Gestos corpos e câmera: um dialogo com Gilbert Simondon - uma pequena introdução

May 26, 2017 | Autor: Andrea Scansani | Categoria: Gilbert Simondon, Cinematography, Fotografia, CameraWork
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Gestos, corpos e câmera: um diálogo com Gilbert Simondon

Esta apresentação é animada pela determinação de pensar a imagem cinematográfica tendo como ponto de partida a relação dos corpos que filmam e dos que são filmados através da observação do que é presente e palpável no momento da filmagem. Para tanto, faz-se necessário pensar as diferentes naturezas implicadas, o que as conecta e os possíveis resultados desta equação. A descrição pura e simples não é suficiente para expor as complexidades envolvidas, pois a imagem gerada pelo mecanismo da câmera é alimentada por elementos dos mais diversos. O carácter técnico, frequentemente dissociado da intuição e presença artística, necessita ser abraçado por um pensamento que faça a articulação entre estes universos. Sendo assim, minha exposição se dará em três etapas: a primeira colocará em questão o papel da câmera e da natureza da fotografia; a segunda traçará um breve (e não conclusivo) diálogo com o pensamento sobre o objeto técnico do filósofo francês Gilbert Simondon e a terceira fará uma aplicação destas considerações num único plano de um clássico do cinema brasileiro que dispensa apresentações: Os Fuzis de Ruy Guerra.

A realização cinematográfica estabelece seu processo de concretização a partir do momento no qual ideias, esboços e ensaios são transformados em imagens [e sons] pela ação de toda uma equipe reunida para este fim. Esses indivíduos, cada qual com sua competência sobre sua área de atuação, carregam a latência da obra cinematográfica e têm como convergência espaço-temporal o momento no qual a câmera é acionada. A cada nova tomada, um estado de presença singular é criado. Os corpos, aguçados pela atenção na especificidade da tarefa a ser desempenhada naquele exato momento, movem-se, em maior ou menor sincronia, na manufatura das camadas que construirão a obra audiovisual. Independente do tipo de produção, do tamanho da equipe, ou mesmo da finalidade da criação, a câmera age como um receptáculo aglutinador de gestos. Os saberes das mais variadas áreas envolvidas na composição fílmica lhe são oferecidos como a uma espécie de catalisadora do cinema. Entretanto, o que é de fato depositado em seu corpo? Como uma câmera pode traduzir ideias escritas sobre papel ao mesmo tempo que capta uma intenção discreta, por vezes imperceptível, do corpo de um ator? Para qual ou quais substâncias a câmera se abre? Do que é constituído este corpo fílmico?

A partir desses questionamentos propomos um percurso pelo fazer cinematográfico sob a óptica da câmera - instrumento da fotografia - onde esta possa servir de ligação entre as diferentes materialidades com a qual o cinema trabalha. O aprendizado fotográfico constitui-se no duplo percurso das Ciências e das Artes. É um saber híbrido, produto da interdisciplinaridade e de modos díspares de pensamento. É concebível olhar para a fotografia como um campo de conhecimento contínuo, metafórico e artístico, do mesmo modo que é possível analisá-la a partir de seus parâmetros técnicos formulados por óptica, química, eletrônica, informática etc. Ao explorar teoricamente estas duas vias seu aparente caráter dicotômico parece acentuar-se. Em contrapartida, a prática fotográfica requer a adoção concomitante do modo científico e artístico de pensar. É inimaginável atribuir-se a designação de fotógrafo a alguém sem conhecimentos básicos, mesmo que intuitivos, acerca das possibilidades técnicas de seus instrumentos, ao mesmo tempo que a sensibilidade estética é seu maior trunfo. Para um fotógrafo a cisão entre estes dois grandes campos é inexistente. Ambos são acionados simultaneamente, ainda que possam alternar sua relevância e assumir posições de maior ou menor destaque em determinado momento. Num claro jogo entre figura e fundo, entre conteúdo e forma, a composição cinematográfica ganha corpo. É através da câmera e dos gestos de seu operador, ou operadora, que é encadeada a dança da filmagem. A composição deste corpo meio humano meio mecânico é o que nos interessa investigar. Um corpo ativo e alerta que toma decisões técnicas e estéticas na rapidez e comando do instinto. Um corpo que, na maioria dos casos, é formado por mais de uma pessoa: uma que se move conduzida pela imagem a ser capturada pela câmera e outra - ou outras - que a acompanha salvaguardando as distâncias e proximidades deste olhar. Um corpo único formado pelo corpo maquinal da câmera, pelo corpo do seu operador e de seu ou seus assistentes. Pensar esta composição múltipla e híbrida como um único objeto técnico à disposição do cinema é o desafio. Para estabelecer os vínculos desta perspectiva sugerimos percorrer alguns caminhos propostos por Gilbert Simondon, em O modo de existência dos objetos técnicos. Nesta sua tese secundária de doutoramento, de 1958, Simondon questiona a redução da tecnologia à categoria de mero instrumento e reitera a necessária fusão entre pensamento e prática. O objeto técnico para Simondon exerce uma influência direta nos corpos dos indivíduos e, sua ação utilizadora, desencadeia uma alteração transversa, uma espécie de permuta contínua. Deste modo, o objeto técnico passa a ser visto como uma conexão entre os corpos e não como um objeto mecânico dissociado da realidade humana. O autor, desta forma, auxilia-nos a considerar a câmera o objeto técnico cinematográfico central e a analisá-la como força de coesão na realização audiovisual, pois coloca em perspectiva o funcionamento híbrido de uma filmagem. A

realização cinematográfica compreendida como um conjunto técnico, tal qual descrito por Simondon, oferece-nos os instrumentos para pensar suas partes - elementos, objetos e indivíduos - e as relações que delas emanam. Ao sustentar o valor da visão simultânea da teoria e da prática, do pensamento inventivo e da intuição, utiliza com frequência o modelo figurafundo cunhado pela Gestalt numa aproximação precisa do modo de operar da fotografia. Assim sendo, Simondon mostra os caminhos para uma reflexão sobre a estrutura cinematográfica e os diversos tipos de pensamento e intuição que a compõem. Com seu apoio, é possível pensar como seres que trabalham na imanência, na manipulação direta do mundo material e concreto, dão corpo e substância à uma obra através do conhecimento técnico e dos afectos que lhes permeiam.

Imaginemos agora Ricardo Aronovich, o fotógrafo e operador de câmera de "Os Fuzis" (São Paulo S.A., etc.) e seus assistentes Affonso Henriques e Hugo Kusnetzoff. Estes últimos sob comando do primeiro (que por sua vez está sob as orientações de Ruy Guerra) estão preparados para filmar a cena do beco, onde Nelson Xavier e Maria Gladys (Mário e Luísa) terão seu momento mais íntimo e intenso de todo o filme. O duelo entre desejo e raiva, o abismo entre dois corpos na ânsia do toque e na impossibilidade de união. Um dos planos dessa cena é pensado para ser filmado sem cortes em um único rolo em 35 mm, portanto com a duração de aproximadamente quatro minutos. A luz já está montada, os atores estão concentrados e prontos para iniciar a dança. Toda a equipe não especificada aqui também está atenta aguardando a condução de Ruy Guerra: que provavelmente indaga: "câmera"? Ao que Aronovich responde após acioná-la e certificar-se de que seu mecanismo se estabilizou: "foi". É apenas após a confirmação do funcionamento perfeito da câmera que todos começam a desempenhar seu papel.

Ao assistirmos uma de suas mais complexas cenas, onde Maria Gladys e Nelson Xavier travam um duelo de amor e dor vemos que algumas escolhas pré-filmagem são necessárias. Primeiro a iluminação tem que deixar o espaço livre para a movimentação, que por mais ensaiada que possa ter sido, necessita de sua dose de improviso para conquistar a força de sua autenticidade. Dentro desta primeira necessidade priorizou-se o mínimo de visibilidade na correção de foco que mesmo existente é sutil e razoavelmente precisa. Para que isso pudesse ocorrer numa cena noturna, a quantidade de luz tem que estar de acordo com o diafragma

utilizado que, neste caso, não pode ser muito aberto para não comprometer a profundidade de campo. Portanto este conjunto técnico tem que funcionar de acordo com estas escolhas. Por exemplo: o foquista sabe exatamente quando será necessário tocar na câmera para corrigir o foco, visto que conhece a objetiva utilizada, sua hiperfocal para dado diafragma e a profundidade de campo relativa a cada distância entre o corpo da câmera e o corpo dos atores. O operador por sua vez, ao mesmo tempo que verifica o desempenho técnico da câmera (através de seus ruídos ou sinais luminosos internos), ele afere a mão do foquista com seu olhar no visor, ele enquadra pensando não apenas na cena em si mas em tudo o que está (e deve permanecer) fora de quadro (boom, assistente, eventuais tripés, luzes parasitas etc.). Além destas questões que não dizem respeito exatamente à narrativa ou mesmo à atuação, o operador está atento ao desempenho técnico do ator. O que chamo de desempenho técnico aqui será a capacidade do ator de se posicionar sem infringir, por exemplo, a distância mínima na qual a lente poderá focá-lo, ou dar prioridade às áreas onde os pontos de luz agem de forma a contribuir com a cena. Todos estes pensamentos passam pela mente e pelo corpo do operador. Se ele vê o boom se aproximando ele, sutilmente desvia-se sem comprometer o que está sendo filmado. Se o ator se esconde na sombra, ele busca um novo ângulo que possa favorecer seu rosto. Se há algo tecnicamente comprometedor o operador tem que ter a capacidade de avaliar sua gravidade e render-se ao erro se necessário o que, por vezes, pode acarretar em grandes acertos para o filme. Este fundo complexo e abarrotado de informações é o que dá forma à figura, é tão importante quanto a própria interação dos atores que é a parte mais visível da imagem. No entanto, o que é mais encantador num plano como esse é exatamente a potência deste conjunto técnico em criar diálogos entre os corpos. A câmera respira a cena tanto quanto Nelson Xavier e Maria Gladys. Ela deseja, espera, foge, conduz e deixa-se levar. A câmera neste exemplo nunca age por conta própria, ela é movida pelos atores ou pelas emoções dos personagens. Como no momento no qual Aronovich faz uma curta panorâmica para a esquerda em ritmo rápido, quase um chicote, para chegar à Luísa que tentou bruscamente fugir de Mário. Os dois, câmera e Luísa param quando encontram a parede sempre áspera do beco. Neste exato momento a câmera, a nosso ver, é o sentimento da personagem. Não é seu olhar, não é um instrumento da narrativa, mas uma tradução de seu desespero de querer escapar e de querer se entregar e ver que não tem saída. Poderíamos analisar todos os momentos desta cena, no entanto cremos que nosso ponto está colocado. O diálogo promovido para pensar a fotografia cinematográfica a partir da técnica tem como propósito problematizar as relações dos mais variados corpos, dessemelhantes, materiais ou não, envolvidos no cinema: uma arte necessariamente tecnológica e indiscutivelmente humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADKINS, Taylor. "A Short List of Gilbert Simondon’s Vocabulary". In Fractal Ontology, novembro de 2007. Disponível em: https://fractalontology.wordpress.com/2007/11/28/a-short-list-, último acesso em 25 de outubro de 2015. AUMONT, J. Matière d'images, redux. Paris: Éditions de la Différence, 2009. coleção: Les Essais. BELLOUR, R. Le corps du cinéma: hypnoses, émotions, animalité. Paris: POL, 2009. CAMPOS, Jorge Lucio de; CHAGAS, Filipe. "Os conceitos de Gilbert Simondon como fundamentos para o design". In www.bocc.ubi.pt CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia. Florianópolis: Editora UFSC, 2013. GUMBRECHT, H. U. Produção de presença - o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. [original inglês: 2004]. ILIADIS, Andrew. "Gilbert Simondon and the Philosophy of Information: An Interview with Jean-Hugues Barthélémy". In Journal of French and Francophone Philosophy - Revue de la philosophie française et de langue française, Vol XXIII, No 1 (2015) pp 102-112. RODRÍGUEZ, Pablo. Reseña de "El modo de existencia de los objetos técnicos" de Gilbert Simondon. In Redes, vol. 13, número 26, dezembro, 2007, pp. 277-289, Universidad Nacional de Quilmes. SIETY, E. Fictions d'images - essai sur l'attribution de proprietés fictives aux images de films. [S.l.]: Presses universitaires de Rennes, 2009. Collection 'Le Spectaculaire'. SIMONDON, Gilbert. El modo de existencia de los objectos técnicos. Ed.Prometeo, Buenos Aires, 2008.

Direção de fotografia: Aronovich, Ricardo Câmera: Aronovich, Ricardo Assistência de câmera: Henriques, Affonso; Kusnetzoff, Hugo Locação: Milagres - BA; Tartaruga - BA; Nova Itarana - BA Identidades/elenco: Iório, Átila (Gaúcho) Xavier, Nelson (Mário) Gladys, Maria (Luísa) Bayer, Leonides (Sargento) Cândido, Ivan (Soldado) Pereio, Paulo César (Pedro) Carvana, Hugo (José) Loyola, Maurício (Beato) Barcellos, Joel (Vaqueiro com o filho morto) Polanah, Rui

Sampaio, Antonio - voz Povo de Milagres Povo de Tartaruga Povo de Nova Itarana

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