Gilvando Sá Leitão Rios

May 25, 2017 | Autor: Gilvando Rios | Categoria: Politicas Publicas, Public Policy
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Gilvando Sá Leitão Rios

LINHAS APAGADAS do coletivo como arcaico ao individual como moderno (a extinção dos bondes na década de 40)

Nova edição, revista e ampliada

Recife, 2013 ISBN: 978-85-916189-7-2

Para Nelbe, companheira e cúmplice no trânsito da vida

“A excelência de uma causa não é provada nem pelo sucesso, nem pelo mal, que dela se diga. Insistimos em que nossa causa não seja julgada pelo resultado, mas que o resultado seja julgado pela causa.” (MILTON “Complete prose works”)

Sumário Prefácio à 1ª edição

5

Introdução

9

A motivação do estudo, ou a relevância de um tema “sem importância”

9

Notas

16

CAPíTULO I - Reflexões conceituais referentes ao tema de estudo

22

Notas

33

CAPÍTULO II - O discurso da modernização como deslegitimação do transporte coletivo tranviário (ou do coletivo como arcaico ao individual como moderno)

34

2.1. A visão de progresso

35

2.2 Rodoviarismo como opção

53

2.2.1 O ônibus como substituto do bonde

53

2.2.2 O bonde como “transporte de pobre”

60

2.2.3 A precariedade do serviço de ônibus

65

2.2.4 “Autolotações” como transporte coletivo

66

2.2.5 A improvisação como transporte coletivo

68

2.2.6 O automóvel substitui o bonde

72

2.3. Políticas públicas privatistas

76

2.3.1 Pavimentação pública para veículos privados

76

2.3.2 Estímulos, omissões e iniciativas governamentais

79

2.4. O bonde atrapalhando o trânsito (a luta pelo espaço)

87

Notas

95

CAPÍTULO III - A questão dos bondes no Brasil de modo geral

97

Notas

106

Considerações Finais

107

Referências bibliográficas e fontes

110

Prefácio à 1ª edição Este novo livro do sociólogo Gilvando Sá Leitão Rios, é oportuno e marcante. O autor, que tem uma boa formação humanística, elaborada na Universidade de Paris, vem abordando em seus trabalhos temas de grandes interesse social e político, procurando manter-se num elevado nível de reflexão mas se deixando tocar, de forma realística, pela problemática e pelas perspectivas sociais.

Assim,

ele

abordou,

sucessivamente,

problemas

ligados

ao

cooperativismo no meio rural, o problema da hierarquia em grandes instituições e agora se voltou para o tema da modernidade, que tem sido tão destacado, nos últimos tempos, tanto nos meios universitários como na ação política. Neste final de século e de milênio, quando algumas utopias fracassaram, como a do corporativismo e do socialismo, grupos filosóficos e políticos procuram difundir uma nova utopia, a da modernidade, tentando apontála como a solução para todos os problemas que afligem a população do planeta. Mas, o que se pode definir como modernidade, tanto entre os pensadores e filósofos como entre os políticos que procuram aproveitar-se da palavra? Parece até que o termo modernidade é utilizado como foi o progresso no século XIX, onde, todas as vezes que o Estado ou as grandes empresas procuravam implantar projetos prejudiciais à maioria da população, afirmavam que o povo deveria se curvar diante do progresso. Hoje, todas as medidas que os grupos econômicos e políticos tentam impor, em função de seus interesses, e que prejudicam a maioria da população, são apontadas como etapas de um processo de modernização tendo como finalidade o alcance da modernidade. A utilização de técnicas novas em atendimento a necessidades ou desejos dos grupos dominantes, é o caminho da modernidade, mesmo que sejam prejudiciais à maioria da população e que coloquem esta maioria em níveis de vida marginais, distantes das condições e da qualidade daquelas usufruídas pelas minorias beneficiadas. O tema é assunto de discussão em livros, revistas e jornais e quase sempre posto em foco de forma teórica, abstrata.

Gilvando Rios, como sociólogo, profundamente influenciado pela corrente da História Nova, dando grande valor à história das mentalidades, pôs em foco, em seu livro, o problema da modernidade e passou a analisá-lo em forma concreta, como estudioso não alienado, de um caso concreto: o da extinção do serviço de bondes da cidade do Recife. Esta cidade, dizia-se na década de Trinta, possuía o melhor serviço de bondes do Brasil, explorado por uma companhia canadense – a Pernambuco Tramways. Ocorre que a empresa estrangeira explorava tanto o serviço de transporte coletivo como o fornecimento de energia elétrica da capital pernambucana, e vinha sentindo que o fornecimento de energia era muito mais simples e menos problemático que o de transportes. Então, como emprese privada, que visa apenas a maximização dos lucros, ela se desinteressou do serviço de transporte e, aproveitando a Segunda Guerra Mundial (1939/45), deixou de manter o mínimo de conservação para os bondes e para as linhas em que os mesmos transitavam. Criava, assim, um problema social, de vez que o bonde era o tipo de transporte utilizado pela maioria das pessoas de média e baixa rendas, em uma época em que só a classe alta dispunha de automóveis. Naturalmente, como salienta e comprova o sociólogo, o interesse da concessionária estrangeira vinha ao encontro do interesse de grupos econômicos locais que desejavam explorar a atividade de transportes coletivos, com a utilização de ônibus, e com grupos de renovadores que desejavam destruir as velhas construções dos bairros centrais do Recife – Santo Antônio e São José – para abrir amplas avenidas que substituiriam as velhas ruas estreitas dos períodos colonial e imperial. Entre os primeiros grupos se encontravam também os produtores de carroceria e os vendedores de combustíveis, que facilmente levavam sua influência aos grupos políticos dominantes, entre os segundos estavam às empresas construtoras que previam obter com as demolições, espaços altamente valorizados para construção de edifícios, os chamados “arranha-céus”. Para defender a ideia, então chamada de “progresso”, afirmavam que, com o

crescimento da cidade, as ruas tornavam-se insuficientes para o escoamento do trânsito e que os bondes, presos a linhas férreas, quando quebrados, provocavam engarrafamentos, que era difícil se sanear a cidade e combater as epidemias e endemias que a atingiam, sem que as ruas fossem alargadas. Diziam ainda que uma cidade como o Recife, que disputava com Salvador o lugar de cidade mais importante

do

Nordeste,

necessitava

ser

embelezada.

O

processo

de

modernização do Recife, começou na primeira década do século XX, com a destruição de obras de grande valor artístico, como a igreja do Corpo Santo e os Arcos, para abrir amplas avenidas, levando administradores e jornalistas mais entusiasmados a comparar o Recife com Paris, identificando as avenidas recémabertas como os boulevards da capital francesa. Gilvando Rios, estudando o assunto em profundidade, fez uma grande pesquisa em documentos, sobretudo em jornais, e demonstra, com transcrições longas muito bem encaixadas no texto, como as autoridades e os escritores da cidade, comprometidos com o falso progresso e com o falso moderno, procuraram destruir a velha cidade colonial com suas reminiscências históricas e dela alijar os bondes como coisas do passado e que estariam, naturalmente, condenadas a desaparecer. Chegara-se, diziam eles, à era do automóvel, e para isto o dinheiro público era aplicado na abertura e no calçamento de ruas que facilitavam o trânsito de automóveis e ônibus, enquanto os trilhos, indispensáveis aos bondes, eram abandonados. Não interessava aos “modernos” e “modernizadores”, o como ficaria o povo que não podia pagar preços superiores aos pagos nos bondes e que os ônibus tivessem menor capacidade de transporte que os velhos bondes; a eles não interessava que um transporte tradicional desaparecesse, prejudicando a maioria da população, e muito menos os problemas de aumento da poluição do ar, provocado pelos veículos que utilizavam derivados de petróleo, porque os problemas do povo não os atingiam. 0 essencial era que a cidade parecesse moderna, bonita e limpa, de vez que, na época, as chagas sociais não eram visíveis como as urbanísticas. Gilvando Rios fez um verdadeiro estudo sociológico, político e histórico. Sociológico porque demonstrou como os antagonismos entre classes sociais, os

choques entre camadas de renda diversas são marcantes; político porque mostrou como atuam os agentes do poder diante dos problemas que enfrentam e que têm o dever de resolver, e histórico por demonstrar como pensam as pessoas, não apenas os heróis e anti-heróis tão queridos da história tradicional, mas o próprio povo, os indivíduos, e como usam os meios de comunicação para influenciar as pessoas. Estas, bem trabalhadas pelos meios de comunicação, muitas vezes esquecem os seus interesses mais fortes e apoiam medidas que a médio e longo prazos vão lhes ser prejudiciais. Seu livro é não apenas um texto de informação, é também de formação, porque, ao analisar a destruição do serviço de bondes do Recife, ele projeta e previne o leitor contra as campanhas manipuladas em função de interesses nem sempre honestos e justos. Do estudo de um caso específico, o sociólogo Gilvando Rios leva o leitor a refletir sobre a teoria da modernidade e a procurar compreender se se pode falar em modernidade referindo-se apenas à utilização de novas técnicas, sem orientá-las no sentido de trazer uma melhor qualidade de vida à população. Isto porque, modernidade apenas técnica, sem compromisso com o social, é uma forma disfarçada de volta ao passado, de consolidação em bases mais sólidas dos desníveis sociais e das estruturas de dominação sob formas aparentemente modernas, novas. É uma volta perversa ao passado, porque destrói o essencial, o positivo do passado, para conservar os seus aspectos negativos, prejudiciais à sociedade. Finalizando, é interessante observar a necessidade que tem o cientista socai, para ser autêntico, de não limitar as suas reflexões à análise teórica e abstrata, ele tem que descer aos aspectos concretos para encontrar soluções que sejam respostas a desafios locais e regionais, em lugar de estabelecer modelos teóricos gerais completamente divorciados da realidade, que provocaram o fracasso da política de planejamento das últimas décadas deste século.

Manuel Correia de Andrade

INTRODUÇÃO

“O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela”.

(Walter BENJAMIN, “Sobre o conceito de História”)

A motivação do estudo, ou a relevância de um tema “sem importância”

Nenhum tema para ser estudado pela sociologia precisa a rigor de uma justificativa. Quero com isso colocar a legitimidade da miríade de temas que podem ser objeto de pesquisas sociais. Porque justamente nessa nossa área das “Humanas” não poucas vezes se torce o nariz diante de temas que as modas acadêmicas deslegitimam em função de escolas ou autores em voga, paradigmas teórico-metodológicos “nobres” e correntes, temas da “atualidade” difundidos pelos meios de comunicação de massa, ou simplesmente em função de escolhas subjetivas travestidas de “objetividade cientifica” ímpar pelo poder exercido, nem sempre eticamente, nas burocracias acadêmicas. Em outras palavras, é o poder, acadêmico inclusive, definindo por meio de uma censura que não se assume explicitamente como tal, o que se deve ou não pesquisar. BOURDIEU (1980:62) já observou que “é muito mais fácil para um intelectual ser progressista no terreno da política geral do que no terreno da política cultural, ou mais precisamente da política universitária” e logo acrescentando: “os intelectuais estão sempre de acordo em deixar seu próprio jogo e suas próprias disputas fora do jogo”. É preciso pois se precaver contra esse tipo de preconceito que consiste em estigmatizar temas de estudo que, em geral por visões político-ideológicas, são

descartados. José de Souza Martins (2011, p. 184) assinala que o estudo do passado (como é o caso do tema aqui pesquisado) costuma ficar “confinado num departamento de refugos e inutilidades, de restos, muitas vezes chamado de memória e não raro associado aos velhos”, que por definição seriam “lentos e incapazes de acompanhar os passos do progresso e das mudanças”.

Ainda

segundo este autor (Martins, 2008, p. 37) “Há sempre uma descoberta a fazer e uma

contribuição

teórica

possível

quando

se

consegue

problematizar

apropriadamente mesmo um tema que não está nos grandes destaques da sociologia do momento ou que parece ter-se tornado antiquado em face das preferências da hora.” Mais adiante (p. 38) complementa: “Acabei, provavelmente por isso, me tornando um pesquisador que vê e interpreta a sociedade a partir de suas referências minúsculas e aparentemente irrelevantes. O que, no geral, pode até contrariar interpretações dominantes e de grande popularidade no meio acadêmico”. A propósito, é oportuno lembrar que já foi dito que “a única forma de se assegurar o êxito acadêmico é não investigar problemas sérios”. (BUNGE, 1973: 418, apud LAZARTE, 1991: 1). Com essas preliminares não quero elidir a necessidade de se expor com clareza o que se estuda e o porquê do estudo. Ou seja, é indispensável contextualizar o objeto de pesquisa em relação à teia de relações econômicas, históricas e políticas que o constituem como corte de um universo maior. Toda motivação de uma temática de pesquisa radica numa dupla vertente. A vertente da subjetividade, aí incluindo-se os condicionamentos ideológicos e teórico-metodológicos(1) e a vertente da objetividade que tem de ser construída, fazendo parte do trabalho de pesquisa a demonstração da existência de um “campo”(2) do qual faz parte o tema estudado. Não se trata, pois propriamente de procurar demonstrar a “relevância de um tema”, apenas de evidenciá-la no autêntico processo de desvelamento inerente à atividade de pesquisa. Como vimos, nenhum tema empírico é irrelevante, o relevo deve ser dado justamente pela pesquisa, na medida em que o resgata do anonimato da poeira dos fatos, da planície da rotina niveladora que vê, mas não enxerga.

Mas quais foram minhas motivações subjetivas primeiras(3) para a escolha de tão “exótico”(4) objeto de estudo, o bonde, espécime desaparecido, e como o seu similar, o trem, mais objeto, entre nós, de acervo de museus ou peça do folclore turístico(5) de certas cidades do que meio de transporte de massa? Há um sabor de infância na escolha do tema. Nascido em 1940 sou ainda da “era do bonde”, embora já fosse o início do fim. De calças curtas e ao lado de minha avó materna lembro-me de um episódio que na ocasião me causou assombro e maravilhamento. Vi como nunca vira, o bonde onde me encontrava, tão forte e tão autônomo, paralisado, submerso por uma multidão cantante de homens de paletó e chapéu, chapéus, muitos chapéus, bandeira brasileira dançante, a gritarem palavras de ordem eufóricas. Festejavam, numa passeata que me pareceu imensa, o término da segunda guerra. Na rotina de minhas idas matinais ao Grupo Escolar João Barbalho, menino de Beberibe, utilizava com meus irmãos o bonde como meio de transporte, já presenciando muitos atropelos e atrasos já próprios de uma época em que esse sistema de transporte cedia lugar cada vez mais ao concorrente rodoviário. Presenciei paradas impostas ao bonde por lhe ocuparem os trilhos, acidentes não graves a denotarem uma falta de manutenção do equipamento, esperas intermináveis etc. etc. Essas referências à memória individual do pesquisador não implicam entretanto um direcionamento do estudo pela costumeira veia da nostalgia romantizada. A referência à memória individual do autor apenas pretende situar o chão da inspiração subjetiva, sem renegá-la, assumindo-a com simplicidade como um componente objetivo (a subjetividade objetivada) do contexto da escolha do tema de estudo. Recuso a nostalgia idealizadora como abordagem na medida em que a mesma, sob as aparências da linguagem complacente, exprime de fato uma rejeição implícita do objeto idealizado. O edulcorado, o “bonzinho porque antiguinho”, o “como era bom o nosso tempo”, nada mais são do que uma rotulação do “arcaico” tipo “bom selvagem” contraposto ao “progresso realista” dos “tempos modernos”. O discurso da nostalgia, apesar do estilo jeremiada, apenas

legitima o discurso do “progresso”. Exemplar da ambiguidade deste tipo de abordagem é o livro de MOTA (1985) intitulado justamente No tempo do bonde elétrico – história pitoresca. Este livro, malgrado o interesse documental que apresenta, inclusive fotográfico, indica como o autor se identifica com a ideologia do progresso urbano, progresso urbano entendendo-se como a adaptação da cidade aos imperativos da expansão da indústria automobilística e ao estilo de vida decorrente. Alguns parágrafos indicam o afirmado: “Com a alteração verificada nos hábitos da cidade, alteração trazida com a época da segunda guerra mundial, isto pelos anos de 1941 a 1942, quando o Recife, no mais aceso do conflito passou a se parecer com as grandes cidades do mundo, (...) começou o fracasso dos bondes elétricos”. (MOTA, 1985: 27)(6) Ao falar sobre o desaparecimento dos bondes a identificação do autor com a ideologia do progresso urbano é bastante explícita: “O desaparecimento dos bondes era (...) inevitável. Sua extinção não podia ter demorado mais do que demorou; era requisito exigido pelo progresso. Cidade de ruas estreitas e apertadas como era então o Recife, não podia continuar comportando em tráfego os grandes barulhentos veículos sobre trilhos. (...) Dessa forma, (...) as exigências do progresso, o natural aumento populacional, a modernização e necessidade de embelezamento da cidade; as necessárias reformas de praças e ruas, bem como o crescente aumento do número de veículos motorizados acabariam, inevitavelmente, banindo do Centro da capital pernambucana, os incômodos coletivos, antes tão úteis e necessários, mas já agora, obsoletos e indesejáveis” (Idem: 29). Noutro parágrafo o transporte coletivo “de outra época” é contraposto à eficiente pressa do automóvel: “O bonde vinha de uma época calma do Recife, época ainda sem o automóvel para atrapalhar a sua movimentação: sem a pressa dos dias que correm”. (...) (Idem: 35).

Apesar de uma experiência consolidada de quatro décadas, na opinião do autor é o próprio “crescimento” da cidade que torna obsoleto o sistema tranviário: (...) “o veículo sobre trilhos transpôs todos os obstáculos apresentados à sua estrutura durante os quarenta ou mais anos de sua existência(7) como responsável pelo transporte de massa do Recife, nessas quatro décadas de atividade de uma cidade que crescia a olhos vistos - crescimento que iria decretar a própria ruína daquela modalidade de transporte coletivo” (Idem, p. 36) Na perspectiva do autor o bonde tinha de desaparecer porque “atrapalhava o trânsito”: “Cidade de ruas estreitas e apertadas como era (e o é ainda, de certo modo) o Recife, com o aumento crescente de sua população, não podiam os bondes continuar por mais tempo em tráfego, atravancando as ruas, entravando o trânsito”. (Idem, p. 52) E assim, (...) para bem do tráfego e satisfação de muita gente, ficou a cidade livre dos trambolhos em que se haviam convertido os velhos carcomidos bondes elétricos – veículos outrora tão belos, claros e iluminados, sempre bem pintados de cores vivas e alegres, e de amplos bancos brilhantes de verniz”. (Idem, p. 53). Em

sua tese de doutorado, Trilhos da modernidade: memória e

educação urbana dos sentidos, Maria Sílvia Duarte Hadler assinala que nas memórias sobre os tempos dos bondes, “a nostalgia, a saudade romântica pode estar permeada por uma visão construída sobre o passado da cidade como mais alegre, calmo e seguro. (...) Sente-se saudades, também de um tempo mítico, de uma cidade irreal.” HADLER (2007, p. 238). Recusar a nostalgia idealizadora como instrumento analítico mas sem renegar o chão existencial das motivações, significa olhar em face ( sem desviar o olhar) o objeto de análise, investigando as motivações subjetivas objetivadas (representações) dos atores de uma determinada época, a refletirem interesses objetivos, individuais ou de classe, vividos no contexto de transformações econômicas estruturais, não apenas locais, mas internacionais inclusive.

Com efeito, as transformações ocorridas em detrimento do sistema tranviário não podem ser analisadas sem uma referência às transformações geopolíticas da segunda guerra trazendo no bojo o ocaso da hegemonia inglesa na América Latina e a ascendente hegemonia americana.(8) É nessa mudança de cenário que se situam pois igualmente a decadência relativa do setor ferroviário da América Latina, originário de capitais britânicos e a expansão das exportações da indústria automobilística americana. Este cenário de transformações objetivas constitui o caldo de cultura para as legitimações de toda ordem, sempre elaboradas em nome do interesse coletivo e por isso mesmo tão universalmente aceitas, inclusive por aqueles que deveriam objetivamente ser os primeiros a recusá-las. Mas isso faz parte da função das ideologias, a metamorfose do interesse particular em interesse geral. São essas legitimações que procurarei identificar no discurso veiculado na imprensa da época, o discurso bastante antigo da modernização. Sessenta anos depois, as consequências do rodoviarismo e do privilegiamento do automóvel estão bem presentes no quotidiano de nossas cidades: poluição, carência de transportes coletivos, tarifas pressionadas pelo custo do combustível tornado mais escasso pelo próprio modelo, sem falar na pressão geral sobre o custo de vida em decorrência mesmo do peso dos combustíveis nos transportes de cargas e passageiros. Um país continental, de abundantes recursos hidrelétricos, importador de petróleo e dono das maiores jazidas de minério de ferro, sucateou ao invés de modernizar suas ferrovias e fez a opção pelo caminhão e pelo automóvel. Este o quadro geral de uma inversão de prioridades(9) cujas consequências sociais não são neutras diante das classes. À questão do sistema de transporte não é uma questão apenas técnica, mas fundamentalmente política.(10) A política pública de transportes não pode ser encarada como uma emanação puramente tecnocrática de um dado período histórico, por mais significativo que o mesmo seja. Muito menos obviamente pode ser vista como a consequência da ação única de um estadista, por mais marcante politicamente

seja o seu perfil. A política de transportes entre nós antes de vir a se concretizar nos “planos de metas”, se representava ideologicamente na projeção dos “formadores de opinião” e do senso comum. A materialização de uma política passa antes pela representação de um projeto, como idealização, representação deformada ideologicamente pelos estereótipos de uma modernização entendida apenas como a negação linear do passado. Há no caso que enfoco toda uma demanda pública e publicada no sentido de se apagarem as linhas de um sistema de transporte cuja infraestrutura representava um capital imobilizado não desprezível e cuja manutenção e administração significava não apenas a substituição pura e simples do antigo que se considera arcaico pelo novo que se considera moderno. Mas não se trata apenas de uma visão dogmática e deformada, pior, em nome do moderno e do socialmente útil para a maioria se justifica e se implementa de fato o privilégio elitista do transporte individual. Isto não é dito, obviamente, mas se faz, e é o que conta como resultante. Em nome da fluidez do trânsito, tecnicamente irrecusável e socialmente proveitosa a todos, se condena o bonde como “atrapalhando o trânsito” mas de fato liberando os espaços públicos para o transporte individual. Os interesses de uma minoria privilegiada transformam-se nos anseios da maioria. Obviamente que as ideologias não operam no vazio, fundamentam-se no concreto, daí mesmo sua força de convicção. O concreto no caso é o sucateamento progressivo do sistema tranviário, uma conjunção de fatores aliando o desinteresse empresarial estrangeiro de par com políticas públicas privatistas. Reforçando de uma maneira decisiva a visão negativa do sistema tranviário da época, uma ideologia nacionalista o estigmatizava pela sua vinculação com o capital estrangeiro. Nacionalismo bem curioso, cuja contrapartida era a legitimação da indústria automobilística que nem pelo nome se chamava ainda de “nacional”.

Notas (1) Ao contrário do que pretende a mitologia reificante, alimentada pelos relatos metodológicos padronizados pelo desejo asséptico de “estar nos conformes”, fazendo “como manda o figurino”, as escolhas metodológicas radicam muito mais em fatores subjetivos do que pretenderia uma suposta “escolha objetiva” de “métodos e técnicas”. Assim, além de fatores de acessibilidade do pesquisador a certas fontes, acessibilidade que comporta também um grau de subjetividade em termos de conforto por exemplo, as escolhas “metodológicas” são também inspiradas pelo domínio relativo de determinados procedimentos em detrimento de outros, que se pode desconhecer inteiramente inclusive, embora esse aspecto do conhecimento ou melhor, “falta de conhecimento“ seja autocensurado por compreensíveis razões de afirmação social. (2) Emprego o termo no sentido que lhe dá BOURDIEU (op. cit. p. 113 e ss.) isto é, campos como “espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas)”. O autor frisa a existência de um denominador teórico comum, malgrado as especificidades empíricas de cada campo: “há leis gerais dos campas; campos tão diferentes como o campo da política, o campo da filosofia, o campo da religião possuem leis de funcionamento invariantes (é isto que faz com que o projeto de uma teoria geral não seja obscuro e que, desde já, seja possível usar o que se aprende sobre o funcionamento de cada campo particular para interrogar e interpretar outros campos, superando assim a antinomia mortal entre a monografia idiográfica e a teoria formal e vazia”. Há tentos campos quantas configurações sociais históricas imagináveis: “cada vez que se estuda um novo campo, seja o campo da filologia no século XIX, da moda atual ou da religião da Idade Média, descobrem-se propriedades específicas, próprias a um campo particular. (...) Um campo (...) se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos (...) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar neste campo. (...) Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de hebitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc.” Políticas públicas de transportes coletivos, especificamente no Recife da década de 40, constituem o campo escolhido deste estudo. (3) Ao descrever o que chamou de “os anos de formação”, uma “versão da trajetória que percorri”, FERNANDES (1977: 140 e ss.) narra sociologicamente dados autobiográficos relacionando-os “ao elemento subjetivo, que impulsionou o meu pensamento, a minha

vocação e as minhas relações com os vários tipos de auditório que tive, como professor, conferencista e autor”. Faz referência inclusive a sua origem social humilde “dos porões, dos cortiços e dos quartos de aluguel em que morava com minha mãe” enfrentando a partir deste olhar em face “a questão do ressentimento, que a crítica conservadora lançou contra mim”. Em meio a esta auto-análise sociológica o autor tem esta reflexão que vale uma epígrafe: “o caráter humano chegou-me por estas frestas, pelas quais descobri que o “grande homem” não é o que se impõe aos outros de cima para baixo ou através da história; é o homem que estende a mão aos semelhantes e engole a própria amargura para compartilhar a sua condição humana com os outros, dando-se a si próprio. (...) Os que não têm nada que dividir repartem com os outros as suas próprias pessoas”. José de Souza Martins em duas de suas obras citadas (2008 e 2011) partiu de experiências autobiográficas para a construção de pesquisas. No primeiro caso, em A aparição do demônio na fábrica, (2008, p. 148), o mesmo assinala: “É possível uma relação objetiva do sujeito com o sujeito quando há mediação das mudanças biográficas e da ressocialização ao longo da vida.” O autor toma neste caso por objeto de análise sua própria vivência: “Podemos rememorar a nossa própria vivência do passado a partir de um novo e diferente modo de ver e compreender a vida, definido pelas circunstâncias do nosso presente. Neste caso, concretamente, utilizando o aparato teórico e interpretativo da sociologia.”

No

segundo caso, em Uma arqueologia da memória social: autobiografia de um moleque de fábrica, MARTINS (2011, p. 460)

chamando-o de “livro de minhas memórias” diz que o

mesmo “mais do que um relato é um monólogo interior, um esforço de juntar lembranças dispersas e descobrir nelas a coerência que a Sociologia oferece como instrumento interpretativo que torna compreensível o que não teve sentido no seu próprio momento.” Em resenha que fiz deste livro (RIOS, 2011), confronto-o metodologicamente com Esquisse pour une auto-analyse de Pierre Bourdieu (2004), em termos do uso de uma reflexividade como autoanálise sociológica.

(4) O “exótico” é uma criação típica do etnocentrismo na medida em que “exótico” é sempre o outro, entendendo-se o outro não apenas como membro de outra sociedade ou cultura, mas também os distintos períodos históricos de uma mesma sociedade. Assim, se o bonde pode ser considerado um tema de estudo “exótico” neste início do século XXI no Brasil por ser um meio de transporte hoje extinto, nos anos 30 do século passado exótico era ao contrário o automóvel. Por outro lado, na Amsterdã dos anos 80 do século XX, por exemplo, nem o automóvel nem o bonde são considerados “exóticos”, considerando-se que nesse caso a evolução de um tipo de meio de transporte não implicou na involução do outro. Esta mesma observação aplicando-se a outras cidades, européias ou não, como Lisboa, Moscou, Estrasburgo, Praga, Viena, Istambul, Túnis, Manchester onde o bonde

moderno ou VLT (veículo leve sobre trilhos) é uma realidade quotidiana. (5) O trem, ou o bonde, apenas e, sobretudo como peça de museu ou engrenagem folclórico– turística exprime na prática essa visão “exótica” que a sociedade brasileira reservou para esses meios de transporte. Há um “Museu do Trem”, fundado pela extinta Rede Ferroviária do Nordeste (RFN), em Recife assim como um bonde nos jardins do “Museu do Homem do Nordeste” da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), também em Recife. Não é à toa também que em Campos do Jordão (pólo turístico serrano de São Paulo) e em Santa Tereza, bairro “típico” e “sobre os arcos”, no Rio, circulavam “bondezinhos”, o diminutivo indicando uma tolerância complacente do inconsciente coletivo. Também entre as cidades históricas mineiras de Ouro Preto e Mariana e de São João Del Rei e Tiradentes circulam “trens turísticos”, o mesmo ocorrendo em outros recantos do país onde um equipamento antiquado é objeto de um culto nostálgico. Mas mesmo esta circulação marginal está sujeita aos imperativos economicistas estreitos, encontrando-se ameaçada de extinção, a expressão “ramal antieconômico” esquecendo o efeito multiplicador do turismo. HADLER (2007p. 183) estudando a extinção dos bondes em Campinas, SP, e a sugestão para colocá-los em parques infantis e museus assinala: “Atração turística, objeto de museu, brinquedo. Uma migração de sentidos parece estar em curso. Objeto lúdico, de exposição, para ser visto como uma curiosidade do passado, como um objeto exótico. Colocado num museu ou num parque, deshistoricizado , descontextualizado, vai ser oferecido para o consumo de uma ilusão de reviver momentos do passado, momentos vividos com devaneio, com sonho.” (6) Os grifos são meus neste e nos parágrafos citados seguintes. (7) Os bondes elétricos começaram a circular em Recife em 1914, estando em 1954 o sistema em plena decadência. (8) EVANS (1982, p. 81) apresenta as seguintes séries históricas em relação à distribuição do investimento estrangeiro no Brasil por país de origem:

ano

1914

1930

1950

1959

1972

(%)

(%)

(%)

(%)

(%)

E.U.A

4

21

48

38

37

Inglaterra

51

53

17

7

8

país

Reportando-se ao comércio exterior Evans assinala que “as modificações nas mercadorias de comércio foram acompanhadas por modificações importantes nos associados

comerciais do Brasil. A princípio o declínio da Grã-Bretanha e a ascensão dos Estados Unidos aumentaram a concentração do comércio no Brasil. Com a crescente importância das importações americanas, o cliente mais importante do Brasil tornou-se, também, o seu fornecedor mais importante. O Brasil tornou-se, assim, dependente não só do mercado internacional em geral, mas de um determinado país do centro, os Estados Unidos. (...) O domínio norte-americano parecia mais seguro imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos forneciam 50% das importações do Brasil e lhe compravam 40% de suas exportações”. (P. 70). (9) CUNHA (1990, p. 11) afirma que “o Brasil tem que substituir a rodovia pela ferrovia e hidrovia, meios de transportes mais econômicos. (...) as economias possíveis superam 3% do PIB. O desperdício não envolve apenas a diferença no custo do transporte de produtos essenciais, mas também vários subsídios ao transporte rodoviário, além do investimento em novas fontes energéticas para suprir um consumo dispensável. A eliminação desse desperdício é fundamental para uma nação que tem que crescer por seus próprios meios, pois sabe que nada deve esperar da comunidade internacional”. E mais adiante: (p. 18 e ss.) “No Brasil, a influência do transporte no PIB poderia ser extremamente reduzida com a diminuição do custo unitário do transporte. O Brasil tem esse custo bem superior ao das demais nações de mesma dimensão (o dobro da China e do Canadá)”. Assim, tomando como referência a unidade básica de medição do transporte, o TKU (tonelada quilômetro útil), correspondente ao transporte de uma tonelada de carga útil pela distância de um quilômetro, o autor alinha os seguintes índices de custo de transporte (US$/1.000 TKU): 9 para o Canadá, 10 para a China, 12 para os Estados Unidos, 14 para a Austrália e 20 para o Brasil. “Esse alto custo decorre da predominância do setor rodoviário, que é responsável por 55% de todo o transporte. (...) um plano de transporte para o Brasil tem que se preocupar em aumentar a oferta de transporte e diminuir o seu custo. O caminho natural para isto é aumentar a oferta de transporte dos meios econômicos alternativos, permanecendo o transporte rodoviário ao nível atual. Assim, não haveria possibilidade de bruscas mudanças e todo incremento de transporte significaria redução de custo”. Ainda acho oportuno ressaltar outra comparação que faz o autor: (p. 32 e 33) “0 predomínio setor (rodoviário) no transporte brasileiro de cargas é absoluto (55%), contrariando a tendência dos demais países de grande extensão territorial, onde tal alternativa apresenta participação bem inferior na movimentação global de produtos (29% na Austrália, 24% nos EUA, 10% na China, 8% na União Soviética e no Canadá). (...) Em contraposição ao setor rodoviário, a malha ferroviária brasileira apresenta-se em condições de absoluta inferioridade, quando comparada às realidades vigentes em diversos outros países. Entre os 13 países de média e grande extensão territorial utilizados para as análises rodoviárias, o Brasil ocupa a última posição em termos de densidade superficial (Km de ferrovia/Km2

de área) e a décima colocação em relação à densidade populacional (Km de ferrovia/habitantes), à frente apenas da China, índia e Paquistão - todos com alta densidade populacional e baixa renda per capita”. (10) WRIGHT (1988, p. 12) diz que é um mito considerar o transporte urbano um assunto essencialmente técnico, pois, “embora não se possa negar a importância de fatores técnicos, o tipo e a qualidade do transporte são determinados, em boa parte, pelas estruturas econômica, social e política, ou até mesmo por fatores culturais e psíquicos. O processo político brasileiro e a elevada concentração de renda vêm favorecendo o transporte particular, embora apenas 20% das famílias brasileiras possuam carros”. Outro pesquisador (VASCONCELOS: 1985, p. 11) ressalta que “o trânsito não é apenas um problema “técnico”, mas sobretudo uma questão social e política, diretamente ligada às características da nossa sociedade capitalista. Para entender o trânsito, portanto, não basta discutir os problemas do dia-a-dia (congestionamento, acidentes), é preciso também analisar como o trânsito se forma, como as pessoas participam dele, quais são seus interesses e necessidades. Isso significa esforço para entender o trânsito “por trás” de suas aparências, dos seus fatos corriqueiros, na busca de uma “sociologia de trânsito”, que eu venho propondo como a forma mais adequada de lidar com a questão. A melhor maneira é começar pela discussão dos conflitos que ocorrem na circulação urbana, como as pessoas se comportam na disputa pelo espaço e por que existem os “problemas” do trânsito”.

O fatalismo como interpretação – um problema insolúvel... “devido a um grande número de fatores incontroláveis por quem quer que seja”

Em todas as cidades do Brasil, como nas de todos os outros países, o serviço de bondes se tornou deficiente, devido um grande numero de fatores incontroláveis por quem quer que seja. Bem sei que não constituem consolo para meus amigos, os passageiros desta cidade, saberem que, outras cidades estão sofrendo do mesmo mal; estou, porem, fazendo tudo o quanto posso para melhorar a situação - diz “Seu” Kilowatt, o criado elétrico.

PERNAMBUCO TRAMWAYS & POWER Co. LTD. Rua do gasômetro, 60 (Jornal do Commércio, 01.06.1945)

CAPÍTULO I

Reflexões conceituais referentes ao tema de estudo

“A dificuldade específica da sociologia deriva do fato de que ela fala sobre coisas que todo mundo sabe, num certo sentido, mas que não se quer saber justamente porque a lei do sistema consiste em ocultá-las” (Pierre BOURDIEU, “Questions de sociologie”)

Este capítulo é um espaço previamente reservado para a discussão de alguns conceitos-chave para a abordagem do tema objeto de pesquisa. Porque conceitos-chave? Eles o são na medida em que antes mesmo da coleta do material empírico, por conta exatamente de minha vivência individual, fui levado a fazer certas hipóteses(1) sobre alguns determinantes, ao menos a nível da legitimação, da extinção do sistema tranviário. O contato com o material de imprensa coletado apenas reforçou sem hesitações a funcionalidade das hipóteses pensadas. Conceitos-chave na medida em que vão se ligar, problematizando-o, com o tema da pesquisa. A hipótese basilar deste estudo como norte para a reflexão e a coleta de materiais, parte do pressuposto que uma “visão de mundo” se querendo modernizante dos formadores de opinião da época, estigmatizou um sistema de transporte coletivo (o tranviário), legitimando o predomínio do transporte individual (o automóvel). Evidentemente esta correlação não se estabeleceu de maneira assim clara desde o início. O ponto de partida foi uma referência a uma nebulosa “ideologia da modernização” que o exame da literatura e do material empírico foi construindo os contornos. Daí porque julgo necessário expor algumas conceituações sobre os termos “moderno” e “progresso”, de par com outros diretamente ligados ao tema do estudo, como “transporte urbano” e

“trânsito”. Poucas palavras exercem um fascínio tão legitimador e encantador como “moderno”, “modernidade” ou sua equivalente um tanto “démodée”, a palavra “progresso”. Talvez esta última tenha ficado fora de moda mais facilmente pelo fato de, como substantivo, ter ficado mais exposta à crítica de sua essencialidade declarada, mostrando-se como datada e transitória. Neste sentido o progresso está para o século XIX assim como o “moderno” para o século XX, naturalmente falando-se em “pós-moderno” com uma referência de século XXI. Já o vocábulo “moderno” justamente por ser adjetivo esquiva-se com mais sutileza aos focos analíticos. A sua essencialidade esvanece na medida em que, como qualificativo, se furta à apreensão analítica como realidade derivada, matiz graduado de outros objetos. O “moderno” pois, ao contrário do “progresso”, não se apresenta como uma realidade própria, impositiva e avassaladora, é antes um atributo, possuí-lo ou não implicando numa classificação positiva ou negativa. O carisma ou o estigma, essa a escala construída pelo atributo. Apesar de sujeito talvez à crítica de nominalismo me proponho fazer um pouco de arqueologia dos termos “progresso” e “moderno”, convencido que estou de como é esclarecedor indicar sua antiguidade. NISBET (1981, p. 71) em seu sugestivo livro Historia de Ia idea de progreso, assinala a etimologia da palavra progresso citando trecho do poeta latino Lucrécio, no qual o autor de De natura rerum (Sobre a natureza das coisas) fala a respeito da evolução técnica e cultural: “E a navegação, a agricultura, a construção de paredes, a invenção das leis, e as armas, as estradas, os vestidos e toda classe de invenções semelhantes, e também todas as que não proporcionavam senão gosto, a canção, a pintura, e a escultura, foram inventadas à força de experiências, de necessidade e de dedicação. E assim, pouco a pouco, avançando passo a passo (“pedetentim progredientes”) (grifo meu) as foram aprendendo e melhorando. Deste modo o tempo, pouco a pouco, provoca os descobrimentos das coisas, que a razão eleva à luz. Viram pois como as coisas, umas após outras, iam tornando-se mais claras

em suas mentes, até que graças ao seu engenho chegaram ao mais alto nível”. Trata-se, como vemos, de uma visão da cultura linearmente evolucionista; outros pensadores vão apresentar uma visão mais “histórica”, mais matizada portanto. Assim, o painel desenvolvido por NISBET que começa no mundo clássico aborda também o conceito de progresso entre os primeiros cristãos. E é neste universo cultural que o autor ao estudar o pensamento de Sto. Agostinho, especialmente na obra “A cidade de Deus”, localiza o que denomina de “os elementos essenciais da ideia ocidental de progresso”, (p. 117) ou seja: “a humanidade, como entidade que engloba a todas as raças humanas; o avanço gradual e cumulativo da humanidade, material e espiritualmente, ao longo do tempo; um marco temporal único que abarca todas as civilizações, culturas e todos os povos que existiram e existem; a ideia do tempo como um fluir unilinear; a concepção de fases e épocas determinadas, refletidas cada uma delas por uma ou várias civilizações históricas ou certos níveis de desenvolvimento cultural; a concepção da reforma social arraigada na consciência histórica; a fé na necessidade que rege os processos históricos e a inevitabilidade de um final ou um futuro determinados; a ideia do conflito como motor que move o processo histórico; e, por fim, a visão de êxtase do futuro, que Sto. Agostinho pinta com cores psicológicas, culturais e econômicas que serão repetidas pelas utopias sociais de séculos posteriores, desde a abundância, a igualdade e a liberdade ou a tranquilidade, até a justiça”. A enumeração acima justifica a afirmativa de Charles BAUDOIN (1946) autor do “Le Mythe du Moderne”, no sentido de que “todas as épocas foram modernas”. Para este autor só é coisa realmente moderna “a exaltação do moderno”. (Apud BARBOSA LIMA SOBRINHO, 1990). Curioso é que talvez nem essa característica seja uma exclusividade assim tão contemporânea. Afirmamos isso na medida em que, ainda no século XII, segundo o autor de Os intelectuais na Idade Média, Jacques LE GOFF (1988), seria recorrente o uso da palavra “moderno” para a designação dos escritores da época, pois “os intelectuais do século XII têm o sentimento vivo de construir o novo e de serem homens novos”. (p. 23). Mas se trata de uma modernidade que não renega os antigos, daí a

famosa frase de Bernard de Chartres que tanta repercussão teve na Idade Média: “Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes. Assim, vemos melhor e mais longe do que eles, não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura mais alta, mas porque eles nos elevam até o nível de toda a sua gigantesca altura”. (p. 25). É o sentido da acumulação cultural que transmite essa imagem do mesmo autor que exclama: “Veritas, filia temporis”. (A verdade é filha do tempo). Outro intelectual da época entretanto, Pedro o Venerável, abade de Cluny, ao defender a necessidade de se traduzir do árabe para o latim o Alcorão, faz uma avaliação um tanto depreciativa dos “moderno” ao dizer: “os latinos, e sobretudo os modernos, (grifo meu) desaparecida a antiga cultura (...) não sabem outra língua senão a de seu país natal”. (LE GOFF, p. 27). Posteriormente, já no século XV, LE GOFF (p. 114) nos relata uma disputa tendo “de um lado os antigos, que são agora os aristotélicos e os tomistas, exauridos e racionalizantes. De outro, os modernos, que se reúnem sob a bandeira do nominalismo derivado de Ockham, mas se encerram no estudo da lógica formal, nas elucubrações sem fim sobre a definição das palavras, nas divisões e subdivisões fictícias, no terminismo. E já nessa época o poder político é chamado para dirimir uma polêmica entre intelectuais: “Os antigos obtêm de Luís XI, em 1474, a proibição das aulas e livros daqueles, através de um édito revogado em 1481”. Se o uso do epíteto “moderno” é um objeto de disputa bastante antigo, o que haveria de novo no nosso “moderno contemporâneo”? Para BAUDOIN (op.cit.) a distinção se situaria no nível da quantificação, este o qualificativo distintivo: “A grosseria do mito do moderno resulta da preeminência atribuída ao fato da quantidade: ser moderno é sempre, em alguma coisa, bater um recorde”. Estamos já em pleno contexto da cultura capitalista da produção em série. Nesse contexto podemos situar a ideologia da modernização e compreender o paradoxo emitido por BARBOSA LIMA SOBRINHO (op. cit.): “O mito da modernidade serve para tudo, pois que não tem nenhum compromisso

com o progresso”. Ao invés de sinônimos os termos “moderno” e “progresso” se encontram aqui contrapostos, curiosa

evolução exposta pelo experiente

pesquisador nonagenário, presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Mas afinal, onde ficamos? Que posicionamento tomarmos ante a questão: ser ou não ser moderno? Ser chamado de não moderno hoje equivale a ser chamado de herege na Idade Média. Que significa pois modernidade? É um atributo valorativo? Não há dúvida. Pretender o contrário é cair num positivismo grosseiro, modernidade não pode ser compreendida pois como entidade mas como qualidade e como qualidade segue a pergunta: se se trata de um atributo valorativo, seria inquestionável? Isto é, sobre o mesmo haveria um consenso amplo e tácito? Ora, o rótulo de moderno pressupõe sempre um “patrulhamento” (de “esquerda” ou de “direita”) ideológico.(2) Ideológico, é sempre nesse terreno que ORTIZ (1988), CHAUI (1989) e BUARQUE (1990) colocam o problema da modernidade, embora referindo-se a questões conceituais e empíricas distintas. Pouco importa, isto apenas reforça nosso ponto de vista sobre o caráter atribuído da modernidade ao longo do tempo.(3) ORTIZ (p. 207-210) partindo da constatação de que “hoje vivemos no Brasil a ilusão de que o moderno é o novo” utiliza inclusive as categorias “ideologia” e “utopia” de MANNHEIM para analisar o Modernismo(4) no Brasil, o qual, de projeto utópico “uma vez que ele era incongruente com a sociedade brasileira, que ainda buscava seus caminhos (...) com o desenvolvimento da própria sociedade, o que se propunha realizar de fato se instaura (...) o que significa que o projeto se torna uma ideologia , que agora procura reforçar a ordem estabelecida”. Daí porque segundo este autor a modernidade brasileira seria acrítica, pois o futuro se tornou presente... O Brasil, outrora “país essencialmente agrícola” entrou no rol dos industrializados, na modernidade capitalista portanto. CHAUÍ (op. cit.) apresenta três conceituações de “modernidade”. Primeiro refere a “perspectiva otimista dos liberais da massa” na qual “reinava a crença de que o avanço tecnológico e o nivelamento da informação, em si e por si mesmos, eram responsáveis pelo progresso e pela paz - o que se costuma

chamar de “modernidade”. (p. 27). Em segundo lugar chama de “viga-mestra da “modernidade” (...) a divisão social entre competentes e incompetentes, ou, no jargão sociológico, entre Elite e Massa”. (p. 34). Finalmente, numa conotação semelhante à segunda, chama de “moderno (isto é, tecnocrático)” (p. 48) o poder autoritário instalado com o regime militar em 1964. A discussão sobre modernidade nos séculos XIX(5) e XX abarca crescentemente a questão da tecnologia, a um ponto tal que o desenvolvimento constante da mesma passa a monopolizar o significado do termo progresso ou modernização.



como

que

uma

bifurcação

de

significados:

os que

(politicamente conservadores) entendem restritivamente o atributo de moderno como equivalente de inovação tecnológica sem maiores criticas, antes pelo contrário; e os que (politicamente contestadores) procuram situar também politicamente o papel da tecnologia, além de aplicarem o atributo de moderno (adotando a antiga concepção do Iluminismo) ao campo das relações sóciopolíticas. Assim, neste último sentido, modernidade equivaleria ao exercício da cidadania em oposição à situação do súdito oprimido e alienado. BUARQUE (op. cit. p. 77) contesta o que chama de “a ilusão da modernidade, por não separar o controle político de tecnologias, com o controle técnico da engenharia, e o acesso ao uso de tecnologias com o controle destas. O que interessa é: primeiro, o controle da tecnologia no sentido de pô-la a serviço do projeto de modernidade, conforme os padrões e objetivos definidos socialmente; segundo o controle do conhecimento técnico necessário à realização destas tecnologias, e não simplesmente o acesso ao seu uso através de caixas pretas. A modernidade tecnológica só começa quando ocorrem esses dois tipos de controle”. O autor cita como exemplo desta modernização ilusória a compra pelos países do chamado Terceiro Mundo de “engenhocas a serviço de padrões de consumo imitativos, sem vínculo com as reais necessidades da sociedade”. (p. 78). Curioso como a discussão de BUARQUE sobre a modernização o conduz a abordar o campo de nossa pesquisa, a questão dos transportes coletivos

urbanos. Assim, ao criticar o que chama de a “visão norte-americana do progresso” (p. 114-5) que teria criado o “mito de uma correlação entre o nível de bem-estar e a renda “per capita”, e entre a renda “per capita” e o nível de consumo de petróleo”, mostra que esta correlação não é linear. Segundo BUARQUE “a observação da correlação entre consumo de petróleo e renda “per capita” mostra que os países europeus, com níveis de bem-estar superiores aos norteamericanos, consomem menos petróleo “per capita”, graças a uma estrutura de transporte e de geração de calor alternativos”. E prosseguindo: “Nada indica que este modelo energético alternativo ao norte-americano seja inferior do ponto de vista do bem-estar. 0 uso de trens e ônibus com roteiros variados e horários regulares e contínuos, com lugares suficientes e temperatura regulada nos locais de frio ou calor intensos, movidos a energia elétrica, provavelmente oferece um nível de bem-estar social superior ao do transporte privado, desde que não seja imputado o valor do “status” que a sociedade de consumo, através da publicidade, oferece aos usuários de modernos carros projetados para velocidades de competição, mas que no dia-a-dia ficam prisioneiros dos engarrafamentos das grandes cidades, como prisões de ouro, especializadas em queimar combustíveis fósseis”. Em função dessas variáveis conclui o autor citado que “o sistema de transporte na Europa é muito mais social e menos poluente e depredativo do que o norte-americano”. (p. 127). BERMAN (op. cit.) ao descrever o poder do empreiteiro de obras públicas Robert Moses na Nova Iorque da primeira metade do século XX, cuja autoridade derivava em parte da sua “capacidade de convencer um público massivo de que ele era o veículo de forças históricas mundiais e impessoais, o espírito propulsor da modernidade”, (p. 279) indica o caráter planejadamente elitista de um tipo de urbanismo: “suas alamedas somente podiam ser experimentadas de automóvel: as passagens de nível foram propositalmente construídas numa altura que obrigava os ônibus a abandoná-las, de modo que o trânsito público não pudesse trazer as massas da cidade à praia. Tratava-se de um jardim distintivamente tecno-pastoral, aberto só àqueles que possuíam as últimas máquinas modernas (...) Moses utilizou o desenho físico como um biombo

social, afastando todos os que não possuíam rodas próprias”. (p. 283). Vemos

neste

personagem

exemplar

o

caráter

atribuído

da

modernidade: “Por quarenta anos, ele se mostrou capaz de personificar a visão do moderno. (grifo meu). Opor-se às suas pontes, seus túneis, vias expressas, projetos habitacionais, barragens hidrelétricas, estádios, centros culturais era (ou assim parecia) opor-se ao progresso, à história, à própria modernidade”. (p. 279). Vimos acima que o desenvolvimento tecnológico vai caracterizar a visão de modernização do século atrasado para cá. Nesse contexto se situam também as transformações no tráfego urbano (estrutura viária e circulação) e nos transportes. “O homem moderno arquetípico (...) é o pedestre lançado no turbilhão do tráfego da cidade moderna, um homem sozinho, lutando contra um aglomerado de massa e energia pesadas, velozes e mortíferas. (...) o homem na rua se incorporará ao novo poder tornando-se o homem no carro. A perspectiva do novo homem no carro gerará os paradigmas do planejamento e “design” urbanos do século XX. (...) Nessa rua, como na fábrica moderna, o modelo mais bem equipado é o mais altamente automatizado”. (BERMAN, op, cit, p,154 e161). Estes os modelos clássicos: do então recente bulevar parisiense do século XIX vivido por Baudelaire: “eu cruzava o bulevar com muita pressa, chapinhando na lama, em meio ao caos, com a morte galopando na minha direção, de todos os lados”, às utopias futuristas de Le Corbusier exclamando em 1929: “Precisamos matar a rua!” pois “o novo homem precisa de outro tipo de rua, que será urna máquina para o tráfego, uma fábrica para produzir tráfego”. (Idem, ibidem). E entre nós, como se dá a “modernização”? Para BUARQUE (op, cit. p. 166-7) “em nome do nacionalismo, importamos um modelo econômico” e “a esquerda brasileira levou adiante a luta pelo “petróleo é nosso”, mas tolerou e se omitiu e apoiou que ele fosse queimado para viabilizar uma indústria automobilística estrangeira, alienante e do interesse apenas de uma minoria da população nacional”. O nacionalismo servindo na prática para tornar o país mais dependente. Donde sua conclusão que “o conceito de modernização se limita a uma minoria”. Segundo este autor o nosso processo

de substituição de importações implicou apenas no fato de que “foram substituídos por nacionais os mesmos produtos importados pela elite”. O nosso modelo econômico e seu decorrente estilo de vida se associam a uma visão do progresso legitimadora de uma sistema de transportes. MELLO (1984) partindo da consideração que “é altamente indesejável, do ponto de vista de eficiência energética, o quadro dos transportes urbanos brasileiros principalmente pelo dispêndio de petróleo proveniente do intenso uso de automóveis” faz referência ao “fascínio da população ante o advento da indústria automobilística,“ daí resultando que “mesmo aqueles que ainda não possuíam o seu veículo individual passaram a encarar os transportes públicos como inimigo do novo senhor das ruas. Os velhos bondes elétricos, espinha dorsal dos transportes urbanos na maioria das grandes cidades, tornaram-se incômodos, pesados, não compatíveis com os tempos modernos que passávamos a viver (grifo meu) (...) A suspensão do tráfego de bondes alterou rapidamente a distribuição modal de tráfego, isto é, os milhares de passageiros que utilizavam aquele meio de transporte passaram a utilizar os ônibus. (...) Essa alteração brusca na repartição modal modificou também o perfil do dispêndio energético nos transportes (...) o transporte público passou a ser realizado em sua quase totalidade empregando veículos movidos a diesel ou gasolina”. Outros autores apontam o mesmo diagnóstico. Segundo AGUNE, A. e BRAGA, J.C.S.A (1979) “os transportes enquanto política governamental estão pensados como infraestrutura para o crescimento industrial e no desdobramento, o próprio tipo de modalidade eleito é associado ao papel líder que a indústria automobilística veio a exercer no crescimento industrial brasileiro”. AFFONSO (1984) estudando “A participação do usuário na gestão do transporte urbano” aponta o automóvel, note-se, o automóvel, não o ônibus, transporte coletivo, como “o principal responsável pelos congestionamentos e pelo maior impacto urbano no uso e ocupação do solo que as cidades já sofreram, como também no fator determinante na política de transportes coletivos e na expansão do sistema viário. (...) esta solução provocou o desaparecimento dos

bondes e o declínio das ferrovias de subúrbio que, mesmo relegadas para segundo plano e sem recursos, tiveram que se responsabilizar pelo transporte de parcela cada vez maior de passageiros. Esta política automobilística também foi responsável pelo aumento da frota de ônibus, sem uma correspondente melhoria de qualidade e aumento real da capacidade de transporte, tendo, como contrapartida, uma perda significativa da participação do poder público”. WRIGHT (1986) em artigo sobre acidentes de trânsito denuncia que “o descaso com que se tem tratado os sistemas ferroviários, de ônibus e de trolebus durante as últimas décadas, ao incentivar o uso do carro particular, é uma das causas econômicas e políticas mais importantes da morte no trânsito”. Cabe chamar a atenção para o caráter conflituoso do trânsito numa sociedade de classes tão desigual como a nossa. VASCONCELOS (op. cit.) indicou que o trânsito implica tanto num conflito no nível físico, em termos de disputa pelo espaço, como num conflito no nível político, a refletir os interesses das pessoas no trânsito, vinculadas por seu turno a distintas posições no processo produtivo da cidade. Daí porque o tratamento dos problemas do trânsito mais do que um “gerenciamento” supõe uma negociação, pois “a disputa pelo espaço tem uma base ideológica e política, depende de como as pessoas se veem na sociedade e de seu acesso real ao poder”. (p. 20). Para concluir estas notas conceituais frisamos pois o caráter relativo, histórico e ideológico, da concepção de moderno em relação ao bonde, objeto deste estudo. HADLER (2007, p. 17) une as duas pontas da história do bonde em relação ao que seria moderno notando que “se os bondes parecem ter surgido como símbolo de modernidade, de avanço tecnológico, como portadores de novos tempos, desaparecem como objetos obsoletos, ultrapassados, que parecem atravancar uma outra modernidade. Tanto seu começo como seu fim se deram em nome do progresso e do moderno.” Vemos bem aí com a autora indica a concepção de moderno do senso comum que a vincula estreita e limitadamente com o tecnológico, independentemente de seu alcance social. HADLER (op. cit. p. 159) denuncia “uma suposta neutralidade do progresso técnico, justificado em si

mesmo” e um discurso moderno que não levaria em conta possíveis efeitos perversos de um projeto de modernização urbana sobre parcelas consideráveis das classes sociais mais desfavorecidas.

Notas (1) Empregamos o termo hipótese no sentido de uma ou mais ideias norteadoras de maneira a se constituírem em verdadeiras diretrizes para a ação de pesquisar. THIOLLENT (1986, p. 35) classifica a hipótese como “uma suposição criativa que é capaz de nortear a pesquisa inclusive nos seus aspectos qualitativos”. Ainda segundo este autor a formulação de hipóteses (ou de quase-hipóteses) permitiria ao pesquisador “organizar o raciocínio estabelecendo “pontes” entre as ideias gerais e as comprovações por meio de observação concreta”. Nesse sentido as hipóteses orientam para a busca de informação pertinente. (2) SCHWARZ (1989, p. 107) assinala que a “noção de progresso, que está sempre servindo de justificativa aos dois campos, (capitalista e socialista), tem mostrado dimensões óbviamente irracionais, e deixou de ser uma garantia de racionalidade histórica”. (3) BERMAN (1989) no seu fundamental Tudo que é sólido desmancha no ar - a aventura da modernidade, tenta objetivar historicamente a questão da modernidade ao estabelecer uma periodização de três fases (p. 16): a) do início do século XVI ao final do século XVIII onde as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna, mal fazendo ideia do que as atingiu; b) da Revolução Francesa e suas repercussões adentrando o século XIX “em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro”; e c) no século XX onde “o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento”. Ora, malgrado este esquema histórico, BERMAN nos dá uma conceituação psicologizante de “ser moderno”, como o equivalente de “experimentar a existência pessoal e social como um torvelinho, ver o mundo e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambiguidade e contradição: é ser parte de um universo em que tudo o que é sólido desmancha no ar. Ser um modernista é sentir-se de alguma forma em casa em meio ao redemoinho, fazer seu o ritmo dele, movimentar-se entre suas correntes em busca de novas formas de realidade, beleza, liberdade, justiça, permitidas pelo fluxo ardoroso e arriscado”. (p. 328). (4) “Modernismo, modernidade e modernização são para nós termos intercambiáveis. pois dizem respeito a uma situação que ainda não havia se realizado de fato”. (ORTIZ. p. 209). (5) Ver o belíssimo livro de HARDMAN (1988), “Trem fantasma – a modernidade na selva”, sobretudo o capítulo intitulado “Vertigem do vazio: Poder da técnica na recriação do Paraíso”, onde o autor fala de “ilusionismo tecnológico” e do fato da ciência ter tomado o lugar das antigas missões religiosas.

CAPÍTULO II

O discurso da modernização como deslegitimação do transporte coletivo tranviário (ou do coletivo como arcaico ao individual como moderno) “Tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa “. (Ítalo CALVINO in “As cidades invisíveis”)

Para tentar ver através dos dados, que afinal não foram dados, mas construídos, estabeleci quatro categorias (a visão de progresso, rodoviarismo, políticas públicas privatistas e a luta pelo espaço) como veiculadoras das visões de mundo de uma época bem como das posturas e da prática quotidiana nos transportes. Essas categorias são tão só instrumentos para ordenar o cipoal empírico original, material de imprensa sobretudo.(1) Friso que minha postura diante dos jornais será a de “apreende-los não enquanto “expressão verdadeira” de uma época, ou como um veículo imparcial de “transmissão de informações”, mas antes como uma das maneiras como segmentos localizados e relevantes da sociedade produziam, refletiam e representavam percepções e valores da época”. (Lilia Moritz SCHWARCZ: 1987, p. 17). As categorias que escolhi não exprimem naturalmente visões e posturas estanques umas em relação às outras, pelo contrário, se interpenetram, se recortam mutuamente, sua funcionalidade não está pois na exclusão pela exclusividade, apenas na ênfase. Assim, se a “visão de progresso” exprime por excelência uma perspectiva ideológica, esta por seu turno não está ausente na “luta pelo espaço” que será apreendida sobretudo pelas notícias e comentários sobre os acidentes de trânsito e a visão sobre os mesmos. Estes, na sua

opacidade quotidiana, na sua frequência estatística mesma, traduzem na prática uma “visão de progresso”. Se isto pode ser dito para estas duas categorias extremas, o mesmo vale para as duas outras categorias onde a interpenetração valores/prática inclusive já lhes é interna, caso das “políticas públicas privatistas” e de “rodoviarismo”. 2.1 A visão de progresso Se já foi um aforismo nacional dizer que “governar é abrir estradas”, o mesmo pode ser transposto para o nível local das cidades, das prefeituras, o que é a prova mesma da sua aceitação generalizada. Assim como o “estadista” que se preza tem de abrir as “transamazônicas da vida”, um “bom prefeito” não pode deixar de ser o criador de avenidas, sua eficiência, seu trabalho será aferido fundamentalmente por isso, se além de avenidas, de preferência com muitas demolições, ainda levanta viadutos, isto numa época mais recente, melhor. Naturalmente com isso não estamos contestando o mérito particular de tal ou tal obra (pois como já dissemos, não é de nostalgia passadista e romanticamente idealizadora que se alimenta nossa análise), mas apenas estamos constatando e contestando o quase monopólio de atenções e valores, monetários e outros, dado às grandes obras locais como prolongamento do rodoviarismo nacional ou mesmo seu precursor: O prefeito de Recife nomeado pelo interventor estadual à época do Estado Novo, o Sr. Novaes Filho, dá um bom exemplo dessa visão em crônica publicada na Folha da Manhã (jornal por sinal de propriedade da família do interventor, Sr. Agamenon Magalhães) e reproduzida na seção “Revista da Imprensa - dos jornais de ontem” do Jornal do Commercio de 26 de janeiro de 1945: “Logo terminem os trabalhos da praça da Independência daremos início às demolições da Matriz de Sto. Antônio ao Pátio de São Pedro, para abertura dêsse trecho da nova avenida (os grifos são sempre meus) que será um dos serviços melhores que prestaremos ao Recife.(2) Quem quer que penetre as ruelas e becos, indecentíssimos, que vão

ser destruídos para a construção de uma nova artéria com 35 metros de largura, dirá da necessidade urgente desse serviço. (...) Com o progresso e a posição que já ocupa o Recife não pode parar a sua reforma e essa avenida é uma imposição para o tráfego, para a iluminação, até para a higiene. Não há interesse que justifique o seu retardamento. Nela vai a Prefeitura inverter soma alta, e com todo sacrifício. A cidade a reclama, o povo todo a deseja; o adiantamento do Recife não permite mais se mantenham, no coração de uma área comercial esses casebres, esses becos, essa imundície. (...) o Recife não pode ficar sem escoamento, sem grandes avenidas (...) O Recife não pode nem deve parar. Tem que evoluir, renovar-se (...) logo terminemos a praça da Independência será iniciada a grande obra, a maior do atual governo, no Recife. A cidade reclama, o povo quer e a Prefeitura fará”. O progresso é visto como uma força de ataque à resistência obstinada do arcaico, que se confina encarniçadamente em bairros cujo traçado e arquitetura urge demolir e remodelar, resgatando-os para os novos tempos que devem apagar as “marcas de sua antiguidade”. “O plano de remodelação da cidade, com a abertura da avenida Dantas Barreto até o Largo das Cinco Pontas, constitui um ataque de flanco ao velho bairro São José, que, com as suas ruelas e becos, seu calçamento irregular, seus lampiões, seus sobrados e suas casas antigas, ainda vinha resistindo com bravura ao movimento de modernização dos últimos dez anos. Ele e a parte do bairro do Recife não atingida pela reforma de 1911, a qual abrange a zona que vai desde os fundos da avenida Rio Branco até o Brum, são os trechos urbanos que mais conservam a velha feição tradicional do Recife. A gente andando pelas ruas desses bairros e olhando as marcas de sua antiguidade, ainda tem a impressão de estar no Recife de cincoenta anos atrás. Mas, assim penetrado e devassado pelo progresso, o bairro de São José dentro de alguns anos apresentará aspectos inéditos. E fica-se pensando se, nesse caso, não seria melhor estender, desde logo o plano à área nova, com bom traçado, e ao mesmo tempo comercial e residencial”. (Diário da Noite in Revista da

Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 7 de julho de 1946). A suposta cidade moderna não se esgota num novo traçado de vias, a razão deste está na sua funcionalidade para a circulação crescente do transporte individual, o automóvel, pois “os homens de trabalho não podem estar à mercê das conduções morosas, com itinerário determinado e inalterável. O tempo cada vez mais torna curto, nessa tremenda luta pela vida e nessa ruidosa movimentação de todas as cidades mais desenvolvidas meios de transportes, mormente os individuais. É preciso, pois, que se facilitem e barateiem os (...) um país que fabrica seus próprios automóveis já se pode considerar um país adiantado”. (Diário da Manhã in Revista da Imprensa – dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 20 de fevereiro de 1948). Mas para que os automóveis possam circular neste novo “país adiantado” (pelo fato de que “uma poderosa firma norteamericana está cogitando de montar, no Brasil, uma grande fábrica de automóveis”) é necessário que o bonde desapareça e já são feitas previsões: “Daqui a dez ou vinte anos o bonde terá desaparecido do Recife. O “omnibus” está tomando conta de tudo”. Como pode escoar-se o movimento de veículos, carros, caminhões, “omnibus”, transportes militares por essas ruas angustiosas? (...) (Diário de Pernambuco in Revista da Imprensa – dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 30 de abril 1948). A previsão acertou no prazo menor. Segundo MOTA (op. cit.) em 1958 já não circulavam bondes em Recife. Mas para se chegar lá havia um longo caminho a percorrer, dada a incipiência mesma do sistema de ônibus, visto sempre como substituto absoluto dos bondes e não em termos complementares. Matéria publicada no Diário de Pernambuco em 12 de dezembro de 1944 indica esta visão. “Um dos problemas realmente angustiantes do recifense, continua a ser

o do transporte. Diariamente, a certas horas do dia, é impossível tomar um bonde para qualquer que seja a linha de subúrbio. E se os homens se acomodam da maneira que podem e grande número deles se agarra nos estribos e nas entrelinhas, com risco de vida, para as senhoras e crianças a situação se torna muito pior. Os omnibus, que ultimamente passaram a circular na cidade, melhoraram a situação e vão descongestionando o tráfego. Acontece, porém, que esses omnibus servem apenas à área calçada, a fim de evitar maior desgaste do material, deixando os moradores de muitos subúrbios entregues a um único sistema de condução popular. Por aí se vê que o calçamento da cidade constitui por si uma questão do maior relevo, pois de toda evidência se conclui que quanto maior for a área calçada, maiores serão as facilidades de transporte. “Aliás, a tendência, hoje, das grandes cidades, é eliminar os bondes, por serem veículos pesados, de circulação lenta, atravancando as ruas” (Revista da Imprensa – dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 13 de dezembro de 1944). O texto acima além de indicar a visão do progresso que se propagava sobre a “tendência das grandes cidades” em eliminar os bondes, apresenta estes últimos como um “sistema de condução popular”, seria o transporte dos cidadãos de segunda categoria e esta visão do bonde como “transporte de pobre” viria não só determinar a política tarifária, mas exprimir por si só uma marginalização do sistema. Voltaremos a essa visão demagógico-paternalista. Outro assunto entrevisto neste texto é algo de tão comum que costuma passar despercebido, ou seja, a realização de crescentes e constantes investimentos públicos nas vias para a operacionalização privada dos transportes rodoviários. Voltaremos também a esse assunto ao abordarmos a categoria “políticas públicas privatistas”. Ainda nessa perspectiva do ônibus como substituto do bonde é que, com eloquência barroca, bem apropriada ao meio por sinal, que o jornalista festeja a implantação do serviço de ônibus na histórica Olinda: “A “Autoviária” poderá de hoje em diante gabar-se de uma esplêndida vitória: a da novidade de haver oferecido transporte coletivo à velha cidade de

Olinda. (...) Tudo mudou. (...) Aliás, de passagem fizêmo-lo, a “Autoviária” precisa sobretudo reagir, e com vontade, contra o tabu recifense de terem os veículos de condução coletiva um “tradicionalismo” de percurso. Em muitas dezenas de anos pouco se tem avançado em modificar itinerários de bondes, por exemplo. Por onde se passava há oitenta anos, quase, passa-se agora em situações e exigências de tráfego diversíssimas. Resta aludir-se ao absurdo daqueles bondes todos pelas ruas, Nova e Imperatriz, à ausência deles em artérias mais indicadas atualmente. (...) Têm os seus fiéis habitantes (de Olinda) vários deles de longos anos, um transporte decente e rápido, para descanso de suas pernas e, notadamente, para vaidade de seu orgulho de gente que se apraz de viver à sombra dos templos erguidos nos distantes tempos da colonização e das lutas pela liberdade. (...) A “Autoviária” com sua nova linha, não fez apenas um melhoramento: - praticou uma justiça histórica”. (Jornal do Commercio, 31 de agosto de 1945, seção “Notícias de Olinda”). A eliminação do sistema tranviário feita em nome da modernidade, tinha de começar, não por acaso, onde a representação da mesma deveria supostamente aparecer sem contestação, o centro da cidade, local mítico do brilho do progresso a se irradiar para os chamados arrabaldes. Assim, o cronista do Diário de Pernambuco, que sempre se assina Z. , na sua coluna “Coisas da cidade” de 21 de abril de 1948, faz um paralelo com o que já teria sido feito no Rio, então capital do país e referência máxima da urbanização da época: “Não há quem desdenhe numa cidade o problema do tráfego. Esse problema está tratado secundariamente no Recife. Quando se fez o calçamento da praça da Independência, com o seu acréscimo, imediatamente se deveria ter pensado na remoção dos bondes pela rua Nova, subida da ponte da Boa Vista e rua da Imperatriz. Em consequência o bonde deveria ter sido eliminado de todo o corredor, que vai da matriz da Boa Vista ao cais do pôrto. Em lugar do bonde, um serviço regular e barato de “omnibus”; imposto obrigatoriamente às empresas que exploram no Recife o serviço de transporte

urbano. Foi o que se fez no Rio, eliminando-se o bonde do centro da avenida Rio Branco e estabelecendo-se a linha Mauá-Aeroporto, por 40 centavos. O resultado daquele desleixo (porque foi um grande desleixo) é que o tráfego está congestionado todos os dias numa área que deveria estar o mais possível livre. O Recife é uma cidade de ruas estreitíssimas. Que vai ser o tráfego na Rua da Concórdia e Rua Imperial daqui a vinte anos? Dali também terá de sair o bonde, veículo pesado, obsoleto, estorvador da circulação, condenado em toda a parte. E nota-se que essas ruas são incapazes de dar escoamento ao tráfego, tendo-se de alargar a faixa do cais de Santa Rita. Os nossos administradores pensam sempre no seu tempo; e nunca no tempo do futuro. Daí os erros urbanísticos do Recife, muitos dos quais irreparáveis. – Z. (Revista da Imprensa – dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 22 de abril de 1948). A eliminação do bonde do centro da cidade é um projeto no qual já se empenham desde 1945 autoridades e imprensa. Assim o combativo cronista Mário Melo, também membro da Comissão do Plano da Cidade, relata em sua muito lida “Crônica da cidade” do Jornal do Commercio de 18 de setembro de 1945, intitulada neste dia de “Problemas de urbanismo”: “Tivemos uma reunião conjunta da Comissão do Plano da Cidade, do Conselho de Trânsito, da Gerência da Tramways”, sob a presidência do Prefeito, presentes também o secretário da Viação e o diretor de Obras Públicas. Assunto principal: o tráfego de veículos do bairro de Santo Antônio. Está em construção a Avenida Dantas Barreto, que será a principal do Recife, destinada a organizar o tráfego e não dever ser cortada por linhas de bonde. (...). A Comissão do Plano da Cidade havia oferecido uma sugestão para evitar o tráfego de bondes entre a igreja dos Militares e a Rua do Imperador, salvando assim, o corte, por linhas na Avenida Dantas Barreto e na Praça da Independência, sugestão que a Tramways não recebeu com simpatia.

Discussão prolongada, através da qual se pôde filtrar o seguinte: a) de futuro, nenhum bonde chegará ao bairro de Santo Antônio; b) presentemente, à rua Nova, (...) c) enquanto não forem afastados os bondes da rua Nova, não se remodelará a praça da Independência; (...) d) afastamento de trilhos da rua Conde da Boa Vista. Uma vez completado o trecho da avenida Dantas Barreto, entre a matriz de Santo Antônio e a igreja do Carmo, a rua Nova passará a ter o caráter da rua do Ouvidor, do Rio de Janeiro. Como se vê, houve o temor do ataque definitivo do problema, sendo adotadas soluções provisórias, temor que redunda no entrave da marcha progressiva da cidade. Mário Melo”. O passo decisivo para a retirada da circulação dos bondes do centro da cidade, bem como a supressão de algumas linhas é documentado extensivamente na matéria do Jornal do Commercio de 24 de agosto de 1948, intitulada “O problema de trânsito no Recife discutido numa mesa redonda” e onde se afigura com clareza o papel legitimador da imprensa na implementação das políticas públicas. “Durante mais de três horas, o secretário de Viação e Obras Públicas, membros do Conselho Regional de Trânsito e técnicos debateram, ontem, à tarde, o problema mais grave do Recife, o problema do trânsito. Os debates foram desenvolvidos numa “mesa redonda” em que tomaram parte ativa, inclusive, representantes de todos os jornais desta capital. Um pormenor não ficou por analisar nesse “tête-à-tête” cordial entre autoridades incumbidas de resolver o problema e outras pessoas igualmente interessadas em cooperar com o governo. E o que ficou evidente, de tudo isso, é que pelo menos a Secretaria de Viação tem, de agora por diante, um ponto de partida para os seus estudos posteriores, ficando naturalmente a cargo dos seus técnicos verificar a exequibilidade ou não daquilo que pareceu ficar mais ou

menos assentado, ao final dos debates, que se constituiriam de uma espécie de fogo cruzado de pontos de vista de todos os presentes. Estiveram reunidos nesta mesa redonda os Snrs. Gercino de Pontes, secretário de Viação e Obras Públicas; Antônio Ferreira, presidente do Coselho Regional de Trânsito; Quirino Simões, vice-presidente; Dr. José de Melo, delegado de Trânsito; Edgar Amorim, membro do mesmo Conselho; Dr. Prazeres Coelho, Edison Valença, J. Romangueira e Véscio Barreto, da Pernambuco Tramways, Snr. J. Arute, superintendente da mesma empresa; Dr. Teófilo José de Freitas, membro do Conselho de Trânsito e os representantes do JORNAL DO COMMERCIO e “Diário da Noite”, “Diário de Pernambuco” e “Jornal Pequeno” e “A Luta”. Uma oportunidade para todos Abrindo a discussão, o Snr. Gercino de Pontes disse que a reunião tinha o objetivo de fazer com que aqueles elementos que se interessam pela solução do mais intrincado problema do Recife, tivessem oportunidade de ventilar o assunto e conhecer opiniões diferentes. A presença dos representantes dos jornais tinha, então, uma como dupla significação: poderem debater o problema como representantes da opinião e ficarem inteirados de que a Secretaria de Viação não se havia descurado da questão. Havia seis meses o assunto vinha sendo esquematizado pela sua Secretaria. Agora chegara o momento de ser divulgado. As propostas da Tramways Em seguida o Snr. Gercino de Pontes passou a levar ao conhecimento dos presentes o que existia até agora. Em 20 de abril de 1948 a Pernambuco Tramways enviara à Secretaria de Viação e Obras Públicas propostas esquematizadas nas seguintes hipóteses: Restabelecendo o serviço de bondes com veículos em número aproximado ao daqueles que se encontravam em tráfego antes da guerra, serviço que exigiria um prazo de cinco anos para ser feito e um investimento total de 87

milhões e 500 mil cruzeiros. Estabelecimento de uma tarifa única de passagem para um cruzeiro e dez centavos,(3) condição indispensável para a realização de tal serviço. A segunda hipótese consistia no estabelecimento do serviço com tabela mais baixa mas dispondo a Tramways apenas de 55 carros. A terceira hipótese oferecia a manutenção de apenas 30 carros e, finalmente, a quarta e última, que seria a instalação de serviço de “omnibus” elétricos, em número de 100, o que acarretaria um investimento de 71 milhões de cruzeiros. A exposição de motivos da Secretaria de Viação De posse dessas propostas, o Snr. Gercino de Pontes endereçou ao Conselho Regional de Trânsito, para que as estudasse e opinasse, juntamente com um estudo da Secretaria de Viação. Nessa exposição de motivos, a sua secretaria propunha que se estudasse um sistema de descentralização dos bondes, que passariam a ter pontos terminais na Faculdade de Direito, Matriz da Boa Vista e Largo do Livramento, de todas as linhas de longo percurso. A primeira hipótese, aliás, consistia em reduzir o número de linhas nas zonas do centro e do norte, e a supressão da zona sul, inclusive de Boa Viagem, que passaria a ser servida pela Great Western.(4) O parecer do Conselho Regional de Trânsito Estudando a exposição de motivos e as propostas da Pernambuco Tramways, o Conselho Regional de Trânsito elaborou um parecer que foi discutido e aprovado em 6 de agosto corrente e que no decorrer dos debates da Mesa Redonda de hoje, no Palácio do Governo, foi aceito como o mais exequível e o mais objetivo, pela quase totalidade dos presentes. Esse parecer diz que existem dois pontos principais a estudar: aumento do número de bondes e o aumento de passagens, e a transformação dos bondes atuais em “omnibus” elétricos. E conclue pela mais razoável das soluções transitórias: adotar, como experimento , a solução que suprime as linhas do sul

(Boa Viagem e Tejipió), que passariam a ser servidas pela Great Western. Adotar como ponto terminal a Avenida Rio Branco. A linha Pedro II teria como ponto inicial a Fábrica Pilar. Normas a serem adotadas Ficaria interditado o tráfego de bondes pelas ruas da Imperatriz, Nova, Concórdia, 1º de Março e do Sol, ficando vedado à Pernambuco Tramways retirar a via permanente, rede aérea e demais equipamentos elétricos e mecânicos, com exceção, apenas, do trecho compreendido entre as pontes de Jiquiá e Tejipió, de onde poderá retirar a linha de ida. E finalmente exigir da Tramways a apresentação de um horário e uma tabela mínima dos carros que mantivesse trafegando. Uma solução transitória O Snr. Antônio Ferreira sustentou, verbalmente, todos esses pontos de vistas do Conselho Regional de Trânsito, argumentando objetivamente com as razões que impeliam o Conselho a sustentar aquela solução como a mais viável, sobretudo por ser transitória, podendo naturalmente ser alterada, quando as nossas condições particularíssimas permitissem a restauração total de um serviço de bondes. Caso contrário, a extinção dos bondes começaria a ser feita experimentalmente, não privando a população de (sic) uma retirada súbita desse sistema de transporte. Falou a seguir o Dr. Edison Valença, apoiando o ponto de vista do Conselho, mas fazendo de logo certos reparos a alguns tópicos do parecer, sem, contudo afastar-se ou divorciar-se completamente da supressão parcial alvitrada pelo Conselho Regional de Trânsito. Fala o relator do parecer Falou a seguir o Snr. Edgar d’Amorim, membro do Conselho Regional de Trânsito, reforçando os pontos debatidos pelo Snr. Antônio Ferreira, pois fôra o relator do parecer. Pediu a palavra em seguida o engenheiro Prazeres Coelho, que disse

que ia advogar a causa dos bondes, porque vira que até então todos os demais que o antecederam estavam de acordo com a sua supressão. Argumentou com a lógica e com a matemática, mas aqui e ali foi aparteado, principalmente pelo Snr. Edgar d'Amorim, que chamou a sua atenção para o caso especial do Recife, onde a adoção do serviço de bondes fora feita há anos por uma imposição do momento mas que se ia tornando obsoleta, na época atual e nas condições em que o problema do trânsito se gerara nesta capital. A opinião dos jornalistas À essa altura dos debates, o Snr. Gercino de Pontes pediu a opinião dos representantes dos jornais. 0 repórter do jornal “A Luta” disse que se opunha à supressão dos serviços de bondes, tomando em consideração as condições financeiras da maioria da população do Recife. Travam-se debates cordiais entre os drs. José de Melo, Véscio Barreto e Gercino de Pontes, que insiste, repetidamente, que o que se fizer, seja qual for a solução escolhida, não passará de algo transitório, porque quando tivermos a energia de Paulo Afonso, tudo será facilmente solucionado, inclusive com a remodelação total do equipamento. Fala o representante deste matutino O representante do JORNAL DO COMMERCIO, convidado a dar a sua opinião, diz que quem andou mais acertado foi sem dúvida o Conselho Regional de Trânsito, pois foi objetivo e ponderado. A supressão total dos serviços de bondes era inevitável, mas feita assim, abruptamente, redundaria numa imprudência. A supressão total das linhas Sul, que podiam ser servidas pela Great Western, assim como a de Casa Amarela, era meio caminho andado para a extinção total de um obsoleto sistema de transporte coletivo que já não podia ser mantido pela Pernambuco Tramways e que já não servia mesmo à população pobre, porque a economia feita na passagem redundava, quase sempre, em prejuízos decorrentes da lentidão das viagens. Por outro lado, o aumento das tarifas a ponto de ser niveladas com as dos “omnibus” só traria prejuízos à Tramways, porque preço por preço, o “omnibus” era melhor. Por outro lado, não se devia estrangular ainda mais a empresa,

obrigando-a a manter um serviço que só lhe dava prejuízos uma vez que o objetivo daquela mesa não era sufocar essa ou aquela concessionária mas procurar os meios mais práticos de solucionar os problemas do trânsito. Os representantes do “Diário de Pernambuco” e “Jornal Pequeno” esposaram o mesmo ponto de vista. Fala o representante da Tramways O último a usar a palavra foi o Dr. Véscio Barreto, que argumentou com segurança a impossibilidade de manter a Pernambuco Tramways como estava, com tarifas insignificantes com relação ao aumento do custo de vida, mas dizendo que a Tramways não estava ali para defender apenas os seus interesses. A intenção da Companhia era colaborar com o Governo, ajudando-o, na medida dos seus esforços, na solução do mais grave problema do Recife. “Em seguida, e já decorridas mais de três horas de interessantes e vivos debates, o Snr. Gercino de Pontes encerrou a reunião, agradecendo a todos, especialmente aos jornais, o interesse que tomaram pelo caso, atendendo solicitamente ao seu convite e pedindo fosse divulgado largamente tudo o que ocorrera naquela tarde para que o povo tomasse conhecimento do que a sua Secretaria estava pretendendo fazer em benefício do povo do Recife”. A primeira observação que dever ser feita a partir deste elucidativo documento é o fato da então Secretaria de Viação e Obras Públicas, que lidava com o problema dos transportes, ter tomado a iniciativa de propor ao Conselho Regional de Trânsito a “descentralização dos bondes”, ou seja, sua retirada do centro da cidade, além da supressão pura e simples de linhas. Para esta última proposta se faz uma referência à Great Western (companhia inglesa de trens, predecessora da estatal Rede Ferroviária do Nordeste). Ocorre que o traçado das linhas dos bondes e dos trens além de ser distinto, no caso dos últimos ocorria em locais muito menos habitados, sem falar na grande distância entre as estações de trem em oposição às paradas urbanas do bonde. Ademais, cabe levar em conta que o trem suburbano no caso não viria substituir o bonde, apenas ficaria o primeiro mais sobrecarregado, isto sim, num contexto de constante crescimento

demográfico. Finalmente é de se estranhar que, apesar da referência explícita à Great Western para tão relevante decisão de absorção de linhas, nenhum representante desta companhia estivesse presente na reunião... Para justificar o desinvestimento (note-se que a Pernambuco tramways apresentou propostas de investimentos) a sugestão do governo do Estado é apresentada como “provisória”, como de fosse possível recuperar-se um sistema já carente adotando-se medidas tornando-o menos operacional, quando se fala inclusive em extinção experimental dos bondes. No que diz respeito à reação da imprensa, apenas o jornal que hoje chamaríamos de alternativo, A Luta, se posiciona contra o desmantelamento proposto e isso por conta do bonde ter uma tarifa menor do que a do ônibus, é a visão do “bonde como transporte de pobre”. A grande imprensa, representada pelo Jornal do Commercio e Diário de Pernambuco, endossa acriticamente a proposta governamental fazendo seu o discurso da modernização que tornaria “inevitável” a supressão de um sistema de transporte coletivo. Note-se por fim o apelo do secretário à imprensa no sentido de que fosse “divulgado largamente” o conteúdo das decisões tomadas “em benefício do povo do Recife”, ciente que estava, sem dúvida, de não estar em conflito com uma mentalidade dominante. Convém ressaltar que o nosso estudo não visa propriamente fazer um levantamento histórico dos processos de decisão que levaram à extinção do sistema de bondes, mesmo porque nesse caso apenas o material de imprensa não seria suficiente para tal fim. O que nos interessa não é a história real do colapso operacional da Pernambuco Tramways, mas a mentalidade dominante na sociedade de então e sua visão de modernidade resultando na estigmatização de um sistema de transporte por ser considerado arcaico. Nesse sentido é ilustrativa a entrevista à imprensa concedida pelo então governador, Barbosa Lima Sobrinho, sobre a questão e publicada em 12 de setembro de 1948 no Jornal do Commercio: “O governador Barbosa Lima Sobrinho recebeu ontem à tarde, os

jornalistas do Recife para uma entrevista coletiva, após longo interregno de quase três meses”. Sendo o caso da “Pernambuco Tramways” assunto do dia, os representantes da imprensa solicitaram s.excia. fizesse uma exposição minuciosa das atividades do governo naquele setor, no que foram atendidos, com a solicitude costumeira. - Inicialmente – disse o Snr. Barbosa Lima Sobrinho – promovemos reuniões, aqui em Palácio, com os dirigentes da “Tramways” tendo em vista um estudo completo da situação. A Empresa fez uma demonstração de todas as suas dificuldades, concluindo que o serviço de bondes não dava resultado. No entanto, a impressão do governo era justamente que esse serviço correspondia a uma necessidade imperiosa da população, pois não há que considerar somente os que pagar Cr$ 1,20 pelo transporte, uras também os que só podem despender Cr$ 0,50 e isso com sacrifício. Fizemos sentir aos diretores da “Tramways” que a solução do problema deveria ser dada pela própria companhia e esperamos, então, que a Empresa estudasse convenientemente o assunto, informada, é claro de que o governo considerava indispensável a manutenção dos bondes, embora com preferência, no momento da solução do problema da energia elétrica. Isso porque a deficiência desse último serviço traz inevitavelmente grandes prejuízos ao desenvolvimento industrial do Estado, que é sempre uma condição básica para a melhoria das condições sociais. Em resumo: transigíamos com o adiamento da solução definitiva do serviço de bondes, contanto que se atacasse imediatamente o problema da energia elétrica. Prosseguindo declarou: - A “Tramways” estudou o assunto e trouxe várias propostas, fundadas todas elas no aumento da Usina de Energia Elétrica. Quanto aos bondes, mesmo que continuassem a circular em número de 40 ou 50, achava que isso só seria possível mediante uma elevação substancial dos preços das passagens, ao que parece para Cr$ 0,90. Em face disso, o governo interpretou essas propostas como significando que a “Tramways” não queria em absoluto prosseguir com o serviço de bondes.

E mais adiante: - Nessas condições, o único caminho que o governo tem a seguir, desde que não aceita as aludidas propostas, é o de agir dentro do contrato. Para tanto, mandei levantar todas as multas a fim de notificar a companhia. À essa altura, o Snr. Barbosa Lima Sobrinho esclarece que a solução definitiva do problema só poderia vir com a encampação da Empresa, não estando o governo em condições financeiras de fazer face a tal, no momento. Em meio à troca de idéias que se fez, nessa ocasião, os representantes da imprensa puderam deduzir que a importância correspondente às multas que o governo notificar à “Tramways” tornará menor a despesa do Estado, quando vier a encampação, sendo esta, ao que parece, a intenção do governo. O governador adiantou ainda que pediu ao engenheiro Prazeres Coelho, “o maior técnico nessas questões” em Pernambuco, que fôsse ao sul do país, a fim de estudar a situação dos serviços de bondes, a começar pela Bahia. Isso porque “diziam que esse meio de transporte já era obsoleto” O engenheiro Prazeres Coelho já concluiu a sua missão, tendo chegado à evidência de que “o bonde continua a ser o núcleo central dos transportes”. Quanto a essa parte, o Snr. Barbosa Lima Sobrinho lembrou aos jornalistas a possibilidade de procurarem o aludido técnico para uma entrevista. E acrescentou, então, que do relatório que o mesmo vai encaminhar, nestes breves dias, ao governo, consta uma sugestão no sentido de que seja constituída uma sociedade de capital misto, para explorar os serviços ora a cargo da “Pernambuco Tramways”. A esse respeito, o governador declarou que pretende apelar para a Federação das Indústrias, a fim de que esta estude a possibilidade de encontrar uma fórmula capaz de atender à solução proposta pelo engenheiro Prazeres Coelho. (...)” As declarações do governador indicam que o mesmo é favorável, em princípio, à manutenção dos bondes, embora isso fosse mais motivado por vê-los como “transporte do pobre”. Encarar o sistema de bondes como algo irremediavelmente do passado era uma questão tão forte na época que o governador enviou um engenheiro de sua confiança a outras capitais do país para

melhor avaliar a questão, pois “diziam aqui que esse meio de transporte já era obsoleto”, o que vai no sentido da hipótese da nossa pesquisa. Sobre esta questão, um suelto,(5) como se escrevia na época, do Diário da Noite de 23 de setembro de 1948 e reproduzido na “revista da imprensa” do Jornal do Commercio do dia seguinte, alerta sobre a “leviandade” daqueles que pretendem substituir os bondes pelos ônibus, embora não falte a recorrente referência ao “transporte de pobre”: “Muito se tem escrito a propósito dos bondes, julgando-os algumas vezes, como meio obsoleto de transporte que não pode continuar existindo numa cidade moderna”. A opinião assim formulada parece-nos sem fundamento. É difícil substituir os bondes pelos “omnibus” por muitos motivos. Em primeiro lugar, porque a passagem do bonde, sendo mais barata, se torna ele o meio de transporte da gente pobre da cidade. Ainda mais, porque o desgaste de material é menor do que o dos autos transportes. (sic) E, finalmente, porque o bonde possue maior capacidade de lotação do que os “omnibus”, facilitando o escoamento da população que mora nos arrabaldes. Além disso, é preciso ter em vista que, utilizando apenas os “omnibus”, estaremos na dependência do combustível estrangeiro. Durante a guerra, por exemplo, enquanto não havia gasolina para a maior parte dos nossos automóveis, com o carvão nacional e, até, com a lenha se ia alimentando as caldeiras da Tramways. Ora, assim sendo, não é prudente perder de vista este aspecto da questão quando estamos às portas de um novo conflito. Se nos vem a faltar o combustível, como poderemos manter, com regularidade, os nossos transportes urbanos? A opinião que, através de um dos seus técnicos, tem o governo do Estado sobre os bondes, se inclina, ao que tudo indica, para a sua manutenção. E é mister que não se proceda no caso com leviandade para que, amanhã, não venhamos a sofrer as consequências.” Posições como essa, embora minoritárias, indicam bem a existência de

uma polêmica na imprensa sobre o assunto. Mas o tempo corria a favor dos que julgavam os bondes “meio obsoleto de transporte que não pode continuar existindo numa cidade moderna”. Nesse sentido o jornalista Mário Melo na sua “Crônica da cidade” de 26 de fevereiro de 1949 e intitulada “Transportes coletivos”, festeja: “Finalmente, vai ser posta em execução, a título precário, ou seja, como experiência, uma parte do que há muito venho pregando sobre o afastamento dos bondes do centro da cidade”. Está publicado um aviso em que se adverte que os bondes não percorrerão mais o setor Rua Nova - ponte Maurício de Nassau. Fica, ainda, em execução, isto é, em trânsito, o setor Princesa Isabel – Buarque Macedo. “Haverá, senão grita, pelo menos resmungo, porque muita gente, por interesse próprio, sem olhar para o da coletividade, que são os outros, desejaria que o bonde parasse na porta de sua casa ou de seu serviço, para poupar alguns passos”. Note-se como o sucateamento de um sistema de transporte coletivo é justificado invertendo-se os papéis: aqueles que defendem a manutenção do sistema estariam apenas defendendo seu “interesse próprio”, “sem olhar para o da coletividade”, apenas pensando no seu conforto pessoal “para poupar alguns passos” e, como é de hábito nessa inversões próprias da função ideológica, utiliza-se a caricatura: “muita gente (...) desejaria que o bonde parasse na porta de sua casa ou de seu serviço”. Crescentemente, mas sempre de maneira restrita, isto deixou de ser um mero desejo para se tornar uma realidade, também para “muita gente”, mas não usuária dos bondes, apenas de automóveis...

A visão de progresso

Jornal do Commercio, 30/04/1948

2. 2 Rodoviarismo como opção

2.2.1 O ônibus como substituto do bonde Numa seção do Diário de Pernambuco intitulada “Coisas da Cidade”, assinada por Z. e transcrita na “Revista da Imprensa” do Jornal do Commercio de 19 de maio de 1946, o bonde aí é considerado um transporte antiquado, nada mais natural então do que estimular o transporte rodoviário. Nesta matéria como em outras semelhantes nunca se realça o fato das vias para os ônibus (e automóveis) deverem ser pavimentadas pelo setor público enquanto a construção das linhas férreas e sua manutenção competem à concessionária.(6) “Se na cidade há problemas de carestia (...) existe um problema que é máximo, o do transporte”. (...) Chegou, todavia, a hora de fazermos alguma coisa. E o indicado é calçar os subúrbios e alargar o transporte autoviário. É preciso que cada um fique convencido que o bonde é o sistema de transporte urbano mais antiquado e rotineiro, que há no mundo. Vamos deixar de lado os bondes e tratar de criar novos transportes. Somente para termos “omnibus” precisamos calçamento. E calçamento para todos os arrabaldes. (...) Ou o governo toma a si a execução de um plano de envergadura, ou o Recife será uma cidade inhabitável. Z”. Em crônica do mesmo jornalista e seção e transcrita pelo Jornal do Commercio de 21 de julho de 1944, propugna-se que se apaguem as linhas de bonde fazendo-se um paralelo totalmente inadequado com as políticas adotadas em Paris e Londres, omitindo-se que nessas duas cidades se construiu e se expande até hoje uma densa malha metroviária. Aliás este é um expediente muito comum no nosso jornalismo (escrito ou televisivo), fazer comparações (para um público que em sua maioria não pode checá-las) inadequadas, desvinculadas de todo um contexto entre nossa realidade e a de outros centros para justificar ou estigmatizar certas situações nossas. Assim, nenhum país teria tantos feriados como o Brasil, a gasolina mais barata do mundo é a do Brasil e por aí afora...

“Creio que com o tempo teremos de retirar os bondes da rua Nova, de vez que está definitivamente afastada a ideia de alargá-la. Sendo o bonde um veículo pesado e lento, causa os maiores obstáculos ao trânsito, e de tal modo que a tendência hoje é substituí-lo pelos “omnibus”. Foi o que se fez em Londres, em Paris, no Rio de janeiro. Ë o que se terá de fazer no Recife, à medida que vá aumentando a população e o número de veículos. O fato de se ter descongestionado o trânsito com a construção da avenida 10 de Novembro não será o bastante. Todo o Recife, aliás, se ressente da angústia de espaço. E seria necessário empregar vastas somas com demolições, só para enquadrá-lo no sistema urbanístico moderno. A rua Nova, das ruas tradicionais do Recife, não tem acompanhado a evolução da cidade”. (...) Outro jornalista, Mário Melo, batalhador incansável de causas locais, também vai pelo mesmo diapasão e ainda cita em seu apoio a figura do interventor federal que em nome do nacionalismo ajudou a desmantelar toda uma infraestrutura implantada entre nós ao mesmo tempo que estimulou a indústria automobilística importada: “O problema do descongestionamento do tráfego Parece vitoriosa a idéia que tantas vezes tenho advogado, de descongestionamento do tráfego, pela retirada dos bondes de longo percurso do centro da cidade. Outro dia, em artigo de sua assinatura, o interventor Agamenon Magalhães manifestou simpatia pelo mesmo assunto e ultimamente a Folha da Manhã deu o caso como resolvido, publicando entrevistas sobre o mesmo”. (Crônica da Cidade - Jornal do Commercio, 22 de julho de 1944) O sistema de ônibus aparece sistematicamente como concorrente, nunca complementar ao tranviáro. É sempre nesses termos que a questão é posta, não em termos de acumulação, mas de substituição. Uma substituição por sinal bastante assistemática, tanto em termos quantitativos como qualitativos.

Assim, o jornal A Gazeta de 11 de março de 1946 reclama: (..,) “O que nos falta para melhorar as condições de transporte da população não é o “omnibus” de aspecto lamentável, sujo e sem pintura, com os bancos arame, as cortinas em tiras – “omnibus” que trafega largando os pedaços. Mas o “omnibus” limpo, cômodo, com a lotação rigorosamente determinada pela Inspetoria de Veículos e os horários mais ou menos certos. Destas últimas faltas já se está (sic) ressentindo os carros da Autoviária. A situação reclama a atenção dos poderes públicos. Não é possível de (sic) melhoramento no tráfego da Tramways. Só poderia o governo intervir no sentido de promover quanto a estes, a vinda dos 50 novos omnibus cuja aquisição a Autoviária vem anunciando há tanto tempo. Que se facilitasse igualmente a outras empresas a aquisição de alguns novos carros montados em São Paulo e adquiridos na Argentina. Cinquenta ou sessenta “omnibus” bem cuidados, adicionados ao número já existente da Auto-Viária, (sic) melhorariam consideravelmente as condições de transporte urbano, desafogando os bondes, que poderiam assim, no inverno, oferecer melhor abrigo aos passageiros das “classes pobres”: (Revista da Imprensa – dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 12 de março de 1946). Como vemos, para as “classes pobres” o bonde, para os outros os “omnibus” bem cuidados, não faltando inclusive sugestões no sentido do Estado arcar com os custos da substituição dos sistemas de transporte: “A população espera com ansiedade que o problema do transporte seja amplamente resolvido. (...) A Tramways não tem bondes e os que tem são quase imprestáveis. A Prefeitura bem que podia adquirir “omnibus” como fez a do Distrito Federal; e os caminhões de transporte, como acontece na capital do pais, podiam ser adaptados para passageiros” (...) (Folha da Manhã in Revista da Imprensa dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 15 de maio de 1946). Note-se como se aconselha na matéria acima a improvisação pura e simples em matéria de transporte coletivo (a adaptação de caminhões), quase nunca se colocando a hipótese da recuperação do sistema tranviário existente.

De fato é de espantar como a improvisação mais grosseira é admitida como uma solução, na realidade verdadeiro retrocesso, em termos de transporte coletivo: “Povo sumamente prático, os americanos do Norte instituíram para os seus marinheiros, no Recife, caminhões cobertos de toldos de lona. Por que, além dos bondes e omnibus, não fomentamos essa moda? É muito mais cômodo viajar em caminhões improvisados em carros de passageiros, do que ser comprimido e apertado nos carros urbanos. (...) (“O transporte” – Henrique Lins – Jornal do Commercio de 6 de fevereiro de 1945). A visão concorrencial (não-complementar) entre os dois sistemas de transporte fica bem evidenciada na matéria abaixo: “A Autoviária botou a rodar na linha de Casa Forte dois novos omnibus. Eis uma coisa que duvidamos: que esses dois omnibus permaneçam na linha por muito tempo. A estrada (...) está pontilhada de buracos (...) Agora, se a Autoviária quer concorrer com os bondes (...) a isso só podemos responder com um vigoroso “shake hand” (aperto de mão – no original em inglês) de congratulações”. (...) (Diário de Pernambuco in Revista da Imprensa – dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 27 de junho de 1946). A decadência do sistema de bondes em geral era vista como um problema que só dizia respeito à empresa canadense concessionária, não se fazia distinção entre o destino e os interesses desta última e o destino do sistema tranviário. (...) “A Pernambuco Tramways já é uma presença desagradável na cidade, como um corpo em decomposição. Então é preciso removê-la fazendo figurar em seu lugar outro serviço, ou outros serviços que a substituam integralmente junto ao povo. Fomentar o serviço de “omnibus” deve ser a política das nossas autoridades, atualmente”: (Diário da Noite em Revistra da Imprensa dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 19 de março de 1949). O ex-governador Barbosa Lima Sobrinho frisou sistematicamente na

entrevista que nos concedeu em 1990 na sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) no Rio de Janeiro, que a extinção dos bondes teria sido devida ao desinteresse econômico da própria concessionária: (...) “as empresas estrangeiras surdamente comprometiam os serviços de transportes coletivos. (...) foram elas as principais artífices da supressão do serviço de transporte coletivo através de bondes, isso em Pernambuco como aqui no Rio de janeiro. Nesse ponto tanto a Light como a Pernambuco Tramways tinham a mesma inspiração que também dominava no regime de eletricidade e de fato nós verificamos nos serviços públicos que elas mantinham, no serviço de telefone, no serviço de telex submarino, toda parte elas foram piorando os serviços para tornarem impossível a continuação deles nas mãos dessas empresas privadas. Como que um esforço para entregar tudo ao próprio governo. (...) o principal fator para extinção desse serviço foi o interesses das empresas privadas estrangeiras, uma vez que não obtinham os lucros desejados, fizeram tudo para que esses serviços desaparecessem (...) inclusive acabaram com o serviço público e entregaram tudo aos pequenos capitais privados que tinham empresas de ônibus e que apareceram para substituir os serviços dos bondes. (...) é praticamente impossível continuar com o serviço público quando o próprio responsável por ele se interessa em extingui-lo. Essa é a conclusão que eu chego”. (...). Mas se o objetivo desinteresse econômico da concessionária explica a decadência do sistema tranviário, este setor acabando totalmente extinto, outros serviços da Pernambuco Tramways and Power, Company Limited (como geração e distribuição de energia elétrica e telefonia) não são apenas assumidos por empresas públicas federais e estaduais mas são ampliados e modernizados, malgrado também sua decadência. A questão não se esgota pois no nível da empresa isolada mas a transcende em termos da visão de mundo da sociedade global e local, vale dizer, de sua mentalidade e seus projetos de estilo de vida, presente e futuro. O

ex-deputado

estadual

Paulo

Cavalcanti

em

discurso

na

Assembleia Legislativa de Pernambuco em 28 de julho de 1953 e depois publicado sob o título A verdade sobre a Pernambuco Tramways (op. cit. p. 20) fez um balanço das consequências imediatas da extinção do sistema: (...) “Ao mesmo tempo em que a população do Recife era de 300 mil pessoas, os bondes da “Tramways”, segundo cálculos a respeito, transportavam, diariamente, cerca de 200 mil passageiros. Hoje, com o desaparecimento dos bondes elétricos, esses milhares de passageiros, aumentados com a elevação dos índices demográficos do Recife, são obrigados a se servir de ônibus, transporte caro, acima das possibilidades médias das classes trabalhadoras”. (...) Se a referência às “classes trabalhadoras” não é de estranhar no discurso de um deputado comunista, note-se contudo que também para este homem público o bonde era visto como o “transporte do pobre”.

O ônibus como substituto do bonde

2.2.2 O bonde como “transporte de pobre”

O

estabelecimento

desta

subcategoria

dentro

da

categoria

“rodoviarismo” me foi sugerido pela leitura do material de imprensa, em termos das constantes associações feitas entre a operacionalização do sistema de bondes e a população de baixa renda. Naturalmente esta associação vai ocorrer em função da decadência mesma do sistema, esvaindo-se com tarifas 100% inferiores às dos ônibus; neste sentido não é o pobre que é confinado no bonde, é o bonde que é confinado na pobreza como transporte marginalizado, pela própria concessionária, pelo poder público e pela sociedade. Matéria publicada na Folha da Manhã de 20 de setembro de 1944 indica a clivagem existente entre a clientela do serviço de ônibus e a dos bondes: “Com o serviço de omnibus” ultimamente introduzido na cidade, tornouse um pouco menos angustiante o problema de transporte no Recife. Dizemos

“um

pouco

menos”,

porque

a

população

pobre,

verdadeiramente pobre, não foi beneficiada. O nosso operário continua a depender do bonde. As suas parcas possibilidades econômicas não lhe permitem o conforto dos nossos omnibus”. (...) (Revista da Imprensa – dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 21 de setembro de 1944). Antes do automóvel se tornar entre nós, a partir dos anos 60, um diferenciador de classe e/ou status em relação aos usuários de ônibus, desempenhou este último essa função distintiva (nos anos 40) em relação aos usuários de bondes, o que mostra que certo tipo de modernização implica na distinção. “A maneira correta pela qual vem servindo à população a empresa “Autoviária” tem encontrado favorável acolhida entre olindenses.

Muitos dos passageiros, porém, sentem-se constrangidos em viajar na companhia de pessoas maltrapilhas, de chinelos, às vezes até descalços. Mas, o fato, se não se justifica explica-se. Em primeiro lugar, não há, faz bastante tempo mesmo, bondes de segunda classe para Olinda. E os bondes de primeira eram e continuam escassos.(7) Em Olinda, Salgadinho, etc. existem muitas pessoas pobres, e mesmo paupérrimas, que trabalham no Recife, e que praticamente só dispõem de “omnibus” para transportar-se para a cidade; e não há dúvida, é melhor pagar os Cr$ 1,00 e Cr$ 2,00 da passagem, a perder o “ponto” e o “dia”.” (Notícias de Olinda, Jornal do Commercio de 26 de setembro de 1945). Outra matéria também da mesma seção (Notícias de Olinda) insiste dias depois na mesma tecla, o que mostra como os meios de transporte antes de serem meios técnicos de locomoção são meios de distinção social: “Durante o período da guerra, podia-se justificar a falta quase absoluta de condução entre Recife e Olinda. Agora, porém, não mais se explica que a situação perdure. Os carros de segunda classe, por exemplo, continuaram a não existir. E Salgadinho e outras zonas são densamente povoadas, sobretudo por operários, que, à falta de outros meios de condução, se transportam para os seus locais de trabalho nos bondes de primeira classe. Muitas senhoras, por exemplo, sentem-se constrangidas. Mas a culpa, inquestionavelmente, não é da população. É da falta de bondes”. (Jornal do Commercio de 11 de outubro de 1945) O então governador Barbosa Lima Sobrinho, apesar de preocupado com a permanência do sistema tranviário o vê também sob o prisma do “transporte de pobre”, de caráter quase assistencial, como se depreende desse trecho de nota oficial de seu gabinete e publicada no Jornal do Commercio de 9 de setembro de 1948:

(...) “a Pernambuco Tramways não se interessa pelo serviço de bondes, desejando continuar apenas com a exploração da eletricidade. Nesse sentido está disposta a aceitar todos os entendimentos e já formulou diversas propostas ao Estado. O governo do Estado não ignora a importância da questão da energia para uma cidade como Recife, que já possui regular parque industrial. Mas considera também que a aceitação dessa tese importaria no sacrifício definitivo do serviço de bondes, com o encarecimento do transporte e o prejuízo de populações pobres, que não podem suportar as tarifas cobradas nos “omnibus” em tráfego. Não faltaria quem admitisse a supressão do serviço de bondes, para poder receber eletricidade sem atropelos e sem interrupções; mas o governo atento aos interesses da comunhão, (sic) não pode ser indiferente à sorte das populações pobres, que ainda se servem dos bondes e contam com a melhoria dos transportes tranviários”. (...) Naturalmente um sistema de transporte encarado do ponto de vista assistencial, vinculado ademais a uma empresa privada não subsidiada, constitui um paradoxo insustentável por muito tempo e cujo desfecho só poderia ser a sua dissolução completa; o assistencialismo alegado, mas efetivamente não praticado pelo Estado, revelando-se então pura ficção. A ausência de uma efetiva política pública de transportes na época é o que revela esse jogo de faz-de-conta assistencialista e do qual um editorial do Jornal do Commercio de 12 de setembro de 1948, sob o titulo “Urge uma solução” tira algumas conclusões: (...) “Será, por exemplo, insolúvel a questão do transporte barato das populações pobres, uma vez liquidados os poucos bondes que ainda restam? Antes de mais nada, seria o caso de perguntar quantos são e o que são êsses espectros ruidosos, que por aí ainda se arrastam aos trancos, tão raramente se mostrando que quase constituem aparições fantásticas. Talvez não passem de 20, em todas as linhas, nas horas de maior “movimento”. É isso, então, o que sustém o desfecho da crise de transportes baratos? É dêsses poucos, lerdos e inconstantes calhambeques que depende o não se ter manifestado ainda, em tôda a gravidade, o transe culminante?

Convenhamos que não é possível concebê-lo. O descalabro já reinante na matéria, o infortúnio, as dificuldades, os atropelos das populações pobres dos subúrbios, não podem ser maiores do que já são! E ainda quando se pudessem agravar, sensivelmente, com a desaparição dos raros e modorrentos carroções que ainda circulam, o caso não seria de “deixar como está para ver como fica”, e sim de experimentar uma solução que acabe de uma vez com o preconceito de que o bem-estar dos suburbanos depende da manutenção dêsses trambolhos, tratando-se para isso, de possibilitar o desenvolvimento e a ampliação dos transportes coletivos automóveis”: (...) Outra matéria, desta vez do Diário de Pernambuco, revela o impasse a que chegou um assistencialismo verbal na área de transporte e a mentalidade da sociedade da época sobre a questão: (...) “ou acaba-se de vez por todos com os bondes, fazendo-se circular “omnibus” de 2ª. classe; ou terá o govêrno de tomar alguma providência, para restaurar os bondes e mantê-los, sobretudo em algumas linhas, de população operária densa”. (Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 23 de dezembro de 1949). Naturalmente o bonde não foi sempre um “transporte de pobre”, teria sido até o transporte por excelência das elites, é o que se deduz não só da existência de uma “primeira” e uma “segunda classe”, que até antes da segunda guerra funcionavam normalmente e nesse nível estabelecendo-se a distinção social, mas também do que reza a 20ª. Cláusula do contrato assinado entre a concessionária e o Estado em 21 de outubro de 1919: “Terão passagem gratuita em todos os carros e tôdas as linhas, mediante passes de cartão renováveis anualmente, o Governador do Estado, o Prefeito da Capital, o Secretário Geral do Estado, o Chefe de Polícia e os três delegados da Capital”. (cf. Paulo CAVALCANTI, 1954: 2-3). Qual seria o “transporte de pobre” dessa época?

O bonde como “transporte de pobre”

2.2.3 A precariedade do serviço de ônibus Esta subcategoria não tem o propósito de fazer uma avaliação da substituição efetuada de um sistema de transporte por outro, não só porque o material coletado seria inadequado para tal fim, mas também porque vemos os sistemas mais em termos de complementariedade do que de competição. Apenas queremos ressaltar o agravamento dos problemas de transporte provocado pela ausência de uma política pública para o setor. Substituiu-se o serviço de uma concessionária estrangeira por uma série de concessionários nativos, ficando o setor público numa posição mais de observador do que de administrador, como inclusive fica evidente pelo apelo final do articulista da Folha da Manhã de 18 de março de 1949, seção “Com a boca no mundo”: “Quando a ruína dos bondes deixava a cidade praticamente sem transportes, os “omnibus” iniciaram a sua ascensão no conceito público.” Considerados até então inviáveis, dado o baixo nível econômico da grande massa que utiliza transporte para o trabalho, foram aceitos embora com sacrifício, pois não havia outro jeito. E chegou a um ponto em que o bom negócio dos “omnibus” atraiu muito capital. Estávamos na situação de não reclamar mais a deficiência de transporte, tantos e tão bons eram os “omnibus” a serviço do povo. (...) Quasi todos os “omnibus” eram aceitáveis e mereciam elogios. E estes não eram regateados, embora não fôsse possível deixar de lamentar o preço não muito accessível. O apogeu, porém, durou pouco. O que agora se está observando é um retrocesso lamentável no assunto. Pouco a pouco, o desgaste vem tornando imprestáveis muitos e muitos carros e o conforto, e a segurança de grande parte são bastante precários. O fato vem provocando as maiores lamentações. As colunas dos leitores se enchem de cartas reclamando, e reportagens e comentários desfavoráveis vêm atingindo as empresas. Não podemos consignar nenhuma exceção. A decadência é geral e bastante rápida. Começamos, os recifenses, a retornar à saudade dos tempos dos bondes limpos e confortáveis e a apelar para as empresas de “omnibus” que

revigorem o seu esfôrço - que não deixou de ser rendoso - salvando-nos das dificuldades de transporte decente.” (Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 19 de março de 1949). 2.2.4 “Autolotações” como transporte coletivo Esta subcategoria é mais um indicador de como rodoviarismo como opção norteava a visão da sociedade da época em termos de transporte preferencial, caracterizando ao mesmo tempo a improvisação em termos de transporte coletivo. A Folha da Manhã de 14 de julho de 1944 faz referência aos chamados autolotações, equivalentes aos atuais táxis-lotações, com a única diferença que na época não havia taxímetros instalados nem placas e faixas nos veículos com a palavra táxi, eram os chamados “carros de aluguel”. “Instituído a título precário, depois de uma campanha vitoriosa na Folha da Manhã, sabemos que vai ser oficializado o serviço de auto-lotação, pela Delegacia de Trânsito. Desde o início do seu funcionamento, o serviço de auto-lotação aprovou inteiramente. E dia-a-dia aumenta o número de passageiros transportados pelos carros de aluguel, na função de transporte coletivo”. (Folha da Manhã in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 15 de julho de 1944). Vê-se pelo texto acima que o jornalista autor da matéria não apenas descreve o novo serviço “instituído a título precário”, mas inclusive confessa ter o próprio jornal feito uma campanha a favor do mesmo, concluindo por uma avaliação positiva do transporte coletivo feito em automóveis. Afinal é preciso não esquecer que o táxi ou “carro de aluguel' não é propriamente um transporte coletivo, mas um transporte emergencial e especial, misto de transporte individual e coletivo, sem ser nem um em outro. O táxi-lotação é por isso mesmo um transporte, do ponto de vista legal, clandestino, impondo-se justamente em função das carências do transporte coletivo, sejam elas rotineiras ou extraordinárias, caso de uma greve de motoristas de ônibus, quando o próprio poder público então o

legaliza emergencialmente. Dias depois o mesmo jornal volta ao assunto registrando a oficialização do sistema e se congratula com isto, malgrado a existência de um racionamento de combustível, dado o período de guerra. “O delegado de Trânsito, Dr. Heraldo Valença, em data de ontem, instituiu, em caráter definitivo o serviço de auto-lotação na cidade, confirmando-se, assim, a nota que, a esse respeito, publicamos há poucos dias. Experimentando durante cerca de sessenta dias o que se observou foi uma grande aceitação geral, a mais completa adesão dos passageiros pelo novo sistema de transporte coletivo. Deu tão certo o auto-lotação que o consumo antigo de combustível dos carros de aluguel está excedendo à expectativa anterior, impressionando pelo aumento considerável. Tão considerável que está ameaçado de paralisação o serviço de acordo com a notícia ontem divulgada por esta folha, com um apêlo às autoridades da Comissão de Controle de Combustível, em favor dos motoristas”. (Folha da Manhã in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 19 de julho de 1944). Dois anos depois, malgrado o sucateamento progressivo do sistema tranviário, o de ônibus não chega efetivamente a suprir à crescente demanda por transporte coletivo e um cronista sugere o estímulo ao autolotação como remédio: “Quem observar às 17 horas o movimento das filas vê que a população aumenta, nestes últimos anos. Já os “omnibus” existentes não dão vencimento. (...). Então teremos de pensar desde logo no alargamento (sic) de nossos transportes de “omnibus”, de vez que os bondes não dão o rendimento que seria de desejar. Também é certo que o trem de vida da população aumentou, de sorte que muita gente, que dantes só utilizava os bondes, não os procura mais. Um serviço que poderia prestar boa cooperação, e ainda se acha muito reduzido, é o de auto-lotação, o qual se impõe para as linhas de maior movimento,

em certos horários mais concorridos. À Delegacia de Trânsito cabe estimular o auto-lotação, agora que estamos tratando da semana de trânsito, e onde tudo o que diz respeito ao tráfego urbano deve interessar. - Z.” (Diário de Pernambuco, da seção “Coisas da Cidade” in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 7 de novembro de 1946)

2.2.5 A improvisação como transporte coletivo A ausência de uma política pública para os transportes coletivos no Recife da década de 40 resultou numa improvisação grotesca de meios de transporte, sem mínimas condições de segurança, verdadeiro retrocesso técnico e social, malgrado o discurso do progresso existente como vimos. A Folha da Manhã de 9 de dezembro de 1944 descreve a precariedade do “novo meio de transporte” amenizada pela perspectiva do pitoresco: “o povo batiza com o nome gostoso de “beliscadas”. Vejamos o texto: “Há um novo meio de transporte no Recife, que está tendo grande aceitação e resolvendo o problema da condução em determinadas zonas, para as quais uma linha de “omnibus” permanente não traria vantagens. Trata-se de caminhonetes, com carroceria de “omnibus”, e que o povo batizou com o nome gostoso de “beliscadas”. As “beliscadas” são vistas com as suas lotações de 12 a 13 passageiros completas (...) São vistas nos pontos de estacionamento de autolotação, recebendo os passageiros permanentes, ou outros, acidentais. Alguns motoristas até já estão pensando em substituir os seus carros de praça por “beliscadas”, não somente porque terão maiores lucros, como também porque colaboram com mais eficiência para a solução do angustioso problema dos transportes urbanos. Falam, agora, que serão criadas “beliscadas” para as vilas populares, para a condução de seus moradores. (...) A idéia é magnífica e deveria ser tomada em consideração pelos

moradores das vilas, pelos motoristas profissionais e, sobretudo, pela Diretoria de Reeducação e Assistência Social e Delegacias dos Institutos de Aposentadoria e Caixas de Pensões, sempre interessados em solucionar todos os problemas atinentes ao progresso e melhoramentos de seus núcleos residenciais. Que o povo preferiria as “beliscadas” aos morosos bondes ou aos pouco omnibus não resta dúvida”. (...) (Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 10 de dezembro de 1944). Note-se o entusiasmo do jornalista com a “magnífica idéia” que viria substituir os “morosos bondes”. No primeiro período do texto há uma indicação de como o transporte coletivo não é visto como um serviço público, mas como mero negócio: “uma linha de omnibus permanente não traria vantagens”. Com o tempo a exceção passou a ser a norma e a improvisação foi oficializada: “Foi sem dúvida um bem para as populações dos subúrbios a licença da Prefeitura permitindo o tráfego de veículos coletivos adaptados em todas as linhas. Essa medida veio desafogar o povo que somente contava com os bondes da Tramways para as suas viagens obrigatórias ao centro da cidade e a volta à casa”. Agora podemos ver omnibus de toda espécie e modelo a trafegar repletos de passageiros”. (...) (Diário de Pernambuco, da seção “Coisas da cidade” in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 28 de dezembro de 1946). As consequências da improvisação logo se fizeram sentir a nível dos acidentes de trânsito: “Está ultrapassando todos os limites toleráveis o número de acidentes de tráfego nesta cidade, em particular oriundos de caminhões e desses transportes coletivos de emergência a que o povo chama 'correição', porque em verdade, mais próprios ao policiamento de animais vagabundos que ao transporte de gente. (...)

Quanto a esses transportes coletivos de emergência, as “correições”: Trata-se, em geral de conjunto de ferro-velho. Quando o caminhão está para dar baixa no serviço de carga, por não poder suportá-la, o proprietário o adapta a “correição”, com o que se torna melhor e mais fácil o lucro, mesmo porque menor o consumo de combustível e o desgaste. Até certo ponto no momento em que foram permitidas, as “correições” prestaram serviço. Como se tratava de indústria muito lucrativa, surgiu a multiplicação e com a multiplicação a ganância. Põe-se na rua qualquer ferro velho e faz-se o maior número de viagens, para o que é preciso desenvolver maior velocidade, “cortando” tudo o que lhe for à frente. É tempo de a Delegacia de Trânsito tomar medidas drásticas, para evitar que os desastres de automóveis, particularmente de transportes coletivos, estejam a competir com a mortalidade infantil e a tuberculose no passivo demográfico de Pernambuco A primeira medida será restringir as “correições”, por meio de exame técnico, deixando em uso somente as que ofereçam condições de segurança. “A segunda é exigir que o chofer(8) da “correição” tenha os mesmos requisitos que o profissional de auto-omnibus, pois um e outro são responsáveis pela vida do passageiro, seja qual for a condição social deste”. (...) (Crônica da cidade - Desastre de tráfego - Mário Melo, Jornal do Commercio de 27 de março de 1947). Note-se pela “segunda medida” sugerida pelo cronista como a improvisação chegava ao ponto de não se exigir habilitação, para o motorista dos caminhões adaptados para transporte de passageiros, similar à do “profissional de auto-omnibus”. Depreende-se ademais como esse tipo de transporte se destinava sobretudo aos bairros de população de baixa renda. Daí porque o cronista chama a atenção para a responsabilidade com a vida do passageiro, “seja qual for a

condição social dêste”. Outro articulista chega a comparar de maneira patética os veículos adaptados às charretes que conduziam os condenados à guilhotina na Revolução Francesa, ou seja, considerava os passageiros daqueles veículos como igualmente condenados à morte. Apesar de toda a dramaticidade do estilo o jornalista frisa que nada tem, em princípio, contra esse tipo de transporte, jogando todo o problema para a concessionária estrangeira, uma vez que “quase não se conta com ela”. “A Prefeitura e a Delegacia de Trânsito precisam, quanto antes, controlar com mão forte as atividades das “correições” e carros improvisados em “omnibus” que vêm semeando a morte quase todos os dias pelas ruas e estradas desta cidade. A situação está se tornando alarmante e dentro de pouco tempo - se a coisa continuar assim - poderemos comparar esses carros àqueles que durante o Terror conduziam à guilhotina as vítimas da Revolução. Pois, cada dia que se passa, são menores as condições de segurança e maiores as probabilidades de desastre para as pessoas que viajam nas “correições”. Sucedem-se os desastres todos os dias e não houve ainda nenhuma providência efetiva para sustá-los. Já deixamos, bem esclarecido, em notas anteriores, que não somos em princípio contra êsse tipo de transporte de emergência, que, à falta de outro melhor (a Tramways, já quasi não se conta com ela) presta serviços à população. Mas insistimos em que o preço de riscos de sangue que o povo está pagando às “correições” é muito elevado. A ânsia de lucro, a competição desenfreada são, em parte, responsáveis por tudo isso”. (Diário da Noite em Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 28 de março de 1947). Três anos depois, de acordo com um editorial do Jornal do Commercio de 9 de fevereiro de 1950, intitulado “Transportes coletivos”, parece que a “guilhotina” continuava a fazer suas vítimas em Recife pois, depois de constatar melancolicamente que “o Recife chegou a ter, talvez. o melhor serviço de bondes da América do Sul, em eficiência, quantidade e qualidade do material'; denunciava “a extrema e penosa ruína a que chegou por fim a nossa capital, privada de

transportes coletivos e reduzida à conjuntura da proliferação das “beliscadas” catastróficas”. (...) 2.2.6 O automóvel substitui o bonde No início da pesquisa eu me norteava pela hipótese que uma visão de modernização legitimara a substituição do bonde pelo ônibus. Isto é, o ônibus surgindo nos transportes recifenses não como um complemento, mas como um concorrente-substituto. Se bem que o material colhido fortalecesse nossa hipótese inicial, ao mesmo tempo fomos tomando consciência de um aspecto que não suspeitávamos. Mais do que o ônibus, o verdadeiro concorrente-substituto do bonde teria sido o automóvel. Nesse caso não teríamos uma simples substituição/ sucateamento de um sistema de transporte coletivo por outro, mas a eliminação de um sistema de transporte coletivo em favor do transporte individual. A modernização se apresentando mais uma vez com a face real, embora não aparente, da exclusão e do elitismo. O ônibus teria desempenhado nesse contexto um papel subsidiário, complementar e legitimador (como transporte coletivo) da substituição do bonde. Talvez por aí se explique e se compreenda (sob a ótica do transporte coletivo) o porque do abandono de todo um sistema já implantado. Em termos de expansão da cidade, e sempre na ótica do transporte coletivo, caberia um crescente papel ao ônibus em complemento a uma malha tranviária préexistente, sendo bem conservada, naturalmente. O problema, agora já sob o prima do transporte individual, é que essa malha ocupava as áreas mais movimentadas e valorizadas da cidade. Daí porque o bonde é visto como um estorvo no centro da cidade e portanto, sob a ótica da prioridade do automóvel, a questão da complementariedade não se coloca, apenas a da exclusão. Sempre se pode alegar que na época em questão ainda não existia uma indústria automobilística no Brasil, o que desqualificaria toda a argumentação precedente. Ocorre que o Recife já contava no início de 1948 com um total de 3.644 automóveis importados, em quinto lugar entre as capitais, para um total de 131.330 automóveis em todo o país, segundo o “Monitor Mercantil” citado em matéria do Diário de Pernambuco de 17 de setembro de 1948. O Rio, capital federal, vinha em primeiro lugar, 30.698 automóveis e São Paulo (capital) em segundo, com 21.110. O Estado de São

Paulo já detinha a primazia com mais de um terço da frota de automóveis do país, 46.573. O redator da “vária”(9) acima citada e transcrita na “Revista da Imprensa” do Jornal do Commercio de 18 de setembro de 1948, depois de apresentar estas estatísticas comenta sarcasticamente: “Diz o governo (na época Barbosa Lima Sobrinho) que está pensando em resolver “realisticamente” o problema dos transportes urbanos, parece que com a restauração intensiva dos bondes”. Enquanto, porém, não chegam os bondes, teremos de “realisticamente” nos arranjar com os “omnibus” e com os automóveis em geral. HADLER (op. cit., p. 156) assinala que o Automóvel Club de São Paulo foi fundado em 1908 e nesta entidade “que reunia um grupo significativo de empresários e políticos ligados às famílias mais poderosas de São Paulo entre os quais Antonio Prado Jr. e Washington Luís. (...) nesse círculo foram elaboradas as diretrizes mais importantes da política rodoviária paulista nas duas décadas seguintes.”

Ainda segundo esta autora, na década de 1920 uma campanha

promocional “visava fortalecer a política rodoviária do Estado e estimular o uso do automóvel.” As matérias a seguir indicam como o bonde era visto como um estorvo à livre circulação dos automóveis. Assim, o jornal da família do interventor federal Agamenon Magalhães reclama: “Uma revisão nos pontos de parada dos bondes de Recife está se fazendo cada dia mais necessária. Uma das causas do extraordinário vagar com que circulam os nossos “tramways”, provocando o atraso e o congestionamento do tráfego, é a má distribuição dos postes de parada. (...) o bonde vai se arrastando pela rua estreita, seguindo por uma enorme fila de automóveis, a buzinar incessantemente”. (...) (Folha da Manhã in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 9 de novembro de 1944). As autoridades do trânsito, onde têm assento naturalmente os proprietários de automóveis, problematizam o prejuízo que o bonde trazia aos mesmos: “Divulguei, em linhas gerais, o resultado duma reunião coletiva de

autoridades sobre problemas urbanos e particularmente sobre tráfego”. Curioso o que ocorreu, quando antigo membro da Semana de Trânsito se referiu à rua Conde da Boa Vista (...) lamentaram que por ali ainda transitassem bondes. (...) o bonde não servia àquela rua e era prejudicial ao tráfego de automóveis. (...). (...) tão convincentes foram as razões, especialmente com o trajeto, por ali, da Autoviária (...) que a rua Conde da Boa Vista ficará sem trilhos, como um dos mais importantes escoadouros de tráfego”. (...) (Crônica da cidade - Mário Melo - Jornal do Commercio de 20 de setembro de 1945). As efetivas providências para "serventia de automóveis" não tardam: “A rua Conde da Boa Vista foi destinada ao tráfego de automóveis. (...) Para deixá-la exclusivamente como serventia de automóveis foi até retirado o bonde, que preguiçosamente por ali passava, embora numa única direção”. (...) (Crônica da cidade - Mário Melo, Jornal do Commercio de 19 de outubro de 1945). Da eliminação do bonde do centro da cidade se chegou ao consenso da sua extinção completa, ficando explícita a opção rodoviarista elitizante: “Sendo o Recife uma cidade de espaço exíguo para a circulação de “omnibus”, automóveis e caminhões, tudo o que entrava e estorva essa circulação deve ser evitado”. (Diário de Pernambuco, da seção “Coisas da cidade” in Revista da Imprensa, dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 8 de maio de 1947). O filósofo Henri LEFEBVRE (2009, p. 71 e seguintes) critica o economicismo que poria a ênfase sobre a quantidade das trocas econômicas e deixaria de lado a qualidade, isto é, a diferença essencial entre valor de uso e valor de troca. Ora, segundo o mesmo “o urbano se funda sobre o valor de uso” e o uso intensivo do automóvel, “meio de transporte privado” seria a antítese desta concepção de urbano.

Rodoviarismo como opção

2.3 Políticas públicas privatistas Mais do que de política pública para o setor de transporte seria mais exato falar em ausência de uma política no Recife da década de 40. Entretanto como inexiste o vácuo na realidade social, a ausência de uma política no sentido de uma explicitação de fins, propósitos e meios justificando determinadas escolhas e estratégias de alcance imediato ou não, resulta concretamente numa prática que não é neutra face aos interesses em presença. Vale dizer, se nenhuma política é neutra, tampouco o é a ausência da mesma. A omissão do Estado e a improvisação observada não fazem senão reforçar os interesses mais particularistas e elitistas e de menor alcance social do ponto de vista do atendimento concreto de demandas objetivamente existentes como carências. É nesse sentido que falamos em políticas públicas privatistas, uma contradição em termos justamente para frisar as consequências da ação-omissão do Estado. Subdividimos esta categoria em duas subcategorias com fins puramente analíticos e expositivos, pois de fato o que estas últimas indicam diz respeito a uma mesma prática político-administrativa.

2.3.1 Pavimentação pública para veículos privados Falar sobre pavimentação pública para veículos privados parece à primeira vista falar sobre o óbvio, pois isto é uma prática urbana costumeira e legitimada socialmente via pagamento de impostos. Ocorre curiosamente que esta legitimação na época que pesquisamos só se dava em relação ao transporte rodoviário, no que diz respeito ao tranviário sempre se esperava que a empresa concessionária assumisse exclusivamente o ônus da implantação e manutenção do sistema.(10) Vale dizer, enquanto se considerava natural por um lado que o poder público pavimentasse ruas e avenidas para o tráfego de ônibus de empresas privadas e de automóveis, se considerava por outro que a manutenção da via férrea dos bondes competiria exclusivamente à empresa concessionária, pouco importa se esta estivesse ou não em condições ou interessada em mantêla. O serviço de bondes era visto neste caso não como um serviço público e uma

infraestrutura coletiva, mas como um problema exclusivo da concessionária. Esta visão dominante é atestada pelo material de imprensa. Assim, de um modo exemplar é dito na seção “Notícias de Olinda” do Jornal do Commercio de 17 de abril de 1945: “Por iniciativa do novo prefeito, tiveram início os reparos que há muito se faziam necessários, na rodovia que liga Recife a Olinda. É necessário, agora, que a Tramways faça a parte que lhe cabe”. Em suma, da rodovia cuida o prefeito, quanto à linha do bonde isto não é problema dele. Também se

atribui à Prefeitura do Recife toda a

responsabilidade com a pavimentação para “facilitar o transporte de “omnibus””, enquanto o bonde é “muito problemático”: “Venha quem vier para a Prefeitura do Recife, um problema que precisa ser encarado com um programa de larga envergadura é o do calçamento. (...) Tire-se o bonde que é um meio de transporte muito problemático, e não há mais nada. (...) A solução é calçar a área e facilitar o transporte de “omnibus”. (...) - Z”. (Diário de Pernambuco, da seção “Coisas da cidade” in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 17 outubro de 1945). Há uma consciência nítida, inclusive reivindicatória, do papel do poder público em relação à pavimentação e de como o transporte de ônibus dela deriva, mas nunca se correlaciona investimento público com uso privado no caso do transporte rodoviário: (...) “O calçamento dos subúrbios não pode parar, porque sem calçamento não podemos ter transporte. Não há problema mais angustiante do que êsse, e a que está diretamente ligado o problema do abastecimento. (...). Os serviços de “omnibus”; atualmente existentes, resultaram todos da área calçada que tem o Recife. Aliás, devemos salientar que o dever elementar do poder público municipal é calçar, iluminar e arborizar”. (...) - Z. (Diário de Pernambuco, da seção “Coisas da cidade” in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 8 de agosto de 1945).

Mensagem do prefeito do Recife à Câmara Municipal indica o peso dos investimentos municipais no setor de pavimentação. Assim, de uma arrecadação para o período de janeiro a julho de 1948 no valor de Cr$ 38.143.386,80 previa-se um gasto de Cr$ 20.040.923,85, mais de 50% portanto do orçamento do período. (Publicidade à p. 11 do Jornal do Commercio de 29 de agosto de 1948) Cabe frisar à esta altura que de modo algum não contestamos a necessidade dos investimentos feitos à época em termos de pavimentação, inclusive porque para uma tal avaliação seria necessário o recurso a outros dados e não é este nosso objetivo. Apenas queremos frisar que enquanto havia uma aguda sensibilidade na época para a questão dos transportes rodoviários, tanto a nível do poder público como da sociedade como um todo, a imprensa apenas refletindo isto, o mesmo não ocorria em relação ao transporte tranviário. Apenas isto. A sensibilidade para a questão rodoviária incidindo nas expectativas em relação à atuação do setor público não se limitava ao desempenho dos ônibus (transporte coletivo), mas se vinculava diretamente com o interesse dos proprietários de automóveis. Assim, depois de citar que o Recife já contava com 3.644 automóveis, o Diário de Pernambuco de 17 de setembro de 1948 comenta: “Para uma cidade de ruas estreitas quanto a nossa com uma grande área ainda por pavimentar, já é um número elevado, tudo indicando que a tendência seja para aumento, apesar das restrições impostas, de vez que a importação depende de licença prévia. Devemos levar em conta que esses automóveis acarretam a necessidade de imobilizarmos mais divisas na aquisição de gasolina, óleo, peças sobressalentes, pneus, câmaras de ar. Quanto menor for à área calçada, maior será o desgaste dos veículos, isto é, maior será a nossa despesa em mantê-los” (Diário de Pernambuco in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 18 de setembro de 1948). Note-se como o autor da matéria transforma um problema de uma minoria num problema de toda a coletividade ao usar a primeira pessoa do plural

no final do texto, a despesa com os automóveis é “nossa”. Em última análise ele tinha razão, pois foi o automóvel que direcionou uma política pública privatista.(11)

2.3.2 Estímulos, omissões e iniciativas governamentais A política de transportes implementada pelo setor público na época não apenas fazia a opção pelo rodoviarismo em geral, mas também pelo transporte individual. O automóvel como meio de transporte a ser incentivado é expressamente citado em artigo do interventor de Pernambuco publicado no jornal de sua propriedade, Folha da Manhã e transcrito na seção “Revista da Imprensa” do Jornal do Commercio de 6 de julho de 1944: “Publica o seguinte artigo do Snr. Agamenon Magalhães: O nosso esforço para aliviar a população do Recife de tantas restrições e sofrimentos, criados pela guerra, tem sido deshumano. Os abastecimentos e os transportes, em todos os seus aspectos, estão absorvendo a nossa capacidade de organização, em luta com os fatores mais adversos. (...) Resta resolver os transportes rodoviários, pela aquisição de caminhões e automóveis que facilitem a circulação de mercadorias e passageiros, evitando a superlotação nos caminhos de ferro e meios de transporte existentes. Providências neste sentido já estão em andamento,

e

espero,

dentro

em

breve,

que

a

situação

melhore,

consideravelmente. O govêrno e os particulares estão fazendo tudo que é possível para regularização dos nossos transportes terrestres. O problema do tráfego urbano não tem sido negligenciado. A população do Recife deve estar sentindo isto. As novas empresas de omnibus que o govêrno tem procurado organizar, facilitando o financiamento para aquisição do maior número possível de carros e assegurando todas as facilidades, já constituem prova bastante da vigilância e dos cuidados dos poderes públicos em defesa da população do Recife. (...) O governo já autorizou o estudo de plano que resolva de vez os problemas de nosso tráfego urbano. É evidente que a preliminar desse plano deve ser a descentralização dos bondes, evitando-se o engarrafamento do tráfego (...) O engarrafamento de bondes (...) precisa ser evitado por todas as

formas. Os técnicos e a população interessada no progresso urbano da nossa capital, que está se renovando sob todos os aspectos, precisam considerar bem esse problema. “ Uma matéria-paga no jornal do Commercio de 13 de março de 1945, por um empresário de ônibus, mostra que o interventor não ficou só nas palavras:” “Virgílio Menezes, com o apoio de Gercino de Pontes (secretário de Estado) resolve o problema de transporte da população citadina do Recife”. Depois de uma introdução relatando a decadência do sistema de bondes “trazendo para o habitante da cidade maurícia e autoridades do trânsito problemas de toda a ordem”; a publicidade continua: “Os poderes públicos ansiavam por encontrar uma solução para o angustioso problema e o dinâmico secretário da Viação de Pernambuco, engenheiro Gercino Pontes, teve oportunidade de contemplar, muitas vezes, os efeitos do problema que reclamavam solução acertada e rápida. É então quando as duas vontades se encontram: Uma o poder público, representado pelo secretário da Viação de Pernambuco, ansioso em regularizar questão tão premente, outra, Virgílio Menezes, na iminência de experimentar as contrariedades e os prejuízos que outros haviam sofrido. (...) surge, então, a “Pernambuco Autoviária Ltda.“ para a fundação da qual surgiram impasses de toda a ordem, superados, porém e prontamente, pela decisão do seu fundador e apoio irrestrito que lhe deu na questão, acertadamente, o govêrno estadual”. O interesse ativo do interventor federal pelo sistema de transporte rodoviário fica explícito também noutra publicidade da “Pernambuco Autoviária Ltda”. intitulada “Sangue novo para as artérias da cidade” e publicada no Jornal do Commercio de primeiro de agosto de 1945: “a Autoviária, apesar das dificuldades de importação decorrentes da guerra, vem cumprindo o seu programa de dotar a nossa capital do mais perfeito serviço de omnibus do Norte do Brasil. Com os dez veículos agora chegados, aumenta para 26 o total de omnibus correndo a cidade de ponta a ponta.

Atendendo o plano de maior número de omnibus para todos os bairros e subúrbios, a Autoviária já tem encomendado nos Estados Unidos, 30 confortáveis carros WHITE, o que há de mais moderno e luxuoso em carros de transporte coletivo. (...) Sobre o assunto receberam os dirigentes da bem organizada empresa, a comunicação do sr. interventor federal de que a Carteira de Importação e Exportação do Banco do Brasil havia lhe dirigido o seguinte oficio: “Em aditamento ao nosso ofício CEXIM/Imp. - 45-9389-9460, de 5 do corrente, apraz-nos comunicar a V. Excia. que , segundo informação recebida, a embaixada americana já transmitiu às autoridades de Washington nosso pedido relativo à concessão de licença de exportação extraquotas, dos 50 chassis pretendidos pela companhia P. Autoviária Ltda. Aproveitamos o ensejo para renovar a V. Excia. os protestos de nossa mais distinta consideração”. Naturalmente convém repetir que a nossa crítica não diz respeito ao interesse do poder público pelo sistema de ônibus, mas ao fato de em relação ao sistema tranviário manifestar um desinteresse inequívoco e preconceituoso. Mas, como já destacamos acima, não é só o sistema de ônibus que ocupa um destaque nas preocupações e atenções do setor público. Os automóveis como transporte individual são motivo até de renúncia fiscal, como indica a matéria do Jornal do Commercio de 19 de janeiro de 1946 sob o título “Reduzidas, pelo Governo, as taxas de matrículas dos veículos”, com o subtítulo “Decreto-lei baixado ontem, pelo interventor que atende, satisfatoriamente, o apelo dos motoristas”: “Compareceu, ontem, em nossa redação, uma comissão dos Sindicatos de Empresas de Transportes de Passageiros, de Veículos e Cargas e do Centro dos Chauffeurs de Pernambuco, que nos veio comunicar que acabava de ser resolvida satisfatoriamente, numa reunião realizada na Secretaria de Segurança Pública e na qual tomaram parte o cel. Viriato Medeiros e o delegado de Trânsito a situação dos proprietários de automóveis. O Sr. Aldemar Costa de Almeida, falando em nome dos seus companheiros, adiantou que essa resolução do pagamento de uma única taxa (do

imposto principal) para cada categoria, sem olhar a qualidade do carro, representa um considerável auxilio para os proprietários de veículos”. Curiosos testemunhos de como o sistema tranviário era encarado e tratado pelo governo estadual, ainda em 1943 quando a decadência daquele sistema ainda não estava tão acentuada, temos em duas correspondências interceptadas e comentadas pela “Censura Postal do Brasil” do Estado Novo. Localizamos este material no arquivo do ex-interventor federal em Pernambuco Agamenon Magalhães, no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Estes documentos são encimados por um CONFIDENCIAL carimbado e os dizeres: Ministério de Viação e Obras Públicas. Departamento de Correios e Telégrafos. Censura Postal do Brasil (CPB).

No pé da página lê-se impresso: MUITO IMPORTANTE: A CÓPIA E AS INFORMAÇOES ACIMA SÃO DE CARÁTER

ABSOLUTAMENTE

CONFIDENCIAL.



PODERÃO

SER

CONFIADAS ÀS AUTORIDADES QUE DO SEU CONHECIMENTO NECESSITAM NO TRANSCURSO DA GUERRA. NÃO DEVENDO EM CASO NENHUM SER COPIADAS, USADAS EM PROCESSOS JUDICIAIS OU DIVULGADAS POR QUALQUER MEIO, SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO CHEFE DA CENSURA A primeira correspondência, por ordem cronológica, assim se apresenta: “remetente:

T.G. Mackenzie Cia. Auxiliar de Emp. Elétricas Caixa Postal, 883 Rio - BR.

Destinatário:

W. S. Robertson Ebasco International

Corporation Two Rector Street New York City - N. Y. U.S.A Data da carta: Examinada em: Datilografada em:

30.4.43 17.5.43 18.5.43 OBSERVAÇÕES Político

Projeto de aumento do preço das passagens nos bondes e referencia ao Interventor de Pernambuco. O texto da carta versa sobre as dificuldades que o remetente diz encontrar para aumentar o preço das passagens dos bondes, em Recife, o atribui “à má vontade do Interventor”. (...). A segunda correspondência é bem mais expressiva pois relata uma audiência com o próprio interventor federal: “Data da carta ou do carimbo de origem: 18.5.43” Remetente:

Comp. Auxiliar ElétricasBrasileiras Caixa Postal, 883.

de

Destinatário:

Ebasco International Corp. Two Rector Street New York - Estados Unidos da América do Norte

Empresas

IDIOMA: inglês Censor no. 104 Examinada em 02/6/43 Ficha nº. DF 3754 Datilografada em 3/6/43 Retida 20 dias (R) R (datilografado) Liberada (L) Condenada (C) Devolvida ao remetente ou (Dr) envidada com observações a: OBSERVAÇÕES Econômico Relatório, para o Exterior, sobre entendimentos com o Interventor de Pernambuco.

Em memorandum da reunião de diretoria, realizada a 17 de maio de 1943 e no parágrafo sob a epígrafe Recife, o remetente diz que o sr. Mackenzie e o dr. Sizinio já se entrevistaram com o Interventor e que os resultados foram mais satisfatórios do que eram esperados. A seguir descreve como decorreu a entrevista: “O interventor fez ver que seu governo tem procurado colaborar com a companhia, (...) enquanto a companhia não tem procurado melhorar seus serviços. Sugeriu ao Sr. Mackenzie permanecer alguns dias em Recife a fim de verificar a realidade da situação. Prosseguiu dizendo que os serviços de bondes são inadequados e sem segurança; o fornecimento de gás o pior do Brasil e o serviço de telefone mau (...) ACRESCENTANO DISSE QUE NA SUA OPINIÃO, uma dificuldade é a falta de autonomia da organização local. Mais adiante o Sr. Mackenzie manifesta ao Interventor que, qualquer oferta por parte do Estado, para comprar o serviço de bondes, seria recebida com consideração ao que o Interventor respondeu: “Não daria nada por êle e se, dado de presente, ainda seria um presente de Gregos”. Quanto ao possível aumento de preço das passagens; disse que não podia fazer nenhuma concessão, pois o povo não estaria disposto a pagar mais caro, por um mau serviço. Nesta altura, o Secretário de Viação sugeriu que poderia se adotar um princípio: Boas tarifas para um bom serviço e tarifas baixas para um mau serviço. O

interventor

concordou

com este

ponto

e

sugeriu

que

os

representantes da companhia discutissem os assuntos técnicos com o Secretário a fim de ver se alguma cousa pode ser feita, a fim de melhorar os serviços. O senhor Mackenzie indagou se, caso o serviço melhorasse, ele

garantia pelo menos durante a guerra, um aumento de 10 centavos, no preço das passagens. A idéia de um subsídio foi também ventilada, sem que o interventor expressasse sua opinião.” Note-se que apesar do remetente ter considerado os resultados “mais satisfatórios do que esperados”, fica evidente o desinteresse do setor público pelo serviço tranviário: “não daria nada por ele e se, dado de presente, ainda seria um presente de Gregos”. Quanto à questão conjuntural mas não menos fundamental das tarifas, note-se que a concessionária faz referência à hipótese de um subsídio, vez que a mesma como empresa privada que era não poderia assumir a problemática social do baixo nível de renda da população mais diretamente interessada.

Mais

uma

vez

o

Estado

foge

objetivamente

às

suas

responsabilidades, omitindo-se e esquivando-se, “sem que o interventor expressasse sua opinião”. O ex-deputado estadual Paulo Cavalcanti (op. cit. p. 18) denunciou a própria iniciativa do setor público no desmantelamento do sistema tranviário: “não cremos tenha sido acertada a providencia da Prefeitura do Recife, mandando retirar as linhas de bonde do centro da Cidade, ou cobrindo-as com asfalto. Amanhã, quando o Governo for forçado a exigir da companhia o respeito às cláusulas contratuais, a “Tramways” alegará que fôra impelida a suspender as suas linhas de bonde pelo desaparecimento dos trilhos...”

Transporte coletivo – uma questão de “maiores lucros”

Jornal do Commercio, 24/07/49

2.4. O bonde atrapalhando o trânsito (a luta pelo espaço) A marginalização do sistema tranviário pela ação-omissão do Estado se exprimia fisicamente pelo não isolamento da via férrea em relação à faixa de rolamento onde circulavam cada vez mais ônibus, caminhões e automóveis. Obviamente

tal

fato

resultou

numa

desvantagem

crescente

para

a

operacionalização do sistema tranviário dadas suas próprias características técnicas, os problemas de tráfego decorrentes de tal anomalia sendo sistematicamente atribuídos ao dito sistema de transporte e não ao fato estrutural do não isolamento da via férrea. Naturalmente tal “promiscuidade” teria de resultar numa rotina macabra de acidentes onde o sistema tranviário é sempre estigmatizado, a questão estrutural sendo sempre elidida. Um exemplo cômico do pouco caso dado à simples possibilidade física de circulação de um transporte coletivo é nos dado por uma matéria publicada no Jornal do Commercio de 7 de fevereiro de 1946 e que nos parece ser uma carta de leitor. Traz apenas um título: “O problema dos transportes, esta cidade, oferece aspectos acabrunhastes”. “Com um pouco mais de boa vontade e um pouco menos de despiciência, muita coisa poderia encontrar solução, mesmo que fôsse a titulo precário. O problema do transporte do Recife é alguma coisa indescritível - sendo improvável que em qualquer outro lugar do mundo se tenham reunido como aqui a falta de material, a incompetência dos encarregados do serviço e a ineficácia absoluta da fiscalização oficial, para criar tamanha carga nas costas do pobre povo. Desde os bondes que não andam, aos automóveis que só andam por cima da gente, tudo conspira, nessa matéria, para fazer do recifense o povo mais sofredor. Uma das modalidades curiosas da crise é a facilidade com que os automóveis, podendo arrastar-se até uma esquina de uma transversal ou um ponto mais largo, ficam a empatar o tráfego por longas horas. Às vezes isso

ocorre por causa de um desarranjo, às vezes por simples comodidade do dono. Por exemplo: perto do Cinema Parque, nas imediações do Instituto Arqueológico, os carros de pessoas que vão assistir aos filmes param frequentemente tão perto dos trilhos que os bondes não podem passar. Tem acontecido ir-se buscar no cinema um proprietário que levou naturalmente as chaves do motor e do carro, para desobstruir o trânsito! Seria fácil à repartição competente colocar uma faixa proibindo o estacionamento. Mas deve ser uma iniciativa muito custosa... Ontem, na estrada de Olinda, o caminhão nº. 6537 quebrou-se na linha. A uns 20 metros de distância, o comêço da rua Valdemar Lima dava espaço para se fazer o consêrto. Mas, “chauffeur” e calungas preferiram ficar mesmo ali, proibindo a passagem dos bondes. Três carros da Tramways já vinham da vizinha cidade, atrasados e vagarosos, um atrás do outro. Por milagre, vinha num deles um funcionário da Tramways, inteligente e ativo, e vendo que o consêrto ia demorar bastante, tomou o aviltre de fazer os bondes recuarem do Salgadinho ao Varadouro para tomar a contra mão. A manobra atrasou de 35 minutos a viagem! Em todo caso, foi benéfica, pois o caminhão ainda ficou lá. As autoridades devem criar penalidades para os proprietários ou condutores de carros que procedam como os do caminhão no. 6537. Criá-las e pô-las em prática”. As autoridades entretanto estavam mais preocupadas com a eliminação do bonde do que com a sua circulação: “A comissão do Plano da Cidade estudou o problema do tráfego de bondes e, a exemplo do que se faz nas grandes cidades e já está, de há muito, em execução no Rio de janeiro e em São Paulo, chegou à conclusão da necessidade de aliviar alguns trechos onde mais afluem os pedestres. (...). Em cidades populosas (...) os bondes não correm livremente pelas ruas de maior movimento. Assim é que nenhum veículo dessa espécie transita pelo chamado

“Triângulo Paulista”, onde mais intenso é o comércio, o que fez diminuir o índice de desastres. O resultado dos estudos da Comissão do Plano, que é também composta de amigos da Cidade, vai ser transmitido ao Prefeito com sugestão, para providências junto à Tramways. Mário Melo”. (Crônica da cidade - Problemas de tráfego, jornal do Commercio de 23 de agosto de 1945). Numa autêntica inversão de papéis, o bonde não é visto apenas como um estôrvo à circulação dos outros veículos, mas degradaria a própria faixa de rolamento, com se normal fosse a simultaneidade das vias: “A cidade está cheia de buracos, buracos fatais aos automobilistas, e os acidentes se sucedem. (...) com os aguaceiros ultimamente caídos, a umidade vai acabando de escangalhar tudo. Enquanto isso, pela avenida circulam diariamente centenas e centenas de veículos motorizados - “omnibus”, caminhões, carros de passeio, afora os bondes que são por seu turno outro fator de ruína da faixa de rolamento. (...) - Z”. (Diário de Pernambuco, da seção “Coisas da cidade” in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 11 de abril de 1947). A incompatibilidade da indiferenciação das vias em certas situações é tão evidente que se faz um apelo para que se desfaça o impasse entre o transporte coletivo e o individual: “A delegacia de Trânsito, possivelmente com a Pernambuco Tramways, devem tomar providências para o melhoramento das condições de tráfego na ponte Santa Isabel, uma das mais movimentadas da cidade. A passagem de veículos automóveis está sofrendo perigo ali, porque o leito da ponte é abaulado, com forte inclinação perto dos meios fios. Os carros que passam pela ponte têm que andar perto das margens do leito, sujeitos àquele perigo”. (Diário da Noite in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 15 de janeiro de 1950). Mesmo quando se lamenta a decadência do sistema tranviário se considera que o mesmo é de “difícil escoamento”:

(...) “os últimos bondes, que circulam no Recife vão desaparecer em futuro não muito distante”. Já agora não é ocasião para lamentar o desaparecimento dos bondes - coisa que parece irremediável e fatal - nunca se deixará de censurar a estreita e mesquinha política de arrocho, exercida quando ainda se poderia salvar essa espécie de transporte, que em algumas linhas faz ainda hoje grande falta ao povo. Apesar de ser o bonde um veículo pesado, de difícil escoamento, numa cidade de ruas estreitas quanto o Recife”. (Diário Pernambuco in Revista da Imprensa - dos jornais de ontem, Jornal do Commercio de 25 de setembro de 1949). Uma constante nas notícias de acidentes de trânsito (seção “Na polícia e nas ruas”) é como fica claro existir uma luta pelo espaço entre os transportes rodoviários e a linha férrea. Não há nenhum sinal de complementariedade, de espaço reservado, os pneus simplesmente invadem o espaço dos trilhos, nele estacionam breve ou demoradamente, daí os constantes abalroamentos, os passageiros dos bondes viajando nos estribos são vítimas constantes dessa mistura trilho/rodovia indicadora mesma de uma política de marginalização do sistema tranviário. Curioso que mesmo quando a imprensa analisa esses acidentes (inclusive em editoriais), em nenhum momento faz referência a essas questões estruturais. Tudo é colocado em termos bem pessoais e moralistas (imprudência ou irresponsabilidade do motorista), as próprias vítimas também sendo responsabilizadas por viajarem como pingentes... Interessante como a própria linguagem do jornalista denota um preconceito ao anunciar um título de matéria que não corresponde a seu conteúdo efetivo: “Foi estabelecido grande pânico em consequência de um desastre de bondes”. “Na manhã de hoje, por volta das cinco horas, vinha com destino à cidade um bonde de Beberibe, superlotado, trazendo grande número de pessoas na entrelinha.(12) Em dado momento, um caminhão desenvolvendo grande velocidade, tentou cortar o bonde, mas em sentido contrário vinha um carro de passeio. Ao invés de frear, imediatamente, o motorista do caminhão imprimiu maior velocidade

para terminar a manobra, indo desastradamente, arrancar três passageiros que viajavam na contra-mão”. (Jornal do Commercio de 19 de maio de 1946). O acidente acima descrito apesar de ser uma ocorrência comum parece que teve uma certa repercussão pois motivou um editorial do Jornal do Commercio com um título (“Caminhões sinistros”) que já denota como a imprensa se desvia dos problemas estruturais (sistema do tráfego no caso) personalizando de maneira caricatural os problemas. Não é só no titulo, ao longo do editorial, bastante longo por sinal, toda a problemática é posta em termos individuais (motoristas imprudentes, pingentes irresponsáveis), em termos coletivos só resta mesmo se lamentar tal estado de coisas de uma maneira explicitamente fatalista: “Todas as versões correntes acerca do brutal desastre de ontem, na avenida João de Barros, coincidem neste ponto: imprudência do motorista. Com bondes, como os nossos, arrastando-se cheios, apinhados inconcebivelmente inclusive do lado da entrelinha, é uma temeridade criminosa dos “chauffeurs” isso de forçarem a passagem dos seus veículos por meio de “cortes” temerários. E é bem triste, sem dúvida, esta situação a que chegamos: tem-se que permitir viajem diariamente milhares de pessoas expondo a vida, ou tiramos-lhes os poucos meios que ainda lhes restam para se locomoverem até os centros de trabalho. O trágico acidente de ontem, reprodução de vários outros a que temos assistido ultimamente (...) é bem um reflexo da complexidade extrema a que chegaram, entre nós, esses problemas essenciais das populações urbanas, (...) se de uma parte há a crise de transportes, obrigando o habitante do subúrbio a viajar dependurado entre a vida e a morte todo o dia, por outro lado está, sem dúvida alguma, o sentimento de irresponsabilidade dos motoristas que não parecem prezar a vida do seu semelhante... Já nos parecem até demasiado remotos aqueles tempos em que se fazia parar o bonde para obrigar a descer o transgressor da proibição de viajar no estribo da entrelinha. (...) Era a época em que o cidadão se sentia protegido contra não só a imprevidência alheia como contra a sua própria imprevidência, e obrigado a não correr os riscos fatais duma temeridade como aquela. Comparem-

se esses dias com os que vivemos hoje, quando as autoridades têm que cruzar os braços diante dessas perspectivas constantes de carnagem, porque não temos vazão para o movimento diuturno e o remédio é deixar que se transformem as atividades normais dos indivíduos num regime de insegurança permanente e numa contínua iminência de desastre. Na parte que diz respeito aos que provocam, por negligência, imprudência ou imperícia, a sucessão desses desastres, dir-se-ia que a repressão devida aos desatinos do tráfego não se faz com bastante severidade. Porque há, evidentemente, uma culpa grave de homicídio na raiz desses atos, e não se compreende como os seus autores não sejam responsabilizados como criminosos da mesma categoria de todos aqueles quantos, por incúria, descuido ou incompetência, causam ou possibilitam o sacrifício de vidas humanas”. (Jornal do Commercio de 19 de maio de 1946). Temos pois de par com a personalização dos problemas coletivos uma postura fatalista diante dos “desatinos do tráfego” provocados zoomórficamente pelos “caminhões sinistros”. Outra curiosidade nessas noticias de acidentes de trânsito é o fato de muitas vezes se inverter as situações, o bonde apesar de preso a seus trilhos aparece como o causador ativo do acidente. Assim, na seção “Notícias de Olinda” (Jornal do Commercio de 19 de dezembro de 1945), relata-se que “um carro caminhão, em manobra imprudente, foi apanhado em cheio por um bonde”. Outra notícia, publicada no Jornal do Commercio de 15 de fevereiro de 1946, revela já no título a inversão acima referida: “O bonde estava sem freios e foi de encontro ao “omnibus”: Este tipo de inversão só pode justamente ser notada quando se leva em conta a necessidade (se se quer preservar a eficiência de um transporte e a segurança dos passageiros) das vias férrea e pavimentada ocuparem espaços distintos. Na medida em que as duas vias se misturam isto passa a fazer parte da “paisagem natural” e não é então problematizada pelo jornalista e seus leitores. Veja-se como esta opacidade é transmitida pela matéria da seção “Na polícia e nas ruas” vinculada ao título acima citado:

“Ontem às nove horas, na praça Maciel Pinheiro, o bonde 242, tabela 391 (...) alcançou pela retaguarda o “omnibus” (...) O “chauffeur” do “omnibus” havia parado o carro para que saltasse um passageiro. Mas o bonde se encontrava sem freios, conforme ficou apurado(...) e foi de encontro à “sopa”. O motorista quis evitar o abalroamento mas não o conseguiu. (...) O inspetor de veículos de serviço nas imediações efetuou a prisão do motorneiro que foi apresentado ao delegado de plantão”. A título de ilustração recenseamos um total de 101 acidentes com bondes, dos quais resultaram 209 vítimas, sendo 183 passageiros de bondes, aí incluídos funcionários da “Pernambuco Tramways” e 26 condutores ou passageiros de outros veículos ou mesmo pedestres. Pela descrição dos 101 acidentes feita no noticiário, 94 foram provocados pelo não isolamento da via férrea. A 6 acidentes se atribuiu como causa a inadequada manutenção do equipamento tranviário e há um acidente sem causa indicada.

O bonde atrapalhando o trânsito (a luta pelo espaço)

Jornal do Commercio, 15/04/45

Notas (1) As mesmas categorias foram utilizadas também na análise do material pesquisado na Biblioteca Nacional, na Fundação Getúlio Vargas (CPDOC) e com a entrevista do exgovernador Barbosa Lima Sobrinho. Na transcrição do material de Imprensa conservamos a grafia original e no caso da entrevista a fala tal qual. (2) O centro do Recife era constituído pelos seguintes bairros: do Recife, ou “Recife antigo”, onde se localizava o movimentado porto de carga e de passageiros; Sento Antônio, onde se encontrava nos anos 40-50 o comércio mais dinâmico, era a vitrine da cidade onde para seu orgulho provinciano despontavam os primeiros “arranha-céus”; São José, de comércio mais antigo e de caráter ainda residencial e parte do bairro da Boa Vista, pontificando a rua da Imperatriz como sua vitrine comercial. (3) O preço da passagem de bonde era de Cr$ 0,50 (centavos) para a 1ª classe e de CR$ 0,30 (centavos) para a 2ª onde poderiam ser transportados grandes volumes, custando a de ônibus Cr$ 1,00. Para efeito comparativo, em termos de poder aquisitivo, o preço de um exemplar do Jornal do Commmercio em dia útil era de Cr$ 0,80. (4) Empresa britânica de trens de médio e longo percurso, posteriormente seria encampada pelo governo federal em 1950, constituindo a Rede Ferroviária do Nordeste, subsidiária da Rede Ferroviária Federal, extinta esta pelo Decreto nº 3.277 de 7 de dezembro de 1999 no processo de privatizações iniciado com a Medida Provisória nº 155 de março de 1990. Sobre incorporações e privatizações de ferrovias ver: GEIPOT ( 2001), RIOS (2002) e CÔRTES (2004). (5) A Grande Enciclopédia Larousse Cultural (1988) apresenta o verbete suelto como sendo de origem castelhana, isto é, solto, significando “pequeno comentário jornalístico sobre assunto do dia”. (6) CUNHA (op. cit. p. 23) ressalta que o transporte rodoviário, malgrado as aparências, “envolve alto grau de subsídio, pois, à exceção das rodovias com pedágio, sua construção e sua manutenção são assumidas pelo poder público sem ônus direto ao usuário”. (7)

O bonde de segunda classe era em geral um vagão (chamado reboque e cujos bancos eram dispostos de maneira a permitir o transporte de grandes volumes por vendedores ambulantes, lavadeiras etc.) atrelado ao carro-motor (primeira classe) transportando exclusivamente passageiros com uma tarifa diferenciada. Quando a tarifa do bonde de primeira classe era de Cr$ 0,50, a de segunda custava Cr$ 0,30. Segundo MOTA (op. cit. p. 55-6) havia também bondes exclusivamente de segunda classe, “os chamados “loré”, preferidos pelas pessoas que conduziam bagagem de maior porte, e outras, de situação

econômica mais modesta. (...) Passageiro descalço e em mangas de camisa só nos carros de 2ª. classe (”loré”) podia viajar, de mistura com toda sorte de bagagens (...) Quem quisesse ambiente decente, limpo, na Ia. classe (carro-motor) tinha que se apresentar calçado, de roupa limpa e usar paletó. (Houve um tempo, no início, em que era exigido o uso da gravata). Mesmo à noite, depois das vinte horas, quando eram “cortados” os carros-reboque, não era permitido ao passageiro viajar descalço, ou mesmo de chinelos, sendo obrigado, muitas vezes, a descer do bonde, para que a viagem pudesse prosseguir”. (8)

Corrutela da palavra francesa “chauffeur”, o que esquenta (o motor), motorista.

(9)

Segundo a Enciclopédia Larousse citada na nota 5, “vária” é o equivalente de suelto na linguagem jornalística.

(10) Ver sobre esta questão, transposta para o âmbito das ferrovias de médio e longo percurso as sugestões de CUNHA (op. cit. p. 57-60) no sentido de que “como no caso da rodovia, o investimento do poder público ficaria restrito à via férrea, e seria ressarcido. A operação da ferrovia seria executada por equipes especializadas, sendo o transporte executado em veículos de propriedade dos usuários ou de terceiros, transformados em autênticas companhias transportadoras”. Assim, “a via férrea pertenceria ao Estado ou a uma concessionária, que seriam remunerados por seu investimento, e sua operação seria feita por uma concessionária que cuidaria da manutenção e do controle de tráfego”. (11) Ver letra item 2.2.6 deste capitulo: “O automóvel substitui o bonde”. (12) Entrelinha é o espaço entre as duas linhas, isto é o lado do bonde oposto ao da subida dos passageiros mas onde muitos viajam como pingentes dada a falta de lugares dentro do vagão e nos estribos de subida. Exatamente nas entrelinhas no sentido próprio passavam os ônibus, autos e caminhões.

CAPíTULO III

Não adianta muita análise: temos que decidir entre a civilização do transporte coletivo e a barbárie do carro individual. A civilização é possível. (J.S. MARTINS, "Perdendo o trem")

A questão dos bondes no Brasil de modo geral A redação deste parágrafo me ocorreu em função do material sobre outras cidades que fui encontrando à medida que compulsava o Jornal do Commercio do Recife e fui notando a semelhança de situações, preconceitos, medidas administrativas etc., existente no que diz respeito ao transporte tranviário noutras capitais. Naturalmente o material é muito mais escasso do que o referente à capital pernambucana, mas o que importa é o paralelismo impressionante de situações. E poderia ser diferente? Afinal a ideologia da modernização dos anos 40/50 que breve se chamaria desenvolvimentismo nos anos 50/60 constituía um traço da cultura nacional e não apenas recifense, naturalmente. Modernização que, como vimos, a nível dos transportes fez uma opção radical pelo rodoviarismo, tão radical que extinguiu o sistema tranviário e fossilizou o ferroviário. O material de imprensa sobre a questão dos bondes em outras cidades brasileiras serve num certo sentido de contraprova do tratamento dado à mesma questão na cidade do Recife. Naturalmente, repito, não há nenhuma pretensão de representatividade nem de extrapolação considerando-se o significado que a análise quantitativa dá a esses termos. Os caminhos são os mesmos, a análise qualitativa dos valores de uma época a partir de um corte num material de imprensa. A cidade que mais aparece citada é naturalmente o Rio, à época Distrito Federal e que como capital do país não apenas está no centro do noticiário, mas também possuía em 1948 a maior rede tranviária do país, 660 kms. de extensão e 1.226 carros de passageiros. A cidade de São Paulo vinha em segundo

lugar com 250 kms. de linhas e 606 carros de passageiros. Recife disputava com Santos o terceiro lugar em termos de sistema tranviário. Se por um lado Santos ocupava o terceiro lugar no que se refere à extensão das linhas, 186 kms, contra 138 do Recife, por outro lado esta última cidade dispunha de 246 carros de passageiros contra 219 no caso de Santos. A tabela a seguir (IBGE: 1948, p. 174) demonstra a importância do sistema tranviário no Brasil (2.139 kms. de linhas e 3.461 carros para passageiros), tanto em termos de equipamento, pessoal empregado e passageiros transportados como em termos de alcance nacional. Há uma estrutura implantada que vai de Manaus a Porto Alegre incluindose aí várias cidades do interior do Rio de janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. TABELA SISTEMA TRANVIÁRIO NO BRASIL EM 31,12,1947

CARROS EM TRAFEGO MUNICÍPIOS

Extensão das linhas (Km)

Para passageiros Total

Dos quais, motores 47

Para cargas

De

Passageiros transportados durante o ano (Milhares)

Dos quais, motores

Total

Total -

-

495

65

430

10,780

Subalterno Direção e Administração

Manaus (Amazonas)

38

55

Belém (Para)

64

130

120

2

2

1.116

15

1.101

(2) 2.797

São Luís (Maranhão)

18

17

13

-

-

173

7

466

9.586

Fortaleza (Ceara)

20

53

53

-

-

67

6

61

(3) 4.823

Natal (Rio Grande do Norte)

14

15

15

-

-

93

4

89

8.253

Joao Pessoa (Paraíba)

24

9

9

-

-

96

6

90

7.230

Recife (Pernambuco)

(1)

PESSOAL EMPREGADO

138

246

155

10

-

993

186

807

33.496

Maceió (Alagoas)

22

32

27

-

-

247

3

244

12.236

Aracajú (Sergipe)

27

6

6

1

1

325

40

285

3.018

Salvador (Bahia)

115

175

156

11

9

1.934

14

1.920

111.741

B. Horizonte (Minas Gerais)

73

87

87

3

3

929

8

921

72.713

Bom Sucesso (Minas Gerais)

3

1

1

-

-

2

-

2

19

Juiz de Fora (Minas Gerais)

17

34

30

-

-

306

52

254

14.659

Lavras (Minas Gerais)

3

2

2

-

-

6

1

5

-

Vitória (Espírito Santo)

27

16

14

3

2

131

14

117

15.814

Niterói (Rio de Janeiro)

97

164

93

28

15

1.390

19

1.371

51.500

Campos (Rio de Janeiro)

20

24

16

1

1

236

53

183

7.152

Rio de Janeiro (Distrito Federal)

660

1.226

611

250

131

6.802

276

6.526

623.320

São Paulo (São Paulo)

250

606

542

360

30

4.102

309

3.793

390.144

Campinas (São Paulo)

55

28

28

1

1

165

11

154

21.657

Guaratinguetá (São Paulo)

6

9

9

1

1

38

2

36

1.680

Guarujá (São Paulo)

9

10

4

8

1

-

-

-

1.027

Monte Alto (São Paulo)

33

7

5

10

-

56

3

53

91

Piracicaba (São Paulo)

8

6

5

-

-

36

2

34

3.391

186

219

139

33

20

1.150

97

1.053

84,548

São Carlos (São Paulo)

12

11

9

2

2

90

4

86

3.813

Sorocaba (São Paulo)

21

17

9

3

1

91

10

81

4.403

Curitiba (Paraná)

27

35

35

-

-

276

15

261

17.006

Porto Alegre (R. Grande do sul)

81

150

150

9

9

1.540

73

1.467

99.169

Pelotas (Rio Grande do sul)

25

28

8

6

3

148

15

133

8.895

Rio Grande (Rio Grande do sul)

46

43

24

19

-

281

9

272

6.692

2.139

3.461

2.422

431

232

23.314

1.319

22,295

1.548.863

Santos (São Paulo)

Total

(4)

FONTE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. NOTA – Os dados deste quadro estilo sujeitos a retificação [1] Inclusive 2 locomotivas. – [2] Dados até 27 de abril, quando foi paralisado o serviço. [3] Dados até 19 de maio quando foi paralisado o serviço – [4] Com as imperfeições mencionadas

Compulsando o material de imprensa referente ao antigo Distrito Federal vamos aí encontrar situações não apenas semelhantes às ocorridas em Recife mas até mais expressivas, em termos de estimulo ao transporte rodoviário por parte do setor público por exemplo, dado o peso econômico e político da prefeitura da capital do país. Neste sentido o Jornal do Commercio de 16 de julho de 1944 informa sob o titulo “Aquisição de duzentos omnibus para a Capital Federal”: “RIO, 15 - Um vespertino local informa que duzentos “omnibus” para esta capital, foram encomendados nos Estados Unidos, por intermédio da Prefeitura do Distrito Federal. O mesmo vespertino adianta que o embaixador norte americano está desenvolvendo grande atividade para a pronta entrega dos referidos veículos. Acrescenta o jornal que o Conselho Nacional do Petróleo já garantiu a gasolina necessária para esses novos carros coletivos”.

Vemos por aí não apenas o envolvimento da prefeitura do Distrito Federal como o interesse da embaixada americana no fornecimento das importações. O Conselho Nacional do Petróleo também foi acionado para garantir o combustível ainda à época da guerra. Esta política de apoio ao transporte rodoviário ainda é indicada pela seguinte notícia veiculada no Jornal do Commercio de 3 de outubro de 1946: RIO, 2 (ASAPRESS) – Com a presença do prefeito, do secretário de Viação

e

altas autoridades

e numerosos jornalistas convidados,

foram

inaugurados, hoje, quatro “omnibus” com capacidade, cada um para 80 passageiros. Trata-se de veículos construídos completamente de aço e alumínio, passando pelos últimos aperfeiçoamentos da técnica de construção do gênero. Os jornalistas realizaram um passeio pela cidade, nos novos “omnibus”, aquilatando do seu confôrto. Esses veículos serão empregados na linha Castelo-Ipanema. Custaram 500.000 cruzeiros cada um e, segundo informam os jornalistas, a Prefeitura pretende facilitar a importação de 60 outros veículos iguais, que viriam desafogar bastante o tráfego da cidade”. Se as duas notícias anteriores apenas nos informam sobre o interesse da prefeitura do Distrito Federal em estimular o sistema rodoviário de transporte, a noticia do Jornal do Commercio de 10 de setembro de 1948 indica um comprometimento financeiro direto do setor público. “RIO, 9 – O Banco da Prefeitura já emprestou até agora, a diversas companhias de transporte, 24 milhões de cruzeiros para financiamento de “omnibus” capazes de dar segurança e confôrto aos passageiros”. Cêrca de 101 novos veículos já estão trafegando na cidade. Outros virão dentro do mesmo sistema de financiamento”. Simultaneamente a esses incentivos financeiros e administrativos ao sistema rodoviário planeja-se a retirada dos bondes: “RIO, 20 – Segundo um jornal carioca, a Light pretende fazer

modificações nos seus serviços de transporte. Os bondes serão retirados da parte urbana do Rio de Janeiro, sendo substituídos por “omnibus” elétricos, já estando em construção para a Light dois mil dêsses veículos, os quais entrarão em serviço logo que forem chegados a esta capital. O plano será executado dentro de dois anos, tendo a Prefeitura aceitada a proposta da Light”. (Jornal do Commercio de 21 de maio de 1948). Enquanto o sistema rodoviário é estimulado festivamente pelo governo do Distrito Federal, o sistema tranviário tem as suas tarifas congeladas na prática: “RIO, 14 – No processo em que a Light pedia aumento dos preços das passagens dos bondes, o prefeito exarou um despacho em que diz: “Melhore o material, aumente o número de veículos de transporte coletivo e atenda melhor ao público antes de cogitar do aumento das passagens”. (Jornal do Commercio de 15 de janeiro de 1948). O prefeito do Distrito Federal também considera o bonde um “transporte de pobre”: (13). “RIO, 5 – Reuniram-se, mais uma vez para examinar o caso da Light, os ministros do Trabalho, Viação e Agricultura, e o prefeito do Distrito Federal. A empresa quer reajustamento no preço das passagens dos bondes, para 50 centavos, tendo o prefeito concedido apenas um aumento de 10 centavos. Argumenta a empresa que o preço de passagens dos bondes em Santos, São Paulo e Niterói é de 50 centavos. O prefeito Mendes de Morais, falando à reportagem declarou que o caso está resolvido quanto ao Distrito Federal. Disse ainda que o aumento de 10 centavos não trará prejuízo às classes pobres. Maior aumento, porém, transtornaria o orçamento dessas mesmas classes” (Jornal do Commercio de 6 de fevereiro de 1949). Também no Distrito Federal não se procede a nenhum isolamento da via férrea da faixa de rolamento ao contrário do que se observa em Amsterdã, Moscou ou New Orleans: (14)

“Colisão de bonde com omnibus no Rio” RIO, 10 – às primeiras horas de hoje, ocorreu um violento choque entre um omnibus e um bonde, em Botafogo. Com destino ao ponto terminal, subia a avenida Lauro Sodré, em frente à sede do “Botafogo”, o omnibus da Viação Carioca, chapa no. 81359, dirigido pelo motorista João Vieira Teixeira, quando foi apanhado pela parte traseira pelo bonde 1813, dirigido por João Manuel Santos. O omnibus foi atirado a 10 metros de distância, ficando pesadamente avariado, tendo em resultado do choque ficado feridos sete passageiros, os quais foram medicados no Hospital Miguel Couto. O bonde sofreu também grandes avarias”. (Jornal do Commercio de 11 de março de 1949). Em Porto Alegre existe, “a exemplo de outras cidades” uma “visão do progresso” (15) que considera o bonde um transporte arcaico que precisa ser banido do centro da cidade e substituído (não complementado) pelo ônibus: “Vão acabar os bondes de Porto Alegre PORTO ALEGRE, 17 – Porto Alegre a exemplo de outras cidades, iniciou uma campanha para a extinção do velho e incômodo serviço de bondes no centro da cidade. Ainda hoje um vespertino publica com grande destaque as declarações do Snr. Germano Peterson Filho, chefe da Diretoria de Eletricidade e Transportes da Prefeitura, segundo as quais serão extintos os bondes circulares “Duque de Caxias” e “Gasômetro”, que percorrem grande parte do centro da cidade. Declarou mais o entrevistado que os referidos bondes, dentro de breves dias, serão substituídos por confortáveis omnibus, que atingirão ainda outras ruas”. (Jornal do Commercio de 18 de janeiro de 1949). Assim como em Recife o “progresso” inventou as “correições” e as “beliscadas” , (16) em Belém quiseram que os caminhões puxassem os bondes!... “BELÉM, 28 (ASAPRESS) – O último bonde circulou, ontem, recolhendo-se à meia-noite em ponto. O Edifício do Tráfego e as oficinas do Pará Electric se acham guardados pela polícia. O Sindicato dos Empregados

Carrossáveis vai reunir-se, a fim de deliberar a respeito das indenizações dos empregados despedidos. A paralisação dos bondes não deu resultado em beneficio da iluminação da cidade, que permanece às escuras. Do mesmo modo fracassaram as tentativas dos bondes puxados por caminhões”. (Jornal do Commercio de 29 de abril de 1947). Em João Pessoa como em Recife havia um sistema tranviário de relativa importância (vide tabela retro) cobrindo “todas as linhas” e onde “as viagens se fazem com certa regularidade”: JOÃO PESSOA, 14 (Da Sucursal) – A Repartição dos Serviços Elétricos da Parayba tem desenvolvido um esfôrço permanente para que a cidade não fique privada de transporte tranviário, como já sucedeu em algumas capitais do norte. Há bondes em tôdas as linhas, uma delas ligando a capital à praia de Tambaú. São poucos os carros em circulação, mas as viagens se fazem com certa regularidade. Contam-se também na cidade cêrca de vinte “omnibus” que atenuam bastante a crise do transporte urbano, ocasionada pelo crescimento da população”. (seção “Notícias da Parayba” do Jornal do Commercio de 15 de outubro de 1948) Apesar da descrição acima, cinco dias depois o mesmo correspondente do Jornal do Commercio na capital paraibana considera que “os bondes em circulação não correspondem às exigências da cidade” e um sistema pré-existente ao invés de ser visto como necessitando melhoria e complementação é encarado como uma espécie em extinção. Também não faltam na imprensa local os apelos unilaterais ao setor público (17) para a realização de investimentos que permitam uma melhor rentabilidade da emblemática “Autoviária Progresso”: “JOÃO PESSOA, 19 (Da Surcusal) – Há fundadas esperanças de que o serviço de transportes urbanos seja dentro de pouco tempo sensivelmente melhorado nesta capital, onde os bondes em circulação não correspondem às exigências da cidade. A perspectiva é positivamente animadora, dada a ampliação do serviço

de ônibus em que está empenhada a “Autoviária Progresso Ltda.” fazendo aquisição de carros grandes e confortáveis. Essa emprêsa tem como responsáveis os irmãos Clodoaldo e Corálio Soares de Oliveira que estão invertendo capitais na compra de carros possantes, visando proporcionar à capital paraibana um serviço de transporte coletivo compatível com as suas necessidades. A “Autoviária Progresso Limitada” já estendeu as suas linhas até Gramame, arraial encravado na zona rural do município. Em editorial de hoje, o jornal “A Imprensa” refere-se aos esforços do industrial Soares de Oliveira nesse setor de atividades, fazendo um apêlo ao govêmo municipal, no sentido de ser intensificado o calçamento de diversas artérias para facilidade do serviço de transporte auto-motriz” (seção “Notícias da Parayba” do Jornal do Commercio de 20 de outubro de 1948). Em Fortaleza a prefeitura “soluciona” o problema do transporte coletivo extinguindo abruptamente um sistema tranviário de 20 kms. de linhas férreas e 53 vagões, (cf. tabela citada) apesar, mas talvez por isso mesmo, do bonde ser aí também um “transporte de pobre”: “Fortaleza sem bondes FORTALEZA, 21 (ASAPRESS) – Na reunião levada a efeito na Prefeitura Municipal para discutir o caso da “Light”, ficou assentado que os bondes serão retirados da circulação a partir de amanhã, assim como será acionada a iluminação da cidade. A medida, como não poderia deixar de ser, causou estranheza, pois a população vai ser privada do meio mais barato de locomoção para os diversos pontos da capital“. (Jornal do Commercio de 22 de maio de 1947). Um relatório apesar da sua fonte suspeita, porque parte interessada, não deixa contudo de descrever a involução de um sistema de transporte coletivo: “O serviço de bondes do Recife e outras cidades brasileiras Nova York, 9 (U.P) – A “American & Foreign Power Company , matriz

das “Empresas Elétricas Brasileiras”, em relatório anual, diz que as operações de bondes no Recife, Curitiba e outras cidades apresentam um problema crescente e expõe que “o aumento do custo de vida a obrigou a ajustar salários e também outros aumentos nos gastos de operação, mas não obteve permissão das autoridades para efetuar os correspondentes ajustes nas passagens. As subsidiárias da emprêsa vêm estudando soluções para a situação, inclusive subsídios oficiais ou a venda dos serviços de bonde às autoridades municipais ou estaduais na falta de uma solução real. É inevitável que as propriedades decaiam a um ponto em que, finalmente, devem ser abandonadas”.

Notas (13) Ver item 2.2.2 do capítulo II: “O bonde como “transporte de pobre”.” (14) Ver item 2.4 do capítulo II: “0 bonde atrapalhando o trânsito ( a luta pelo espaço)”. (15) Ver item 2.1 do capítulo II: “A visão de progresso”. (16) Ver item 2.2.5 do capitulo II: “A improvisação como transporte coletivo”. (17) Ver item 2.3.1 do capítulo II: “Pavimentação pública para veículos privados”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”. (Walter BENJAMIN, “A imagem de Proust”)

Ao término desta tentativa de ver um pouco além das aparências no que diz respeito à extinção do sistema tranviário em Recife, estou bem consciente das limitações de um trabalho que tentou captar e expor as racionalizações da elite de uma época para justificar o abandono de um sistema de transporte coletivo (o bonde), em benefício do transporte individual (o automóvel), via utilização operacional de outro transporte coletivo (o ônibus), como representação materializada da ideia de progresso. Os limites de que falo não são de ordem propriamente metodológica (corte temporal, fonte de dados etc.), pois esse tipo de contingência é inerente ao processo mesmo da pesquisa. Falo de limites mais em termos de ilações que derivam do próprio estudo feito. Assim, duas questões, uma econômica outra sociológica, se vinculam à temática pesquisada e só tangencialmente foram abordadas. Refiro-me à questão das tarifas dos bondes e à questão ideológica do nacionalismo. Não sendo nosso objetivo (inclusive por razões de especialização acadêmica) um estudo de custos de tarifas, o fato é que ocorreu cronicamente um problema de tarifas defasadas no sistema tranviário. É a partir dessa simples e inquestionável constatação que abordo o problema das tarifas, na medida em que julguei ocorrer evidentes expressões de minimização sistemática do mesmo por parte do setor público. Não apenas o problema do valor pontual da tarifa mas também as questões conexas como a hipótese do subsídio estatal às passagens e o financiamento global do sistema tranviário, questões diante das quais o Estado sempre se esquivava quando confrontado com as mesmas. Se a incidência

ideológica sobre a questão das tarifas é algo que procurei indicar, o problema na época sendo encarado mais política do que tecnicamente, um estudo econômicofinanceiro da questão fica como sugestão de pesquisa. A questão da ideologia nacionalista constitui a meu ver um promissor veio de pesquisa a explorar para quem quiser se debruçar tanto sobre a questão tranviária em particular como sobre a questão ferroviária em geral. Com efeito, o fato das empresas desse tipo de transporte serem concessionárias estrangeiras motivou uma série de reações políticas à atuação das mesmas, máxime no Estado Novo. Naturalmente se o desempenho dessas empresas em termos de serviços junto ao público era deficiente, este fato exacerbava as reações nacionalistas. Pouco importa se a deficiência dos serviços (inquestionável no caso do sistema tranviário) derivava de um desinteresse por parte das concessionárias (tese do ex-governador. Barbosa Lima Sobrinho por exemplo), ou se a mesma seria fruto da má vontade da administração pública com o setor (tese das concessionárias), aí se situando a legitimação nacionalista. A meu ver as duas teses não se excluem, minha hipótese é justamente que teria havido uma confluência de interesses, a retração dos capitais britânicos do setor no pósguerra coincidindo com um nacionalismo que a nível de transportes confundia modernização com rodoviarismo. Se assim não fosse, como explicar que todas as atividades desenvolvidas pelas concessionárias, salvo a dos transportes ferroviário e tranviário, tenham sido assumidas posteriormente pelo Estado (produção e distribuição de energia elétrica e telefonia) não apenas em termos de rotina administrativa, mas também de investimentos na área tecnológica? Por que somente o setor dos transportes acompanha a decadência das concessionárias?... Curioso como essas duas questões (a das tarifas e a do nacionalismo, aparentemente díspares) se imbricam na prática, se relacionam, se condicionam. Também essa correlação poderia vir a ser objeto de pesquisas que abordassem a questão tranviária sob esse duplo ângulo da eficiência econômico-financeira das empresas e do contexto ideológico político da época.

Naturalmente um estudo sobre o nacionalismo econômico da época estudada requereria um enfoque analítico teórico bem mais amplo do que o que adotamos e não poderia se restringir ao material de imprensa coletado. A principal conclusão de nossa pesquisa é que o sistema tranviário foi extinto, abruptamente em alguns Estados como Pará e Ceará, paulatinamente como em Recife, pouco importa, como decorrência sobretudo do desinteresse político das elites nacionais em preservá-lo, identificado que era o sistema com o arcaico (a simbolizar talvez a perda da hegemonia britânica na América Latina) em contraposição ao sistema rodoviário que atendia à dupla função de símbolo do moderno (referenciando sem dúvida a crescente hegemonia norte-americana) e meio de transporte individual para as elites. Neste sentido o coletivo se tornou arcaico e o individual se fez moderno. Isto em relação ao bonde que nos anos 40 foi retirado do centro da cidade por “atrapalhar o trânsito”, pois nos anos 90 o jornal Diário de Pernambuco do domingo 30 de dezembro de 1990 colocou em manchete na sua primeira página: “Ônibus atrapalham trânsito no Centro”.

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Arquivos e acervos

Arquivo Público Estadual de Pernambuco [Recife] CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea) Fundação Getúlio Vargas [Rio de Janeiro] Arquivo do ex-interventor federal e ex-governador de Pernambuco, Agamenon Magalhães (CPDOC) [Rio de Janeiro] Arquivo do ex-interventor federal e ex-governador de Pernambuco Etelvino Lins (CPDOC) [Rio de Janeiro]

Entrevista

Entrevista gravada realizada em 22 de outubro de 1990 na sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Rio de Janeiro, com o ex-interventor federal e ex-governador de Pernambuco, Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho

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