GLAUBER ROCHA E O CINEMA DA CRUELDADE

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GLAUBER ROCHA E O CINEMA DA CRUELDADE1 Adeilton Lima da Silva - UnB2 RESUMO: A presente proposta de comunicação visa a uma abordagem crítica da linguagem cinematográfica de Glauber Rocha, enfocando principalmente suas relações com a estética teatral, em específico o diálogo com o teórico francês Antonin Artaud e o Teatro da Crueldade. Ao Longo de nossa apresentação, analisaremos trechos de filmes de Glauber relacionados àquele conceito. Palavras-chave: Cinema, teatro, crueldade, transe, duplo. ABSTRACT: This proposal for a communication aimed at a critical approach of the cinematic language of Glauber Rocha, mainly focusing on its relations with the theatrical aesthetic,in that specific dialogue with the French theorist Antonin Artaud and the Theater of cruelty. During our presentation, we will look at excerpts from films by Glauber related to that concept. Keywords: Cinema, theater, cruelty, trance, double.

Há uma cena curiosa de Glauber Rocha atuando no cinema, dirigido por ninguém menos que Jean-Luc Godard. O filme é Vento do Leste (1970), e Glauber interpreta a si mesmo, numa encruzilhada, de braços abertos, dialogando com uma mulher grávida sobre os rumos do cinema no mundo atual. Ele indica caminhos possíveis para o cinema, do comercial, hollywoodiano, ao cinema experimental, revolucionário. Revisitar a obra de Glauber Rocha, cujos filmes finalmente vêm sendo restaurados, é exercício instigante pelos desafios e descobertas que ainda nos possibilita. A tela glauberiana é ainda, em pleno século XXI, um furacão em constante erupção de idéias e provocações, explorando um universo de linguagens e novas mídias com as quais o cinema vem dialogando. O que pretendemos abordar neste artigo são as tênues fronteiras entre vida e arte, cinema e poesia nas quais viveu Glauber Rocha, do homem ao performer, do artista ao homem em seus radicalismos românticos e exacerbados, porém com uma visão de Brasil consciente e apaixonada na defesa de nossos valores culturais e 1

Artigo escrito na disciplina Cenas Contemporâneas, no programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes/UnB, sob a coordenação do Professor Dr. Fernando Villar. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes - UnB

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históricos. Nada de “psicologismos”, apenas a tríade homem, arte e sociedade. Mais adiante, analisaremos, como recorte demonstrativo, algumas seqüências do polêmico curta Di Cavalcanti (1977) que, de certa forma, antecipa o estilo performático de Glauber no programa Abertura, na TV TUPI, em 1979. As aproximações com o pensamento e a obra de Antonin Artaud são claras e identificáveis, como já demonstramos em trabalho anterior, A Estética Teatral no Cinema de Glauber Rocha, dissertação de mestrado defendida em 2007, no Departamento de Teoria Literária e Literaturas (UnB). A propósito dessas tênues fronteiras entre vida e arte, e do parentesco artístico entre Glauber e Artaud, lembremo-nos de uma célebre palestra apresentada por Artaud na Sorbonne, em 1947, e descrita por sua amiga e confidente, a escritora Anaïs Nin. Conforme o poeta Cláudio Willer, que traduziu textos de Artaud no Brasil, “tal situação seria considerada uma performance” (Willer, 1983, p.163). Assim Anaïs Nin descreveu o que testemunhou: Artaud magro, tenso. Um rosto escavado, olhos de visionário, modos sarcásticos. Ora cansado, ora ardente e sardônico. Ele falou dos antigos ritos de sangue. O poder do contágio. A religião antiga sabia organizar ritos que tornavam contagiosos a fé e o êxtase. O poder dos ritos desapareceu. Ele quer devolver isso ao teatro. Hoje em dia ninguém é capaz de compartilhar uma sensação com o outro. E Antonin Artaud quer que o teatro realize isso, que esteja no centro, que seja um rito que nos desperte a todos. Ele quer gritar de tal forma que as pessoas sejam novamente reconduzidas ao fervor e ao êxtase. Nada de palavras. Nada de análise. O contágio pela representação de estados de êxtase. Nada de encenação objetiva, mas um rito no meio do público (Willer, idem, p.164).

Na seqüência, o que se vê é Artaud não exatamente falando sobre o teatro e a peste, mas incorporando uma pessoa possuída pela mesma (e/ou pelo teatro). O cinema de Glauber Rocha é esse “grito interior” e esse rito, aquela tentativa de compartilhar uma mesma sensação com o outro. É significativamente essa “incorporação” que através do ritual artístico se transforma em ação de vida e de cotidiano, uma espécie de “cinema da crueldade”. Algo tão prazeroso, impactante e contagiante que a crítica conservadora preferiu classificar como hermético e difícil,

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sem perceber que a vida pulsava ali ao lado, como fora com Artaud em sua época (entre os anos 20 e 40, período áureo de sua produção). Mal vestido, desgrenhado, ferino, com problemas financeiros, a própria figura de Glauber agredia seus interlocutores. Ele tinha consciência desse incômodo, desse seu lado bufão e marginal, o que fica claro em inúmeras cartas e textos, em que o sofrimento é dramatizado e estetizado. (BENTES, 1997, p. 22).

É, portanto, essa estética que nos interessa estudar. Uma estética que nasce e elabora-se no próprio cotidiano do artista e transforma-se em ação artística, em performance, ligando a vida, o palco e a tela. O Teatro da Crueldade e a Estética da Fome cruzam-se nas fronteiras do duplo e/ou nas múltiplas identidades do avesso, do avesso, avesso... É interessante lembrar que essa convergência de pensamentos e estilos de vida, dá-se no contexto das explosões provocadas pelas revoluções artísticas e políticas nos anos sessenta (como acontecera no início do Séc. XX), também conhecidas como “segundas vanguardas”, cujos elementos de base estão em sintonia com a Semana de Arte Moderna (1922) e o conceito de “antropofagia” proposto pelo poeta e dramaturgo Oswald de Andrade. Glauber soube regurgitar as influências artísticas de Nietzsche a Brecht, de Eisenstein a Artaud, passando pelo diálogo com o Neorelismo e com a Nouvelle Vague. A Estética da Fome, fundamento da linguagem do Cinema Novo, é conseqüência de um longo processo de assimilação e reflexão de conceitos da arte, história, filosofia, política e sociedade. Passemos agora à análise dos materiais propostos. Dois momentos em que o próprio Glauber Rocha é personagem de si mesmo (ou, exatamente, pela ausência de um personagem) no sentido mais saudável e radical do termo, situando-se no campo limítrofe da performance. É importante enfatizar o papel de radicalidade que a performance, como forma de expressão, herda de seus movimentos predecessores: a performance é basicamente uma linguagem de experimentação, sem compromissos com a mídia, nem com uma expectativa de

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público e nem com uma ideologia engajada. Ideologicamente falando, existe uma identificação com o anarquismo que resgata a liberdade na criação, esta força motriz da arte. (Cohen, 2007, p. 45).

Di Cavalcanti (1977), segundo o próprio Glauber é sua homenagem ao amigo e artista plástico brasileiro, conhecido pelos traços fortes e expressivos de nossa cor e de nossa cultura (Glauber afirma na narrativa que o que Roberto Rosselini faria com a câmera de 16mm, Di faria com o pincel, numa citação explícita ao Neorealismo italiano, escola com a qual dialoga). Também narrando e não apenas como acompanhamento, músicas que vão de Villa-Lobos a Pixinguinha, Lamartine Babo a Jorge Bem (Jor). Conta a lenda que tal evento se tratava de um acordo entre os dois, quem morresse primeiro, receberia uma homenagem do outro. Glauber cumpre com a palavra e transforma o velório de Di Cavalcanti em um grande acontecimento performático, aliás, mostrando gradativamente sua passagem de detrás da câmera para o centro da cena. Di é o tema, mas Glauber é o protagonista na alternância entre o “fato jornalístico” da notícia da morte, a biografia do morto e a homenagem do amigo através do poema/imagem em que se transforma o filme. A grande metáfora, e talvez por isso o filme tenha ficado vários anos proibido de ser exibido publicamente, ação imposta pela família de Di, é o momento em que Glauber e o fotógrafo Mario Carneiro cobrem e depois descobrem com um lenço o rosto do morto. Algo como revelar e desvelar a máscara da morte, num riso sarcástico e macabro, como as cortinas de um teatro se abrindo para a crueldade de uma cena. E crueldade aqui no sentido artaudiano do termo, pela força, pelo impacto e pela carga simbólica que carrega. A carnavalização promovida por Glauber desconstrói os artifícios hipócritas da cultura cristã que circundam o caixão, onde vemos um crucifixo e velas (redenção, paraíso, vida eterna etc). Glauber cria outra ritualização, profana, como algo saído de uma tela do próprio Di, pinceladas de um auto-retrato do amigo e de si mesmo (em 2003, Silvio Tendler lançaria o documentário Glauber Rocha, Labirinto do Brasil). Nada mais emblemático que a face risonha do morto enquanto ouvimos e assistimos a épica narrativa, redundância proposital, de Glauber Rocha. Em texto publicado no site do Templo Glauber¹, instituição fundada por sua mãe, Dª Lúcia Rocha, e que cuida de

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todo o seu acervo, ele diria sobre o filme: “A morte é um tema festivo pros mexicanos e qualquer protestante essencialista como eu não a considera tragédya”. Não nos esqueçamos que o México e sua cultura milenar também exerceu grande influência e atração sobre Antonin Artaud, que chegou mesmo a participar de rituais de cura através do uso do peyote (planta alucinógena) com índios, experiência que descreveu em textos como Para Acabar com o Julgamento de Deus: Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado de seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas como no delírio dos bailes populares e esse avesso será seu verdadeiro lugar. (Willer, p.161, 162, ibidem) É esse avesso que Glauber explora no curta Di num contexto histórico ditatorial recheado de referências políticas e culturais onipresentes e simbólicas: João Goulart, Juscelino Kubitschek, Paulo Pontes, Cacá Diegues e Vinícius de Moraes, entre outras. Enquanto Glauber narra como se tornou amigo de Di, a imagem nos mostra as figuras aqui citadas em recortes de jornal (O Pasquim) ou em sua própria fala, enquanto ele próprio aparece com a foto de Di, onde também encontramos, metalinguisticamente, notícias sobre essa mesma filmagem e o enterro daquele artista. Esse processo narrativo nada linear é característico da linguagem glauberiana (nítida influência do distanciamento brechtiano). E é nas tensões, convergências e explosões entre imagem e som que se processa o grande ritual. Alternando imagens do enterro com as histórias de vida de Di, Glauber, apesar das velas e do crucifixo, celebra a vida e a obra do amigo... Rindo da morte. Aliás, já no início do filme, o próprio Glauber declama o poema Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos, mais uma citação em espiral que remete a si mesmo: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável / enterro de tua última quimera...”. A dose de ironia do poema somada à da imagem na tela e a forma como Glauber o lê, constroem um discurso corrosivo ao mesmo tempo em que dilacera a mesquinhez de nossa sociedade diante de nossos valores e de nossos artistas. Ao mesmo tempo em que cobre o enterro de Di, o filme também é sobre a própria filmagem do acontecimento e das “interferências” pouco conservadoras de Glauber Rocha. Temos o fato, o impacto e a repercussão do mesmo. Frases do tipo: “1, 2, 3.... Corta! Agora dá um close na cara dele! Barba por fazer (...) O cineasta Glauber Rocha está parado ao lado do caixão de Di Cavalcanti, no Museu de Arte Moderma”, enquanto a câmera lentamente vai mostrando as

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rosas no caixão até chegar ao rosto de Di. Glauber dirige, atua e ‘contracena’ com o morto como se estivessem numa mesa de bar. O Contraste provocado pela cena é chocante.

Referências ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo, Ed. Max Limonad, 1984. ________. Antonin artaud. Col. Rebeldes Malditos. Trad. Cláudio Willer, Porto Alegre, L&PM, 1986. COHEN, Renato. Performance como linguagem. SP. Ed. Perspectiva, 2007. LEMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. SP. Cosac Naify, 2007 ROCHA, Glauber. cartas ao mundo. Org. Ivana Bentes. SP, Ed. Civilização Brasileira,1997. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. SP, Ed. Cosac Naify, 2007. Filme Di Cavalcanti Di Glauber (1977) http://www.tempoglauber.com.br/glauber/Filmografia/di.htm

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