Gilberto Freyre: 80 anos de \"Casa Grande e Senzala\"

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Gilberto Freyre, History of Brazil, History of Brazilian Sociology, CASA GRANDE E SENZALA
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Assinala-se este ano o octaségimo aniversário da publicação, em 1933, de um dos maiores sucessos editoriais de sempre no Brasil, um livro que mudou definitivamente tanto os debates políticos quanto a investigação académica sobre a identidade brasileira: Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre. Reeditada mais de 50 vezes no Brasil, traduzida em diferentes línguas, republicada dezenas de vezes em inglês e espanhol, esta obra maior em que se cruza finamente história, antropologia e sociologia transformou-se num dos grandes clássicos em que se ensina a entender o Brasil pela diferença da sua cultura. Gilberto de Mello Freyre nasceu no Recife em 1900, no seio de uma família pernambucana de fazendeiros. Estudou numa escola Baptista, depois licenciando-se na Universidade de Baylor, no Texas, em 1920. Mais tarde, o que mudaria toda a sua forma de observar e pensar o seu país, estudou na célebre universidade de Columbia com o esse pai e mestre da antropologia cultural que foi Franz Boas. Na universidade norte-americana concluiu um mestrado em Ciências Sociais e Políticas com uma dissertação sobre A Vida Social no Brasil em meados do século XIX. Regressou em 1922 para trabalhar no Diário de Pernambuco

lusofonias nº 09 | 12 de Agosto de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • A Influência de Franz Boas • As Raças e a Modernização do Brasil • A Solução de Casa-Grande & Senzala • A Solução de Casa-Grande & Senzala - o Português • Fernando Henrique Cardoso Um Livro Perene • Carlos Drummond de Andrade, A Gilberto Freyre (1955) • Manuel Bandeira, casa-grande & senzala (1965) • João Cabral de Melo Neto, casa-grande & senzala (1975)

Dia 19 de Agosto: O Fórum de Macau e a diversificação da economia da RAEM

APOIO:

Gilberto

Freyre 80

anos

da

Casa-Grande & Senzala

A Influência N

Gilberto Freyre, 80 anos

da Casa-Grande & Senzala Ivo Carneiro de Sousa

A

ssinala-se este ano o octaségimo aniversário da publicação, em 1933, de um dos maiores sucessos editoriais de sempre no Brasil, um livro que mudou definitivamente tanto os debates políticos quanto a investigação académica sobre a identidade brasileira: Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre. Reeditada mais de 50 vezes no Brasil, traduzida em diferentes línguas, republicada dezenas de vezes em inglês e espanhol, esta obra maior em que se cruza finamente história, antropologia e sociologia transformou-se num dos grandes clássicos em que se ensina a entender o Brasil pela diferença da sua cultura. Gilberto de Mello Freyre nasceu no Recife em 1900, no seio de uma família pernambucana de fazendeiros. Estudou numa escola Baptista, depois licenciando-se na Universidade de Baylor, no Texas, em 1920. Mais tarde, o que mudaria toda a sua forma de observar e pensar o seu país, estudou na célebre universidade de Columbia com o esse pai e mestre da antropologia cultural que foi Franz Boas. Na universidade norte-americana concluiu um mestrado em Ciências Sociais e Políticas com uma dissertação sobre A Vida Social no Brasil em meados do século XIX. Regressou em 1922 para trabalhar no Diário de Pernambuco, chegando, cinco anos mais tarde, em 1927, a ocupar a posição importante de secretário do Governor Estácio de Albuquerque Coimbra (1872-1931). Com a Revolução de 1930, dissolvendo a República Velha e colocando no poder o candidato derrotado nas eleições presidenciais, Getúlio Vargas, o governador pernanbucano seria obrigado a deixar o seu Estado à pressa, embarcando na praia de Tamandaré com destino ao exílio na Europa em companhia do seu secretário particular, Gilberto Freyre. Chegados a Portugal, depois de alguns meses de permanência, Freyre viajou novamente para os Estados Unidos. Com a pronta (contra) Revolução constitucionalista de 1932, de retorno ao Brasil, Gilberto Freyre publicaria a sua obra maior gerando, de imediato, tantos aplausos como críticas violentas que foram acompanhando o seu regular sucesso editorial. O livro era absolutamente inovador, lia-se maravilhado como os melhores dos novos romances brasileiros, atraindo em cumplicidade as mais diversas intelectualidades que aqui se revisitam nos versos de três dos maiores modernistas do Brasil, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, e no inteligente ensaio que o antigo Presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu, dez anos atrás, para a 48ª edição de uma obra que comemorava então 70 anos. O seu impacto intelectual assentava sólido em quadro teórico renovador que tem, porém, uma dívida científica que Freyre sempre assumiu.

a verdade, a principal influência teórica que constantemente se insinua ao longos das páginas de Casa-Grande & Senzala vem directamente do professor de Gilberto Freyre em Columbia, Franz Boas (1858-1942). No final da década de 1920 quando publica Antropologia da Vida Moderna, Boas era já unanimente considerado o pai da antropologia norte-americana, apesar de ter nascido na Alemanha no seio de família judaica, em Minden, na Vestefália, e por aí se ter doutorado em Física com uma tese complicada sobre Psicofísica da Percepção. Decidiu, depois, realizar o seu pós-doutoramento em Geografia, participando numa missão científica alemã ao norte do Canadá, ficando completamente fascinado pela língua e cultura dos Inuit da ilha Baffin, a maior do arquipélago Árctico. Em 1887, já tinha convenientemente emigrado para ficar nos Estados Unidos e, depois de trabalhar como curador no grande Museu Smithsonian, na capital Washington (hoje o maior complexo do mundo com os seus 19 museus, galerias e jardim zoológico), chegaria em 1889 à universidade de Columbia para assumir uma cátedra de Antropologia

de

Franz Boas

que desenvolveria até ao fim da sua vida. Muitos dos seus estudantes, como Margaret Mead, Ruth Benedict ou Edward Sapir, haveriam de fundar departamentos de antropologia em várias outras universidades norte-americanas espalhando as duas principais lições aprendidas com o grande mestre. Antes de mais, a sua firme oposição às ideologias do racismo científico de que tinha testemunhado a crescente influência nos meios científicos e políticos alemães com a sua promoção da raça a concepção biológica, assim defendendo ser possível perceber o comportamento humano directamente a partir do estudo de diferentes características físicas. A seguir, Franz Boas rejeitou completamente a aplicação do evolucionismo ao estudo das culturas humanas quando pretendia explicar a evolução das sociedades através de um progresso linear, subindo uma escada hierárquica até chegar por etapas ao cimo formado pela cultura europeia ocidental. Hostil, duplamente, às versões idealistas e materialistas do evolucionismo, o mestre ensinava os seus alunos a entender a cultura como um processo histórico realizado através das interacções de comunidades, grupos e ideias, sociedades e ambiente, não existindo qualquer movimento contínuo em direcção a obrigatórias formas “superiores” de cultura. Os dois princípios acabariam por ser lidos, não sem simplismo, por relativismo cultural, conquanto Boas insiste-se que todas as sociedades e populações do mundo tinham desenvolvido completa e igualmente as suas próprias culturas que eram simplesmente diferentes, nem inferiores nem superiores. As lições de Franz Boas mudaram a antropologia para sempre e, com ele, mudou Gilberto Freyre.

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II

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As Raças R

ecorde-se que, nas décadas finais do século XIX brasileiro, os debates entre as elites intelectuais e políticas debruçavam-se sobretudo sobre a relação entre a Nação e as suas raças. O processo de modernização política e social com a abolição, já tardia, da escravatura em 1888 e a proclamação, no ano seguinte, da República, impôs uma reflexão política ainda mais generalizada em que as elites brasileiras procuravam perceber como poderiam iluminar a construção de uma identidade nacional moderna e civilizada. Estas discussões muitas reunindo presidentes, parlamentares, partidos e líderes intelectuais tanto como cada vez mais imprensa, livros e manifestos destacavam negativamente a conexão entre ambiente e raça: a terra quente e generosa do Brasil era uma espécie de trópico dos pecados convidando excitadamente à miscigenação racial que exagerava o péssimo influxo africano no sangue brasileiro. Como é que uma nação tão grande como o Brasil podia gerir os constrangimentos do ambiente tropical e a multiplicação intolerável da miscigenação para criar uma sociedade razoavelmente moderna e civilizada? Nas respostas da intelectualidade brasileira predominava a forte influência do pensador francês Arthur de Gobineau (1816–1882). Mistura de filósofo e prolixo escritor, etnógrafo e ensaísta, aristocrata e arreigadamente regalista, o conde de Gobineau publicou em quatro grossos volumes, entre 1853 e 1855, uma demorada obra sobre a desigualdade das raças (Essai sur l’inégalité des races humaines) que agitava um ponto de partida simples: a raça era a base da civilização, mas esta, infelizmente, em vez de se desenvolver, degenerava por todo o mundo através de inadmíssiveis miscigenações raciais (Não creio que viemos dos macacos mas creio que vamos nessa direcção, escreveu na sua introdução). O que não podia ser, visto que, seguindo as leis que definiu pormenorizadamente do “determinismo poligenético fisiológico”, Gobineau concluiu “com absoluta certeza” pela existência “de três raças típicas claramente demarcadas: a negra, a amarela e a branca.” O ensaísta francês ainda passa parte do seu primeiro volume a reflectir se negros e amarelos enformavam mesmo raças humanas, visto que não os vislumbrava na descendência directa de Adão e Eva, mas prefere destacar a seguinte certeza histórica: os negros eram o algodão e os amarelos a lã e, estando condenados a produzir civilizações ainda no estádio da escravatura, procuravam imitar, em caricatura, e apropriar, corrompendo-a, a seda que caracterizava apenas a raça branca sem a qual não poderiam vir a ser minimamente subtis! Chega... Este nosso original (ou muito pouco…) oitocentista teórica das raças

lusofonias

– da superioridade de uma e da inferioridade de todas as outras – era também um diplomata de carreira. Durante treze meses, entre Março de 1869 e Abril de 1870, foi embaixador no Brasil, colocado no Rio de Janeiro, tempo suficiente para se tornar amigo pessoal do imperador D. Pedro II com quem manteve durante vários anos entretida correspondência epistolar. O imperador encomendou-lhe mesmo uma obra oficial para a apresentação

Arthur

de

e a

Modernização

população brasileira estivesse em condições de subdividir ainda mais os elementos daninhos da sua actual constituição étnica, fortalecendo-se através de alianças de mais valor com as raças europeias, o movimento de destruição observado nas suas fileiras encerrar-se-á, dando lugar a uma acção contrária”. Simples, elementar e de grande influência entre a inteligência brasileira por muitas das décadas seguintes.

Gobineau (1816-1882)

do Brasil na Grande Exposição Universal de Viena, de 1874, e Gobineau concluiu ainda no ano anterior o texto que viria a ser impecavelmente impresso para o certame austríaco com o título L’Emigration au Brésil: l’Empire du Brésil à l’Exposition Universelle de Vienne. Livrinho simpático para com a rica terra brasileira, bonita e cheia de oportunidades, guiada por uma muito galófila família imperial (D. Pedro II foi até eleito sócio estrangeiro pela Academia de Ciências de Paris), mas, infelizmente, aplicando matematicamente o seu ensaio sobre a desigualdade das raças, o conde de Gobineau não conseguiu visionar futuro para um Brasil em que a mistura racial dava origem a mestiços e pardos degenerados e estéreis que levariam ao desaparecimento da população. A única solução residia na rápida mobilização da emigração de raças europeias: “se em vez de se reproduzir entre si, a

Logo em 1872, realiza-se o recenseamento geral da população que, considerado por muitos o primeiro levantamento científico demográfico sério, revelou uma maioria de 62% de negros, mestiços e índios. O que parece ter assustado muitos intelectuais sobretudo instalados no Rio e em São Paulo. Joaquim Pereira dos Santos Júnior, por exemplo, escreve neste período em favor da necessidade de melhorar esta população brasileira através de uma colonização feita por “raças que por suas qualidades físicas e morais possam concorrer para o progresso moral e material do País”, excluindo imediatamente “as raças africanas e asiáticas”, propondo exclusivamente a promoção da emigração das “raças neo-latina e anglo-saxónica”. O que não era então fácil de concretizar já que a perpetuação da escravatura, a concentração latifundiária, a ausência de liberdade religiosa, sobretudo

do

Brasil

para os emigrantes de países protestantes, a par das notícias sobre maus tratos a colonos europeus no Brasil, tornavam difícil o estabelecimento de um fluxo migratório consistente de países europeus. Em alternativa, ainda por cima com a abolição da escravatura, muitos grandes latifundiários, mais os seus partidos, associações e deputados abundantes, viraram-se imediatamente para a emigração desses pobres chineses que, conhecidos por coolies, chegavam aos milhares ao Peru, a Cuba e aos Estados Unidos para serem explorados como mão-de-obra barata nos trabalhos mais duros. Conseguiram influenciar a Comissão para a Reforma do Elemento Servil da Câmara dos Deputados, encarregada de desmantelar legalmente a escravatura, foi também criada, em 1882, a Companhia de Comércio e Imigração Chinesa, mas não se conseguiu trazer para o Brasil mais do que mil chineses para trabalhar numa mina em São João Del Rei, nas Minas Gerais. A oposição dos principais intelectuais brasileiros, de Sílvio Romero a Euclides da Cunha, de médicos como Nicolau Moreira a líderes abolicionistas como Alfredo d’Escragnolle Taunay ou André Rebouças foi violenta contra a possibilidade de emigração chinesa. A voz autorizada de Joaquim Nabuco, grande escritor, fundador do Partido Liberal brasileiro, senador perpétuo, conselheiro de Estado, abonado latifundiário, principal líder abolicionista, primeiro embaixador do Brasil nos Estados Unidos e presidente, ainda em 1906, da Conferência Pan-Americana foi definitiva: a miscigenação com asiáticos contribuíria ainda mais para a degeneração do brasileiro, sendo urgente uma colonização em que, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regime, a imigração europeia traga sem cessar para os trópicos uma corrente de sangue caucásico e vivaz, energético e sadio, que possamos absorver sem perigo. Os chineses não vieram para o Brasil antes do final da década de 1950, mas muitos milhares de emigrantes europeus, italianos (1.507.695 entre 1884 e 1959), espanhóis (683.382 no mesmo período), alemães (176.422) e muitos portugueses (1.391.898) vieram do Norte, das Beiras, dos Açores, multiplicaram-se por todo o território desde o final do século XIX, chegaram ao sul menos povoado, e praticamente ninguém questionava intelectualmente esta colonização mobilizando esmagadoramente pobres camponeses que fugiam da miséria e das guerras na Europa. O que, na longa duração da história, não alterou radicalmente as caracterísiticas saudavelmente multi-colores da população do Brasil que, no último censo de 2010, apresentava uma maioria de 97 milhões de negros e mestiços, contra os 91 milhões que se autodeclararam brancos.

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 12 de Agosto de 2013

III

A Solução de & Casa-Grande Senzala

P

ara aqueles que viam na maioria negra e mestiça da população brasileira o problema, Gilberto Freyre sublinhou originalmente em Casa-Grande & Senzala que eram a solução. Resgatando, não sem idealismo, o negro, o mestiço, o mulato na formação da diferença da cultura brasileira, Freyre procurou explicar na sua obra que a miscigenação era uma vantagem cultural e não um obstáculo à modernização do Brasil. Não vale a pena descrever ou interpretar demoradamente este argumento central, as primeiras páginas de Casa-Grande & Senzala são absolutamente brilhantes tanto como inteligentes: “Vencedores no sentido militar e técnico sobre as populações indígenas; dominadores absolutos dos negros importados da África para o duro trabalho da bagaceira, os europeus e seus descendentes tiveram entretanto de transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais. A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações - as dos brancos com as mulheres de cor - de “superiores” com “inferiores” e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. A índia

IV

e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social no Brasil. Entre os filhos mestiços, legítimos e mesmo ilegítimos, havidos delas pelos senhores brancos, subdividiu-se parte considerável das grandes propriedades, quebrando-se assim a força das sesmarias feudais e dos latifúndios do tamanho de reinos.” Agitando estes argumentos, o livro teve o efeito de uma bomba entre uma intelectualidade muito pouco habituada a observar a miscigenação como enriquecedora da cultura e identidade nacional brasileiras. É verdade que Casa-Grande & Senzala não é, rigorosamente, um livro sobre a identidade brasileira (ao jeito de O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro), mas antes uma hipótese sobre as origens e o desenvolvimento da família patriarcal do Nordeste brasileiro cujos valores e mentalidade social pareciam a Freyre constituírem a predisposição básica da diferença histórica da cultura brasileira. A obra reconstrói também uma geneaologia cultural que, desde os contactos iniciais da colonização portuguesa, foi fundindo indígenas, europeus e africanos que moldaram o que Freyre designa em Casa-Grande & Senzala por civilização brasileira. O livro revisita a própria noção de português que, a ler aqui em apartado final, perde em europeu o que ganha em mestiço, prefigurando o universal miscigenador dessa teoria do lusotropicalismo com que Freyre foi tentando explicar a especial capacidade dos portugueses em se adaptarem às sociedades tropicais de que o Brasil era o paradigma. Infelizmente, embaraçado entre uma viagem promovida pelo Ministério do Ultramar português, em 1951 e 1952, considerações apressadas e erradas sobre as culturas das colónias portuguesas e reflexões politi-

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camente comprometidas em torno da “democracia das raças” promovida pelo colonialismo português, o lusotropicalismo freyriano foi praticamente ignorado entre as nascentes ciências sociais brasileiras. Pior ainda quando, em 1964, Gilberto Freyre decide apoiar o golpe que trouxe ao Brasil 21 anos de ditadura militar, a sua fama de grande príncipe do novo pensamento brasileiro empalideceu para sempre. Muito incorrectamente, Casa-Grande & Senzala deixou de ser lida e reflectida para se tornar obra facilmente criticada, aqui por elogiar o patriarcalismo dos latinfundiários do nordeste, ali por ignorar estruturas económicas e explorações sociais, mais além por desconhecer o sul e outras muitas regiões do Brasil. Freyre foi sendo acantonado progressivamente aos lados mais conservadores do Brasil e, com isso, Casa-Grande & Senzala foi-se acanhando ao mofo de velho museu nordestino. O que é mais do que injusto. É tempo de se perceber muito simplesmente que obras e autores clássicos têm um valor intrínseco, independente das suas manias, manipulações e sensibilidades ideológicas. Devem ser lidos. Por isso, ainda neste nosso ano de 2013, António Cândido, escritor, académico, grande especialista em história da literatura brasileira e um dos mais respeitados e sérios críticos literários, colocava entre os 10 livros mais importantes para compreender o Brasil, ao lado das duas grandes obras de Joaquim Nabuco, O Abolicionismo (1883) e Um estadista do Império (1897), e dos inevitáveis Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha, ambos os autores críticos acérrimos da miscigenação, a obrigatória Casa-Grande & Senzala. Lembrava a propósito da obra clássica de Gilberto Freyre um episódio vivido em 2001 com um muito radical amigo que, depois de ler Casa-Grande & Senzala, remirou-se demoradamente ao espelho e concluiu: acho que sou mulato.

Casa-Grand Q

uando em 1532 se organizou econômica te a sociedade brasileira, já foi depois lo inteiro de contato dos portugueses com de demonstrada na Índia e na África sua ap vida tropical. Mudado em São Vicente e em o rumo da colonização portuguesa do fáci para o agrícola: organizada a sociedade co base mais sólida e em condiçôes mais está Índia ou nas feitorias africanas. no Brasil é zaria a prova defintiva daquela aptidão. A cultura; as condições. a estabilidade patria lia. a regularidade do trabalho por meio da a união do português com a mulher índia, assim à cultura econômica e social do invas Formou-se na América tropical uma soc ria na estrutura, escravocrata na técnica de económica, híbrida de índio - e mais tarde d composição. Sociedade que se desenvolve da menos pela consciência de raça, quase pontuguês cosmopolita e plástico, do que sivismo religioso desdobrado em sistema social e política. Menos pela acção oficial braço e pela espada do particular. Mas tudo nado ao espírito político e de realismo eco rídico que aqui, como em Portugal, foi desd século elemento decisivo de formação nac que entre nós através das grandes famílias e autónomas: senhores de engenho com alt dentro de casa e índios de arco e flecha o mados de arcabuzes às suas ordens; donos de escravos que dos senados de Câmara fala grosso aos representantes del-Rei e pela vo filhos padres ou doutores clamaram contra cie de abusos da metrópole e da própria M Bem diversos dos criollos ricos e dos bacharéis letrados da América espanhola - por longo tempo inermes à sombra dominadora das catedrais e dos palácios dos vice-reis, ou constituídos em cabildos que em geral só faziam servir de mangação aos reinóis todo-poderosos. A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido Freyre entre a Europa e a África. sociocultural b Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A influ na fervendo sob a europeia e dando um ac à vida sexual, à alimentação, à religião; o sa ou negro correndo por uma grande popula rana quando não predominando em regiõe de gente escura; o ar da África, um ar que amolecendo nas instituições e nas forma as durezas germânicas; corrompendo a rig doutrinária da Igreja medieval; tirando os o tianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótic na canónica, ao direito visigótico, ao latim carácter do povo. A Europa reinando mas se governando antes a África. Corrigindo até certo ponto tão grande i clima amolecedor, actuaram sobre o carácte entesando-o, as condições sempre tensas e contato humano entre a Europa e a África; estado de guerra (que entretanto não exc miscigenação nem a atracção sexual entre

lusofo

de

Gilberto Freyre & Senzala – o Português

ca e civilmende um sécum os trópicos; ptidão para a m Pernambuco il, mercantil, olonial sobre táveis que na que se realibase, a agriarcal da famía escravidão, , incorporada sor. ciedade agráde exploração de negro - na eria defendinenhuma no e pelo exclude profilaxia do que pelo o isso subordionómico e jude o primeiro cional; sendo proprietárias tar e capelão ou negros ars de terras e aram sempre oz liberal dos ra toda espéMadre Igreja.

ças, muito menos o intercurso entre as duas culturas); a actividade guerreira, que se compensava do intenso esforço militar relaxando-se, após a vitória, sobre o trabalho agrícola e industrial dos cativos de guerra, sobre a escravidão ou a semi-escravidão dos vencidos. Hegemonias e subserviências essas que não se perpetuavam; revezavam-se tal como no incidente dos sinos de Santiago de Compostela. Os quais teriam sido mandados levar pelos mouros à mesquita de Córdoba às costas dos cristãos e por estes, séculos mais tarde, mandados reconduzir à Galiza às costas dos mouros. Quanto ao fundo considerado autóctone de população tão movediça, uma persistente massa de dólicos morenos, cuja cor a África árabe e mesmo negra, alagando de gente sua largos trechos da Península, mais de uma vez veio avivar de pardo ou de preto. Era como se os sentisse intimamente seus por afinidades remotas apenas empalidecidas; e não os quisesse desvanecidos sob as camadas sobrepostas de nórdicos nem transmudados pela sucessão de culturas europeizantes. Toda a invasão de celtas, germanos, romanos, normandos - o anglo-escandinavo, o H. Europaeus L., o feudalismo, o cristianismo, o direito romano, a monogamia. Que tudo isso sofreu restrição ou refracção em um Portugal influenciado pela África, condicionado pelo clima africano, solapado pela mística sensual do islamismo. A indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África parece ter sido sempre a mesma em Portugal como em outros trechos da Península. Espécie de bicontinentalidade que correspondesse em população assim vaga e incerta à bissexualidade no indivíduo. E gente mais flutuante que a portuguesa, dificilmente se imagina; o bambo equilíbrio de antagonismos reflecte-se em tudo o que é seu, dando-lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade, às vezes perturbada por dolorosas hesitações, e ao carácter uma especial riqueza de aptidões, ainda que não raro incoerentes e difíceis de se conciliarem para a expressão útil ou para a iniciativa prática. Mas o luxo de antagonismos no carácter português, surpreendeu-o magnificamente Eça de Queirós. O seu Gonçalo, d’A ilustre casa de Ramires, é mais que a síntese destaca a importância da Casa-Grande na formação do fidalgo: é a síntese do bem como a da senzala que complementaria a primeira português de não importa que classe ou condição. uência africa- Que todo ele é e tem sido desde Ceuta, da Índia, da cre requeime descoberta e da colonização do Brasil como o Gonçalo angue mouro Ramires: “cheio de fogachos e entusiasmos que acabam ação branca- logo em fumo” mas persistente e duro “quando se fila es ainda hoje à sua idéia”; de “uma imaginação que o leva a exageente, oleoso, rar até a mentira” e ao mesmo tempo de um “espírito as de cultura prático sempre atento à realidade útil”; de uma “vaigidez moral e dade”, de “uns escrúpulos de honra”, de “um gosto de ossos ao cris- se arrebicar, de luzir” que vão quase ao ridículo, mas ca, à discipli- também de uma grande “simplicidade”; melancólico m, ao próprio ao mesmo tempo que “palrador, sociável”; generoso, em governar; desleixado, trapalhão nos negócios; vivo e fácil em “compreender as coisas”: sempre à espera de “algum influência do milagre, do velho Ourique que sanará todas as dificuler português, dades”; “desconfiado de si mesmo, acovardado, encoe vibráteis de lhido até que um dia se decide e aparece um herói”. ; o constante Extremos desencontrados de introversão e extroversão cluiu nunca a ou alternativas de sintonia e esquizoidia, como se diria e as duas ra- em moderna linguagem científica.

onias

Fernando Henrique Cardoso

Um Livro Perene

N

ova edição de Casa-grande & senzala. Quantos clássicos terão tido a ventura de serem reeditados tantas vezes? Mais ainda: Gilberto Freyre sabia-se “clássico”? Logo ele, tão à vontade no escrever, tão pouco afeito às normas. E todos que vêm lendo Casa-grande & senzala, há setenta anos, mal iniciada a leitura, sentem que estão diante de obra marcante. Darcy Ribeiro, outro renascentista caboclo, desrespeitador de regras, abusado mesmo e com laivos de génio, escreveu no prólogo que preparou para ser publicado na edição de Casa-grande & senzala pela biblioteca Ayacucho de Caracas, que este livro seria lido no próximo milénio. Como escreveu no século passado, quer dizer nos anos 1900, no século vinte, seu vaticínio começa a cumprir-se neste início de século vinte e um. Mas por quê? Os críticos nem sempre foram generosos com Gilberto Freyre. Mesmo os que o foram, como o próprio Darcy, raramente deixaram de mostrar suas contradições, seu conservadorismo, o gosto pela palavra sufocando o rigor científico, suas idealizações e tudo o que, contrariando seus argumentos, era simplesmente esquecido. É inútil rebater as críticas. Elas procedem. Pode-se fazê-las com mordacidade, impiedosamente ou com ternura, com compreensão, como seja. O facto é que até já perdeu a graça repeti-las ou contestá-las. Vieram para ficar, assim como o livro. É isso que admira: Casa-grande & senzala foi, é e será referência para a compreensão do Brasil. Por quê? Insisto. A etnografia do livro é, no dizer de Darcy Ribeiro, de boa qualidade. Não se trata de obra de algum preguiçoso genial. O livro se deixa ler preguiçosa, languidamente. Mas isso é outra coisa. É tão bem escrito, tão embalado na atmosfera oleosa, morna, da descrição frequentemente idílica que o autor faz para caracterizar o Brasil patriarcal, que leva o leitor no embalo. Mas que ninguém se engane: por trás das descrições, às vezes romanceadas e mesmo distorcidas, há muita pesquisa. Gilberto Freyre tinha a pachorra e a paixão pelo detalhe, pela minúcia, pelo concreto. A tessitura assim formada, entretanto, levavam frequentemen-

te à simplificação habitual dos grandes muralistas. Na projecção de cada minúcia para compor o painel surgem construções hiper-realistas mescladas com perspectivas surrealistas que tornam o real fugidio. Ocorreu dessa forma na descrição das raças formadoras da sociedade brasileira. O português descrito por Gilberto não é tão mourisco quanto o espanhol. Tem pitadas de sangue celta, mas desembarca no Brasil como um tipo histórico tisnado com as cores quentes da África. O indígena é demasiado tosco para quem conhece a etnografia das Américas. Nosso autor considera os indígenas meros colectores, quando, segundo Darcy Ribeiro, sua contribuição para a domesticação e o cultivo das plantas foi maior que a dos africanos. O negro, e neste ponto o anti-racismo de Gilberto Freyre ajuda, faz-se orgiástico por sua situação social de escravo e não como consequência da raça ou de factores intrinsecamente culturais. Mesmo assim, para quem tinha o domínio etnográfico de Gilberto Freyre, o negro que aparece no painel é idealizado em demasia. Todas essas caracterizações, embora expressivas, simplificam e podem iludir o leitor. Mas com elas, o livro não apenas ganha força descritiva como se torna quase uma novela, e das melhores já escritas e, ao mesmo tempo, ganha força explicativa. Nisto reside o mistério da criação. Em outra oportunidade, tentando expressar meu encantamento de leitor, apelei a Trotsky para enzala. O grande revolucionário dizia: “todo verdadeiro criador sabe que nos momentos da criação alguma coisa de mais forte do que ele próprio lhe guia a mão. Todo verdadeiro orador conhece os minutos em que exprime pela boca algo que tem mais força que ele próprio”. Assim ocorreu com Gilberto Freyre. Sendo correcta ou não a minúcia descritiva e mesmo quando a junção dos personagens faz-se em uma estrutura imaginária e idealizada, brota algo que, independentemente do método de análise, e às vezes mesmo das conclusões parciais do autor, produz o encantamento, a iluminação que explica sem que se saiba a razão. CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE >

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Como entretanto não se trata de pura ilusão há-de reconhecer-se que Casa-grande & senzala eleva à condição de mito um paradigma que mostra o movimento da sociedade escravocrata e ilumina o patriarcalismo vigente no Brasil pré-urbano-industrial. Latifúndio e escravidão, casa-grande e senzala eram, de facto, pilares da ordem escravocrata. Se nosso autor tivesse ficado só nisso seria possível dizer que outros já o haviam feito e com mais precisão. É no ir além que está a força de Gilberto Freyre. Ele vai mostrando como, no dia-a-dia, essa estrutura social, que é fruto do sistema de produção, se recria. É assim que a análise do nosso antropólogo-sociólogo-historiador ganha relevo. As estruturas sociais e económicas são apresentadas como processos vivenciados. Apresentam-se não só situações de facto, mas pessoas e emoções que não se compreendem fora de contextos. A explicação de comportamentos requer mais do que a simples descrição dos condicionantes estruturais da acção. Essa aparece no livro como comportamento efectivo e não apenas como padrão cultural. Assim fazendo, Gilberto Freyre inova nas análises sociais da época: sua sociologia incorpora a vida quotidiana. Não apenas a vida pública ou o exercício de funções sociais definidas (do senhor de engenho, do latifundiário, do escravo, do bacharel), mas a vida privada. Hoje ninguém mais se espanta com a sociologia da vida privada. Há até histórias famosas sobre a vida quotidiana. Mas nos anos 30, descrever a cozinha, os gostos alimentares, mesmo a arquitectura e, sobretudo, a vida sexual, era inusitado. Mas não é difícil insistir no que de realmente novo - além do painel inspirador de Casa-grande & senzala como um todo – veio para ficar. De alguma forma Gilberto Freyre nos faz fazer as pazes com o que somos. Valorizou o negro. Chamou atenção para a região. Reinterpretou a raça pela cultura e até pelo meio físico. Mostrou, com mais força de que todos, que a mestiçagem, o hibridismo, e mesmo (mistificação à parte) a plasticidade cultural da convivência entre contrários, não são apenas uma característica, mas uma vantagem do Brasil. E acaso não é esta a carta de entrada do Brasil em um mundo globalizado no qual, em vez da homogeneidade, do tudo igual, o que mais conta é a diferença, que não impede a integração nem se dissolve nela?

Carlos Drummond de Andrade, A Gilberto Freyre (1955)

Velhos retratos; receitas de carurus e guisados; as tortas Ruas Direitas; os esplendores passados; a linha negra do leite coagulando-se em doçura; as rezas à luz do azeite; o sexo na cama escura.

Manuel Bandeira, Casa-grande & senzala

(1965)

Casa-grande & senzala, Grande livro que fala Desta nossa leseira Brasileira.

Que importa? É lá desgraça? Essa história de raça, Raças más, raças boas - Diz o Boas -

Mas com aquele forte Cheiro e sabor do Norte - Dos engenhos de cana (Massangana!)

coisa que passou Com o franciú Gobineau. Pois o mal do mestiço Não está nisso.

Com fuxicos danados E chamegos safados De mulecas fulôs Com sinhôs.

Está em causas sociais. De higiene e outras que tais: Assim pensa, assim fala Casa-grande & senzala.

A mania ariana Do Oliveira Viana Leva aqui a sua lambada Bem puxada.

Livro que à ciência alia A profunda poesia Que o passado revoca E nos toca

Se nos brasis abunda jenipapo na bunda, Se somos todos uns Octoruns,

A alma de brasileiro, Que o portuga femeeiro Fez e o mau fado quis Infeliz!

João Cabral de Melo Neto, Casa-grande & senzala (1975) Ninguém escreveu em português no brasileiro de sua língua: esse à vontade que é o da rede, dos alpendres, da alma mestiça, medindo sua prosa de sesta, ou prosa de quem se espreguiça.

(Fernando Henrique Cardoso, São Paulo, julho de 2003)

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Segunda-feira, 12 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS

lusofonias

Economias... Reúne

estudos e análises sobre o desenvolvimento económico dos

Países

de

TMOR-LESTE | Será o país da Ásia-Pacífico a crescer mais em 2013

S

Língua Portuguesa

e a sua cooperação com a

República Popular

da

China

MOÇAMBIQUE|recebe 42 milhões de dólares de empresa Indiana

ediado em Manila, fundado em 1966, reunindo 67 países membros, o Banco poderoso grupo mineiAsiático de Desenvolvimento ro indiano Coal India (BAD) divulgou recentemente Ltd. (CIL) decidiu reservar as suas previsões de cresci42 milhões de dólares para mento para os diferentes paíinvestimentos sociais em ses da Ásia-Pacífico em 2013. Moçambique, assim procuAgora já sem grande surprerando ultrapassar alguns dos sa, Timor-Leste será o país obstáculos que têm vindo nesta vasta região do globo a a limitar o seu projecto de mais crescer, prevendo-se um exploração comercial das aumento de 9,5% do PIB timoricas reservas de carvão rense. O relatório do BAD destaca a boa saúde geral da economia de Timormoçambicanas. Estes inves-Leste, mas volta a sublinhar a sua excessiva dependência do sector petrotimentos serão fundamenlífero, assim como dos investimentos sustentados sobretudo pelo orçamentalmente aplicados na consto do Estado, apesar do crescimento do investimento directo estrangeiro trução de dois Institutos de formação profissional. Re(IDE). Na verdade, grande parte do corde-se que a CIL, baseada em Calcutá, é já a maior orçamento estatal e do investimento companhia do mundo no sector, empregando 357.926 público continua dependente do funtrabalhadores. Através da sua subsidiária Coal India do do petróleo que cresceu mais 1,2 Africana, a companhia tem vindo nos últimos anos a biliões de dólares no primeiro quarinvestir largamente nos recursos minerais africanos. ngola recebeu tel de 2013, totalizando rendimentos Em 2009, a companhia indiana ganhou a competição recentemende 13 biliões de dólares, alimentados internacional pela concessão de dois blocos em Moatite um apreciação por royalties, taxas e forte retorno te, na província de Tete, reforçados em 2012 com um bastante positiva dos seus investimentos em fundos contrato de exploração no valor de 80 milhões de dóno último relatório internacionais. Apesar de alguma inlares para a exploração de uma área de 205 Km2 em do Banco Mundial certeza nos preços internacionais do que se estima existirem reservas de carvão mineral dedicado à econocrude, o ADB prevê ainda que Timorde um bilião de toneladas. No ano passado, o governo mia do país. Assim, -Leste cresça 10% em 2014. de Moçambique queixou-se junto da companhia e do a organização ingoverno indiano para a falta de cumprimento dos internacional prevê vestimentos e equipamentos sociais previstos no conpara este ano de trato de concessão. A companhia replicou, criticando 2013 um crescio governo de Moçambique por não ter ainda concluído mento do PIB angoas infra-estruturas ferroviárias imprescindíveis para o lano em 7,2% e de transporte e comercialização do carvão. Com a inter7,5% em 2014. No entanto, o Banco Mundial alertou as autovenção directa do governo indiano, destacando que ridades angolanas para a vulnerabilidade deste crescimento a cooperação internacional do país visa o desenvolque continua excessivamente dependente das exportações vimento social das populações locais, a verba agora de petróleo em crude e, assim, sujeito às incertezas e fludisponobilizada pela CIL parece encerrar um capítulo tuações dos preços no mercado global do sector petrolímarcado por alguns equívocos no crescente investifero. Ao mesmo tempo, o Banco Mundial assinalou muito mento indiano em Moçambique, país com quem, como positivamente as melhorias no controlo governamental das se sabe, mantém longa relação histórica. finanças públicas e o grande aumento da transparência nas vendas externas de crude através da divulgação pública de relatórios sobre a produção e exportação petrolíferas do romovida pela Feira Internaciopaís. A organização acrescentou que, apesar destas francas nal de Luanda (FIL), concluiu-se melhorias na gestão das finanças públicas, outros passos se no princípio de Julho em audiêndevem seguir para garantir uma completa transparência dos cia com o Presidente Manuel Pinto processos financeiros, económicos e comerciais de Angola. da Costa uma importante visita de empresários angolanos a S. Tomé e Príncipe. Esta iniciativa procura estabelecer parcerias com empresários locais e definir estratégias para a assinatura de um acordo bilateral, incluindo a realização de um fórum de negócios e uma feira multi-sectorial. Os vinte empresários angolanos, representando diferentes sectores da economia, liderados pelo Presidente do Conselho de Administração da FIL, Matos Cardoso, visitaram pormenorizadamente S. Tomé e Príncipe, mantiveram encontros com várias autoridades e empresas locais, empresa chinesa-saudita Amtendo-se manifestado sia Motors assinou um acordo especialmente inte- de entendimento com o goverressados em investir no brasileiro para construir no nos sectores da Ener- país lusófono a primeira fábrica gia, Águas, Turismo e de automóveis híbridos e elécInfra-estruturas. Por tricos. A empresa vai ser instaisso, o grupo de em- lada no Sergipe, mobilizando presários angolanos vi- um investimento inicial de 457 sitou vários locais com milhões de dólares. A Amsia potencial turístico no encontra-se a desenvolver parpaís, tendo ainda man- cerias com empresas alemãs, tido conversações com britânicas e canadianas para se o primeiro-ministro tornar num competidor global são-tomense, Gabriel neste segmento em crescimento Costa. da indústria automóvel.

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ANGOLA revista pelo Banco Mundial

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S. TOMÉ E PRÍNCIPE Tentativa de

atrair empresários angolanos

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Empresa

BRASIL Chinesa-Saudita

vai construir fábrica de automóveis eléctricos e híbridos

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 12 de Agosto de 2013

VII

Elogio do torresminho

Publica

textos de estudo e opinião sobre a diversidade cultural das Lusofonias

Ideias

Carlos Alberto Dória*

“São testemunhos sertanejos daquele vínculo histórico que se quer romper o sarapatel (guisado de sangue, tripas e miúdos de porco ou carneiro, bem condimentado, originado no alto Alentejo); o sarabulho (iguaria típica portuguesa, que se prepara com sangue, miúdos, gordura e pedaços de carne de porco condimentado e ensopado, com origem no Minho); assim como as tripas de porco torradas no espeto; o toucinho e o torresmo.”

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a Ilha da Utopia de Thomas More as refeições são feitas em comunidade, ao chamado de uma trombeta, e são totalmente dietéticas: não só se come muita fruta, como se ouve música e máximas morais, o que é bom para a digestão. A utopia, nos dias de hoje, busca a continuidade entre a harmonia dos costumes e as dietas. Na distopia do mundo real, come-se carne de porco com um prazer excessivo e pecaminoso. E é interessante como a utopia moderna, baseada em conhecimentos que se arvoram científicos e definitivos, busca expulsar o porco da mesa e do léxico. Há alguns anos, sem que seja possível precisar essa normose, a palavra “porco” foi substituída nos açougues, supermercados e restaurantes pelo anódino “suíno”. A tradicional bisteca de porco tornou-se bisteca suína. Só o torresmo parece resistir como a última cidadela do porco. Torresminho com feijoada, com cachaça, remetendo aos grotões de Minas, parecem nos ligar a um passado que é abertamente combatido. O porco foi domesticado, a partir do javali, primeiramente na China, havendo indícios de mais dois centros de domesticação na Europa Central, segundo recentes testes de DNA. Restos arqueológicos do porco, datados de 7.500 anos a. C., foram encontrados em Chipre, fracionados em quatro grandes partes: a cabeça, os membros anteriores, o dorso e o traseiro. Segundo os cientistas, esses parcelamentos indicam a prática tanto de cozer ao fogo (“rôtissage”) como de assar (“grillage”), sugerindo a existência de receitas e de hábitos culinários estruturados que remontam ao Neolítico, há 10 mil anos do presente. No entanto, apesar desses 10 mil anos de sua história culinária, ele também foi evitado por tabus alimentares que remontam aos tempos bíblicos e chegam aos nossos dias, quando as dietas mágicas, como a “dieta mediterrânea”, sugerem o banimento da gordura de porco, cedendo lugar ao azeite de oliva na culinária dita “saudável”. Vez ou outra essas teorias sobre a saúde – nas quais é mais fácil identificar os interesses comerciais do que a fundamentação científica – sofrem abalos, promovem revisões, e eis que o porco, assim como outras gorduras animais, vive em fase de “descriminalização de uso”, ao passo que as gorduras “trans”, de origem vegetal, passam à berlinda. No entanto, é nesse mesmo momento que passa a ser chamado solitariamente “suíno”, sem que os bois tenham sido transformados em “bovinos” ou os búfalos em “bubalinos”. Exatamente por essas oscilações valorativas, é que o porco persiste como elemento estruturador das culturas em seus aspectos culinários, distanciando-se do modelo das modas passageiras. A rigor, todas as culturas precisam ter seu discurso sobre o porco, não cabendo a indiferença. Poderíamos classificá-las, então, em culturas “porcófilas” e “porcófobas”, observando também que o animal delimita a fronteira entre o mundo selvagem e o mundo civilizado – como no mito do porco negro, corrente em Portugal, na França e no sul do Brasil, sendo ele um ser noturno que persegue os homens na escuridão, até o limite das vilas ou cidades. Dentre as culturas “porcófobas”, há um tratamento copioso quando se refere ao judaísmo ortodoxo e ao islamismo –próximos ao banimento total do animal do campo do comestível. Mas, mesmo nas culturas tolerantes, ou que privilegiam essa fonte alimentar, há momentos de vedação; tabus alimentares que expulsam o porco temporariamente da mesa. Mas há povos que nunca se afastaram do porco, como os chineses, os franceses, os alemães e os ibéricos –além de inúmeras etnias africanas e orientais. No entanto, as proximidades variam entre as culturas. É provável que os chineses tenham inventado a fritura, quiçá cozendo o porco em sua própria gordura. Mas, no seu ensaio “Jamón: Esa Momia Tan Cristiana”, Manuel Vazquez Montalbán mostra como o porco se situou, para a cristandade espanhola, como a prova mais precisa do “cristão velho” diante de judeus e mouros, aos quais a sua carne provocava asco. Ao chamar alguém de porco “se expressava a macabra intolerância e desafeição do cristão comedor de porco, desagradecido, que insulta com o nome do que devora”. Ele ainda registra, nas bodas cristãs, a hipérbole da exaltação: ”Hubo seis cosas en la boda de Antón: cerdo, cochino, guarro y lechón”. Assim, é fácil imaginar a situação onde o porco, ocupando o papel ambíguo e contraditório de ligação com o divino ou com o demoníaco, precisa ter sua forma de consumo claramente san-

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Segunda-feira, 12 de Agosto de 2013 • LUSOFONIAS

cionada; e a incorporação da carne de porco é o problema que, hoje, parece simbolizar o resvalar do mundo da alimentação saudável para a perdição. O mineiro come 22 quilos de carne por ano, sendo 10 de carne de boi e 8 de carne de porco. Já o paulista come 25, sendo 13 de carne de boi e 5 de carne de porco. Tanto um quanto outro têm seu consumo maior nos estratos de maior renda. A “dessuinização” da dieta parece ser uma tendência da urbanização e da riqueza. Uma tendência histórica incontestável. Como bem mostra Warren Belasco, o século 19 entronizou a bovinocultura como o modo civilizado de comer carne, especialmente quando se deu a conquista do “far-west” americano e, com a invenção dos navios frigorificados, dos pampas argentinos. Mesmo nas churrascarias de rodízio atuais, parece que a carne de porco só é oferecida quando alguém já se fartou de carne bovina, mostrando a sua inequívoca civilidade alimentar. O porco, assim como outros pequenos animais, ficou em segundo plano. Os grandes latifúndios pecuários contrastam com a criação doméstica de porcos, galinhas, carneiros e cabras –as chamadas miuças- desde o inicio da colonização do Brasil. Assim, é entre os homens livres e pobres, especialmente do sertão, que se firma a preferência pelo porco, criando um vínculo de continuidade com os colonizadores ibéricos que o tinham em alta estima alimentar. A culinária da Península Ibérica, com suas carnes de porco, borregos e carneiros, cabritos e galinhas, cozidos, refogados ou assados; ou empanados em pastelões (o que hoje chamamos tortas), foi o nosso legado primordial. A ameaça a essa tradição só pode vir, portanto, de outra esfera da cultura: a hegemonia do pensamento médico-urbano sobre outras formas de apreciação do comer. São testemunhos sertanejos daquele vínculo histórico que se quer romper o sarapatel (guisado de sangue, tripas e miúdos de porco ou carneiro, bem condimentado, originado no alto Alentejo); o sarabulho (iguaria típica portuguesa, que se prepara com sangue, miúdos, gordura e pedaços de carne de porco condimentado e ensopado, com origem no Minho); assim como as tripas de porco torradas no espeto; o toucinho e o torresmo. Os argumentos de um importante antropólogo da alimentação, Claude Fischler, é que a incorporação está fundada em mecanismos mentais gerais e interfere na vida, vez por outra, resolvendo problemas da vida cotidiana e, por isso, nos ajuda a entender a relação da própria alimentação com a cultura, o tempo, a religião, a medicina. Extremamente crítico em relação à dieta mediterrânea, ele mostrou como essa utopia alimentar –que pouco tem de correspondência com a realidade histórica– se firma numa perspectiva de “imortalidade” ou longevidade em continuação ao moralismo higienista dos “health reformers” americanos do século 19. Para esses missionários americanos da alimentação, a “vida saudável” guardava distância das carnes e, para Kellogg, o mais famoso deles (até pelos seus matinais de origem vegetal), “o declínio de uma sociedade começa com agourmandise”. Como animal transgressor, o porco, de “regra”, se confina na exceção. Na feijoada dos sábados, na happy hour que quebra a monotonia do dia. No torresminho, como a exaltação da gordura, que é onde verdadeiramente se transgride a “cientificidade” que preside a vida. A indústria -com quem a medicina colabora ou para quem uma certa medicina é feita– cuidou de sanitizar geneticamente o porco, selecionado as raças que fornecem proporcionalmente mais carne do que gordura. As raças brasileiras, desenvolvidas desde a colonização visando a produção de gordura –como a moura, o monteiro, o tatu, o casco-de-mula, o canastra, o carunho, o piau, o pirapitinga e o nilo– praticamente só existem nos bancos genéticos da Embrapa. Assim temos que, “perseguido durante décadas por dietistas primários e inquisidores (ele) foi reabilitado como a sardinha e ainda que acrescente mais colesterol que o devido, não complica as calorias ao se comer com prudência; e engorda a alma mais que o colesterol e o ácido úrico, em tempos onde a alma está tão anorética que seria crueldade proibi-lo”. No caso do Brasil, e do apreço culinário pelo torresmo ou pelo toucinho, trata-se de uma condenação cultural quase insuportável, sendo que o primeiro passo para essa deculturação é a condenação à “vida breve” a que nos destinam os “health reformers” modernos. Assim, transformaram o prosaico hábito de comer torresmo num ato de resistência cultural. *Doutor em sociologia, pesquisador-colaborador do IFCH-Universidade Estadual de Campinas (Campinas, Brasil) 

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