GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. (Carta de 29 de julho de 1772)

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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Faculdade de Letras Disciplina: Teoria Literária II (LEL110) Professor(a): Ricardo Pinto de Souza Estudante: Jônatas Ferreira de Lima Souza (DRE: 115044769)

ATIVIDADE III (NARRATIVA)

II) Selecione uma passagem de Os sofrimentos do jovem Werther para analisar, tentando relacionar sua leitura a algum aspecto da teoria do romance conforme encontramos em Bakhtin e Lukács. A passagem selecionada será a carta de 29 de julho de 1772. Mais uma vez, como em muitas cenas do romance, o jovem Werther está escrevendo ao seu amigo Wilhelm. A cena do cotidiano é bastante simples. O que pretendemos observar, óbvio, são os seus pensamentos (a sua subjetividade) transcrita na carta. São esses, aqueles que marcam boa parte da narrativa desse romance. Neles, notamos seus ideais, suas crenças, suas opiniões e leituras de mundo, um pouco da complexidade do ser humano diante de seus desejos, dores, sentimentos – que mimetiza, de certa forma, a crise existencial da burguesia do período; a estética romântica. O romance é o gênero que surge nessa modernidade, e dialoga diretamente com os anseios de uma emergente sociedade burguesa em conflito com um mundo aristocrático decadente.1 No romance, identificaremos a romancização de outros gêneros (épica, tragédia, comédia, etc.), este sendo, um caráter maleável e em constante mudança, deixando o gênero bastante aberto e adaptável. Sobre essa questão, Mikhail Bakhtin (1895-1975), nos lembra dessa evolução contínua que passa o romance, e, como tal evolução pode chegar aos outros gêneros por meio de suas adaptações, isto é, suas romancizações. Para o pensador russo,

A romancização da literatura não implica em absoluto a imposição aos outros gêneros de um cânone estrangeiro e não peculiar, pois o próprio romance está privado deste cânone; ele, por sua natureza, é anacrônico. [...] a romancização dos outros gêneros não implica a sua submissão a cânones estranhos; ao contrário, trata-se de liberá-los de tudo aquilo que é convencional, necrosado, empolado e amorfo, de tudo aquilo que freia sua própria evolução e de tudo aquilo que os transforma, [...] em estilizações de formas obsoletas.2

1 2

BOLLE, W. In: GOETHE, 1999, p. 137-139. BAKHTIN, 1993, p. 427.

A questão defendida por Bakhtin acaba por ser pertinente, uma vez que, como mostra, o romance é um gênero que, por sua estrutura, dá sua contribuição para a permanência dos outros gêneros – mas atuando de forma independente. Portanto, o leitor de Werther, perceberá um pouco disso, já que o gênero romance ainda está ganhando espaço no século XVIII europeu; o leitor poderá perceber o germe de uma genial presença de outros gêneros literários moldados, poderíamos dizer, para continuar evoluindo junto com o romance. Acerca do Werther (1774), romance de Goethe (1749-1832), ainda poderíamos chamar atenção para do uso de cartas pelo personagem, onde ele derrama sua subjetividade; sobre esse elemento epistolar do romance, o autor (e editor fictício do mundo de Werther, o Wilhelm) se faz desse recurso, provavelmente, para impressionar o leitor corrente, a respeito desse frágil limite entre a ficção e a realidade. A carta de 29 de julho não é longa, em comparação com outras. Nela, Werther está respondendo os comentários de seu amigo Wilhelm. O texto é simples e direto: Werther quer ser marido de Lotte; Werther sonha com esse dia e sonha como seria viver esse dia. O objetivo está claro, pois Werther, quer que Lotte seja sua mulher e de mais ninguém. Contudo, mesmo que essa fosse a única carta lida por alguém, poderiam se identificar certos problemas contextuais para as concretizações sentimentais de Werther: Lotte é casada com Albert. Eis o motivo, justificado, do tom de lamento de Werther. Esse lamento, no entanto, não parece ser barreira para inibir o seu profundo desejo por Lotte, bem como seu ardiloso argumento acerca de ele ser melhor para ela do que o seu marido atual; de como Lotte, segundo ele, é seu par ideal em várias circunstâncias, até numa leitura de livro, claro, destacando que, o contrário, entre Lotte e Albert, não é verdadeiro. Devemos perceber que isso são apenas pensamentos e desejos expostos numa carta. A questão é saber se o personagem Werther vai fazer algo sobre esse amor profundo e complexo que sente pela Lotte, uma jovem casada. Até onde a subjetividade se materializa na objetividade? Qual o real limite do desejo de Werther? Quais as características do personagem do romance em detrimento do mundo ao seu redor? O aspecto que selecionamos para observar nessa carta de Werther é a relação do herói com o mundo, desse indivíduo imerso no seu mundo e no mundo externo a si. Para nortear nossa breve análise, referenciaremos basicamente a obra de Georg Lukács (1885-1971), A Teoria do Romance de 1916-20, na seção: A forma interna do romance. Sobre essa questão, Lukács destaca, um elemento adotado pelo romance, que seria o passo primordial para se perceber o seu herói: a forma biográfica. Segundo o autor, a forma biográfica do romance

forjou um novo homem inserido no meio: o indivíduo problemático.3 Mas em que esse indivíduo é problemático?

Quando o indivíduo não é problemático, seus objetivos lhe são dados como evidência imediata, e o mundo, cuja construção os mesmos objetivos realizados levaram a cabo, pode lhe reservar somente obstáculos e dificuldades para a realização deles, mas nunca um perigo intrinsecamente sério.4

O indivíduo não problemático, por tanto, tem objetivos realizáveis num mundo que possui um nível aceitável de harmonia com seus desejos, oferecendo dificuldades que podem ser superadas com algum esforço. No caso de Werther, vemos que não parece ser este o caso, já que o mesmo expressa sua angústia por estar jogando um jogo, cujo objetivo de amar Lotte, está contrário a norma do mundo:

Eu, marido dela! Ah, Deus, que me deu a vida, se tivesse me concedido essa graça, minha existência inteira seria uma única prece. Não quero contestar e perdoe-me essas lágrimas, essas ilusões sem sentido...

O próprio Werther sabe que seu objetivo está em desacordo com a ordem, não passando, em princípio, para ele, de “ilusões sem sentido”. Segundo abstraímos da menção de Lukács, sobre o indivíduo não problemático, Werther deveria ou adequar o seu amor a Lotte, para harmonizá-lo à norma do mundo, ou desistir desse amor. Ele poderia jogar com algum elemento do mundo, para que seu objetivo seja harmonizado e seja atingido; por exemplo, pensar em como tiraria Albert desse “triângulo” de relações. Ele também poderia desistir do amor exclusivo por Lotte e ir buscar novos horizontes. O indivíduo, assim, estaria tentando superar as dificuldades oferecidas, e evitar um perigo mais sério na sua caminhada. É o que acontece de fato nessa carta? Assim continua pensado Werther, a respeito de Lotte:

Ela, minha mulher! Se eu pudesse ter em meus braços a mais amável criatura que existe nesse mundo! Wilhelm, um tremor percorre-me todo o corpo, quando Albert abraça aquela cintura graciosa.

Não é o que acontece de fato. Mesmo tendo pensado ser, seu desejo por Lotte, uma ilusão sem sentido, já que acha que não vai conseguir atingir o objetivo, não vai conseguir moldar o mundo a seu favor, Werther insiste em investir, em sonhar, em pensar em Lotte 3 4

LUKÁCS, 2000, p. 78-79. LUKÁCS, 2000, p. 79.

como sua mulher, em desejar tê-la em seus braços, segurar sua graciosa cintura, sabendo que, no mundo real, objetivo, quem faz isso é Albert. Na menção de Lukács, Werther estaria caminhado para ser um indivíduo problemático. Ele estaria deixando de acreditar num objetivo real – consumar no sistema, seu amor a Lotte – e se apegando a sua própria subjetividade, desvinculando-a do mundo, mantendo-a apenas para si – amando a ideia de amar Lotte. O filósofo húngaro complementa a questão, mencionando que

Ao pôr as ideias como inalcançáveis e [...] como irreais, ao transformá-las em ideais, a organicidade imediata e não-problemática da individualidade é rompida. Ela se torna um fim em si mesma, pois encontra dentro de si o que lhe é essencial, o que faz de sua vida uma vida verdadeira, mas não a título de posse ou fundamento de vida, senão como algo a ser buscado.5

O indivíduo, então, começa a sucumbir aos seus ideais, pensados desde já como irreais, inalcançáveis, passa a admitir que é possível viver (suportar) tal situação, alimentando-a o quanto for aceitável, o quanto pode ser buscada e consumida. Dessa forma, Werther segue nutrindo o seu amor por Lotte, na qual, ele o consome no mundo subjetivo:

Comigo ela seria mais feliz do que com ele. Oh! Albert não é o homem capaz de satisfazer todos os desejos daquele anjo. A ele falta uma certa sensibilidade, falta... entenda como quiser...

Satisfazendo seu objetivo apenas no pensamento, ciente de certa disparidade com o mundo, Werther não cogita – com ações, provavelmente – poder figurar na mesma posição de Albert, mas apenas desejar estar em seu lugar, desejar ter tido outro destino. Werther não pensa em mudar a ordem, em alterar a condição presente, mas sim, comportar-se como uma chama que pouco a pouco devora seu amor particular por Lotte, até o limite do pavio, até ele próprio extinguir-se, findando seu mundo e seu sofrimento. O herói apenas lamenta e chora por sua condição e por seu amor absoluto por Lotte, não ser permitido pelo jogo do destino na qual, para ele, impôs barreiras que não podem ser transpassadas. Para Lukács, o indivíduo problemático ruma para si mesmo, ele passa pela obscuridade da realidade, heterogênea e sem sentido, e ruma ao “autoconhecimento”.6 Contudo o autoconhecimento passa a ditar o sentido da vida do indivíduo. Esse ideal encontrado, passa a ser o objetivo e logo perceberá que essa luz está limitada ao ser e que ela 5 6

LUKÁCS, 2000, p. 79. LUKÁCS, 2000, p. 82.

não pode irradiar mais que na sua própria esfera – não atingindo o ser do outro. Isso é o que Lukács chama de “discrepância entre ser e dever-ser”.7 Assim acrescenta o autor, sobre esse sentido:

A imanência do sentido exigida pela forma é realizada pela sua experiência de que esse mero vislumbre do sentido é o máximo que a vida tem para dar, a única coisa digna do investimento de toda uma vida, a única coisa pela qual essa luta vale a pena. Esse processo abrange toda uma vida humana, e a par de seu conteúdo normativo, o caminho rumo ao autoconhecimento de um homem, são dados também sua direção e seu alcance.8

No caso de Werther, vemos o seu absoluto apego, essa obstinação, ao sentir amor por Lotte. Apesar de chegar a pensar em algo diferente, como vislumbrar esse amor também no sentido exigido pela forma, como mencionou Lukács, Werther acredita que é por esse sentir, que se vale apena investir, lutar até o limite da vida. Mas, para Werther, para sua angústia, Lotte é real e constantemente se deparará com essa situação. Lotte é real, ela é um elemento do mundo da forma e ela é o motor do seu sentir. Para o sofrimento de Werther, existe uma expressão desse sentir no mundo objetivo: tocar, cheirar, morder, ver, ouvir. Para angustiar mais ainda o herói, existe Albert, que põem em prática tudo que é o amor no meio formal, dos sentidos.

Caro Wilhelm, é verdade que ele a ama intensamente, e um amor desses não merece ser retribuído?

Werther pensa, afinal, se seu amor não poderia ser retribuído por Lotte – já que Albert também tem sua recompensa por amar a jovem de olhos escuros. O grande impasse da curta vida de Werther, acabou sendo essa transição do sentir o amor no âmbito da particularidade, apenas para si, e o do sentir o amor, consumando-o fisicamente junto a pessoa que lhe inspirara tal vislumbre. Sendo um indivíduo problemático, que expressa seus sentimentos, suas emoções mais íntimas, que proclama sua rebeldia, sua insatisfação com o mundo, que busca, o quanto pode, um asilo, na natureza, num parque, num livro, no sobrenatural, que ajude-o a fugir da complicada realidade, dotado de um gênio indomado, de atuação nobre, o personagem Werther, conquistou o seu espaço dentro das biografias românticas, e a sua história ficcional, merecidamente inserida nos clássicos romances burgueses, cujo tema seria a crise existencial do herói. 7 8

LUKÁCS, 2000. p. 82. Op. cit., loc. cit.

Concluímos nossa breve análise destacando então que, por meio da escolha da carta de 29 de julho de 1772, pudemos abordar, ligeiramente, as principais questões que remetem ao elemento do indivíduo no romance biográfico (ou autobiográfico). Vimos, por meio de Bakhtin, como o gênero romance é aquele que abarca outros gêneros, tornando possível na literatura, uma biografia ficcional – esta, que promove um estreitamento entre as fronteiras da ficção e da realidade. Por sua vez, por meio de Lukács, entramos, um tanto superficialmente, na teoria do romance, destacando o indivíduo que vive os sentidos, que pode ter seus objetivos em situação harmônica com o meio, enfrentando desafios superáveis ou destoar com ele e ser um indivíduo problemático, que investirá no vislumbre do sentido, até o limite das suas forças. Claramente, Werther foi um indivíduo problemático, mas com ressalvas, pois vimos como o termo problemático, no romance, também carrega uma carga dúbia, ou seja, a genialidade do herói, acompanhada de uma rebeldia, sua obstinação e nobreza acerca de seus ideais, acompanhada um sentimento quase pueril e absoluto sobre o amor, etc. Entendemos como todo esse conjunto faz parte do romance, gênero que busca mimetizar a complexidade do ser, bem como simboliza os anseios de uma burguesia emergente na Europa, que quer conquistar os seus direitos, manifestar os seus ideais, entender seus sentimentos, preocupações estas, ainda relativamente pensadas num segundo plano, numa sociedade aristocrática, mesmo já fragilizada estruturalmente, em fins do século XVIII, período de publicação dessa obra-prima, por Goethe em 1774.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Questões de teoria e estética. A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et alii. São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1993.

BOLLE, W. Posfácio. In: GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. Trad. Leonardo C. Lack. São Paulo: Nova Alexandria, 1999. p. 137-144. (Segundo Livro).

GOETHE, J. W. Carta 29 de julho. In: ____. Os sofrimentos do jovem Werther. Trad. Leonardo C. Lack. São Paulo: Nova Alexandria, 1999. p. 85. (Segundo Livro).

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000.

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