profissionalismo e as mudanças na advocacia brasileira    Ao  pensar  profissões,  articulamos  a  abordagem  de  Freidson  (2001)  ‐  que  aponta  as  limitações  do  foco  nos  processos  de  profissionalização e direciona a análise para o profissionalismo ‐ com a  proposta  de  Evetts  (2011),  que  critica  a  tipologia  sugerida  por  esse  autor,  incorporando  a  ela  negociações  de  significados  que  os  próprios  profissionais realizam em torno de tal conceito.   Para  Freidson5,  o  profissionalismo  é  uma  das  formas  de  se  estabelecer relações no mundo do trabalho e concorre com outras duas  formas pela legitimação na sociedade: a de mercado e a burocrática. A  forma  de  organização  do  trabalho  pelo  profissionalismo  é  um  modelo  que  valoriza  o  saber  especializado  (o  saber  abstrato),  obtido  em  instituição  de  ensino  superior.  É  acompanhada  da  regulação  de  seus  membros  pelos  pares  através  do  credenciamento  e  do  controle  do  ingresso  no  mercado,  sendo  longa  a  permanência  na  atividade.  A  ideologia  que  sustenta  essa  terceira  lógica  é  a  da  especialização  discricionária para a prestação de serviços de qualidade, da autonomia  da expertise frente aos interesses específicos dos clientes, do Estado e do  mercado.  A  ênfase  na  neutralidade  do  profissionalismo  fundamenta  o  privilégio dessa autonomia e do monopólio.   Na  lógica  de  mercado,  o  treinamento  costuma  acontecer  no  próprio  ambiente  de  trabalho,  havendo  baixa  permanência  na  mesma  ocupação, já que o ingresso na atividade é aberto e a especialização é do  cotidiano.  A  ideologia  da  livre‐concorrência  prioriza  o  conhecimento  generalizado ao especializado, a livre escolha do consumidor em vez do  controle  do  mercado.  A  lógica  burocrática  por  sua  vez  estrutura‐se  a  partir  de  uma  relação  hierárquica  de  comando,  a  porta  de  entrada  é  controlada  pelo  setor  de  recursos  humanos,  sendo  médio  o  tempo  de                                                               5

 Freidson, 2001. 

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permanência  na  ocupação,  ascendendo‐se  no  interior  da  organização.  Ideologicamente,  ela  se  embasada  na  valorização  do  caráter  administrativo,  da  produtividade  da  especialização  mecânica  e  da  eficiência.  O  controle  do  ingresso  nas  atividades  exclusivas  da  profissão  são garantidas por jurisdições, que reservam esse mercado de trabalho  especializado aos habilitados, protegendo‐o da concorrência dos leigos.  Além  desse  fechamento,  a  construção  de  carreiras  controladas  pelos  pares, que avaliam a expertise daqueles que progridem nesse percurso,  é  a  forma  de  insular  a  profissão  em  relação  às  influências  políticas.  O  insulamento  das  carreiras  jurídicas  públicas  dá  a  dimensão  da  autonomia profissional e da independência das instituições da justiça. O  fechamento  estabelece  quem  pode  tentar  ingressar  na  carreira,  exigindo‐se requisitos para o recrutamento que antecedem a aprovação  nos  concursos,  como  possuir  a  formação  superior  em  Direito,  a  credencial da OAB, a experiência anterior na advocacia. O insulamento  é  a  garantia  dos  membros  que  ingressaram  na  carreira  de  que  os  critérios  de  promoção  serão  definidos  pelos  pares,  sem  ingerências  externas.  Instituições  públicas  se  organizam  principalmente  na  forma  burocrática  e  na  profissional.  O  avanço  desta  última  sobre  aquela  depende das conquistas de seus membros nas relações com o Estado.  Contemporaneamente, estudiosos das profissões têm questionado  a persistência das fronteiras entre o tipo ocupacional, o burocrático e o do  mercado,  com  o  surgimento  de  hibridismos  que  põe  em  xeque  essa  terceira  lógica.  Evetts6  segue  nessa  direção,  detendo‐se  na  análise  das  mudanças  que  vêm  ocorrendo  no  profissionalismo  devido  ao  trabalho  dos profissionais nas grandes empresas e corporações internacionais. Ela  identifica  duas  maneiras  de  se  conceber  o  profissionalismo:  como  valor  ocupacional  e  como  discurso.  Na  primeira  –  profissionalismo  ocupacional – o apelo a esse  valor é iniciativa do próprio  grupo, dando  ênfase  às  relações  entre  os  pares,  à  construção  de  uma  identificação  comum,  à  discricionariedade  e  a  confiança.  A  segunda  maneira  –  profissionalismo organizacional – é imposta de fora do grupo, vindo de 

                                                             6

 Evetts, 2011, p.407. 

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cima, principalmente dos chefes e patrões; esta prioriza o gerencialismo, a  burocracia, a padronização e o desempenho.   Para  a  autora,  o  profissionalismo  como  valor  ocupacional  tem  predominado  na  literatura  especializada,  sendo  visto  como  sistema  de  valores  normativo  e  como  ideologia.  O  primeiro  sentido  reflete  uma  visão  otimista  das  contribuições  do  profissionalismo  para  a  coesão  e  ordem  social.  O  segundo  sentido  é  crítico  desse  primeiro,  percebendo  negativamente  o  profissionalismo  como  ideologia  que  sustenta  o  fechamento  do  mercado  aos  não  credenciados  e  o  monopólio  do  controle do trabalho.    Evetts7  aponta  o  surgimento  mais  recente  de  uma  terceira  interpretação  do  profissionalismo  como  valor  ocupacional:  aquela  que  analisa  o  discurso  administrativo,  característico  do  profissionalismo  organizacional,  que  visa  impulsionar  a  racionalização  e  a  disciplina,  reorganizando  e  controlando  o  trabalho.  Tal  discurso  surge  fora  do  grupo,  geralmente  nas  organizações  privadas  e  no  Estado  descaracterizando o sentido da autonomia profissional e do controle do  trabalho  pelos  pares.  A  ênfase  recai  no  controle  dos  praticantes  pelos  gerentes  e  supervisores,  na  competitividade  e  no  individualismo,  em  substituição  às  relações  colegiadas  e  à  competição  jurisdicional  para  garantir  o  monopólio  da  atividade.  No  Estado,  tal  profissionalismo  adquire o sentido de eficiência administrativa e produtivismo.   Sobre esse apelo, Evetts considera que:     “é  necessário  tentar  compreender  de  que  forma  o  profissionalismo  como sistema normativo de valores e como ideologia agora está sendo  crescentemente usado nas modernas organizações, e outras instituições  e lugares de trabalho, como um mecanismo para facilitar e promover a  mudança ocupacional.”8   

O  modelo  híbrido  que  transpõe  fronteiras  foi  situado  por  Evetts  (2011)  como  externo ao grupo  profissional,  vindo  de  cima.  A  abordagem  da autora vincula os valores manifestos nos discursos do profissionalismo  aos interesses conflitantes da profissão, do Estado e do mercado.                                                                7 8

 Evetts, 2011, p.410.   Evetts, 2011, p.407. Tradução livre. 

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As  mudanças  que  vêm  ocorrendo  na  advocacia  brasileira  são  acompanhadas  da  passagem  do  predomínio  do  profissionalismo  como  valor  ocupacional  normativo,  quando  a  prática  jurídica  era  solo  ou  partilhada por colegas, para o crescimento do discurso do profissionalismo  organizacional, com a proximidade dos sócios das grandes sociedades de  advogados em relação a seus clientes corporativos.    A  advocacia  diversificou  suas  formas  de  atuação,  combinando  o  exercício  liberal  em  escritórios  de  pequeno  porte  atendendo  principalmente clientes individuais, com a expansão das médias e grandes  sociedades de advogados, que estratificaram a profissão. Os sócios dessas  firmas  contratam  advogados  associados  para  dar  conta  dos  serviços  jurídicos demandados principalmente pelos clientes empresariais.   Houve  também  o  aumento  expressivo  na  oferta  de  cursos  de  ensino superior de direito, com a ampliação do número de ingressantes  no mercado de trabalho. Em 2001, o Brasil tinha 380 cursos  de direito  e  em  2011  havia  saltado  para  1.210.  Em  julho  de  2013,  a  OAB  nacional  contava  com  773.908  advogados,  sendo  45.6%  de  mulheres.  A  maior  oferta dos cursos superiores contribuiu para mudar as formas de exercer  a  profissão  no  Brasil.  Além  de  representar  um  expressivo  aumento  da  participação  feminina  na  carreira,  observou‐se  a  estratificação  do  tamanho  dos  escritórios  e  da  posição  dos  advogados  neles,  seja  como  sócios  ou  associados.  O  crescimento  das  sociedades  de  advogados  que  lidavam  com  as  especializações  na  área  de  negócios  e  no  direito  empresarial foi outra mudança observada na prática jurídica, a partir das  grandes  privatizações  de  empresas  públicas,  no  final  dos  anos  1990.  A  globalização  econômica  também  foi  responsável  por  parte  dessas  mudanças, com a atuação direta dos Estados Unidos em transferências de  modelos de instituições e adaptação de cultura jurídica.9  Junto  com  a  clientela  corporativa  veio,  além  da  especialização  criteriosa,  a  demanda  por  trabalhos  de  caráter  rotineiro  e  repetitivo,  como  as  milhares  de  ações  de  consumidores  contra  grandes  empresas  de telefonia, bancos, entre outras.  Portanto,  a  organização  do  trabalho  jurídico  foi  perdendo  suas  características homogêneas como profissão: o predomínio da advocacia                                                               9

 Bonelli, et. al., 2008. 

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solo  ou  em  escritórios  pequenos  combinou‐se  com  as  sociedades  de  advogados  médias  e  grandes;  a  advocacia  generalista  foi  diversificada  pela expertise em áreas de elevada especialização e, pelo seu oposto , o  trabalho jurídico repetitivo.   Resultado  da  internacionalização  da  profissão,  o  modelo  de  sociedades  de  advogados  trouxe  consigo  o  intercâmbio  de  conhecimento  especializado  entre  países,  através  da  padronização  transnacional  de  serviços  jurídicos.  Para  que  isso  seja  possível,  é  necessário que o profissional domine línguas estrangeiras, em especial o  inglês,  além  ter  experiência  de  cursos  ou  estágios  no  exterior.  Um  dos  advogados  entrevistados  teve  a  oportunidade  de  fazer  um  curso  nos  Estados  Unidos  e  gerenciar  a  filial  de  um  escritório  paulista  em  Nova  York.  Na  mesma  sociedade  de  advogados  encontra‐se  a  elite  dos  profissionais  internacionalizados  e  os  associados  que  assumem  as  tarefas  desvalorizadas.  O  processo  de  estratificação  da  profissão  é  acompanhado  de  sua  generificação,  com  homens  predominando  nas  áreas  mais  especializadas  e  mulheres  concentradas  nos  trabalhos  jurídicos rotineiros.   A visibilidade do gênero na carreira pode, portanto, associar‐se à  estratificação  do  grupo  e  às  maiores  ou  menores  chances  de  sucesso  profissional. Por esta razão, conhecida nos escritórios, várias advogadas  atuam para que as marcas de gênero não venham para o primeiro plano  na prática profissional, procurando deixá‐las restrita ao âmbito privado.  Se  esse  padrão  é  conhecido  para  a  recepção  à  diferença  de  gênero  na  advocacia,  nos  perguntamos  neste  capítulo  como  a  homoafetividade  repercute  nas  carreiras  dos  advogados?  Ela  produz  o  tipo  de  estratificação  observada  para  as  mulheres?  Como  se  busca  dar  visibilidade ou apagar as marcas da sexualidade na advocacia?      3. Conceituando gênero e sexualidade     Scott  (1990)  tratou  o  gênero  como  categoria  analítica  e  desconstruiu  a  concepção  biologizada,  abordando  como  a  diferença  sexual é socialmente construída. A segregação no mercado de trabalho  é,  para  a  autora,  parte  do  processo  de  construção  binária  do  gênero  e  das relações de poder que engendram. 

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Sendo assim, gênero não é característica essencial fixa e imutável  do  ser.  As  diferenças  anatômicas  foram  essencializadas  em  contextos  históricos  e  culturais  específicos.  Segundo  Butler  (2003),  a  cultura  é  a  forma  de  distinguir  sexo  e  gênero.  A  autora  contrasta  sexo  como  diferença  biológica  entre  macho  e  fêmea,  e  gênero  como  construção  social,  cultural  e  psicológica.  A  partir  desse  pressuposto,  identidades  fixas  e  essencializadas  em  “homens”  e  “mulheres”  puderam  ser  discutidas.  Desse  modo,  Butler  concebe  o  gênero  como  gradiente  que  combina  masculino  e  feminino  com  heterossexualidade  e  homossexualidade, sem oposições entre eles. Segundo ela, o gênero que  o  corpo  expressa  é  resultado  de  atos  e  gestos  performáticos  que  fabricam identidades normalizadas, imitadas ou parodiadas do mito da  feminilidade e da masculinidade.   Segundo  Barbalho  (2008,  p.46)  “as  pessoas  tendem  a  pensar  de  maneira  heteronormativa,  de  forma  que  ao  pensar  nas  identidades  a  primeira  noção  de  classificação  é  binária,  ou  seja,  homem  ou  mulher,  masculino ou feminino.”.  Não só o gênero é culturalmente construído, mas o sexo também,  superando  o  binarismo  sexo‐natureza,  gênero‐cultura.  A  partir  dessa  perspectiva,  gênero  deixa  de  se  referir  ao  masculino  e  ao  feminino,  e  passa  a  apresentar  múltiplas  possibilidades  de  identificações  que  não  estão  essencializadas  em  formas  duais  de  diferença  sexual  e  de  gênero.  Scott  (1990)  criticou a  visão hegemônica de  que  a dominação masculina  se  justificava  por  diferenças  biológicas,  entre  homens  e  mulheres.  Scott  adota  uma  visão  foucaultiana  ao  encarar  que  o  poder  circula  em  uma  perspectiva  relacional,  possibilitando assim o acesso feminino ao poder,  mesmo que este seja desigual ao dos homens.  Para  Butler  (2003),  tanto  o  sexo  (que  se  refere  às  diferenças  biológicas),  quanto  o  gênero  (que  envolve  as  diferenças  culturais,  sociais,  e  psicológicas)  são  produzidos  culturalmente  e  historicamente.  De acordo com essa visão, o gênero deixa de se limitar ao masculino e  ao  feminino,  possibilitando  assim  diversas  identificações  que  não  seguem necessariamente o padrão dual de diferenciação sexual.  Essa  autora  ainda  afirma  que  o  gênero  carrega  consigo  as  relações  de  poder  que  produzem  o  efeito  de  um  sexo  pré‐discursivo,  este  que  é  construído  culturalmente.  Essas  relações  sociais  de  poder 

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desenvolvem‐se  em  contextos  específicos,  não  sendo  permanentes.  A  discriminação e a desigualdade entre os sexos e os gêneros resultam de  relações de dominação que podem ser mudadas.   O  preconceito  em  relação  à  diversidade  sexual  é  uma  dessas  relações de dominação. A percepção da homossexualidade no ambiente  de  trabalho  das  carreiras  jurídicas  desnuda  os  limites  da  neutralidade  da  expertise  e  do  mérito  nesta  dimensão.  A  ideologia  do  profissionalismo  carrega  consigo  o  apagamento  dos  processos  de  construção social das diferenças de gênero, que são realimentados pela  essencialização à medida que elas são usadas para reafirmar qualidades  profissionais femininas e masculinas.   A  visibilidade  da  diferença  sexual  está  engendrada  à  lógica  do  armário abordada por Segdwick (1990), que se impõe ao homossexual e  também  aos  heterossexuais  já  que  os  profissionais,  em  sua  maioria,  declaram não ter preconceito em relação à diferença sexual, mas ela tem  de  ser  mantida  sob  discrição,  para  não  interferir  na  carreira.  Para  Segdwick, todos, homens e mulheres, hetero ou homo‐orientados, estão  dispostos dentro dos mesmos processos sociais de regulação de nossas  vidas a partir da sexualidade.  Apesar  disso,  hoje  é  possível  perceber  maior  visibilidade  homoafetiva nas carreiras jurídicas. Isso decorre de mudanças culturais  que  se  processam  nas  grandes  firmas  de  advocacia  globalizadas  e  se  refletem  nas  sociedades  de  advogados  brasileiras.  Elas  se  empenham  em ter como modelo as sociedades norte‐americanas, visando ampliar a  circulação  internacional  e  as  parcerias  nessas  redes,  que  tratam  as  políticas de diversidade como diferencial positivo.   A  diversidade  sexual  vem  sendo  discutida  no  âmbito  dos  direitos  como  reconhecimento  à  diferença  nas  identidades  pessoais  e  sociais.  O  olhar  crítico  sobre  a  construção  heteronormativa  permite  perceber as barreiras à expressão livre da identificação homoafetiva e a  produção de desigualdades no exercício do desejo e da sexualidade.     4. A identidade homosexual na profissão do(a) advogado(a)    Em  22  de  março  de  2011  foi  criada,  no  âmbito  do  Conselho  Federal  da  OAB,  a  Comissão  da  Diversidade  Sexual  e  Combate  à 

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Homofobia,  destinada  a  discutir  e  coordenar  as  matérias,  projetos  e  ações da entidade nessa área. Representando uma importante mudança  no cenário jurídico nacional, o apoio da comunidade jurídica tornou‐se  importante  para  a  visibilidade  de  homossexuais  em  uma  profissão  já  consolidada.  As conquistas dos homossexuais que estão sendo concretizadas  nos tribunais, têm contado com o apoio da comunidade de advogados  que vem se mobilizando para defender os direitos homoafetivos. Em 28  de fevereiro de 2010, a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São  Paulo10 fechou parceria com o Escritório Lessi e Advogados Associados.  O acordo visa atender de forma gratuita os associados da APOLGBT e  demais  pessoas  que  procuram  pelos  serviços  da  associação.  Segundo  notícias  veiculadas  na  época,  a  iniciativa  partiu  do  presidente  do  escritório, Pedro Lessi, que representa vários casos de discriminação por  orientação  sexual.  Para  ele,  o  respeito  à  orientação  sexual  é  um  direito  fundamental  e  todo  indivíduo  deve  ter  esse  direito  garantido  nos  tribunais,  já  que  não  são  garantidos  pelo  Legislativo.  Desde  então,  desde  questões  contratuais  menores,  como  desrespeito  ao  uso  da  logomarca  da  APOLGBT,  até questões  de  repercussão  nacional,  como  ofensas públicas à população LGBT, podem ser objeto de representação  jurídica.  Inicialmente, a pesquisa teve a intenção de articular sexualidade  e  profissionalismo,  partindo  da  hipótese  de  que  operadores  e  operadoras do direito não revelassem a homossexualidade, mantendo‐a  na  intimidade  sob  a  lógica  oculta  do  armário,  com  discrição  para  não  afetar  de  forma  negativa  sua  carreira.  Priorizariam  assim  sua  identificação  profissional  perante  sua  identificação  sexual.  Entrevistamos  alguns  advogados  gays  que  são  bem  sucedidos  na  sua  atuação  em  sociedades  de  advogados,  e  observamos  a  confirmação  do  apagamento  da  visibilidade  da  sexualidade,  para  superar  barreiras  à                                                               10

A Associação  da  Parada  do  Orgulho  LGBT  de  São  Paulo é  uma  entidade  civil,  de  direito privado, sem fins lucrativos, fundada em 1º de fevereiro de 1999, tendo como  missão  a  garantia  da  cidadania  de  lésbicas,  gays,  bissexuais,  travestis  e  transexuais,  assim como a promoção da visibilidade e autoestima desta população e a educação da  sociedade  para  o  fim  da  discriminação,  preconceito  e  violência  homofóbica.  (Fonte:  http://www.paradasp.org.br/ associacao.php) 

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progressão.  No  entanto,  além  desse  tipo  de  conduta,  o  trabalho  de  campo  permitiu  localizar  outro  comportamento  entre  os  profissionais.  Foi  possível  encontrar  advogados  e  advogadas  que  assumissem  publicamente  sua  homossexualidade,  que  se  apresentam  como  figuras  públicas do Direito, e como militantes da causa homoafetiva na cidade  de São Paulo e em outras grandes cidades do país. A pesquisa de campo  permitiu tomar conhecimento de um grupo de profissionais do Direito  que,  além  de  reconhecer  publicamente  sua  identidade  homossexual,  luta  por  direitos  e  trabalha  com  causas  relacionadas  à  sexualidade  contra‐hegemônica.  Eles  também  trabalham  com  clientes  empresariais,  nas  sociedades  de  advogados,  nos  escritórios  que  lidam  com  outras  especialidades,  além  da  defesa  contra  a  discriminação  sexual.  Trata‐se  de  um  grupo  ativo  nas  causas  acerca  do  direito  homoafetivo  e  para  o  respeito de operadores e operadoras do direito homossexuais: o Grupo  de Advogados pela Diversidade Sexual.  Formado  por  operadores  do  Direito,  o  Grupo  de  Advogados  pela  Diversidade  Sexual  –  GADvS  é  uma  entidade  privada  que  tem  como objetivo principal garantir os direitos de cidadania da população  homossexual.  Além  de  advogados  e  advogadas,  o  grupo  conta  com  a  atuação  de  profissionais  de  diversas  áreas,  numa  perspectiva  multidisciplinar  na  luta  pelos  direitos  LGBTs.  Com  dois  anos  de  existência,  o  grupo  luta  em  prol  do  respeito  à  diversidade  sexual,  juntamente  com  a  atuação  no  judiciário,  e  é  referência  em  casos  de  sucesso. Seus membros se sentem preparados para dar suporte jurídico  e  orientação  a  qualquer  cidadão,  principalmente  os  de  orientação  homoafetiva.   Para eles, o desafio é declarar e tornar legítimo o direito de gays  ao  casamento  e  às  uniões  estáveis,  além  do  reconhecimento  que  a  homofobia  é  uma  conduta  criminosa,  assim  como  o  racismo.  O  grupo  destaca  a  premissa  básica  de  que  todos  são  iguais  perante  a  lei,  se  colocando  o  objetivo  de  reduzir  a  violência  moral  e  física  que  a  população  LGBT  vem  sofrendo.  Para  o  diretor  do  GADvS  (advogado,  gay,  militante  da  causa  LGBT),  o  avanço  dos  direitos  da  comunidade  gay não é um modismo, mas um processo histórico.  Apesar de alguns  projetos  de  leis  tramitarem  por  mais  de  uma  década  (como  o  caso  de 

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parceria  civil  e  criminalização  de  homofobia),  ainda  não  existem  leis  federais protetivas.  Os  valores  normativos  predominante  no  profissionalismo  enfatizam  a  neutralidade  da  expertise,  mas  a  agenda  da  diversidade  sexual  que  é  encampada  pelo  GADvS  dá  visibilidade  a  essa  diferença.   As  identificações  profissionais,  embora  coletivas  aos  advogados,  não  são fixas e vivenciadas da mesma forma pelos pares. As interseções com  as marcas das diferenças pluralizam esses processos identitários, podem  ganhar ou não visibilidade. As lutas simbólicas em torno desse ideário  profissional foram observadas nas entrevistas realizadas pela equipe da  pesquisa.  Encontramos  advogados  e  advogadas  que  foram  bastante  firmes em se apresentar  como pessoas não preconceituosas em relação  ao  profissional  gay,  mas  pouco  dispostas  a  aceitar  a  visibilidade  dessa  diferença, como na fala a seguir:     “O  [nome  do  advogado]  está  saindo  do  armário  agora,  ele  ainda  não  falou  para  nós,  isso  não  é  problema,  a  atitude  dele  tem  que  ser  diferente,  o  problema  dele  são  os  pais,  desde  a  contratação  eu  já  percebi. (...) Não; isso não é problema não, a atitude dele tem que ser  diferente,  desde  que  não  ofenda  ninguém,  ele  só  não  pode  é  chegar  aqui de Maria Chiquinha etc, etc, porque não condiz com o ambiente,  ele tem que se comportar de acordo com o ambiente. Se eu chego num  ambiente gls eu não posso ficar assim, né?(fez trejeitos com as mãos),  como  uma  pessoa  homossexual  chega  num  ambiente  ele  tem  que  respeitar  o  ambiente  onde  ele  está,  um  casal  que  vai  num  boteco  ele  não vai ficar se agarrando, se beijando, não vai ficar sentando no colo  do  outro  em  público,  isso  depende  da  postura  da  pessoa,  não  da  opção.”  (Joyce,  advogada  sócia,  escritório  familiar  no  interior,  46‐50  anos, divorciada, com filhos) 

    Alguns dos advogados gays entrevistados também reforçaram a  neutralidade  do  profissionalismo,  para  evitar  que  as  marcas  da  homoafetividade abalem o status conquistado na carreira. A passagem  abaixo  aborda  a  questão  da  “postura  profissional  neutra”,  na  visão  de  um deles.     “Eu acho o seguinte, a questão do trejeito, de ser afeminado ou não, eu  acho  que  isso  implica  numa  postura  de  confiança  que  eu  acho  que  o 

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senso  geral  da  sociedade  tem,  por  exemplo,  eu  acho  que  você  vai  se  sentir  mais  confortável  sendo  atendido  por  um  profissional  se  ele  mantém  uma  linha  reta,  não  é  pra  ser  o  machão,  grosseiro,  aquele  típico  macho,  entendeu,  homem,  e  também  não  é  pra  ser  uma  pessoa  que  é  homem  e  quer  ser  mulher  entendeu.  Eu  acho  que  isso  acaba  criando  um  problema  de,  talvez  confiabilidade  no  profissional,  a  pessoa acha meio estranho. Eu não tenho preconceito com isso, eu acho  que tanto faz, mas eu acho que em geral as pessoas têm essa percepção.  (...)  Eu  acho  que  pra  parar  com  questão  de  preconceito  eu  acho  que  tem  que  parar  de  participar  às  pessoas  se  é  gay,  se  é  lésbica,  se  é  isso  ou  aquele  outro.  Você  não  é  nada,  você  é  você,  uma  pessoa,  um  ser  humano que trabalha. Pronto, ponto final. ” (Jonas, advogado sócio de  renda, 26‐30 anos, solteiro, sem filhos) 

    O  apagamento  das  marcas  visíveis  da  diferença  quanto  à  sexualidade  realizada  por  esse  entrevistado  é  acompanhado  da  ênfase  na  identificação  com  a  profissão,  que  se  sobrepõe  ao  pertencimento  a  outra  comunidade,  como  a  homoafetiva.  O  profissionalismo  repõe  o  status  social  negado  às  pessoas  gays  na  sociedade  e  traz  recompensas  através do reconhecimento obtido pelo domínio da expertise.     Rumens  e  Kerfoot  (2009)  analisaram  homens  gays  no  trabalho  em organizações receptivas à inclusão. Eles sugerem que mesmo nesses  ambientes,  os  homens  gays  atuam  sobre  o  self  para  se  identificarem  como profissionais, vivendo empoderamento. Dessa forma, não deixam  de  ser  afetados  pelas  normas  que  tratam  a  sexualidade  e  o  profissionalismo como polos opostos.  Em  contraste  com  essa  forma  de  lidar  com  a  diferença  na  profissão,  temos  entre  os  profissionais  do  GADvS  aqueles  que  vivenciam a interseção entre a identificação profissional e homoafetiva  de forma pública. Nosso interesse neste aspecto é registrar as dinâmicas  nas situações de trabalho dos advogados que assumem abertamente sua  sexualidade  em  comparação  com  aqueles  que  não  o  fazem,  ou  que  entendem  que  a  sexualidade  é  assunto  da  intimidade,  restrito  ao  privado.    As lutas concorrenciais entre o apagamento da diferença, com a  política do armário e a visibilidade da identificação profissional e sexual 

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apontam oportunidades de mudanças nessas relações, ao se questionar  a  hegemonia  da  neutralidade.  Jovens  advogados  formados  em  2009  já  presenciavam em suas universidades maior abertura para a diversidade  sexual, seja na carreira, seja no preparo para casos e clientes. Segundo o  advogado João, a faculdade em que cursou direito sempre foi ativa na  defesa da não discriminação sexual.     ʺhavendo  inclusive  cadeiras  de  Psicologia  e  Sociologia  dentro  do  Direito, visando promover debates para que a comunidade aceitasse os  ʺgaysʺ.  Tive  até  mesmo  uma  professora  homossexual  não  assumida,  mas que levantava a bandeira. Notei receio com tal tema somente com  relação àqueles alunos mais velhos, de outra época. Os mais jovens têm  aceitado  a  diversidade  sexual  sem  problemasʺ.  (João,  advogado,  24  anos, solteiro, gay não assumido) 

  Advogados  do  GADvS  também  compartilham  da  opinião  e  afirmam  que  existe  hoje  a  possibilidade  de  assumir  e  afirmar  a  identidade gay já na faculdade. Para eles, a geração de advogados que  se  formou  na  década  de  90,  e  hoje  tem  entre  35  e  40  anos,  só  pode  assumir  sua  sexualidade  após  chegar  ao  topo  da  carreira.  Assim  aconteceu com Joaquim, que só “saiu do armário” após se tornar sócio  de um importante escritório de São Paulo.   Para o entrevistado Jorge, estudante de direito, existe a    “certeza  que  está  havendo  uma  abertura  para  mais  homossexuais  se  assumirem,  não  que  deixou  de  existir  a  discriminação,  porém  a  abertura para se falar no tema e se assumir atualmente está sendo mais  aceita, na faculdade de Direito existe muitos homossexuais assumidos,  na  minha  própria  faculdade  existe  uma  trans  que  está  no  3º  ano  da  faculdade, o fator formal na formação do Bacharel em Direito está bem  mais  informal,  tal  informalidade  possibilita  o  que  chamamos  de  diversidade ser mais perceptível e difundida, o que ajuda também com  a  extinção  de  estereótipos,  como  de  que  todo  homossexual  é  cabeleireiro.  Grupos  de  diversidade  sexual  estão  presentes em apenas  Universidades Públicas (pelo menos é até onde sei), não existe (ou não  conheço)  um  grupo  dentro  de  uma  faculdade  de  Direito  especificamente,  mais  sim  grupos  interdisciplinares”.  (Jorge,  20  anos,  estudante de direito, solteiro, gay não assumido) 

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Em contrapartida, João vê como algo negativo para a carreira de  um  advogado  caso  ele,  segundo  suas  palavras,  ‘levante  a  bandeira’  e  demonstre  a  sua  opção  sexual  para  a  sociedade.  Diz  não  ser  preconceituoso,  mas  não  vê  motivos  para  que  a  sexualidade  e  a  opção  sexual de cada um sejam declaradas e divulgadas, visto que não necessita  disso para exercer sua profissão, e acrescenta: ʺé algo que deve ser mais  fechado,  não  necessitando  de  publicização  até  mesmo  para  evitar  preconceitos.  Há  colegas  gays  que  não  divulgam  sua  opção  sexual,  e  apenas exercem suas profissões como se heterossexuais fossem.ʺ   No  que  se  refere  ao  ambiente  de  trabalho  e  a  relação  com  os  clientes, João acredita que     ʺA marca da sexualidade não implica na não escolha do advogado pelo  cliente,  entretanto,  desde  que  este  advogado  se  porte  como  um  advogado  e  não  como  um  “advogado  gay”.  Quero  dizer,  ele  não  precisa a todo instante demonstrar sua opção sexual e fazer questão de  que  ela  seja  exposta,  pois  neste  caso  enfrentará  preconceito  de  uma  sociedade  que  ainda  não  está  preparada  para  enfrentar  tal  tipo  de  situação.ʺ (João, advogado, 24 anos, solteiro, gay não assumido) 

  A  ideia  de  que  o  advogado,  independente  de  sua  sexualidade,  deve  se  portar  como  “macho”  está  presente  em  todas  as  falas  desses  entrevistados.  Tanto  para  eles  quanto  para  outros  advogados  e  outras  advogadas  entrevistados,  é  necessário  que  se  mantenha  uma  postura  profissional  para  não  sofrer  preconceitos  na  carreira.  Ao  questionar  como  seria  tal  postura,  as  respostas  eram  sempre  em  relação  ao  modo  de  se  vestir,  de  falar,  de  andar.  O  ideal  é  que  um  advogado  que  se  assuma gay não seja afeminado.   Para  Jorge,  o  advogado  homossexual  tem  grandes  chances  de  subir  na  carreira,  desde  que  seja  ou  pareça  homem  hetero,  branco,  casado  e  pai  de  família.  O  homossexual  terá  sua  ascensão  profissional  garantida  ao  não  se  mostrar  afeminado.  Além  disso,  afirma  que  ser  homem  no  mundo  jurídico  é  fácil:  “a  maior  facilidade  em  relação  homem versus mulher seria a de que no mundo jurídico, os homens são  predominantes,  mais  não  conheço  mulheres  que  tiveram  dificuldades  em subir na sua carreira profissional”. No entanto, existe a ideia de que  aqueles  que  se  assumem  gays  teriam  que  se  qualificar  mais  que  os  175  

outros. Assim como as mulheres, que acreditam estar em desvantagem  na  carreira  em  relação  aos  homens,  os  advogados  que  assumem  sua  opção  sexual  estudam  e  se  dedicam  mais  ao  trabalho  para  não  dar  brechas para a discriminação.     “Eu acho que a minha opção sexual sempre me fez dar mais duro, mais  duro  porque  eu  acho  que  o  medo  de  ser  discriminado  e  tudo  mais,  você  acaba  buscando  uma  proteção  para  seu  sucesso  profissional.  Se  você  tem  sucesso  profissional  é  mais  difícil  a  pessoa  sobrepujar  isso  com você” (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay  assumido). 

  O  que  nossa  pesquisa  indica  é  que  não  podemos  falar  de  profissionalismo  como  se  seu  sentido  fosse  único  e  coeso,  já  que  a  neutralidade  e  o  apagamento  das  diferenças  estão  sujeitos  a  questionamentos,  bem  como  a  reafirmações.  A  visibilidade  da  homoafetividade desses profissionais é algo que está sendo construído e  produzido  historicamente.  Tais  mudanças  estão  intimamente  relacionadas  à  fragmentação  da  ordem  tradicional  que  deu  origem  ao  modelo  das  profissões  no  século  XIX,  e  é  hoje  acompanhada  da  pluralização  dos  valores  na  sociedade  contemporânea,  como  também  dos embates em torno do ideário do profissionalismo.   Tal  como  ocorre  com  o  gênero,  os  papéis  sexuais  são  forjados  socialmente e, por esse motivo, criam‐se expectativas e comportamentos  apropriados para homens e mulheres. Quando tratamos do ambiente de  trabalho,  que  se  construiu  em  contraste  com  o  da  casa,  espera‐se  uma  conduta  que  demarque  fronteiras  difíceis  de  serem  mantidas,  como  as  do jogo das identidades no público e no privado. O profissionalismo foi  um  aliado  para  se  constituir  essas  fronteiras  fixas,  mas  elas  estão  sujeitas a deslocamentos e às disputas discursivas sobre seu significado.   O  depoimento  abaixo  revela  os  custos  do  cruzamento  das  fronteiras entre público e privado na visibilidade da homossexualidade.  As  diferenças  de  comportamento,  a  forma  de  se  vestir,  de  falar  produzem estereótipos que estigmatizam o profissional no ambiente de  trabalho com os pares e no relacionamento com clientes.   

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Eu  acho que talvez  pelo fato  dele  ser um  pouco  mais  afeminado, que  pode  ter  originado  esse  tipo  de  preconceito,  isso  é  uma  coisa  que  eu  realmente vejo nas pessoas, eu acho que hoje em dia a opção sexual é  muito menos tabu, mas ela é menos tabu com as pessoas que não tem  os trejeitos, marcas visíveis, o que é muito triste. E qual é o problema?  Eu  realmente  me  considero  uma  pessoa  totalmente  desprovida  de  preconceito. (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay  assumido) 

  Como  os  estereótipos  produzem  padrões  de  comportamento  homossexual  no  qual  o  homem  age  de  forma  mais  afeminada  e  a  mulher mais masculinizada, quando uma advogada é considerada mais  dura  e  firme  em  seu  trabalho,  rumores  acerca  da  sua  sexualidade  entram em pautas veladas nos corredores dos escritórios de advocacia.   A hipótese inicial a respeito da maior abertura na cidade de São  Paulo  foi  confirmada  pelos  entrevistados.  Quando  perguntados  se  há  diferença  entre  a  visibilidade  homoafetiva  em  São  Paulo  e  em  cidades  do interior ou outras regiões do país:    “Na  cidade  onde  moro,  que  é  São  Paulo,  a  abertura  profissional  para  profissionais  homossexuais  é  bem  aceita,  porém  em  cidades  menores  existe  um  tabu  muito  grande.”  (Jorge,  20  anos,  estudante  de  direito,  solteiro, gay não assumido)   “Por  estarmos  em  São  Paulo,  eu  acho  que  é  um  lugar  onde  você  tem  mais  contato  em  relação  a  isso,  as  pessoas  são  mais  abertas  pra  esse  tipo  de  coisa”  (Joaquim,  advogado,  38  anos,  sócio  de  um  escritório  e  gay assumido). 

  5. A diferença sexual e identificação homossexual no Brasil     Os  advogados  homossexuais  dizem  que  não  devem  se  portar  como  tal,  mas  existe  uma  única  maneira  de  representar  e  praticar  a  homossexualidade?  O  que  é  ser  um  homossexual  na  carreira?  O  que  isso representa? Quais são as implicações em assumir tal identidade na  profissão? Abordaremos agora essas questões.  Os  movimentos  homossexuais  surgiram  no  Brasil  no  final  da  década  de  1970.  De  acordo  com  Fry  e  Macrae  (1983),  em  um  pequeno  ensaio  sobre  a  história  da  construção  médico‐legal  da  177  

homossexualidade  e  as  suas  manifestações  no  Brasil,  os  movimentos  sexuais  surgiram  com  o  propósito  de  repensar  a  identidade  homossexual  e  combater  as  manifestações  do  preconceito.  Além  disso,  proporcionou  maior  visibilidade  da  homossexualidade  para  o  público  como  um  todo.  A  imprensa  passou  a  dedicar  mais  espaço  ao  assunto,  além  da  televisão  que,  apesar  de  representar  uma  identidade  sempre  caricata para o homossexual, tornou possível a visibilidade social desse  grupo de pessoas que antes viviam no anonimato e nos guetos sociais.   Tais  mudanças  criaram  condições  sociais  mais  favoráveis  para  que  profissionais  viessem  a  assumir  sua  homossexualidade  dentro  do  ambiente  de  trabalho.  Não  é  possível  dizer  que  a  homossexualidade  aumentou,  não  existem  dados  que  comprovem  isso,  mas  os  processos  de luta para a redução do estigma social garantiram maior visibilidade  aos homossexuais do que antes disso.   A  visibilidade  da  identidade  homoafetiva  entre  operadores  e  operadoras de direito se ampliou, e é possível verificar essas mudanças  no  cenário  atual  da  cidade  de  São  Paulo.  Importante  ressaltar  nessa  análise,  os  advogados  entrevistados  e  também  aqueles  com  os  quais  pudemos entrar em contato, apesar de ocuparem um lugar subalterno,  enquanto  homossexuais  são  parte  dos  segmentos  favorecidos  da  população, muitos deles em posições dominantes na hierarquia social.   Além  disso,  como  vimos  acima,  no  mundo  do  Direito,  a  ideologia predominante no profissionalismo é baseada na neutralidade  afetiva.  Dessa  maneira,  aqueles  que  se  enquadram  no  perfil  do  profissional sério, competente e que se adequam às construções sociais  de  feminino  e  masculino  tendem  a  prevalecer  diante  daqueles  que  fogem do padrão.     “Os que são suspeitos de não virem a se dedicar totalmente à carreira 

(cuidados com a família), ou aqueles que corporificam uma imagem de  si  percebida  como  a  antítese  do  neutro  (a  sexualidade  visível,  a  emotividade,  a  politização,  o  trajar  diferente  do  ‘terno‐terninho’)  perdem  a  pressuposição  de  sua  competência,  atestada  pelo  mérito  da  proveniência  do  diploma,  da  credencial  da  OAB  e  do  currículo.”  (Bonelli e Barbalho, 2008, p.286) 

 

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Como  os  profissionais  do  direito  lidam  então  com  a  identidade  profissional  e  a  identidade  homoafetiva?  Elas  entram  em  conflito?  Segundo Hall (2003), resultado de mudanças estruturais e institucionais,  o  sujeito  passa  a  ser  composto  de  várias  identidades,  sendo  elas  algumas  vezes  contraditórias  ou  não  resolvidas.  A  identidade  torna‐se  algo em contínua transformação, definida histórica e culturalmente, não  mais  biologicamente.  As  várias  identidades  não  unificadas  no  self  resultam em uma identificação constantemente deslocada.   A contemporaneidade apresenta múltiplas identidades culturais  com  as  quais  o  indivíduo  pode  se  identificar,  fazendo‐o  possuir  uma  multiplicidade  de  identidades  possíveis.  Hall  argumenta  que  a  modernidade  tardia  pode  ser  caracterizada  pela  diferença  que  produz  múltiplas posições de sujeitos, isto é, diferentes identidades.   Se antes dessa modernidade o que prevalecia eram as identidades  de  classe  e/ou  gênero,  agora  as  categorias  gênero,  sexualidade,  raça,  classe,  nacionalidade,  entre  outras,  que  podem  entrar  em  conflito,  constituem uma totalidade de identidades através das narrativas do self.  A  representação  torna‐se  elemento  importante  para  que  identidades  formadas e transformadas culturalmente possam se cruzar.  No  final  da  década  de  1990,  o  debate  mudou  de  direção  e  os  teóricos passaram a aludir suas análises à emergência de categorias que  se  referiam  à  multiplicidade  de  diferenciações  que  se  articulavam  ao  gênero. Tais categorias são chamadas de categorias de articulação e de  interseccionalidades. Os questionamentos passaram a ser realizados em  torno  do  deslocamento  nos  referenciais  teóricos  utilizados  e  de  abordagens desconstrutivistas.   Se  os  indivíduos  são  formados  por  diversas  noções  de  identidades,  é  necessário  mais  de  uma  categoria  para  compreendê‐lo  como  um  todo.  Interseccionalidades  e/ou  categorias  de  articulação  oferecem  ferramentas  analíticas  para  a  compreensão  e  articulação  das  múltiplas diferenças e desigualdades.     “É importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da  relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença,  em  sentido  amplo  para  dar  cabo  às  interações  entre  possíveis  diferenças presentes em contextos específicos.” (Piscitelli, 2008, p.266) 

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Ao  debater  as  categorias  de  articulação  e  intersseccionalidades,  Piscitelli critica as identidades fixas dentro das teorias de gênero. Para a  autora, o gênero deve ser problematizado e não mais visto sob modelos  teóricos totalizantes e universalizantes.   Piscitelli  (2008),  assim  como  Avtar  Brah  rejeita  o  conceito  de  patriarcado  como  algo  universal.  Brah  (2006)  abordou  o  debate  da  articulação  entre  gênero,  raça,  etnicidade  e  sexualidade,  no  feminismo  negro,  na  Inglaterra.  A  proposta  de  Brah  era  trabalhar  diferença  como  categoria  analítica,  pensando  na  diferença  como  experiência,  como  relação social, como subjetividade e como identidade.    “A autora afirma que há discursos que apresentam diferenças, como o  racismo, que traçam limites fixos. Entretanto, outras diferenças podem  ser  apresentadas  como  relacionais,  contingentes.  Como  a  diferença  nem  sempre  é  um  marcador  de  hierarquia  nem  de  opressão,  uma  pergunta  a  ser  constantemente  feita  é  se  a  diferença  remete  à  desigualdade,  opressão,  exploração.  Ou,  ao  contrário,  se  a  diferença  remete  a  igualitarismo,  diversidade,  ou  a  formas  democráticas  de  agência política”. (Piscitelli, 2008, p.269) 

  Essa  linha  de  pensamento  que  intersecciona  as  diferenciações,  pode  ser  usada  para  se  pensar  em  como  as  construções  de  diferença  e  distribuições de poder contribuem para o posicionamento desigual dos  sujeitos  no  âmbito  global.  Para  melhor  compreensão,  é  necessário  pensar como Scott (1998) em que os sujeitos são constituídos mediante a  experiência. Por esse motivo, a sua identidade vai estar relacionada com  o  lugar  e  tempo  em  que  se  situa.  Uma  mulher  brasileira,  branca,  estudante  e  de  classe  média  é  vista  de  maneira  diferente  dependendo  do país em que se situa. Na Europa pode ser vista como migrante, latina  e outras posições que não teria se estivesse em seu país de origem.  As identidades são construídas dentro dos discursos e emergem  em um jogo específico de poder e por isso são produtos da marcação da  diferença e da exclusão11 . O autor usa o termo “identificação” de Homi  Bhabha  por  ser  menos  ardiloso  que  o  de  identidade,  pois  ambos  são  conceitos não muito bem desenvolvidos da teoria social.                                                               11

 Hall, 2001. 

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A identificação é uma constante construção, um processo nunca  completado.  Ela  é  um  processo  de  articulação  e  suturação  porque  está  sujeita  a  historicização,  estando  constantemente  em  processo  de  mudança e transformação. Além disso, as identidades são constituídas  por meio da diferença e não fora dela. Avtar Brah já se questionava de  que  forma  era  possível  teorizar  o  vínculo  entre  a  realidade  social  e  a  realidade  psíquica,  para  assim  teorizar  o  sujeito  pós‐colonial  em  suas  diferentes identidades.  Stuart  Hall  (2000)  concentra‐se  em  uma  discussão  da  problemática da formação da identidade e da subjetividade, colocando‐ se a importante pergunta: por que acabamos preenchendo as posições‐ de‐sujeito para as quais somos convocados?  Como  já  dito  anteriormente,  Hall  salienta  que  está acontecendo  uma  desconstrução  das  visões  sobre  a  identidade  em  diversas  disciplinas, as quais põem em crise a noção de uma identidade integral,  originária  e  unificada.  Um  conceito‐chave  é  o  de  “agência”,  que  expressa  a  identificação  como  uma  construção,  como  um  processo  nunca  terminado.  A  identificação  é,  portanto,  um  processo  de  articulação. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco”, mas nunca um  ajuste  total. Mas  o  conceito  principal  é  o  de  identidade,  que  não  é,  em  Stuart  Hall,  uma  noção  essencialista,  mas  um  conceito  estratégico  e  posicional,  ou  seja,  as  identidades  jamais  são  unas.  Em  suma,  as  identidades  operam  através  da  exclusão,  da  construção  discursiva  de  uma  exterioridade  constitutiva  e  da  produção  de  sujeitos  marginalizados,  na  superfície  exilados  do  universo  simbólico  ou  do  representável.   A  compreensão  de  identidades  aos  olhos  de  autores  pós‐ coloniais  mostra  desde  a  produção  de  novos  sujeitos  devido  à  nova  ordem  global,  até  a  difusão  das  interseccionalidades  e  categorias  de  articulação para abordar as diferenças. O que se pode concluir é que as  identidades  foram  percebidas  como  um  conjunto  de  diferenças  que  caracterizam  os  indivíduos  e  os  identifica  dentro  das  práticas  discursivas  e  psicanalíticas.  As  identificações,  por  pertencerem  ao  imaginário, sempre são reafirmadas pelos próprios sujeitos que desejam  se inserir na dinâmica das estruturas de poder.    

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6. Conclusões    A  pesquisa  seguiu  um  percurso  que  mostrou  o  recorte  da  visibilidade  de  advogados  que  lidam  com  a  identidade  profissional  e  homoafetiva e acabam seguindo para a militância LGBT. O enfoque que  foi  dado  ao  GADvS  e  aos  advogados  militantes  serviu  de  base  para  argumentação  de  como  a  homoafetividade  irá  interferir  na  profissão,  dando outros rumos a partir da militância no movimento LGBT. A força  da  identificação  sexual  configura  o  caminho  profissional,  mostrando  uma  interseção  na  qual  se  busca  reconhecimento  para  o  valor  de  sua  expertise,  rejeitando  a  desqualificação  de  seu  saber  com  a  reconversão  de  seu  capital  jurídico  para  a  atuação  na  especialidade  dos  direitos  homoafetivos.    Quando  os  profissionais  não  fazem  essa  reconversão,  os  custos  dos  estigmas  são  pesados.  Os  pares  profissionais  produzem  as  invisibilidades  ao  partilharem  o  ideário  da  neutralidade  do  profissionalismo  como  fundamental  para  o  exercício  da  advocacia.  Os  profissionais  gays,  envolvidos  ou  não  em  lutas  contra  a  discriminação  sexual  apagam  as  marcas  dessa  diferença  ao  agirem  em  sintonia  com  esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida profissional e  a  intimidade,  mantendo  no  armário  sua  homossexualidade.  Nestes  casos,  a  intersecção  entre  identidades  fica  sujeita  ao  predomínio  do  status profissional perante o estigma da diferença sexual.  Por  fim,  a  análise  dessas  trajetórias  profissionais  permitiu  compreender  os  processos  de  mudança  que  estão  ocorrendo  na  advocacia  paulista  e  os  novos  arranjos  institucionais,  visando  a  diversidade sexual, desde as instâncias da OAB‐ SP, como a Comissão  da  Diversidade  Sexual  e  Combate  a  Homofobia  até  as  sociedades  de  advogados  que  vêem  na  diversidade  a  possibilidade  de  ampliar  suas  redes nas grandes firmas internacionais.              

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Bibliografia    BARBALHO, Rennê M. A feminização das carreiras jurídicas e seus reflexos no  profissionalismo. São Carlos, UFSCar , tese de doutorado, 2008.  BONELLI,  M.  G;  BARBALHO,  R.  M.  O  profissionalismo  e  a  construção  dos  gêneros na advocacia paulista. Sociedade e Cultura, v.11, n. 2, p. 275‐284, 2008.  BONELLI,  M.G.;  CUNHA,  L.G.;  OLIVEIRA,  F.L.e  SILVEIRA,  M.  N.  B.  “Profissionalização  por  gênero  em  escritórios  paulistas  de  advocacia”.  Tempo  Social v.20, n.1, p. 265‐290, 2008.  BRAH, A. Diferença, diversidade e diferenciação. Cadernos Pagu, São Paulo, v.  26, p. 329‐376, 2006.  BUTLER,  Judith.  Problemas  de  gênero  –  Feminismo  e  subversão  da  identidade.  RJ,  Civilização Brasileira, 2013.  EVETTS,  J.  A  new  professionalism?  Challenges  and  opportunities.  Current  Sociology, Londres,v. 59, n.4, p. 406‐422, 2011.  FREIDSON, E. Professionalism: the third logic. Cambridge: Polity Press, 2001.  FRY,  Peter;  MACRAE,  Edward.  O  que  é  homossexualidade.  São  Paulo,  Brasiliense, 1983.   HALL,  Stuart.  A  identidade  cultural  na  pós‐modernidade.  Tradução.  Tomás  Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.  HALL,  Stuart.  Quem  precisa  da  identidade? In:  SILVA,  Tomaz  Tadeu  (org.  e  trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.. Petrópolis: Vozes,  2000. p. 103‐133   PISCITELLI,  Adriana.  “Re‐criando  a  (categoria)  mulher?”  In:  Algranti,  Leila  Mezan (org.) A prática feminista e o conceito de gênero. Coleção Textos Didáticos  n. 48, 2002, Campinas, Unicamp, pp.7‐42.   PISCITELLI,  Adriana.  Interseccionalidades,  categorias  de  articulação  e  experiências  de  migrantes  brasileiras.  Sociedade  e  cultura,  Vol.  11,  Núm.  2,  jul‐ dez, pp. 263‐274, 2008.   RUMEENS,  N.;  KERFOOT,  D.  Gay  men  at  work:  (Re)constructing  the  self  as  professional. Human Relations, v. 62, p. 763‐786, 2009.  SCOTT,  Joan.  A  Invisibilidade  da  experiência.  In:  Projeto  História.  São  Paulo,  EDUC, n. 16, fev. 1998.  SEDGWICK, E. K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, Campinas, n.  28, p.19‐54, 2007. 

 

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As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e Brasil    Camila de Pieri Benedito1  Maria Eugenia Gastiazoro2      1. Introdução    A  proposta  deste  capítulo  é  a  análise  comparativa  sobre  as  diferentes  formas  de  inserção  profissional,  como  também  sobre  percepções  de  gênero,  no  judiciário  argentino  (Córdoba)  e  brasileiro  (estado  de  São  Paulo).  Comparam‐se  dados  qualitativos  de  entrevistas  realizadas com magistradas para discutir questões teóricas sobre gênero  e profissão jurídica.  Como  reconstitui  a  pesquisadora  Margareth  Rago  (2001),  a  exclusão  das  mulheres  por  um  largo  período  das  funções  públicas  na  política,  nas  ciências  e  na  filosofia,  são  consequências  de  um  contexto  histórico  e  social  que  se  refletiu  nas  ciências  –  como  a  medicina  –  que  retratavam  a  mulher  como  diferente  dos  homens,  sendo  estas  consideradas inferiores intelectualmente, fisicamente e moralmente.   A  constituição  do  direito  e  de  suas  instituições  entrelaçou‐se  com  este  contexto  tornando  sua  presença,  em  relação  a  dos  homens,  inferior  quantitativamente.  Em  suas  origens,  o  judiciário  brasileiro  e  argentino  foi  composto  unicamente  por  homens  brancos  e  da  elite  política (Coelho, 1999; Kohen, 2008) assim como o corpo estudantil das  universidades  de  direito.  As  primeiras  mulheres  advogadas  também  demoraram a surgir (Argentina: Bergoglio, 2007, Sánchez, 2005, Kohen,  2005,  Bergallo,  2005,  Gastiazoro,  2008;  Brasil:  Junqueira,  2007,  Bonelli,  2012).  Além  das  lutas  feministas  que  impactam  sobre  o  papel  da  mulher  em  nossa  sociedade,  auxiliando  seu  maior  ingresso  em  cursos                                                                 Mestre  em  Sociologia.  Programa  de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  Universidade  Federal de São Carlos. Pesquisadora do grupo Sociologia das Profissões, UFSCar.  2  María  Eugenia  Gastiazoro:  Mestre  em  Sociologia  (Centro  de  Estudos  Avançados,  UNC) e Advogada (Universidad Nacional de Córdoba). Auxiliar Docente na Cátedra  Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da UNC.   1

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universitários  e  na  vida  pública,  outros  movimentos  ocorrem  tanto  no  Brasil  como  na  Argentina  refletindo  na  feminização  das  carreiras  jurídicas:  a  organização  empresarial  dos  escritórios  jurídicos  intensificou‐se  no  contexto  da  internacionalização  da  economia  nos  anos  90.  Ambos  os  países  reformaram  seus  sistemas  judiciários  no  sentido  de  modernizar  e  racionalizar  o  seu  funcionamento,  muitas  vezes  sob  a  direção  de  organismos  internacionais.  Por  sua  vez  os  processos  de  democratização  da  educação  trouxeram  um  aumento  do  número  de  profissionais  do  direito,  sendo  destacado  o  ingresso  qualitativo de mulheres na profissão (Bergoglio, 2007; Junqueira, 1998).  Na  Argentina,  a  tendência  à  organização  empresarial  do  trabalho  dos  advogados  significou  um  aumento  no  tamanho  dos  escritórios,  bem  como  um  aprofundamento  da  divisão  do  trabalho  jurídico  e  um  aumento  da  especialização.  O  surgimento  de  grandes  empresas jurídicas – escritórios com mais de cinquenta advogados – ao  lado  dos  pequenos  e  médios  escritórios  de  advocacia,  expressa  claramente estas transformações (Bergoglio, 2005).  No  caso  do  Brasil,  Junqueira  (1999,  1998)  analisa  este  processo  iniciado  pelo  contexto  de  privatizações  do  governo  de  Fernando  Henrique  Cardoso  e  se  estende  sobre  o  maior  ingresso  de  mulheres.  Sobre  as  diferenças  entre  advogados  e  advogadas,  a  autora  retoma  o  conceito  de  glass  ceiling3  –  ou  teto  de  vidro  –  que  corresponde  a  uma  barreira  invisível  que  impede  que  homens  e  mulheres  ocupem  com  a  mesma facilidade os espaços de maior prestígio, pois para que possam  alcançar estes postos precisam se esforçar mais que os homens que são  colocados  nas  posições  mais  prestigiadas  enquanto  elas  permanecem  nos trabalhos burocráticos e de menores privilégios.  Na  Argentina,  a  reforma  da  administração  judiciária  e  sua  modernização  implicaram  uma  série  de  mudanças  que  ampliaram  a  oferta  de  trabalho  no  setor  público.  Embora  a  feminização  do  poder  judiciário não seja um processo recente, a possibilidade que existe hoje  de  prestar  concursos  abertos  influi  na  crescente  inserção  de  mulheres  neste  campo  de  trabalho.  Entretanto,  vários  estudos  mostram  que  elas                                                               3

  Junqueira  utiliza‐se  do  conceito  de  glass  ceiling  cunhado  por  Margareth  Thornton  no  texto Dissonance and Distrust: Women in the Legal Profession (1996). 

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estão  sub‐representadas  nos  postos  de  maior  hierarquia,  ao  passo  que  são  sobre‐representadas  em  posições  de  menor  poder  e  decisão  (Mackinson  e  Goldstein,  1988;  Gastron,  1991;  Bergallo,  2005;  Kohen,  2008;  Gastiazoro,  2010).  De  modo  semelhante,  no  Brasil  a  participação  feminina  nas  carreiras  jurídicas  públicas  se  intensificou  a  partir  do  momento  em  que  as  provas  objetivas  passaram  a  manter  a  identidade  de  candidatos  e  candidatas  anônima  (Bonelli,  2011)  apesar  de  haver  ainda o peso do gênero durante a parte subjetiva, de entrevistas.  Estas variáveis, brevemente elucidadas, ilustram como a questão  da  equidade  na  participação  feminina  e  masculina  nas  carreiras  jurídicas  não  pode  ser  considerada  somente  a  partir  da  questão  temporal. Neste artigo, são resgatadas as perspectivas de mulheres que  trabalham no poder judiciário de Córdoba e também de juízas estaduais  e federais paulistas no Brasil. A  ideia é comparar como operadoras do  direito  no  Brasil  e  na  Argentina  têm  observado  a  questão  da  participação  das  mulheres  no  direito  para  então  discutirmos  questões  teóricas sobre diferença de gênero e carreiras jurídicas.  Na  próxima  seção  do  artigo  serão  destacadas  as  bases  teórico‐ metodológicas  das  duas  análises  para  que  seja  possível  realizar  a  explanação mais detalhada das pesquisas nos dois países. No trecho A  inserção das mulheres no poder judicial em Cordoba, será posto em destaque  a pesquisa de Gastiazoro enquanto na seção A percepção de gênero entre  juízas  estaduais  e  juízas  federais  no  interior  do  estado  de  São  Paulo  será  exposta a de Benedito no Brasil.    2. Aspectos teóricos e metodológicos da investigação    A  investigação  na  Argentina  foi  realizada  sobre  o  Poder  Judiciário  da  Província  de  Córdoba  e  a  Justiça  Federal  de  Córdoba.  Depois da análise de dados quantitativos que dão conta de processos de  segregação  vertical  e  horizontal  nos  poderes  judiciários  considerados,  foram  feitas  entrevistas  com  mulheres  que  lá  trabalham  para  compreender as desigualdades de gênero. Neste presente artigo foram  analisadas  entrevistas  tomadas  a  mulheres  juízas  de  diferentes  níveis,  ademais do caso de uma secretária da Justiça Federal. 

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Embora se venham produzindo transformações tanto no mundo  do  trabalho  como  na  vida,  a  divisão  sexual  do  trabalho  ainda  é  uma  estrutura que afeta as atividades das mulheres, e a gestão de seu tempo,  tanto no campo do privado como do público, elemento cuja repercussão  ultrapassa aquilo que elas são capazes de ʺnegociarʺ ou ʺrenegociarʺ na  esfera  privada.  Ademais,  persiste  nos  agentes  um  olhar  que  percebe  e  valoriza as diferenças de gênero dentro de uma visão binária que incide  de  maneira  negativa  sobre  as  próprias  mulheres.  Essa  situação  se  reproduz através da violência simbólica presente nas relações sociais, o  que impõe uma construção social arbitrária do biológico, e em especial  do  corpo  (Bourdieu,  2005).  Neste  sentido,  as  desigualdades  de  gênero  dentro  da  profissão  jurídica  se  sustentam  em  arbitrariedades  culturais  que se evidenciam como naturais.  Entre  os  modelos  teóricos  explicativos  das  desigualdades  de  gênero  apresentados  por  Hull  e  Nelson  (2000),  aquele  das  escolhas  dos  atores  postula  que  são  as  próprias  mulheres  que  incidem  na  configuração  das  desigualdades  de  gênero.  A  partir  desta  perspectiva,  argumenta‐se  –  segundo  a  teoria  do  capital  humano  de  Gary  Becker  (1985)  –  que  as  diferenças  de  gênero  são  consequência  dos  investimentos individuais em educação, mas também em experiência e  treinamento  profissional  que  homens  e  mulheres  investem  em  si.  Enquanto  as  mulheres  fazem  escolhas  que  privilegiam  as  responsabilidades  familiares  contra  o  próprio  crescimento  na  carreira  profissional,  os  homens  concentram  sua  atenção  em  sua  formação  e  especialização  profissional.  Esta  explicação  resulta  criticável  porque  coloca o foco no individual sem levar em conta as barreiras estruturais,  a  discriminação  e  orientação  institucional  de  gênero.  Investigações  sobre  o  tema  observaram  que,  por  mais  que  as  mulheres  tenham  a  mesma  formação  e  experiência  de  trabalho  que  os  homens,  tais  características  não  são  efetivamente  valorizadas  da  mesma  forma  quando se trata de obter promoções (Fiona e Hagan, 1999; Rhode, 2003).  Além  disso,  as  pautas  de  trabalho  nas  empresas  jurídicas,  como  a  extensa jornada de trabalho e a consequente sobreposição crescente da  vida  com  o  trabalho  são  barreiras  que  potencializam  as  desigualdades  em  detrimento  das  mulheres,  sustentadas  pela  divisão  sexual  do  trabalho (Bergoglio, 2007a). Nesse sentido: 

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“... os níveis concretos de autonomia e autodeterminação efetivamente  alcançados  pelas  pessoas  não  depende  apenas  de  suas  aspirações  e  esforços  pessoais,  mas  também  do  gênero,  da  idade,  etnia  e  setor  socioeconômico  em  que  eles  estão  situados...  a  individualização  está  sempre  inscrita  em  um  campo  de  lutas...  que  determinarão  quais  sujeitos  efetivamente  possuem  autonomia”.  (Stecher  Godoy  e  Diaz,  2005:94) 

  A  teoria  de  Bourdieu  (2005:105)  permite  adentrarmos  na  ʺ(re)construção  social,  sempre  reproduzida,  dos  princípios  de  visão  e  divisão  geradores  dos  gênerosʺ,  que  ocorre  dentro  das  estruturas  institucionais que, por sua vez, são sustentadas por meio das estratégias  que  os  agentes  colocam  em  marcha.  A  lógica  do  modelo  da  divisão  entre o masculino e o feminino se instaura e reinstaura por meio de um  trabalho constante de diferenciação a que os agentes não deixam de ser  submetidos  e  que  os  leva  a  distinguir‐se  por  meio  de  processos  de  masculinização ou feminização.  É certo que:    “as mudanças provadas pela globalização enfraqueceram os costumes  e  o  senso  comum  tradicionais:  o  paradigma  de  gênero  mudou,  já  não  se  baseia  mais  no  modelo  capitalista  anterior  do  homem  provedor  e  das mulheres no espaço doméstico, alcançando também a recuperação  de uma perspectiva mais complexa de gênero, superando a perspectiva  reducionista  que  o  coloca  como  oposição  binária  entre  mulheres  e  homens.  No  entanto,  estes  avanços  deixaram  basicamente  intocada  a  divisão  sexual  do  trabalho  como  forma  organizativa  da  sociedade,  tornando muito mais opressora suas múltiplas jornadas e convertendo  o  tempo  –  sua  escassez  –  em  um  lugar  de  sujeiçãoʺ  (Manifesto  dos  Direitos Sexuais e Reprodutivos, 2006:8). 

  Sendo, então, a solução culturalmente institucionalizada na vida  cotidiana que:   

“as  estratégias  de  conciliação  do  trabalho,  do  doméstico‐familiar  e  do  pessoal  são  uma  questão  de  caráter  privado,  sendo  as  mulheres  os  agentes que protagonizam estas estratégias privadasʺ (Missa e Unceta,  2008). 

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Neste  sentido,  as  relações  estabelecidas  entre  os  espaços  e  tempos  do  produtivo  e  reprodutivo,  do  privado  e  do  público,  do  familiar e do trabalho são aqui fundamentais.   No  caso  do  trabalho  de  Benedito,  foram  selecionadas  para  a  análise  duas  carreiras  jurídicas  públicas  brasileiras:  a  magistratura  estadual  e  a  magistratura  federal  paulistas,  analisando  desta  forma  a  presença das mulheres no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e no  Tribunal  Regional  Federal  da  3ª  Região  (TRF3).  A  pesquisa  e  a  análise  dividem‐se  em  duas  partes:  a  primeira,  quantitativa,  relaciona  o  conceito de profissionalismo com a maior ou menor presença feminina  nestas carreiras como também a abertura mais ou menos flexível para a  presença  destas  nas  instituições.  A  segunda  parte,  qualitativa,  é  a  análise  dos  discursos  de  juízas  federais  e  estaduais  de  onde  são  resgatadas suas percepções sobre a presença feminina nas instituições.  O  conceito  chave  na  análise  é  o  profissionalismo,  tanto  em  seu  aspecto  institucional  pelas  contribuições  de  Freidson  (1996)  como  o  definido  em  forma  de  discurso  a  partir  de  Evetts  (2003).  Freidson  constrói as variáveis do profissionalismo como um tipo ideal4, segundo  o  autor  o  trabalho  organizado  pela  lógica  do  profissionalismo  se  distingue  de  outras  formas  de  trabalho5  em  três  pontos  essenciais:  em  primeiro lugar diferencia‐se do trabalho realizado pelas ocupações que  são  uma  especialização  mecânica,  sendo  então  uma  especialização  criteriosa,  ou  seja,  que  demanda  um  estudo  especializado  e  aprofundado  realizado  na  universidade.  Este  saber  é  abstrato,  característica  que  compõe  o  segundo  elemento  do  profissionalismo  e                                                                 O  tipo  ideal  de  Freidson  é  distinto  daquele  concebido  por  Weber.  Neste  caso,  o  tipo  ideal  se  constrói  em  um  conceito  mutável  a  partir  das  diferentes  variáveis  com  as  quais se encontra como organização estatal e condições históricas e geográficas.  5  Freidson  coloca  que  o  profissionalismo  concorre  com  outras  duas  formas  de  organização  do  trabalho  em  nossa  sociedade:  a  lógica  de  mercado  e  a  lógica  burocrática.  A  lógica  de  mercado  se  contrapõe  ao  profissionalismo  ao  criticar  seu  caráter  monopolista  em  relação  ao  mercado  de  trabalho  e  o  credencialismo  ‐  obrigatoriedade de diploma. Desta forma, nesta lógica o treinamento dos ingressantes  costuma acontecer no próprio ambiente de trabalho e seus membros são transitórios.  Já a lógica burocrática compreende um Estado controlador e hierárquico, sendo uma  organização ideologicamente embasada pela valorização do caráter administrativo e  de eficiência.  4

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funciona como um mecanismo de reserva de mercado e construção de  credenciais  –  os  diplomas,  terceiro  elemento  –  que  permitem  somente  aos iniciados o ingresso nos grupos profissionais.  As  carreiras  jurídicas  podem  ser  consideradas  profissões  por  serem  concebidas  nestes  moldes.  Somente  indivíduos  com  o  título  de  bacharel  em  direito  podem  fazer  parte  destas  instituições  que  ainda  demandam  processos  de  seleção  individuais,  ou  seja,  provas  e  concursos  especiais  para  que  os(as)  bacharéis  possam  se  tornar  advogados(as),  juízes(as),  promotores(as)  de  justiça,  dentre  outros  tantos  profissionais  do mundo  jurídico.  A  história  de  cada  uma  destas  carreiras e a forma como constituíram sua autonomia e profissionalismo  –  como  descrito  nos  moldes  de  Freidson  –  variam  entre  si,  existindo  carreiras mais e outras menos consolidadas6.  A hipótese, que é inclusive confirmada pelos dados, coloca que  as carreiras mais antigas e prestigiadas são também as que possuem um  menor  número  de  mulheres  e  menor  flexibilidade  para  o  crescimento  quantitativo  de  seu  ingresso  como  também  sua  presença  nos  cargos  mais altos. Em dados de 2010 (Benedito, 2011) na primeira instância da  magistratura federal havia 37,01% de mulheres, número que sobe para  46,15% na segunda instância. No caso do TJSP em primeira instância o  número  é  próximo  do  TRF  com  36,70%  mulheres,  mas  cai  dramaticamente para 3,98% na segunda instância.  Como  colocado  em  Bonelli  (2011),  o  TJSP  é  uma  das  mais  prestigiadas  instituições  jurídicas  do  país  e  que  mais  cedo  estabeleceu  sua  autonomia  e  espaço  no  mundo  do  direito.  Com  uma  composição  inicial  estritamente  masculina,  branca  e  elitizada,  estes  patamares  permanecem  ainda  hoje  na  carreira  com  uma  criteriosa  seleção  de                                                               6

  A  legitimação  das  carreiras  frente  a  sociedade  também  se  compõe  por  um  processo  mais  complexo  e  em  constante  transformação  que  ocorre  desde  o  surgimento  das  carreiras aos dias atuais, havendo um constante diálogo entre as instituições e entre as  instituições  e  a  sociedade.  A  definição  de  Andrew  Abbott  (apud  Rodrigues,  1997)  sobre  o  profissionalismo  o  descreve  como  o  equilíbrio  de  um  sistema  sempre  dinâmico  que  absorve  e  regula  transformações  internas  e  externas.  As  profissões  detém o monopólio de um serviço prestado (por exemplo a medicina pelo cuidado da  saúde humana) que Abbott descreve como jurisdição, disputas entre as profissões pelo  monopólio  de  áreas  de  conhecimento  e  atuação.  Estas  disputas  ocorrem  simultaneamente de forma intra e interprofissional (Rodrigues, 1997). 

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membros.  Sua  capacidade  de  definição  dos  patamares  de  seleção  e  promoção explicam a fraca presença feminina, em especial na segunda  instância.  Já  no  caso  da  magistratura  federal,  um  processo  histórico  distinto com o impacto do executivo sobre ela – a extinguindo durante o  governo Vargas, ressurgindo apenas durante a ditadura militar –, pelas  novas  atribuições  e  transformações  a  partir  da  Constituição  de  1988  e  um processo de seleção para a segunda instância não autônomo que se  realiza conjuntamente ao executivo, transformam sua composição:   

“A  maior  feminização  na  segunda  instância  da  Justiça  Federal  tem  então a ver com a sua menor autonomia de promoções e de controle de  seus membros, resultado tanto de sua dependência do executivo para  as  promoções  como  pela  sua  tardia  consolidação  como  profissão.  Assim,  foi  mais  fácil  a  entrada  da  mulher  na  segunda  instância  da  carreira pelo fato de a carreira ter se iniciado em um momento que as  mulheres  estavam  começando  a  aumentar  de  número  nos  cursos  de  graduação  e  intensificando  sua  entrada  no  mercado  de  trabalho”.  (Benedito, 2011, p.55).   

Além  do  âmbito  quantitativo  da  feminização  das  carreiras  jurídicas  é  possível,  a  partir  da  construção  teórica  de  Julia  Evetts,  aprofundar  a  análise  sobre  as  construções  subjetivas  das  mulheres  no  TJSP  e  na  Magistratura  Federal.  Para  Evetts  o  profissionalismo  se  constitui  e  se  legitima  frente  a  sociedade  como  um  discurso  de  competência  e  altruísmo,  delimitando  seu  espaço  como  detentor  do  monopólio  daquele  saber  e  do  serviço  prestado.  Analisando  o  uso  do  termo do profissionalismo no âmbito privado, a autora percebeu como  este tem sido utilizado como disciplina7, definindo e moldando perfis e  corpos desejáveis dentro das instituições.  Sob a perspectiva foucaultiana, os corpos podem ser entendidos  como resultados de um processo histórico e dinâmico que incide sobre 

                                                             7

 “O uso do discurso do profissionalismo em uma grande empresa privada de serviços,  pela  gerência,  serve  para  orientar  identidades  de  trabalho,  condutas  e  práticas  ‘apropriadas’” (Evetts, 2006, p. 525). 

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eles um efeito de poder8. Conjuntamente aos discursos do gênero, pode  se considerar que as construções identitárias das magistradas articulam  os discursos do profissionalismo com os de gênero que é entendido aqui  a partir das contribuições de Judith Butler que foge de uma análise que  parte do sexo natural onde se impõe uma história de gênero masculina  e feminina e passa a compreendê‐lo como uma identidade construída e  performática  em  que  “a  platéia  social  mundana,  incluindo  os  próprios  atores,  passa  a  acreditar,  exercendo‐a  sob  a  forma  de  uma  crença”  (Butler, 2003, p. 200).  O  gênero  e  o  profissionalismo  se  encontram  na  construção  de  uma  corporalidade  adequada  ao  mundo  jurídico.  A  ideia  é  de  que  sendo profissões constituídas a partir do masculino, existe um processo  de negociação da diferença que ora busca uma essencialização positiva  de  atributos  naturalizados  como  femininos  ora  os  invisibiliza  e,  dessa  forma,  as  posturas  reservadas  e  as  roupas  despidas  de  qualquer  conotação  sexualizada  demonstram  um  processo  de  invisibilização  da  diferença  enquanto  que  a  relevância  dada  às  qualidades  femininas  e  o  ganho  das  carreiras  jurídicas  com  elas  realiza  uma  essencialização  positiva.     3. A inserção das mulheres no Poder Judiciário em Córdoba.    3.1 O tratamento diferenciado    A profissão jurídica foi um campo masculino até princípios do  século  XX.  Apesar  das  dificuldades,  a  presença  das  mulheres  nesta  profissão foi aumentando ao longo do século, sendo hoje significativa a  percentagem  de  mulheres  tanto  ingressando  na  carreira  como  no  exercício profissional (Kohen, 2005; Bergoglio, 2005).                                                               8

 A analítica do poder é um recurso teórico empenhado por Foucault que se distingue  daquela denominada pelo autor como teoria do poder na qual este é proposto como  soberano  e  fonte  da  dominação.  Na  analítica  do  poder,  não  sendo  concebido  como  algo  que  possui  dono  ou  que  pode  ser  repassado,  que  possui  origem,  meio  e  fim,  entendido a partir como relações que emergem historicamente em meio a negociações  e  lutas  que  se expandem  pela  sociedade  como  regimes  de  verdade  que  constroem  e  moldam os corpos (Foucault, 2003). 

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O  ingresso  crescente  de  mulheres  no  poder  judiciário  da  província  de  Córdoba  é  destacado  pelas  entrevistadas  como  um  processo que era evidente já nos anos 80, e cujos obstáculos expressos as  mulheres  deveriam  superar.  Havia  certas  resistências  quanto  ao  ingresso  massivo  das  mulheres,  e  a  elas  eram  exigidos,  para  serem  admitidas, maiores atributos em comparação com os homens.  Uma  depoente  conta‐nos  que  algumas  vezes,  nos  escritórios  jurídicos,  a  atacavam  por  se  mulher,  e  esclarece  que  nem  sequer  se  costumava  dizer:  ʺsenhora  juízaʺ.  Apesar  de  seu  sexo,  a  estrutura  a  identificava como um juiz – homem –, igualando‐a à retórica masculina  e  conta,  inclusive,  que  isso  estava  estampado  no  próprio  carimbo  que  ela utilizava:   

“Nas palavras escritas me atacavam por ser uma mulher, mas eu nunca lia  essas coisas. Em outras palavras, diziam: ʺVocê, juiz, eu a rejeitoʺ. Porque  nem  sequer  se  usava  ʺsenhora  juízaʺ.  Desde  85  que  eu  era  juiz,  eu  era  ʺsenhor  juizʺ...  meu  carimbo  dizia:  ʺDoutora  ...ʺ  e  abaixo  dizia  ʺsenhor  juizʺ, não dizia ʺsenhora juízaʺ oficialmente. Isso ninguém se lembra, mas  eu o tenho muito presente” [Vogal, Civil e Comercial, PJ Córdoba].   

Esta  situação  dá  conta  de  elementos  da  estrutura  ocupacional  que formalmente impunham a forma masculina nas práticas de todos os  agentes implicados na justiça, independentemente de seu gênero, já que  tradicionalmente essa era uma profissão masculina.  Outra  entrevistada,  que  foi  juíza  de  um  tribunal  de  foro  múltiplo no interior de Córdoba, relatou como foi posta à prova por sua  condição  de  mulher,  sobretudo  nos  casos  que  requeriam  a  atuação  da  polícia:   

“Foi difícil minha tarefa porque, sobretudo quando eu tinha que lidar  com a polícia, aí sim eu reconheço que tornavam a questão difícil pra  mim.  Porque,  por  exemplo,  eu  tinha  uma  violação  e  desde  o  médico  legista,  que  escrevia  os  relatórios  em  termos  vulgares...  Então  o  que  eles queriam era... Ainda por cima, se eles me viam andando com um  vestidinho  branco  nessa  época,  digamos...  era  como  um  desgaste,  um  jogo de provocações, que queriam não sei... Eu sempre tive um caráter  muito forte, não sou uma pessoa autoritária, mas eu sempre fui muito  firme,  e  para  a  população  isso  lhes  oferecia  muita  segurança”  [Múltiplo, Juiz Jurisdição, PJ Córdoba]. 

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O tratamento dados às mulheres se assemelha ao analisado por  Boigeol  (2005)  na  França.  A  investigadora  argumenta  que  lá,  um  primeiro  acesso  das  mulheres  à  magistratura,  sobretudo  nos  postos  mais  altos  do  poder  judiciário,  foi  entendido  como  um  atentado  ao  modelo  tradicional  familiar  e  aos  atributos  constitutivos  da  profissão,  bem  como  uma  concorrência  em  relação  à  qual  os  juízes  estavam  plenamente  conscientes  de  sua  fragilidade.  Embora  todos  os  casos  expostos  sejam  de  mulheres  com  mais  de  50  anos  de  idade,  também  algumas  mais  jovens,  cuja  idade  gira  em  torno  dos  30  anos,  percebem  que as mulheres continuam sofrendo algum preconceito de gênero em  relação ao tratamento dado a elas por seus chefes.  O  tratamento  diferenciado  dado  às  mulheres  também  foi  observado  em  tribunais  federais  de  Córdoba,  e  uma  das  entrevistadas  relatou como, no momento de investigar as causas de direitos humanos,  foram subestimados por sua condição de mulheres, o que não significou  que não persistiram com seu trabalho.    3.2 Regime de trabalho e práticas que consolidam as marcas de gênero    As  mulheres  destacam  que  a  administração  judiciária  tem  uma  estrutura  profissional  que  lhes  permite  conciliar  as  exigências  do  trabalho  com  as  da  vida  familiar,  algo  distinto  do  que  acontece  no  campo do exercício da advocacia. Nos tribunais, as mulheres encontram  um  horário  fixo  que  oscila  entre  6  a  8  horas  diárias,  conforme  sejam  contratadas  ou  funcionárias  públicas,  respectivamente,  ademais  há  regime de licenças, férias, o que incentiva a inserção das mulheres nesse  campo. Assim o percebem as próprias entrevistadas:    “As  empregadas  contratadas  que  começam  a  trabalhar  valorizam  muito poder levar, digamos, adiante um projeto de família com filhos,  gravidez,  com  um  horário  que  é  bastante  acessível  para  as  mulheres,  porque as  duas  da  tarde as  contratadas  já  podem  ir  para  sua  casa  (as  funcionárias  públicas,  as  4  da  tarde),  elas  tem  3  meses  de  licença  maternidade, tem duas férias por ano, têm todo o mês de janeiro livre,  oito dias úteis em julho, tem licença para amamentação, e também 20  dias  ao  ano  por  adoecimento  familiar,  ou  seja,  tudo  isso  elas  tem,  e  é 

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muito respeitado, se respeita muito a licença maternidade” [Juiz, Civil  e Comercial, PJ Córdoba]. 

  Mas,  embora  a  estrutura  ocupacional  da  administração  judiciária  leve  a  que  as  mulheres  busquem  inserir‐se  neste  campo  de  trabalho,  o  sistema  de  licenças  muitas  vezes  age  contra  elas,  já  que  alguns juízes veem isso como um problema para o desenvolvimento do  trabalho dos tribunais.    “a  licença  maternidade  e  a  licença  amamentação  causam  um  impacto  muito  grande  no  tribunal,  porque  não  se  cobrem  as  licença  de  maternidade,  então  comigo  aconteceu,  por  exemplo,  no  final  do  ano  passado, desde outubro e novembro até o começo de março deste ano,  ter duas pessoas a menos para trabalhar... Isso é muito problemático e  pode  levar,  indiretamente,  à  discriminação  de  juízes  que  não  querem  empregar mulheres” [Juiz, civil e comercial, PJ Córdoba]. 

  Por exemplo, esta mesma juíza conta o caso de uma empregada  que  é  uma  mãe  solteira  com  um  filho,  que  não  conta  com  uma  rede  social  familiar  em  Córdoba  porque  é  de  outra  província.  Ela  teve  que  sair  de  um  tribunal  do  qual  pediu  transferência  porque  sua  chefa  se  incomodava cada vez que ela faltava quando seu filho estava doente.  Por outro lado, as entrevistadas notam que, em geral, os homens  tendem  a  ser  cada  vez  menos  contratados;  observam  que,  como  contratados, os homens são muito poucos. As mulheres que trabalham  nos tribunais da província relatam que a pouca presença de homens faz  com que, muitas vezes, eles sejam mais solicitados do que as mulheres,  inclusive há casos em que são solicitados especificamente homens.    “Há muitos tribunais civis onde toda a equipe, desde a secretária até o  escrevente,  são  todas  mulheres.  Nós  aqui  temos  um  assistente‐ secretário  homem,  contratados  nós  temos  um  empregado  efetivo,  e  dois estagiários homens... somos o tribunal que mais homens tem. Sei  de  um  tribunal  no  qual  o  juiz  é  homem,  e  que  dizem,  extra‐ oficialmente, as pessoas têm dito que ele quer que seu tribunal venha a  ser  integralmente  composto  por  homen”  [Juiz,  Civil  e  Comercial,  PJ  Córdoba]. 

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3.3 Diferenciação do trabalho por gênero    A  segregação  horizontal  é  um  processo  que  tem  a  sua  história.  Se rastreamos o que contam as mulheres que ingressaram em tribunais  da  província  há  mais  de  20  anos,  observamos  que  havia  obstáculos  explícitos  para  o  acesso  a  determinadas  foros.  Em  geral,  as  mulheres  não eram nem admitidas nem desejadas no âmbito do direito penal ou  do  trabalho,  essas  eram  matérias  reservadas  aos  homens.  Eram  muito  poucas  as  que  entravam  ali.  Havia  uma  segregação  horizontal  que  vedava às mulheres trabalhar no campo da justiça penal, o que por sua  vez  incidia  em  uma  segregação  vertical,  como  se  deduz  da  citação  acima. Assim, por seu gênero as mulheres eram excluídas dos âmbitos  de trabalho considerados não adequados para elas. Um desses espaços  eram os tribunais criminais, onde se exerce um poder muito importante,  o  exercício  da  coerção  física  sobre  os  cidadãos.  As  justificativas  apresentadas eram que ali não colocavam mulheres em função do tipo  de  crimes  que  tratava,  principalmente  os  que  afetavam  a  integridade  sexual.  Isto  significa  que  os  delitos  nos  quais  as  vítimas  geralmente  eram  mulheres  ficavam  nas  mãos  dos  homens,  sob  sua  decisão,  sendo  as mulheres excluídas desse âmbito do poder.   Algumas  mulheres  que  ingressaram  em  foros  específicos  como  civil ou de menores, enviadas a eles apesar de seu interesse por outros  ramos,  em  geral  permaneceram  ali,  porque  começaram  a  se  interessar  ou  a  gostar.  Além  do  mais,  ter  trajetória  num  mesmo  foro  é  conveniente, já que é um antecedente pra ascender dentro dele. Embora  hoje  não  haja  restrições  institucionais  para  que  as  mulheres  ingressem  no  foro  penal,  a  percentagem  de  homens  neste  foro  ainda  é  maior,  sobretudo  nos  cargos  de  magistrados  e  funcionários.  Este  limite  explícito  que  existia,  já  não  existe  na  estrutura  institucional,  inclusive  quando há vagas no foro penal é muito possível que elas as ocupem. Os  concursos para ingressar na polícia judiciária têm permitido e permitem  que  muitas  mulheres  entrem  nesse  setor.  Todavia,  as  entrevistadas  apontam  que  trabalhar  na  penal  continua  sendo  mais  difícil  para  as  mulheres em função das condições de trabalho e, em alguns casos, isso  implica que as mulheres peçam transferência para outras jurisdições. 

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Como  vemos  hoje,  as  mulheres  participam  cada  vez  mais  em  foros  tradicionalmente  masculinos.  Mas  se  observa  ainda  uma  segregação  horizontal  acentuada  entre  os  âmbitos  de  civil  e  comercial  por um lado, e penal de outro. Os tribunais do trabalho, embora tenham  sido  um  espaço  de  acesso  restrito  para  as  mulheres,  hoje  são  um  foro  que se destaca pela forte presença delas.  Outra questão que surge no relato das entrevistadas se refere à  diversidade  de  condições  de  trabalho  que  existem  nos  diferentes  foros  dentro  dos  tribunais.  Ao  comparar  os  foros  de  civil  com  os  de  penal,  observam  que  os  de  civil  são  mais  precários  e  hostis  a  elas  que  os  de  penal.    “as condições de trabalho na civil são muito duras, porque a carga de  trabalho é significativamente mais pesada que em qualquer outro foro,  é  impressionante  a  quantidade  de  causas  que  se  movem  por  dia,  é  necessário  um  trabalho  muito  mais  dedicado,  as  condições  de  infraestrutura  dos  tribunais  civis  são  espantosas  em  relação  aos  tribunais  penais,  que  têm  muita  comodidade,  tem  ar  condicionado,  cada funcionário tem um computador, um telefone, um escritório, um  espaço  próprio  que  aqui  não  tem...  aqui  às  vezes  não  tem  um  lugar  onde  colocar  um  estagiário,  aqui  todo  mundo  fica  amontoado,  eu  tenho um escritório muito pequeno, às vezes juízes têm um escritório  maior, ás vezes tem dois funcionários trabalhando no escritório do juiz  porque não tem espaço” [Juiz, Civil e Comercial, PJ Córdoba].   

Por  outro  lado,  o  tratamento  entre  empregados  e  advogados  é  muito diferente na civil e na penal. Alguns entrevistados apontam como  isso parece influenciar os funcionários do sexo masculino, que preferem  migrar para a penal, por exemplo, porque não suportam os maus tratos,  enquanto as mulheres tendem a ficar.  Ademais encontramos os típicos argumentos que apontam para  a  inserção  diferenciada  de  homens  e  mulheres  dentro  do  poder  judiciário  em  função  de  uma  questão  de  afinidades  distintas,  quase  natural  entre  os  sexos.  Essa  afinidade  é  expressa  por  outra  das  entrevistadas que, embora observe que as mulheres hoje estão em todos  os  âmbitos  do  poder  judiciário,  em  sua  opinião  a  penal  é  para  os 

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homens, já que as mulheres, por sua sensibilidade costumam ficar mais  expostas nesse lugar.  Também  nos  tribunais  federais  de  Córdoba  a  diferenciação  por  foro  persiste,  embora  sua  marca  não  seja  tão  profunda  como  era  há  vinte anos atrás. Uma das entrevistadas conta o caso específico de sua  corte,  onde  a  juíza  é  mulher,  o  que  permitiu  que  as  mulheres  ingressassem  no  tribunal  e  estivessem  claramente  representadas  em  todos os foros.   

“desde quando eu entrei já eram todas mulheres na Civil e, em Penal  eram  todos  homens,  há  20  anos.  E  em  alguns  tribunais  isso  têm  se  mantido,  ou  têm  ingressado  mulheres  mas  continua  tendo  mais  homens que mulheres. Agora, em um fórum, a partir do momento que  a juíza é mulher, que é desde... de 91, ou seja... bem, aí se tem invertido  e  cada  vez  mais  mulheres  são  empregadas.  Aqui  na  Secretaria  Penal  predominam  mulheres  e  em  todo  o  fórum  predominam  mulheres”  [Secretaria Criminal, Tribunal Federal, Córdoba].   

Como sucede nos tribunais provinciais, aponta que as condições  de trabalho na penal podem incidir numa maior presença de homens, já  que requer mais dedicação ou disponibilidade de tempo. Mas, para elas,  as diferenças de gênero em penal não se expressam como nos juizados  provinciais em função do tipo de delitos que tratam.   

“Sim, mas na parte federal nem tanto. Talvez a questão de existir mais  homens  na  penal  seja  porque  eles  têm  que  trabalhar  no  período  da  tarde,  às  vezes,  na  penal.  Porque  na  província,  na  penal,  chegam  alguns assuntos, alguns crimes, que a mulher mesmo trata de... evitar.  Veja, por exemplo, estupros, homicídios, você tem todos esses arquivos  com  fotos,  e muitas  mulheres  por aí  dizem...  Não,  não  tenho  vontade  de  me  meter  a  investigar  esse  tipo  de  coisa,  ou  lidar  com  a  polícia  e  tudo  isso,  que  é  bem...  por  isso  que  as  mulheres  tratam  de,  de  se  afastar. Aqui já não é tão duro, porque as causas que nós temos são por  drogas, vem os consumidores, não, não é... ou fraudes contra o Estado  nacional, ou por... adulteração de documentos...” [Secretaria Criminal,  Tribunal Federal, Córdoba].         

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3.4 Diferenciação de gênero nos níveis de ocupação    A  distribuição  por  gênero  nos  diferentes  níveis  do  sistema  judiciário  é  observada  pelas  entrevistadas,  embora  nem  todas  o  percebam  como  um  processo  produtor  de  desigualdades.  O  caso  a  seguir  põe  em  manifesto  a  diferenciação  por  gênero  em  termos  de  níveis de ocupação:    “Agora,  o  que  eu  posso  te  dizer,  o  que  eu  percebo,  por  exemplo,  nos  foros  civis,  há  tribunais  que  têm  maioria  de  empregadas  mulheres,  poucos  homens,  mas  há  homens...  há  uma  maioria  de  mulheres  empregadas, mas a nível de decisão, digamos, no nível hierárquico há  mais  homens  do  que  mulheres.  Ou  tantos  homens  quanto  mulheres.  Ou seja, também poderíamos interpretar que nas posições de decisão e  de  responsabilidade  existem  mais  possibilidades  para  os  homens  do  que para as mulheres, porque não se mantém o mesmo percentual das  categorias  mais  baixas  nas  mais  elevadas”  [Juiz,  Civil  e  comercial,  PJ  Córdoba]. 

  Por outro lado, o grau de segregação vertical tem relação com o  tipo  de  foro,  o  que  quer  dizer  que  se  intersecta  com  a  segregação  horizontal.  Assim,  na  esfera  penal,  são  muito  poucas  as  mulheres  ocupando  o  lugar  de  representantes  de  Câmara,  enquanto  que  uma  representante do foro de família observa o contrário em seu campo:    “Mas  veja  nas  câmaras  como  está  equiparado,  nesta  câmara  são  duas  mulheres e um homem, e na câmara superior são dois homens e uma  mulher. E nos tribunais não, nos tribunais há mais mulheres, havia um  homem  que  se  foi,  e  agora  vem  outro  e  o  outro  que  estava  era  meu  companheiro.  Mas  se  nos  Tribunais  de  Família  há  uma  marcada  predominância  feminina,  o  notável  é  que  nas  câmaras  estamos  empatados” [Família, Vogal, PJ P. J. Córdoba]. 

  As  mulheres  que  dizem  não  perceber  segregação  vertical  costumam citar quase sempre o caso de mulheres que hoje são membros  do  Tribunal  Superior  de  Justiça  como  um  paradigma  da  igualdade  e  prova do acesso das mulheres aos postos mais altos do poder judiciário.  O  acesso  das  mulheres  aos  tribunais  superiores  é  uma  imagem  forte,  200  

que  impõe  uma  percepção  de  igualdade  para  todos  os  escalões  do  poder judiciário, quando na realidade isso não ocorre, já que persistem  os processos de segregação vertical.  Se  tomarmos  a  profissão  jurídica  como  um  todo,  na  qual  se  distinguem dois âmbitos – o poder judiciário, por um lado, e o exercício  da  profissão,  de  outro  –  observamos  que  a  retórica  –  ligada  ao  poder  simbólico  de  definir  as  coisas  –  tem  força  na  definição  dos  locais  de  trabalho que por um lado devem ocupar as mulheres e que, por outro,  elas  decidem  ocupar,  que  são  sobretudo  lugares  compatíveis  com  a  divisão  sexual  do  trabalho.  Nesse  sentido  os  tribunais  se  apresentam  como  um  campo  de  trabalho  específico  desta  retórica,  cada  vez  mais  acessíveis através do sistema de concursos, como é o caso dos tribunais  de Córdoba. É muito destacado o discurso de que as mulheres vão para  o  Judiciário  porque  deste  modo  lhes  é  possível  ter  uma  família.  Isso  mostra  a  persistência  da  tradicional  divisão  sexual  do  trabalho  que  repercute  tanto  na  construção  da  identidade  profissional  e  de  gênero  das mulheres como na estrutura da divisão dual do trabalho jurídico.   Seguimos  notando  os  processos  de  diferenciação  que,  apesar  das  mudanças,  tornam  a  se  reproduzir.  Hoje,  embora  nos  campos  do  poder  judiciário  e  penal  haja  mais  mulheres,  não  significa  que  a  diferenciação  se  desvaneça  em  prol  da  equidade,  mas  que  há  novos  processos de diferenciação. Consequentemente, o Judiciário se feminiza,  e ademais o peso recai sobre as mulheres, já que os homens começam a  ganhar  vantagens  por  serem  cada  vez  mais  escassos  e,  em  consequência, mais solicitados dentro do espaço dos tribunais.  O  profissional  se  identifica  com  a  abstração,  a  igualdade  e  neutralidade  no  campo  do  trabalho  sem  aperceber‐se  dos  vieses  de  gênero  que  se  evidenciam  nos  dados  quantitativos  que  enfatizam  a  segregação.  Este  viés  de  gênero  mostra  que  a  direção  que  homens  e  mulheres  dão  a  suas  carreiras  profissionais  e  a  seus  interesses  e  compromissos  profissionais  está  condicionada  pela  divisão  sexual  do  trabalho, tanto no âmbito da profissional como da vida privada.  Em  uma  sociedade  na  qual  se  põe  ênfase  no  indivíduo,  mas  onde  as  transformações  econômicas  estruturam  o  mundo  do  trabalho,  as  estratégias  dos  agentes  assumem  diferentes  expressões.  Temos  hoje  uma  profissão  jurídica  que  está  incorporada  no  mundo  do  trabalho 

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mais  amplo  no  qual  se  registra  uma  desigualdade  de  gênero  nos  rendimentos auferidos, ademais do impacto negativo que as condições  informais  de  trabalho  têm  sobre  as  mulheres,  e  o  campo  da  profissão  não  é  alheio  a  essas  vicissitudes.  Especificamente,  tanto  as  mudanças  estruturais da economia como as reformas do poder judiciário ocorridas  nas últimas décadas implicaram uma reorganização do trabalho jurídico  (Bergoglio, 2005). O impacto dessas mudanças significou o progressivo  assalariamento  da  profissão  e,  nesse  sentido,  muitos  profissionais  são  absorvidos  pela  administração  judiciária,  e  muitos  outros  pelas  empresas  jurídicas  (Bergoglio,  2005;  Sanchez,  2005).  Neste  contexto,  as  mulheres  valorizam,  no  momento  de  tomar  decisões  chaves  em  sua  carreira, a necessidade de segurança e a importância de um salário fixo  ou  de  licenças  que  sejam  respeitadas.  Estas  escolhas  impactam  diferencialmente  sobre  as  mulheres:  aquelas  incorporadas  pela  justiça  destacam  a  importância  do  salário  fixo,  enquanto  que  no  campo  do  exercício  da  profissão  afirma‐se  que  os  rendimentos  podem  ser  muito  mais altos.     4.  A  percepção  do  gênero  entre  juízas  estaduais  e  juízas  federais  no  interior do estado de São Paulo    Para  a  análise  das  percepções  subjetivas  por  parte  das  operadoras  do  direito  brasileiras,  foram  selecionadas  entrevistas  com  magistradas no interior de São Paulo. Os depoimentos são de três juízas  federais (TRF3), Ana Alice, Mariana e Carolina e duas juízas estaduais  do  TJSP,  Juliana  e  Marcela.  As  magistradas  atuam  nos  municípios  de  Laranjeiras,  Rio  das  Pedras  e  Água  Vermelha,  todos  localizados  na  região central do estado9. As entrevistas se focaram na percepção destas  magistradas  sobre  a  participação  das  mulheres  nas  carreiras  e  nas  principais barreiras que estas podem vir a enfrentar por serem mulheres  e ocuparem uma posição de poder e prestígio. Nas respostas é possível  observar:  o  impacto  da  maternidade  e  dos  cuidados  com  a  família  na  articulação  entre  a  vida  pessoal  e  a  vida  profissional,  a  separação  do                                                               9

  Com  o  compromisso  de  manter  a  identidade  das  entrevistadas  preservadas,  seus  nomes e os nomes das cidades são fictícios. 

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preconceito  sofrido  pelas  mulheres  na  carreira  do  que  ocorre  na  sociedade  como  um  todo  e  a  essencialização  de  características  masculinas e femininas que afloram na atuação profissional.  Das  cinco  entrevistadas  três  são  mães,  porém  a  maternidade  aparece na fala de todas como a principal dificuldade enfrentada pelas  mulheres  na  magistratura.  Nos  discursos  é  possível  resgatar  esta  questão a partir de três falas: a primeira que se coloca a partir da intensa  tarefa  em  articular  as  longas  jornadas  de  trabalho  com  o  cuidado  da  família,  a  segunda  que  resgata  a  necessidade  de  uma  vida  social  mais  restrita e, por fim, o impacto da maternidade como um empecilho que  dificulta promoções e o aprofundamento dos estudos.   Ana Alice é juíza federal e na época da entrevista estava com 44  anos, é mãe de duas filhas e sua primeira formação é como engenheira.  Para  ela,  articular  trabalho,  maternidade  e  estudos  foi  sem  dúvida  seu  maior enfrentamento como magistrada e atualmente com doutorado na  área  do  direito,  um  livro  publicado  e  a  consequente  estabilidade  profissional,  cumpriu  grande  parte  de  suas  expectativas,  mas  ainda  assim entende como o maior impedimento à ascensão na magistratura a  maternidade:    “Chega  um  determinado  nível,  vamos  dizer,  quando  você  já  é  juiz  titular,  as  perspectivas  são  um  pouco  limitadas,  porque  o  acesso  aos  Tribunais  é  bem  difícil,  tem  o  componente  de  certa  forma  político,  e  também  tem  que  conciliar  o  trabalho  com  a  ascensão  profissional,  de  modo que tudo isso é muito dificultoso no dia a dia, porque se você se  concentra  no  trabalho  e  na  família,  de  uma  certa  forma,  sobra  pouco  tempo  para  você,  vamos  dizer,  se  dedicar  a  algumas  atividades  que  talvez sejam necessárias para você subir na carreira, como fazer outros  cursos  que  isso  seria  interessante,  só  que  não  há  tempo  muitas  vezes  suficiente  para  tudo  isso”  [Entrevista  com  Ana  Alice,  magistrada  federal].   

Juliana  é  uma  magistrada  estadual  que  desde  a  infância,  por  influência  do  pai  também  juiz  do  TJSP,  sonhava  em  ser  juíza  e,  para  tanto,  organizou  toda  a  sua  vida  em  direção  ao  direito  e  mais  especificamente  ao  tribunal.  Atualmente  com  42  anos,  é  juíza  cível,  diretora  do  fórum  e  mãe  de  um  garoto  de  dois  anos,  o  que  torna  sua 

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vida  bastante  atribulada.  Sobre  a  questão  das  dificuldades  na  carreira,  aponta a maternidade da seguinte forma:    “Eu  tenho  um  filho  pequeno,  até  retardei  muito  a  minha,  o  meu  ingresso na vida materna, por conta da profissão, né? Depois de quinze  anos  de  magistratura  que  eu  tomei  coragem  e  engravidei,  até  porque  havia  uma  questão  biológica  na  minha  vida...  eu  tava  com  quarenta  anos  e  eu  não  tinha  mais  tempo  para  retardar  a  maternidade  (...).  A  gente, mulher ainda, a questão complica bastante... você é profissional,  você  é  mãe,  você  é  esposa,  você  tem  funcionários  para  administrar,  você tem uma casa pra administrar, por mais que você tenha pessoas  que te ajudem o encargo fica todo sobre a gente, né?” [Entrevista com  Juliana, magistrada estadual]. 

  Da  mesma  forma  esta  questão  aparece  no  depoimento  de  Marcela,  magistrada  estadual  e  mãe  de  dois  filhos.  A  maternidade  é  também colocada como um trabalho a mais e especialmente feminino:    “Dentro  da  carreira  em  si,  dentro  da  magistratura  em  si,  eu  nunca  enfrentei nenhuma dificuldade pelo fato de ser mulher, eu acho que a  condição  de  mulher  nos  traz  dificuldades  em  relação  à administração  do  seu  tempo  pessoal,  que  eu  vejo  os  colegas  homens,  eles  muitas  vezes  deixam  toda  a  administração  doméstica  e  os  cuidados  com  os  filhos  exclusivamente  com  a  esposa,  e  por  mais  que  o  meu  marido  divida comigo todas essas atribuições, muitas vezes as crianças até por  um apego decorrente da gestação, da amamentação, eles querem muito  mais a mãe do que o pai, a criança muitas vezes quando chora quer a  mãe e tudo isso traz uma sobrecarga pessoal significativa” [Entrevista  com Marcela, magistrada estadual]. 

  Carolina, na época recém ingressa na magistratura federal e com  apenas  29  anos,  era  casada  e  não  tinha  filhos,  uma  escolha  tomada  justamente  pela  dificuldade  de  articular  a  maternidade  com  a  longa  jornada de estudos para o ingresso no judiciário e depois por conta da  alta movimentação dos recém‐ingressos:     “...  quanto  mais  qualificada  é  a  mulher  mais  difícil  fica  para  ela  ter  filhos,  principalmente  antes  dos  trinta  anos,  mas  do  meu  concurso  só 

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tem  uma  mulher  com  filhos,  tem  uma  outra  que  engravidou  agora  o  bebê  nasce  acho  que  até  agora  novembro,  dezembro,  mas  a  maioria  acaba  tendo  filhos  mais  tarde.  A  dificuldade  para  entrar  na  carreira  é  um  dos  fatores,  não  existe,  é  muito  complicado  estudar  o  necessário  para  passar  e  ficar  grávida  ou  cuidar  de  uma  criança,  isso  é  muito  complicado. O fato de ter que mudar, ou seja, você vai, tem gente que  foi  para  Ponta  Porã,  para  Corumbá,  para  Dourados,  para  Jales  e  a  família  não.  Então  isso  é  uma  outra  dificuldade,  mas  não  é  um  fator  impeditivo,  no  máximo  o  projeto  fica  um  pouco  adiado”  [Entrevista  com Carolina, magistrada federal]. 

  Para  Mariana,  que  é  divorciada,  a  maternidade  aparece  como  uma  escolha  delicada.  Escolheu  não  ter  filhos  e  pesando  diversos  fatores concluiu ter tomado a melhor decisão.  Nos  estudos  que  relacionam  trabalho  e  gênero  no  Brasil  e  internacionalmente,  a  relação  entre  o  papel  social  da  mulher  sobre  os  cuidados  da  família  e  a  consequente  pressão  no  ambiente  de  trabalho  são postos em análise. Hochschild  (apud Bonelli, 2004) mostra como as  mulheres  sofrem  não  uma  dupla  jornada  de  trabalho  na  casa  e  no  trabalho,  mas  tripla.  A  primeira  jornada  de  trabalho  seria  aquela  realizada no escritório em que deve haver uma dedicação máxima para  a realização de um serviço bem feito, a segunda seria feita em casa onde  se deve demonstrar ser uma boa mãe, esposa e dona‐de‐casa enquanto a  terceira e última jornada de trabalho se compõe pelo trabalho emocional  que conecta subjetivamente as duas primeiras e constrói um sentimento  de satisfação.   

“O  trabalho  das  emoções  feito  principalmente  pela  mulher  para  lidar  com  a  dupla  jornada  de  trabalho,  e  o  custo  emocional  que  ele  representa  tanto  na  negação  do  problema  quanto  nas  separações  conjugais que causam, tornam‐se uma terceira jornada de trabalho na  vida cotidiana” (Bonelli, 2004, p. 362).   

O  controle  da  vida  pessoal  pelas  magistradas  se  intercala  com  estas  questões  indo  até  a  necessidade  de  uma  vida  menos  movimentada.  Isso  se  relaciona  tanto  com  a  necessidade  da  própria 

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carreira  que  as  coloca  no  patamar  de  figuras  públicas10  como  pelos  compromissos da maternidade.     “Quando  meu  filho  dorme  é  onze  horas  da  noite  e  eu  tô  morta  e  eu  quero  dormir  (risos)  e  aqui  no  fórum  não  dá  tempo  de  nada  a  gente  realmente  é  uma  constante,  a  gente  observa  que  a  maioria  dos  juízes  não  tem,  não  conseguem  ter  uma  vida  social  muito  intensa  e  é  assim  comigo também” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual].   

O profissionalismo como um discurso, no sentido de Evetts, serve  para analisar como condutas e corpos são moldados nas instituições. Isso  se inicia desde os bancos escolares, se aprofunda nos processos de seleção  que separam os adequados daqueles que não o são, vai até o cotidiano do  trabalho  com  as  demandas  sobre  posturas  sóbrias,  atitude  reservada  e  vestimentas  formais.  As  origens  do  judiciário  como  homogeneamente  branco,  masculino  e  de  elite  repercute  até  os  dias  atuais  com  uma  presença  feminina  de  origens  privilegiadas  –  como  é  o  caso  das  entrevistadas  –  e  as  roupas  que  excluem  qualquer  possibilidade  de  sensualidade desloca seus corpos para o âmbito masculino.  Como operadoras do direito são sujeitos ativos e as vestimentas  sóbrias  que  encobrem  os  corpos  a  partir  do  corte  “correto”  das  saias e  dos  decotes  conservadores  e  dos  tecidos  sem  transparências  e  largos  o  suficiente  para  não  marcarem  os  corpos  realizam  esse  deslizamento  entre  o  passivo  e  o  ativo.  Como  Butler  coloca,  o  gênero  existe  em  sua  corporalidade pela performance, sendo possível se observar nos corpos  como  as  negociações  da  presença  feminina  nas  carreiras  jurídicas  ocorrem.  Além  dessas  questões  ainda  existem  processos  de  essencialização positiva de características naturalizadas como femininas  como é possível ver nos seguintes depoimentos:    “...acho  que  nessa  carreira  não  tem  diferença  entre  homem  ou  a  mulher.  Tem  que  ter  esse  perfil  de  isolamento,  de  gostar  de  leitura,  e  ficar  sozinho,  muito  tempo  de  concentração  lendo,  não  sei  se  isso  é 

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 O discurso é de que ao fazerem parte do judiciário tornam‐se algo como modelos de  conduta tanto pelo respeito à instituição da qual fazem parte como pela posição que  ocupam de julgar sobre a lei. 

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uma  característica  que  predomina  em  mulheres,  talvez  outras  características  não  existam  tanto  em  mulher...  essa  coisa  da  agressividade  policial  de  investigar,  mas  é  mais  fácil  encontrar  indivíduos  que  tenham  esse  perfil,  homens,  mas  aqui  não  sei  se  mais  mulheres gostam disso, eu acho que tanto faz se é homem ou mulher  não dá diferença nenhuma” [Entrevista com Mariana, magistrada].   

“Na  verdade  a  gente  ouve  muito  elogio  até,  falando  que  as  mulheres  que  são  da  magistratura,  elas  são  mais  humanas,  elas  são  mais  cuidadosas,  são  bem  mais  cautelosas,  mais  decididas,  a  gente  sempre  ouve  isso,  pelo  menos  eu  sempre  ouço  isso  como  um  elogio  e  nunca  senti  preconceito  e  assim nunca  eu  acho  que às  vezes  o  preconceito  a  gente  que  cria  do  outro  para  com  você  né?  Eu  acho  que  tem  muito  disso, uma coisa que eu não fico puxando “Ah, então é porque eu sou  mulher,  por  isso  que  o  senhor  não  gostou  da  minha  sentença?”  Entendeu?  Sabe,  não  tinha  isso  na  cabeça,  então  eu  nunca  senti  diferença. Eu acho... que a gente também não é homem, mas eu sempre  recebi assim, muitos elogios, dos advogados e, hoje o universo tá muito  feminino  e  então  é,  bastante  comum  ter  uma  juíza,  duas advogadas e  às  vezes  duas  mulheres  como  parte,  então  hoje  tá  muito  comum  isso  já” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual].    “Eu  acredito  que  a  sensibilidade  feminina  realmente  a  diferencia  do  trabalho,  eu  vejo  que  os  homens  na  carreira  jurídica  eles  entendem,  tomam  decisões  e  atuam  de  uma  forma  muito  mais  fria  e  prática  do  que  a  mulher,  resolvendo  aquele  problema  que  se  propõe  naquele  momento, isso a maioria, enquanto que a mulher muitas vezes procura  ver  o  que  tem  por  trás,  principalmente  nas  questões  de  família”  [Entrevista com Marcela, magistrada estadual]. 

  Para finalizar, outra fala que se repete é sobre a não existência de  qualquer  tipo  de  preconceito  dentro  das  instituições,  a  partir  do  argumento de ser uma instituição intelectualizada que demanda de seus  membros o nível universitário. Sobre isso a seguinte fala é um exemplo:    “...  acho  muito  proveitosa  que  seja  objeto  de  estudo  todo  esse  desenvolvimento da mulher na carreira [no caso as carreiras jurídicas]  porque, embora eu acredite que, que nem eu disse, que não é objeto de  preconceito  o  trabalho  da  mulher  na  carreira  jurídica,  eu  acredito 

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também que isso não exista na maior parte das outras áreas, a mulher  ainda  hoje  é  vítima  de  muito  preconceito  na  sociedade  (...)  tudo  isso  demonstra  o  quanto  nossa  sociedade  ainda  precisa  se  desenvolver  muito,  para  oferecer  a  mulher  a  dignidade  que  merece  na  sociedade”  [Entrevista com Marcela, magistrada estadual]. 

  Deve  se  levar  em  consideração  como  a  participação  das  mulheres nas carreiras jurídicas é sutilmente negociada no cotidiano do  fórum  de  justiça  e  na  vida  pessoal  e  profissional  dos  membros  destas  carreiras.  A  palavra  sutil  é  aqui  utilizada,  pois  remete  ao  fato  de  as  percepções de gênero, da participação feminina, da existência ou não de  preconceitos e mesmo na definição do que significa ser um bom ou uma  boa  profissional  estão  profundamente  entrelaçadas  com  ideias  naturalizadas sobre quem são os homens e quem são as mulheres, o que  fazem, como sentem e como trabalham.  A presença feminina pode ser tanto vista como um ganho para o  mundo  jurídico  a  partir  de  uma  essencialização  positiva  de  características  femininas  dadas  como  naturais  como  também  pode  ser  apagada a partir dos trajes escolhidos que escondem qualquer sinal de  passividade,  fragilidade  ou  sexo,  que  se  encontram  culturalmente  imbricados  ao  feminino.  O  discurso  do  profissionalismo  permeia  estas  negociações  construindo  e  negociando,  constantemente,  performances  de gênero e construindo subjetividades que remetem ao sucesso e que,  por conta de uma origem exclusivamente masculina, acabam por serem  constituídas  a  partir  de  características  também  tipicamente  colocadas  como masculinas, como a força e a capacidade de decisão.    “Então  você  ser  uma  boa  juíza  sem  deixar  de  ser  mulher,  porque  a  questão  é  essa,  vamos  dizer,  não  confundir  os  papeis,  porque  na  verdade  um  papel  é  um  papel  profissional  com  o  outro  lado  seu  pessoal,  e  há  quem  confunda  ou  que  exagere  muitas  vezes.  Então  tradicionalmente talvez uma vocação mais masculina. Acho que assim,  nesse  sentido  sim,  porque  justamente  o  homem  que  está  mais  acostumado  a  tomar  certas  decisões  que  causam  impacto,  ou  que  ele  mesmo decide do modo dele, enfim, então essa dificuldade ela existe,  não vou dizer que não exista, mas você se acostuma a lidar com isso,  você se acostuma a decidir, a ter que tomar decisão, muitas vezes que 

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contraria  interesses.  Então  você  sabe  que  não  dá  para  agradar  todo  mundo,  então  é  uma  questão  também  de  costume,  de  experiência”  [Entrevista com Ana Alice, magistrada federal].   

Em  seu  trabalho  sobre  as  mulheres  nos  esportes  equestres,  Miriam  Adelman  (2011)  se  depara  com  uma  situação  semelhante  em  que  mulheres  passam  a  integrar  esportes  de  origens  exclusivamente  masculinas,  nos  quais  o  sucesso  se  baseia  em  características  como  a  força  e  o  vigor  físico.  Como  coloca  no  texto,  a  partir  da  revisão  bibliográfica sobre o tema e sua articulação com o objeto de pesquisa, “a  atividade  esportiva  feminina  era  inicialmente  terreno  para  a  expressão  de  sujeitos  femininos  rebeldes  e  desobedientes”  (Adelman,  p.  936),  demonstrando  o  impacto  da  chegada  de  sujeitos  vistos  culturalmente  como  frágeis,  delicados  em  um  mundo  onde  a  força  e  mesmo  a  agressividade são dados como necessários.  Utilizando‐se do conceito de Sedgwick (apud Adelman, 2011) de  homossociabilidade,  a  autora  coloca  como  as  identidades  são  negociadas  em contextos de sociabilidade masculina. Intercalado a esses espaços de  sociabilidade  vêm  a  tona  noções  arraigadas  de  feminilidade  relacionadas  ao  frágil  e  aos  cuidados  do  lar  que  afastam  as  mulheres  destes  espaços,  vistos  como  incompatíveis  com  suas  naturezas.  A  sociabilidade  nestes  esportes  é  permeada  por  formas  de  interação  masculinas em que existe certa dificuldade e uma constante necessidade  de prova das mulheres que pretendem fazer parte deste circuito.   No caso das mulheres nas carreiras jurídicas públicas o impacto  de  sua  presença  no  direito  já  parece  ter  passado  deste  estágio  inicial,  que  é  possível  ser  analisado  como  tendo  ocorrido  ainda  no  século  XX.  Porém, atualmente, ainda é possível perceber como a presença feminina  é  ainda  motivo  de  conflitos  e  necessita  ser  interpretada  e  negociada  pelos  membros  das  instituições,  tanto  homens  como  mulheres.  Além  das  manifestações  discursivas  é  possível  perceber  como  os  trajes  funcionam  como  uma  ferramenta  subjetiva  assim  como  também  a  essencialização  positiva  que  busca  adequar  as  mulheres  ao  que  se  compõe como uma atuação profissional de excelência.      

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5. Considerações finais    As  abordagens  teórico‐metodológicas  escolhidas  pelas  pesquisadoras  para  a  análise  dos  dois  contextos  –  o  argentino  e  o  brasileiro  –  são  entre  si  distintas  mas  é  possível  ainda  assim  perceber  aproximações  entre  os  dois  trabalhos.  Nos  dois  casos  a  questão  da  maternidade  e  dos  cuidados  da  família  aparece  como  um  dado  de  grande relevância sobre a participação da mulher nas carreiras jurídicas.  Culturalmente associadas aos cuidados domésticos, como profissionais  no  direito  acabam  por  acumular  o  trabalho  profissional  com  aquele  realizado  em  casa.  Tanto  no  caso  do  Brasil  como  no  da  Argentina,  as  carreiras  públicas  aparecem  como  uma  escolha  empregatícia  mais  adequada  àquelas  que  buscam  constituir  família  por  se  estabelecer  em  horários determinados e pela possibilidade de licenças.  No caso da segregação horizontal, observou‐se em Córdoba que,  até cerca de vinte anos atrás, determinados espaços de trabalho estavam  restringidos  e  outros  eram  criados  para  as  mulheres,  por  decisões  provenientes da própria instituição do poder judiciário. Atualmente, se  registra  maior  participação  das  mulheres  em  matérias  que  eram  tradicionalmente  masculinas,  ainda  que  subsista  marcada  segregação  horizontal  entre  os  âmbitos  de  civil  e  comercial,  por  um  lado,  e  penal  por  outro.  Embora  possam  aceder  aos  espaços  vinculados  à  administração  de  penas,  ainda  se  evidenciam  alguns  obstáculos  que  incidem no desempenho das mulheres nestes espaços. Já no trabalho de  Benedito  no  Brasil  esta  questão  não  aparece  com  grande  visibilidade  principalmente  por  conta  do  foco  escolhido  para  as  entrevistas  com  magistradas da justiça federal e da justiça estadual. Talvez se houvesse  uma  pesquisa  no  caso  da  advocacia  a  situação  poderia  ter  sido  diferente.  No  caso  da  segregação  vertical,  o  trabalho  de  Benedito  demonstra uma inequidade bastante dramática no número de homens e  mulheres nos níveis mais altos das magistraturas em foco, que, em sua  pesquisa,  é  explicada  pelo  insulamento  institucional  dessas  carreiras  que  acabaram  por  construir  um  perfil  homogêneo  de  membros  que  ainda  hoje  se  faz  presente  –  apesar  de  estar  se  transformando.  A  segregação  vertical  por  gênero  se  apresenta  em  todos  os  foros 

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analisados  na  Argentina.  A  implementação  de  sistemas  meritocráticos  pode  ter  efeito  positivo  para  a  redução  das  desigualdades  de  gênero,  porém  tais  sistemas  são  mais  exigentes  com  as  mulheres,  inseridas  numa sociedade na qual persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz  com  que  as  diferenças  de  gênero  se  estanquem  no  interior  de  uma  profissão na qual a proporção de graduadas é cada vez maior.        Bibliografia    ADELMAN,  Miriam.  As  mulheres  no  mundo  equestre:  forjando  corporalidades  e  subjetividades  ‘diferentes’.  In:  Revista  Estudos  Feministas,  19,  vol. 3, 2011.  BARBALHO,  Rennê  Martins.  A  feminização  das  carreiras  jurídicas  e  seus  reflexos  no  profissionalismo.  Tese  de  Doutorado,  Sociologia.  São  Carlos:  UFSCar/DS,  2008.  BENEDITO, Camila de Pieri. Profissionalismo e gênero: A construção da identidade  por  operadoras  e  operadores  do  direito  da  Justiça  Federal  e  do  Ministério  Público  Federal  em  São  Paulo.  Monografia  de  Graduação,  Ciências  Sociais.  São  Carlos:  UFSCar/DS, 2011.  BERGALLO,  Paola.  ¿Un  techo  de  cristal  en  el  poder  judicial?  La  selección  de  los  jueces  federales  y  nacionales  en  Buenos  Aires.  En  Más  allá  del  Derecho:  justicia  y  género  en  América  Latina,  C.  Motta  y  L.  Cabal  (Comp.).  Bogotá:  Siglo  del Hombre Editores, 2005.  BERGOGLIO,  María  Inés.  Transformaciones  en  la  Profesión  Jurídica:  Diferenciación  y  Desigualdad  entre  los  Abogados.  Anuario  VIII  del  Centro  de  Investigaciones Jurídicas y Sociales, p. 361‐380, 2005.  _____.  ¿Llegar  a  socia?  La  movilidad  ocupacional  en  las  grandes  empresas  jurídicas. Análisis de género. En Anuario X del Centro de Investigaciones Jurídicas  y Sociales, pp. 559‐614, 2007.  BOIGEOL,  Anne.  Las  mujeres  y  la  Corte.  La  difícil  implementación  de  la  igualdad de sexos en el acceso a la magistratura. Academia, Año 3, n. 6, p. 3‐25,  primavera 2005.  BONELLI,  Maria  da  Gloria.  Profissionalismo  e  política  no  mundo  do  Direito.  São  Carlos: EdUFSCar, 2002.   _____. Arlie Russell Hochschild e a sociologia das emoções. In: Cadernos Pagu,  v. 22, p. 357‐372, 2004. 

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Participação popular e legitimidade judicial:   sobre o julgamento por júri 

 

   

 

 

 

 

 

María Inés Bergoglio1 

    1. Introdução   

Como destacou Tocqueville, os países que têm chamado os cidadãos  comuns  para  compartilhar  as  responsabilidades  judiciais,  se  caracterizam pelo alto reconhecimento popular da magistratura. Resta‐ nos  perguntar,  entretanto,  até  onde  estes  efeitos  são  registrados  nas  nações  que,  em  contextos  marcados  pela  insatisfação  com  o  trabalho  judicial, têm incorporado recentemente a participação leiga na justiça.  Este  artigo  explora  as  relações  entre  a  participação  leiga  na  administração  da  justiça  e  legitimidade  judicial  em  Córdoba,  na  Argentina,  onde  os  tribunais  mistos  têm  sido  implantados  desde  2005  para  o  julgamento  de  alguns  crimes  aberrantes.  Para  isso  são  empregadas  diversas  fontes  empíricas,  dentre  as  quais  se  destacam  os  dados  de  pesquisa  da  população  geral  obtidos  em  Córdoba  em  1993  e  2011.  Embora  já  exista  evidências  de  que  aqueles  que  têm  atuado  como  jurados melhoram suas opiniões sobre o funcionamento da justiça, por  enquanto  o  caráter  limitado  da  experiência  cordobesa  sugere  que  seus  efeitos sobre a legitimidade judicial na cidadania geral podem ser muito  fracos ainda.  Nos últimos anos, diversos países ‐ Japão, Coreia, Espanha, Croácia,  Rússia,  Argentina  ‐  têm  introduzido  a  participação  de  leigos  em  seus  sistemas  judiciais,  muitas  vezes  no  contexto  de  reformas  orientadas  para  aprofundar  os  processos  de  democratização.  É  necessário  interrogarmo‐nos  sobre  as  consequências  destas  inovações  institucionais, já que a presença dos cidadãos comuns entre aqueles que                                                               1

  Faculdade  de  Direito,  Universidade  Nacional  de  Córdoba.  Agradecimentos  ao  apoio  para  este  projeto  outorgados  pela  Secretaria  de  Ciência  e  Técnica  ‐  Universidade  Nacional de Córdoba 

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tomam  decisões  legais  significativas  pode  afetar  o  sistema  legal  como  um todo.  A  contribuição  dos  sistemas  de  júri  à  consolidação  das  formas  democráticas  de  governo  tem  sido  extensamente  discutida2.  Em  primeiro lugar, foi salientado que constitui uma forma de participação  cívica.  O  júri  provê  uma  oportunidade  institucionalizada  para  que  os  cidadãos  se  reúnam,  deliberem  e  tomem  decisões  legalmente  significativas.  Transfere  abertamente  poder  aos  cidadãos  e  destaca  o  lugar que ocupam no Estado.   Aqueles que promovem a participação dos cidadãos comuns nos  procedimentos penais destacam também que a instituição cumpre uma  função  global  de  controle.  A  presença  dos  leigos  nos  tribunais  penais  contribui  para  garantir  que  os  veredictos  sejam  consistentes  com  as  ideias  de  moralidade  e  justiça  vigentes  na  comunidade,  e  promove  a  equidade  dos  procedimentos  (Machura,  2003).  Lempert  (2007)  destaca  que,  de  todo  modo,  há  uma  melhora  na  transparência  das  ações  dos  juízes.  De  fato,  várias  iniciativas  recentes  para  instaurar  o  julgamento  por  júri  são  registradas  em  contextos  marcados  pela  desconfiança  na  justiça. Assim, Klijn & Croes (2007) informam sobre uma iniciativa para  incorporar  a  participação  cidadã  nas  decisões  cidadãs,  que  surgiu  na  Holanda  em  meio  a  um  clima  de  descontentamento  popular  pela  excessiva clemência dos juízes. Enquanto isso, Fukurai e Krooth (2010)  relatam uma proposta para instaurar o júri popular no México, inserida  num  conjunto  de  medidas  para  reformular  a  administração  da  justiça,  considerada vulnerável à corrupção relacionada ao tráfico de drogas. A  experiência  de  tribunais  mistos  em  Córdoba,  Argentina,  começou  também  num  contexto  de  insatisfação  com  o  trabalho  judicial3.  Estas  iniciativas  têm  em  comum  o  fato  de  que  a  participação  dos  leigos  é  concebida como uma forma de controlar o poder dos juízes, no contexto  de uma situação caracterizada pela insatisfação com o trabalho judicial  ou a falta de confiança na justiça.                                                                 Para  uma  revisão  detalhada  dos  efeitos  esperados  do  julgamento  por  júri,  ver  (Hans  2008; Voigt 2008).  3 Na sessão 5 se explica com maiores detalhes a introdução do julgamento por júri em  Córdoba, Argentina.  2

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Tem‐se  sustentado,  ainda,  que  esta  instituição  contribui  para  a  legitimação do poder judicial. Tocqueville já havia observado o impacto  positivo que a interação entre os juízes e cidadãos comuns tem sobre o  prestígio  dos  juízes:  ʺO  júri,  que  parece  diminuir  os  direitos  da  magistratura, funda, na verdade, o seu próprio império, e não há países  onde  os  juízes  sejam  tão  poderosos  quanto  naqueles  onde  o  povo  participa da distribuição de privilégiosʺ (2001; e.o. 1840, p. 138). A partir  de  pesquisa  sócio‐jurídica,  Machura  (2003)  e  Marder  (2005)  revelaram  os  efeitos  positivos  da  participação  cidadã  na  administração  da  justiça  sobre  a  confiança  nos  juízes.  Voigt  (2008)  relata  correlações  positivas  entre a confiança no sistema legal e a incorporação da participação dos  leigos.  Na  teorização  contemporânea  sobre  a  democracia,  se  destaca  a  contribuição  da  deliberação  pública  para  a  construção  da  legitimidade  de ordem política. Os pesquisadores que trabalham com este marco de  referência têm destacado que a sala do júri se parece com a situação da  fala ideal habermasiana, pois oferece um espaço para o debate racional  entre  iguais,  governado  pela  força  do  melhor  argumento  (Iontcheva,  2003; Gastil & Weiser, 2006).  Resta‐nos questionar, entretanto, até que ponto a introdução dos  tribunais por júri seria eficaz no sentido de melhorar a legitimidade da  administração  da  justiça.  Trata‐se  de  uma  questão  para  a  qual  é  difícil  obter evidência empírica, já que requer comparações internacionais4 ou  estudos  de  séries  históricas.  A  questão  é  particularmente  interessante  desde  uma  perspectiva  latino‐americana,  uma  vez  que  na  região  os  baixos níveis de confiança na justiça são crônicos.  Com o objetivo de fornecer alguns elementos para o avanço da  discussão  desta  questão,  o  trabalho  revisa  a  evolução  da  confiança  na  justiça em Córdoba, Argentina, onde foi introduzida a participação dos  leigos  no  campo  penal  em  2005.  Através  de  dados  de  pesquisas  de  opinião  pública,  analisamos  as  mudanças  nas  atitudes  em  relação  aos  juízes e júris, na população em geral, entre 1993 e 2011.                                                                 4

  Ver  por  exemplo  a  tentativa  de  Voigt  (2009)  de  comparar  mais  de  80  países,  classificados segundo o tipo de participação leiga que implementa. 

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2. Legitimidade e confiança na justiça: questões teóricas    O  trabalho  de  Weber  continua  sendo  o  mais  influente  na  análise  contemporânea  sobre  a  legitimidade.  A  partir  de  sua  perspectiva,  a  legitimidade  é  entendida  como  a  qualidade  de  uma  autoridade  ou  instituição  que  leva  as  pessoas  a  se  sentirem  obrigadas  a  seguir  suas  regras  ou  decisões.  Todos  os  poderes  desejam,  por  isso,  alimentar  a  crença em sua legitimidade, e só é possível analisar essa legitimidade a  partir de uma abordagem relacional.  Sua  tipologia  sobre  as  formas  de  dominação  legítima  tem  sido  utilizada por décadas na investigação sociojurídica. Recentemente, têm‐ se  observado  que  a  utilidade  dessa  classificação  tende  a  se  reduzir  no  mundo  contemporâneo,  enquanto  que  a  grande  maioria  dos  regimes  legítimos  corresponde  ao  tipo  racional‐legal  (Dogan,  2010).  Esta  crítica  parece menos justificada a partir da perspectiva latino‐americana, uma  vez  que  na  região  o  enfraquecimento  dos  partidos  tradicionais  acompanha a crescente personalização da política. (Cheresky, 2010).  Rosanvallon  (2009)  apontou  também  que,  nas  sociedades  contemporâneas,  onde  a  expressão  eleitoral  perde  sua  centralidade,  surgem  novas  formas  de  aproximação  da  ideia  de  interesse  público,  o  que  dá  origem  a  novas  formas  de  legitimação,  que  entendem  por  legitimidade  a  imparcialidade,  a  reflexividade  e  a  proximidade.  Ao  contrário  da  legitimidade  tradicional  de  estabelecimento,  obtida  pelos  governos democráticos através do mecanismo eleitoral, esses modos de  legitimação  apontam  para  as  qualidades  da  relação  entre  os  que  exercem o poder e os cidadãos. Essas qualidades nunca são definitivas,  por isso as autoridades necessitam se relegitimar continuamente.  A  perspectiva  relacional  é  hoje  o  principal  legado  weberiano  presente  neste  campo  de  pesquisa.  Como  destaca  Lembcke  (2008),  tal  perspectiva está presente entre os que adotam um enfoque top‐down e se  concentram em descrever os esforços dos poderosos ou das instituições  para  que  suas  pretensões  de  legitimidade  sejam  aceitas.  O  enfoque  relacional  também  se  encontra  entre  os  que  definem  a  legitimidade  como  a  crença  na  correção  de  tais  pretensões  por  parte  daqueles  que  estão  sujeitos  a  um  sistema  de  dominação.  Neste  caso,  o  foco  não  se 

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dirige tanto para os esforços do poder para validar sua dominação, mas  para os motivos de concordância com as demandas de poder.  Esta  segunda  abordagem,  do  tipo  bottom‐up,  é  adotada  neste  trabalho,  que  analisa  a  legitimidade  a  partir  das  convicções  subjetivas  dos  cidadãos.  A  partir  desta  perspectiva,  é  possível  fazer  afirmações,  empiricamente  fundamentadas,  sobre  a  extensão  da  aprovação  que  recebe  um  sistema  de  dominação,  ou  descrever  dinamicamente  sua  evolução.   Na  análise  empírica  da  legitimidade  dos  tribunais  se  utiliza  frequentemente a noção de apoio difuso, inicialmente desenvolvida por  Easton  (1965).  O  apoio  específico  se  refere  ao  consentimento  a  uma  decisão  em  particular.  Mas  a  autoridade  seria  frágil  se  tivesse  que  depender  inteiramente  de  tais  acordos,  já  que  a  tomada  de  decisões  ‐  especialmente  nos  tribunais  ‐  sempre  favorece  alguns  e  prejudica  outros.  A  autoridade  sobrevive  graças  a  um  ambiente  de  apoio  geral,  que não está relacionado a uma medida específica, mas que é difuso, e  que lhe permite decidir à discrição.  O  apoio  difuso  pode  ser  entendido  como  um  reservatório  de  boa  vontade,  e  implica  que  as  pessoas  têm  confiança  na  capacidade  de  certas  instituições  de  fazer  políticas  desejáveis  em  longo  prazo.  Supõe  certa lealdade à autoridade, e implica que o fracasso ao realizar políticas  desejáveis  a  curto  prazo  não  prejudica  o  compromisso  básico  das  pessoas com a instituição. Esta noção de apoio difuso tem sido utilizada  para estudar empiricamente a legitimidade judicial (JL Gibson, Caldeira  e Spence, 2005; J. Gibson, 2007) entendida como a confiança no sistema  judicial, e é empregada da mesma forma nesta investigação.    3. A confiança na justiça: questões metodológicas    Na  América  Latina,  a  pesquisa  empírica  sobre  a  legitimidade  institucional tem utilizado dados de pesquisas de opinião provenientes  de  duas  fontes  de  dados  comparativos  em  nível  regional  ‐  Gallup  e  Latinobarómetro  ‐  que  utilizam  as  clássicas  perguntas  sobre  o  grau  de 

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confiança  em  diferentes  instituições5.  A  principal  utilidade  destas  medidas  é  a  possibilidade  de  realizar  análises  comparativas  entre  diversos países, assim como de seguir a evolução no tempo dos níveis  de legitimidade. Ao que se refere à Argentina, Turner & Carballo (2010)  publicaram  dados  sobre  a  confiança  na  justiça  para  várias  datas,  começando  por  1984.  Por  outro  lado,  a  série  Latinobarómetro  oferece  medições anuais desde 1995.  Tem‐se  destacado,  entretanto,  que  uma  medida  adequada  da  legitimidade deve incluir tanto itens atitudinais ‐ como a confiança nas  instituições ‐ como itens condutuais6, que permitam observar o grau de  obediência  à  autoridade,  ou  a  disposição  para  cumprir  com  seus  mandatos.  A  crítica  é  digna  de  consideração,  especialmente  em  uma  região onde a baixa legitimidade das instituições judiciais não impediu  a crescente judicialização da política (Sieder, Schjolden e Angell, 2005).  A  observação  é  particularmente  importante  em  um  país  como  a  Argentina,  onde  são  registrados,  ao  mesmo  tempo,  baixos  níveis  de  legitimidade  das  instituições  judiciais  e  consideráveis  taxas  de  litigiosidade.  Em  nosso  país,  o  índice  de  confiança  na  justiça  elaborado  pela  equipe  da  Universidade  Di  Tella  considera  tanto  os  indicadores  condutuais  como  atitudinais.  Entre  os  primeiros  se  incluem  os  itens  relacionados  à  disposição  para  recorrer  à  justiça  em  conflitos  patrimoniais, de trabalho e familiares; entre os segundos se encontram  as  questões de  opinião  sobre  a  imparcialidade,  eficiência  e  integridade  da  justiça.  A  série,  iniciada  em  2004,  mostra  sistematicamente  valores  mais elevados nos itens condutuais do que nos atitudinais 7.  Neste  projeto  foram  utilizadas  duas  medidas  diferentes  de  confiança na justiça, ambas destinadas a detectar as atitudes em direção  aos  magistrados.  A  primeira  delas  está  centrada  na  figura  pessoal  do                                                                 A  formulação  da  questão  é  a  seguinte:  Por  favor,  diga,  para  cada  um  dos  grupos,  instituições  ou  pessoas  mencionadas  na  lista,  quanta  confiança  você  tem  neles:  muita  (1),  alguma  (2),  pouca  (3)  ou  nenhuma  (4)  confiança  em...?  O  Congresso  Nacional,  o  Poder  Judiciário, os partidos políticos, as Forças Armadas, a Igreja, os Meios de comunicação, etc.  6 Para mais detalhes sobre tal classificação de indicadores ver Power e Cyr (2010).  7  Ver  em  http://www.utdt.edu/ver_contenido.php?id_contenido=521&id_item_menu  =1601 maiores detalhes sobre a construção deste índice e os resultados alcançados.  5

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juiz,  e  é  resultado  da  resposta  mais  simples  para  o  público  em  geral  (Você  acha  que  o  juiz  inspira  muita,  bastante  ou  pouca  confiança  e  sensação  de  proteção).  A  segunda  utiliza  a  medida  tradicional  de  confiança  nas  instituições,  usada  na  pesquisa  comparativa  internacional, mencionada acima.  Foram  utilizados  os  dados  de  duas  pesquisas  de  opinião  pública,  realizadas  na  cidade  de  Córdoba  por  esta  equipe  de  pesquisa.  A  primeira  delas  incluiu  400  casos,  e  ocorreu  muito  antes  da  introdução  da  participação  dos  leigos,  em  1993.  Nesta  foi  medida  a  confiança  na  figura  do  juiz  como  pessoa,  e  foram  obtidas  opiniões  com  relação  a  temas  como  a  independência,  a  imparcialidade,  a  eficiência  e  a  honestidade da justiça.  O  segundo  estudo  foi  realizado  em  2011,  quando  os  tribunais  mistos já funcionavam há seis anos, e foram realizadas 434 entrevistas.  Além da confiança na figura pessoal do juiz foi medida a confiança no  poder judiciário. Isso permitiu observar que a correlação (R de Pearson)  entre  ambas  as  medidas  é  de  0,443,  com  um  nível  de  significância  de  0,000.  As  opiniões  relativas  à  avaliação  da  justiça  foram  recolhidas  da  mesma forma que no projeto anterior.  Também  foram  utilizadas  as  bases  de  dados  do  Latinobarômetro  para  o  período  de  1995‐2010  para  a  descrição  da  situação  argentina  dentro do contexto regional.    4. A confiança na justiça na Argentina    Na  Argentina,  as  pesquisas  de  opinião  revelam  níveis  relativamente baixos de confiança nas instituições, entre elas, no poder  judiciário.  Os dados do Latinobarômetro indicam que somente um em  cada três cidadãos (34,5%) declarou ter muita ou alguma confiança nos  tribunais  em  2010.  A  informação  comparativa  permite  contextualizar  esta cifra.  Como  pode  ser  visto  na  Tabela  1,  na  União  Europeia  os  dados  recolhidos pelo Eurobarômetro indicam um valor de 47% para a mesma  data. Além da homogeneidade das médias, as diferenças entre os países  europeus são destacadas. Na área germano‐escandinava a proporção de  cidadãos que confiam no Judiciário está acima de 60%. No Reino Unido, 

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a  confiança  nos  tribunais  também  é  maioritária,  enquanto  que  os  valores diminuem nos países que recentemente aderiram à democracia,  como a Espanha, ou se caracterizam pela frequência de crises políticas,  como  a  Itália.  As  recentes  democracias  da  Croácia  ou  da  Letônia  registraram valores semelhantes aos argentinos.  Esta conexão entre a solidez da democracia e a confiança na justiça  é  igualmente  visível  quando  observamos  os  dados  norte‐americanos8.  Enquanto  no  espaço  europeu  quase  metade  dos  cidadãos  confia  na  justiça, na América Latina a proporção regional atinge 32%. Na região,  os países com maior tradição democrática, como o Uruguai ou a Costa  Rica,  ultrapassam  claramente  a  média  regional.  Também  é  importante  notar que o Brasil ‐ o país latino‐americano com a mais longa tradição  de júri, cuja participação dos leigos na administração da justiça funciona  desde  1822  (Amietta,  2010)  ‐  registra  níveis  de  confiança  na  justiça  significativamente maiores que a média da área.  A  capacidade  das  instituições  para  responder  às  demandas  socioeconômicas  dos  cidadãos  também  influencia  os  níveis  de  legitimidade  institucional.  Como  mostram  os estudos  comparativos  de  Gilley (2006) e Power e Cyr (2010), não é de se estranhar que os países  latino‐americanos  com  maiores  níveis  de  desenvolvimento  humano  contem instituições de maior respaldo social.  Esses dados permitem observar que a confiança no poder judiciário  registrada na Argentina apresenta valores próximos à média regional. É  um  pouco  maior  do  que  encontramos  em  países  com  significativas  desigualdades  étnicas,  como  Peru,  Bolívia  e  México,  cujo  sistema  judicial formal concorre com práticas judiciais dos povos originários, o  que  acaba  por  enfraquecer  ainda  mais  a  confiança  nas  instituições  do  Estado. (Power e Cyr, 2010).   Esta  revisão  da  informação  disponível  sobre  os  níveis  de  legitimidade  institucional,  em  nível  regional,  indica  que  vários  fatores  influenciam a confiança na justiça, tais como: a tradição democrática, a  capacidade das instituições de responder às demandas socioeconômicas  dos cidadãos ou as desigualdades étnicas.                                                               8

  Para  uma  discussão  detalhada,  empiricamente  fundamentada,  da  relação  entre  a  experiência democrática e os níveis de legitimidade na América Latina, ver Power e  Cyr (2010). 

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Tabela 1 ‐ Confiança no Poder Judiciário, 2010.    Muita/alguma  América Latina  confiança  Uruguay  58,1%  Brasil  51,1%  Costa Rica  46%  Venezuela  37,8%  Chile  36,9%  Argentina  34,5%  Colômbia  34%  Panamá  33,6%  México  27,5%  Paraguai  27%  Bolivia  23,5%  Peru  14,7%  Média  32,4%  Muita/alguma  Europa  confiança  Dinamarca  84%  Suécia  73%  Áustria  71%  Alemanha  60%  Reino Unido  50%  França  45%  Espanha  44%  Itália  42%  Letônia  36%  Croácia  20%  União Européia  47% 

Pouca/nenhuma  confiança  38,5%  45,4%  49,9%  58,1%  61,5%  63,6%  59,4%  61,3%  67,7%  69,8%  68,3%  82,7%  63,2%  Pouca/nenhuma  confiança  14%  25%  26%  34%  45%  50%  51%  52%  54%  76%  48% 

Não sabe  /não respondeu  3,4%  3,6%  4,1%  4,1%  1,6%  2%  6,6%  5,1%  4,8%  3,3%  8,2%  2,6%  4,3%  Não sabe  /não respondeu  2%  2%  3%  6%  5%  5%  5%  6%  10%  4%  5% 

Fonte: Para América Latina, Latinobarômetro (www.latinobarometro.org). Para Europa,  Eurobarômetro  (http://ec.europa.eu/public_opinion/index_en.htm).  Dados  processados  para este projeto. 

           

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Tabela 2 ‐ Confiança no Poder Judiciário – Argentina, 1995 ‐2010.    Ano  N  Muita/alguma  Pouca/nenhuma  Não sabe/  confiança  confiança  não  respondeu  1995  1200 (100%)  33,6%  62,1%  4,4%  1996  1199 (100%)  23,1%  72,4%  4,5%  1997  1196 (100%)  20,5%  75,1%  4,2%  1998  1264 (100%)  19,6%  78,5%  1,9%  2000  1200 (100%)  27,5%  68%  4,5%  2001  1200 (100%)  20,5%  77%  2,5%  2002  1200 (100%)  8,6%  90,4%  0,9%  2003  1200 (100%)  16,2%  81,2%  2,6%  2004  1200 (100%)  26,2%  72,4%  1,4%  2005  1200 (100%)  26,1%  71,7%  2,3%  2006  1200 (100%)  31,9%  66,9%  1,3%  2007  1200 (100%)  22,7%  74,5%  2,8%  2008  1200 (100%)  24,6%  74,1%  1,3%  2009  1200 (100%)  24,5%  73,3%  2,1%  2010  1200 (100%)  34,5%  63,6%  2%  Fonte:  Latinobarômetro,  processados para este projeto. 

(www.latinobarometro.org). 

Dados 

  A análise dos dados históricos sobre a legitimidade da justiça na  Argentina  mostra  variações  consideráveis  desde  a  restauração  da  democracia.  Analisando  a  evolução  da  confiança  nas  instituições  no  período  de  1984‐2006,  Turner  e  Carballo  (2010)  destacaram  a  deterioração  da  legitimidade  tanto  do  poder  legislativo  como  do  judiciário,  ocorrida  desde  o  retorno  da  democracia.  Usando  dados  do  Gallup,  demonstraram  que  em  2006  os  níveis  de  confiança  na  justiça  chegaram a 20%, praticamente um terço dos níveis registrados em 1984,  momento que se segue à recuperação da democracia (58%). Tal análise  vincula  a  queda  nos  níveis  de  legitimidade  à  baixa  capacidade  das  instituições  em  atender  as  expectativas  econômicas  dos  cidadãos,  e  salienta que a perda de confiança nas instituições não se limita ao poder  judiciário, mas se estende a outros poderes do Estado.  A série de dados do Latinobarômetro, iniciada em 1995, permite  acompanhar  a  recente  evolução  dos  níveis  de  legitimidade  na  justiça.  224  

Além das oscilações anuais, nota‐se que a crise do corralito e do “que se  vayan todos” colocou a legitimidade da justiça em seu mínimo histórico.  Naquele momento, menos de um em cada dez argentinos confiava nos  juízes. A posterior recuperação, provavelmente vinculada às mudanças  no  mecanismo  de  nomeação  dos  juízes  do  Supremo  Tribunal  assim  como  nos  esforços  para  melhorar  a  difusão  da  atividade  judicial9,  foi  relativamente  rápida,  colocando  os  níveis  de  confiança  em  números  semelhantes  aos  de  1995:  em  2010  cerca  de  um  terço  dos  argentinos  confiava na justiça.  O  exposto  até  então  é  suficiente  para  indicar  que,  como  pode  ser  previsto  a  partir  de  uma  abordagem  relacional  de  legitimidade,  a  confiança  na  justiça  é  uma  variável  complexa,  sujeita  a  diversas  influências.  Por  isso,  a  revisão  de  sua  relação  com  a  participação  dos  leigos  na  administração  da  justiça,  que  será  realizada  a  seguir,  tem  caráter tão somente exploratório.    5. A experiência cordobesa de tribunais mistos    Ainda que sua implementação seja recente, a instituição do júri tem  na  Argentina  profundas  raízes  históricas.  Entendida  como  garantia  contra  o  abuso  do  poder  do  Estado,  é  encontrada  em  projetos  elaborados  em  1813,  assim  como  nas  Constituições  de  1819  e 182610.  A  Constituição Nacional de 1853 a prescreve, em seus artigos 24, 64 inc. 11  e 9911. A longa presença dos projetos de julgamento por júri é um bom  indicador  da  profunda  aspiração  democrática  dos  argentinos,  assim  como de sua ampla tolerância à brecha entre o texto da lei e as práticas  sociais.  Atualmente,  os  julgamentos  por  júri  vigoram  somente  na  província de Córdoba.                                                                 Para uma descrição dos esforços realizados para restaurar a legitimidade do Tribunal  após  a  crise,  ver  Ruibal  (2010).  O  lançamento  do  canal  jurídico  de  CIJ  TV,  canal  de  notícias  de  transmissão  ao  vivo  pela  Internet  de  todo  o  Poder  Judicial,  feito  pela  Suprema  Corte  de  Justiça,  em  agosto  de  2011,  foi  um  marco  significativo  dessas  estratégias.  10  Para  uma  revisão  histórica  da  presença  dos  julgamentos  por  júri  na  normativa  argentina, ver Cavallero e Hendler (1988) e Jorge (2004).   11 Estas prescrições se mantiveram após a reforma de 1994, ainda que a numeração dos  artigos agora seja 24, 75 inc. 12 e 118.  9

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Nesta  província,  a  participação  dos  cidadãos  nos  processos  penais  foi  ordenada  pela  Constituição  de  198712.  Foi  colocada  em  prática  pela  primeira vez em 1998, sob a forma de um tribunal misto, composto por  três juízes profissionais e dois cidadãos comuns ‐ escabino ‐, chamado a  intervir  em  crimes  graves,  quando  o  advogado,  promotor  ou  a  vítima  assim o solicitam. A participação cidadã alcançada foi bastante limitada:  apenas trinta e três casos foram decididos por meio da intervenção leiga  entre 1998 e 2004 (Vilanova, 2004).    Desde  2004,  a  província  de  Córdoba  ampliou  a  participação  cidadã  nas decisões penais mediante a lei 9.182. A lei foi aprovada no contexto  de um debate nacional sobre as medidas para combater a insegurança,  impulsionado por Juan Carlos Blumberg13. Assessorado pelo Manhattan  Institute, de Nova York14, Blumberg reclamava o endurecimento penal e  a reforma judicial como meios para melhorar a segurança urbana, assim  como  a  inclusão  do  julgamento  por  júri  segundo  o  clássico  modelo  anglo‐saxão.  A concorrência multitudinária das marchas de Blumberg levou à  sanção  da  lei  provincial  9.182,  que  ampliava  a  experiência  de  participação  popular  nos  tribunais  criminais.  A  lei  criou  um  tribunal  misto,  com  maioria  leiga,  composto  por  oito  cidadãos  comuns  e  três  juízes profissionais, que decide por maioria simples em casos de crimes  hediondos e de corrupção.  Durante o debate parlamentar ficou evidente que esta iniciativa  também  havia  sido  impulsionada  pelo  interesse  em  recuperar  a  confiança na Justiça. O membro que representava a maioria expressou o  principal objetivo da lei nos seguintes termos:    “... o povo argentino pediu justiça porque sentiu que não tinha; o povo  argentino pediu segurança, porque não tinha; o povo argentino pediu  para  acreditar  em  suas  instituições  porque  já  não  acreditava.  Então, 

                                                              Constituição da província de Córdoba, Artigo 162. La ley puede determinar los casos en  que los Tribunales colegiados son también integrados por jurados.  13  Para  uma  análise  mais  detalhada  do  discurso  deste  movimento  social  consultar  Pegoraro (2004) e Tufró (2007).  14 Blumberg. Se Reunió con Policías en Nueva York, La Nación, Jun. 6, 2004. Disponível em:  http://buscador.lanacion.com.ar/Nota.asp?nota_id=607975&high=Manhattan%20Instit ute.  12

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nós, os legisladores de Córdoba, devemos responder ao apelo popular  e  criar  as  instituições  que  nos  permitam  repor  um  pacto  social  que  estava perdido, para criar uma ponte entre o povo e seus líderes, para  gerar  aquela  crença  que  se  perdeu  no  tempo.  Temos  de  reconstruir  o  contrato social. Para isso, são necessários os julgamentos por júri, pois  esse é um instrumento que nos leva ao objetivo já mencionadoʺ (texto  do debate transcrito em Ferrer e Grundy, 2005, p.101).  

  O objetivo de relegitimar o poder judiciário por esta via também  era compartilhado naquele momento por outros atores sociais. Assim, o  presidente  da  Associação  de  Magistrados,  Víctor  Vélez,  convocado  à  Legislatura para discutir a iniciativa, expressou [em relação à ampliação  do  número  de  júris]:  “é  uma  porta  que  se  abre,  por  onde  entra  um  saudável sentimento de equidade natural, e por onde sai uma boa ideia  sobre o funcionamento da justiça”15.  As  principais  resistências  à  iniciativa  procederam  da  profissão  jurídica. O temor de que, num contexto dominado pelo medo diante do  delito, a participação dos leigos levasse a um endurecimento das penas,  estimulou  a  oposição  dos  advogados.  O  forte  apoio  oferecido  pelo  Tribunal  Superior  de  Justiça  contribuiu  para  a  aceitação  do  novo  sistema, que após sete anos de aplicação contínua, pode ser considerado  em vias de consolidação16.  Em  particular,  a  sua  aceitação  por  aqueles  que  tiveram  a  oportunidade  de  participar  como  jurados  é  alta,  como  mostram  as  pesquisas  realizadas  pela  própria  Administração  da  Justiça,  em  2006  e  2010.  Esses  estudos  também  mostraram  um  aumento  significativo  da  boa imagem da justiça penal após a experiência participativa17.  É  importante  observar,  entretanto,  que  a  limitada  competência  atribuída  aos  tribunais  mistos  cordobeses  é  representada  pelo  registro                                                                Publicado em La Voz del Interior, 7/08/2004. Acesso em: http://buscador.lavoz.com.ar/    Para uma análise detalhada do processo de aceitação desta inovação institucional, ver  Bergoglio (2010).  17  Andruet,  Ferrer  e  Croccia  (2007)  relatam  que  o  percentual  dos  que  tinham  uma  imagem  boa  ou  muito  boa  da  justiça  penal  passou  de  44%  para  98%  após  a  experiência  participativa.  A  repetição  da  mesma  pesquisa  em  2010  mostrou  que  a  proporção  aumentou  de  52,3%  para  97,7%.  (Ver  este  último  relatório  em  http://www.justiciacordoba.gob.ar/justiciacordoba/indexDetalle.aspx?id = 110).  15 16

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de  apenas  150  processos  no  período  de  2005‐2010.  Durante  esses  seis  anos, apenas mil e duzentas pessoas comuns tiveram oportunidade de  participar das decisões penais.     Por  enquanto,  estes  dados  sugerem  que  os  efeitos  da  participação leiga sobre a confiança que os cidadãos comuns depositam  nas instituições judiciais podem ser ainda muito débeis.    6. A confiança na justiça em Córdoba     Os  dados  disponíveis  para  este  projeto  permitem  comparar  a  evolução  da  confiança  na  justiça  entre  1993  e  2011,  assim  como  permitem analisar algumas das dimensões dessas mudanças. Tal como  se  observa  na  tabela  abaixo,  a  confiança  na  justiça  tem  experimentado  uma  leve  melhora  nestes  dezoito  anos.  Embora  o  aumento  dos  que  declaram que a figura do juiz lhes inspira muita ou bastante confiança  seja modesto, as opiniões negativas têm diminuído consideravelmente.  Os  que  mostravam  ter  pouca  ou  muito  pouca  confiança  superavam  50%, e atualmente representam 40%.    Tabela 3. Confiança na figura do juiz, 1993‐2011.    O juiz inspira   Ano     1993    Muita confiança  3,6%     Bastante confiança  14,5%     Confiança regular  28,7%     Pouca confiança  38,1%     Muito pouca confiança  15,2%  Total  100,0% 

2011  3,7%  16,6%  39,4%  23,7%  16,6%  100,0% 

Relação estatisticamente significativa –   Qui Quadrado = 21,663 significativo para p
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