Gilda de Mello e Souza e Virginia Woolf, possíveis amigas.docx

May 20, 2017 | Autor: Marina Diel | Categoria: Virginia Woolf, Estética, Filosofia Brasileira, filosofia da moda
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Gilda e Virgínia: possíveis amigas

Autora: Marina Diel de Araujo

Resumo
O presente artigo propõe uma aproximação entre Virgínia Woolf, autora inglesa do início do séc. XX, e Gilda de Mello e Souza, filósofa e intelectual brasileira de meados do séc. XX, com base na noção de "movimento" presente, em Woolf, na descrição cinematográfica do "flanar" de suas personagens e, em Gilda, na análise do fenômeno sociológico, simbólico e estético que é a moda. A concepção de uma amizade imaginária entre as duas autoras evoca o diálogo possível que seus escritos estabelecem.
Palavras-chave: Moda - Sociologia da moda - Virginia Woolf - Gilda de Mello e Souza - Estética.
Em 1926 Virgínia Woolf publica o texto "A Pintura". Em 1950 Gilda de Mello e Souza defende sua tese de doutorado em filosofia: "A moda no séc. XIX", a qual é publicada sob o nome "O espírito das roupas" em 1987. São 24 anos que separam os textos das duas grandes autoras, mulheres e intelectuais escrevendo sobre o Olhar; a primeira na Inglaterra e a segunda, no Brasil. Seria mais apropriado dizer que antes de possíveis interlocutoras, Gilda e Virgínia teriam sido amigas: o que permite essa afirmação é o inimitável tom de conversa dos escritos de ambas, cada um inimitável à sua maneira, mas que permitem à imaginação conceber um diálogo nada prosaico (mas antes preocupado em conceber em palavras o Mistério e as belezas) entre as prosas das escritoras: em Virgínia, a segurança e assertividade próprias da autora que antecipou o cinema graças às suas descrições caminhantes, andarilhas, mutáveis, como a vida é, e que o cinema representa por imagens, enquanto seus romances representam por intermináveis flanares e fluxos de consciência. A comparação com o cinema surge naturalmente: a prosa de Virgínia é cinematográfica, pois suas descrições acompanham os passos e pensamentos de suas personagens simultaneamente deslumbradas e espantadas pela vida e pela beleza. Em Gilda, o tom professoral, mas de quem fala somente para um grupo seleto de seus dois ou três alunos e alunas preferidos: O Espírito das Roupas é uma aula, mas ministrada na sala de estar de sua autora, na companhia do cheiro levemente úmido e reconfortante de seus livros e do chá que ela, a escritora, oferece em um bule florido.
No ensaio de Woolf, lemos que, caso houvesse uma completa destruição de todas as pinturas modernas, um crítico que vivesse no séc. XXV desconfiaria da existência das obras de Matisse, Cézanne, Derain e Picasso, simplesmente por ter lido Proust. É assim - inimitável no estilo - que Woolf introduz seu tema: a influência da pintura na literatura e os demais "namoros" entre as diversas formas de arte. Evidente que, segue a autora poeticamente, isso não significa que ler Proust é ver Picasso; caso Proust apelasse especialmente ao olho - como ocorre com a pintura - ele seria um mau escritor, um "homem sem pernas", amputado da escrita por ser incapaz de usar o olho para "fertilizar o pensamento", como Woolf escreve em "A Pintura":
Mas foi o olho que fertilizou seu pensamento; foi o olho, em Proust, sobretudo, que veio em socorro dos outros sentidos, combinou-se com eles, produzindo efeitos de extrema beleza e de uma sutileza até então desconhecida. (WOOLF, 2015, pág. 88, tradução de Tomaz Tadeu.)
Os músculos que riem diante da graça sentida ao contemplarmos uma bailarina de Degas não são os mesmos músculos que riem quando lemos literatura. Um bom escritor o sabe: um jarro de cristal, por exemplo, não deve ser descrito como um fim em si mesmo, por isso Proust descreverá o jarro como visto através dos olhos das mulheres presentes na sala.
Da mesma forma, a fim de nos fazer entender as emoções sentidas por um cavalheiro que contempla uma dama em um teatro, somos levados a imaginar cores, texturas, ondulações de seu vestido - a maneira como o forro de sua veste interage com a luz não é a razão de nossa observação, mas sim a materialização de pensamentos incorpóreos. Ao realizar uma descrição de tal natureza, o autor devolve às coisas a realidade que alguns séculos de filosofia cartesiana retirou delas. É pelo vestido que se sabe o encanto do cavalheiro pela dama e o encantamento que ela lhe causa. O pensamento, assim, existe depois do vestido ou ao mesmo tempo que ele, mas não antes, não enquanto metafísica. Mas isso Woolf não diz: ela não usa palavras como "metafísica", mas prefere grafar "formas", "fibras", "brilho,
"luz", "azul", "lírio", "cravos".

É também pela matéria que Gilda nos convida a ler Proust e ver imagens do séc. XIX de homens e mulheres posando para fotografias e pinturas. Nada, aparentemente, menos metafísico que o costume dos suspensórios e cartolas para os homens e das anquinhas e corpetes para as mulheres. Contudo, assim como pensamentos são texturas, cores e densidades, anquinhas e cartolas invocam - mais do que expressam - pensamentos. Gilda pergunta-se a razão da vestimenta masculina ter se tornado tão angular, reta e discreta no séc. XIX, quando antes já tinha motivo da ruína de muitos cortesãos, o que nos mostra o chamado Campo do Pano de Ouro, ocasião em que, em 1520, Francisco I encontra-se com Henrique VIII, em meio a tecidos e ornamentos luxuosos e centenas de convidados.
A revolução Francesa ascendeu a burguesia e diminuiu as distâncias políticas entre os homens, que passaram a se distinguir menos pelas roupas, destacando-se delas. A roupa torna-se mero cenário e o ideal do dandy fica no passado. É a "inteligência" a chave que abrirá as portas para os homens - às mulheres, por outro lado, cabe o fardo e a responsabilidade da beleza, a qual não lhes abria nenhuma porta gloriosa, mas as encaminhava à conformidade do casamento. A intensa Mrs. Dalloway de Virgínia Woolf sabe que sua intensidade manifesta-se limitadamente no interior de sua residência hermética. Mrs. Dalloway não explode sua força de vida: ela escolheu a vida matrimonial junto a um homem de cargo importante no governo, a única escolha que, enquanto mulher burguesa, pôde vislumbrar (e Gilda, em seu Espírito das Roupas, fala-nos muito sobre a construção do papel da mulher burguesa através das roupas, dos chapéus, ancas e quilos de forros de fartos vestidos).
Enquanto lemos Mrs. Dalloway somos apresentados ao encanto dessa personagem por meio dos olhos de seu ex-amante, de seu marido, de sua filha e seus amigos; cada personagem tem razões diferentes para adorá-la (e às vezes odiá-la, como no caso de Mrs. Kitty, a babá de sua filha). Contudo, apesar de sua condição burguesa, bem provida de finos guardanapos, cultivadas orquídeas e louças francesas, Mrs. Dalloway nos inspira tristeza. São nesses elementos e em sua cordialidade de anfitriã que ela expressa seu mundo interior. O jantar por ela oferecido encerra seu destino. E o destino dessa anfitriã é ir ela mesma comprar as flores: "Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores." (WOOLF, 2013, pág. 9, trad. de Claudio Alves Marcondes). Assim começa o livro: como se o voluntarismo da personagem pudesse disfarçar dela mesma a posição de sombra que o casamento burguês lhe legara. Seu flanar durante a missão da busca pelas flores não esconde o melancólico desvelamento de sua vida ao fim do livro. Sua história não seria diferente, para sempre, dos pequenos episódios que marcam a preparação de uma cerimônia, e sua autonomia não ultrapassaria o passeio à cidade rumo à floricultura
É claro que a vida tem sua beleza, ainda assim. Talvez, na verdade, devêssemos nos perguntar se há outra beleza que não a beleza das sedas, estampas chinesas, taças de cristal, a beleza da cavalaria real, dos jardins do Palácio, da objetiva dança dos pedestres pelas ruas de Londres. Mas, afinal, pode haver outras belezas além das que o olhar e a memória permitem? A Vida – como mistério - é tão maior que a vida de Mrs. Dalloway?
O que ela amava era isto, aqui, agora, na sua frente; a senhora gorda no carro. Importava então, indagava consigo, encaminhando-se para Bond Street, importava mesmo que tivesse de desaparecer um dia, inevitavelmente? Tudo aquilo continuava sem ela. Sentia-o? Ou seria um consolo pensar que a morte acabava com tudo, absolutamente? (WOOLF, 2013, pág. 15, trad. de Claudio Alves Marcondes).
A pergunta é livre de moralismos; Mrs. Dalloway não é religiosa, a não ser por sua adesão espontânea à uma certa religião para ateus, na qual se faz o bem por amor à bondade, como ela é descrita por Woolf. A beleza a qual nos referimos não é a beleza, portanto, que há "por trás" das coisas; mas a beleza das coisas mesmas (como a Beleza que Platão coloca em uma dimensão ideal; a Ideia que empresta sua marca às manifestações de beleza menores, as desse mundo). Voltemos, então: há outra beleza que a dos tecidos que suavemente se moldam ao corpo? E por que falamos no sentido da vida quando Mrs. Dalloway apenas planeja dar uma festa? É porque é a vida mesma que se coloca como questão a ser resolvida (ou celebrada) em uma recepção bem provida de petiscos, bebidas, boa música e boas companhias, é a vida que ao mesmo tempo é usada como argumento – pelos outros – para que a festa se torne supérflua. Não para Clarissa Dalloway:
Porém, aprofundando ainda mais, por baixo do que diziam as pessoas (e esses juízos, quão superficiais, quão fragmentários!), o que, agora em seu espírito, significava afinal isso para ela, essa coisa que chamava de vida? Ó, era bem estranho. Fulano de Tal estava em South Kensington; Sicrano em Bayswater; e alguém mais, por exemplo, em Mayfair. E, de maneira quase contínua, ela tinha consciência da existência separada deles; lamentava que fosse assim; sentia que seria ótimo se pudessem se reunir; e é por isso que fazia isso. Era uma oferenda; juntar; criar; mas para quem?
Uma oferenda pelo simples prazer de oferecer, talvez. Seja como for, esse era seu dom. Para ela, nada mais era assim tão importante; não conseguia pensar, nem escrever, tampouco tocar piano. Confundia armênios e turcos; adorava o sucesso; odiava o desconforto; necessitava ser apreciada; conversava bobagens sem fim; e até hoje, se lhe perguntassem onde ficava o Equador, não saberia dizer. (WOOLF, 2013, pág. 125. Tradução de Claudio Alves Marcondes).
A contemplação da aparência de cada um de nós; que cada um se contemple, e que todos contemplem uns aos outros, em seus gestos, suas vestes, seu deslocamento pela ampla sala decorada pelas flores que Mrs. Dalloway fora buscar pela manhã. É à essa vida que a anfitriã serve.
Gilda nos lembra, em O Espírito das Roupas, que um fenômeno como a moda ultrapassa a rasa análise mercantil ou propagandista: há momentos em que é através da vestimenta que as gerações encontram lugar para evadir seus sonhos. Também é pela moda que às vezes damo-nos conta de nossa subjetividade, razão pela qual em um diálogo com um velho amigo muito elegante, Mrs. Dalloway subitamente sentiu-se "estranhamente consciente de seu próprio chapéu":
Ah claro, claro que entendia; que desagradável; e sentiu-se muito solidária e, ao mesmo tempo, estranhamente consciente de seu próprio chapéu. Não era o mais adequada para o início da manhã, era? Pois era assim que se sentia sempre diante de Hugh que, afobado, erguia o chapéu de modo extravagante e insistia que ela podia passar por uma jovem de dezoito anos, e claro que iria à festa de noite, Evelyn fazia questão...". (WOOLF, 2013, pág 12, trad. de Claudio Alves Marcondes).
Talvez o chapéu fosse inapropriado para aquela hora da manhã ou para aquele encontro inesperado - mas ela não poderia saber. Embora a princípio pareça banal perguntar-nos se é o chapéu que faz com que nos sintamos ridículos ou se é a nossa própria "ridicularidade" que se expressa pela péssima escolha de nossos chapéus, para Virgínia e para Gilda poderíamos fundar uma filosofia exatamente sobre essa questão.
É meu chapéu que se torna subitamente ridículo na presença de um ilustre e discreto intelectual? Sou eu ou o chapéu quem fica ridículo? Há qualquer distinção, no momento da vergonha, entre eu e meu chapéu? Estou ridícula por causa do meu chapéu ou ele se torna ridículo depois que me recordo que, ao sair, escolhi extamente ele, contra todas as possibilidades dos encontros que me deixam envergonhada diante da minha escolha? Que há algo de mim no chapéu que escolho não é somente um recurso usado pela psicologia publicitária. Quando Mrs. Dalloway envergonha-se do chapéu, envergonha-se de si: desejaria ter escolhido outro chapéu àquela manhã. Sente vergonha do chapéu e vergonha de sua escolha: vergonha de si mesma. O que aqui pode parecer um exagero estilístico serve apenas para nos indicar o que o título da obra de Gilda diz: as roupas se mostram com algum espírito.
Natural que Mrs. Dalloway lembre-se do chapéu e o ache inconveniente: as peças da moda existem em concordância com nosso movimento. É o que Gilda nos diz, comparando a moda com as demais expressões artísticas, com a suavidade de quem fala baixo aos seletos alunos que frequentam sua sala de estar:
Enquanto o quadro só pode ser visto de frente e a estátua nos oferece sempre a sua face parada, a vestimenta vive na plenitude não só do colorido, mas do movimento. Este acrescenta ao repouso qualquer coisa que nele já estava contido, mas que, apenas agora, subitamente irrompe. (SOUZA, 1996, pág. 40).
Assim, a causa do súbito auto-estranhamento de Mrs. Dalloway com relação ao chapéu que escolhera para vestir em sua ida à cidade pode ser explicada pela simples "falta de concordância":
Assim como para julgarmos a beleza de um rosto não podemos separar o acordo das linhas de expressão que as anima - tantos rostos sendo belos por possuírem exatamente essa beleza de expressão -, para que a vestimenta exista como arte é necessário que entre ela e a pessoa humana se estabeleça aquelo elo de identidade e concordância que é a essência da elegância. (SOUZA, 1996, pág. 41).
A moda é, entendida como concordância, um jogo de ordenação e coincidências entre o corpo que veste a roupa e a roupa que o contempla, pois um corpo deve ser contemplado pela roupa, e ela deve contemplar tudo o que os movimentos daquele corpo exigem: não no sentido de uma conformação, mas de permitir a expressão que aquele corpo tem, que é material e real, mas particular e singular. A moda é uma arte com pouca ou nenhuma metafísica: não fala em essências, pois esse fenômeno (da moda e do chapéu que concorda com a pessoa que o veste) se dá pela união, e não pela destilação de todos os "acidentes" até que se chegue à um substrato residual. A moda não veste o substrato: ela apenas manifesta a realidade que compõe com a pessoa.
Juntas, as imaginárias amigas Virgínia e Gilda poderiam ter composto uma tal filosofia da moda, do flanar e do movimento; costurar os pensamentos de uma aos da outra é esboçar esse diálogo que nunca aconteceu, mas que, caso ocorresse naquela sala de estar de Gilda do começo do texto, nos faria desejar estar entre seus eleitos ouvintes complemtativos – e maravilhados.
Referências:
SOUZA, Gilda de Mello; "O Espírito das Roupas", São Paulo: Companhia das Letras, 1996
WOOLF, Virginia; "O Sol e o peixe: prosas poéticas", São Paulo: Autêntica, 2015, tradução de Tomaz Tadeu; _______________ "Mrs. Dalloway"; São Paulo: CosacNaify, 2013, tradução de Claudio Alves Marcondes.



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