Gogol e a contemporaneidade (1 a 3)

September 21, 2017 | Autor: Rodrigo Contrera | Categoria: Gogol, Teatro, Nikolai Gogol
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Gógol e a contemporaneidade
1
Após ter feito a oficina do Pandora, me meti a ler algumas obras do Gógol, sujeito-objeto da primeira oficina, assim como obras sobre a biografia do sujeito. É interessante como isso acendeu em mim a vontade de realizar algumas conexões entre a contemporaneidade e o universo gogoliano, ou o que ele prenunciou – se é que prenunciou ou apenas admitiu como real – forçando os seguidores a fazerem o mesmo. Porque é isso que fazem os descobridores: forçam a mudança.
Começo elencando diversos fenômenos artísticos que ficam a dever a Gogol. Primeiro, o pintor Francis Bacon. Bacon, como muitos sabem, distorce a imagem do ser humano de forma a torna-la carne, pura carne. No caso, Bacon achava lindos os esqueletos bovinos e suínos em açougues, pendurados, e soube fazer com que a carne escapasse do registro fedorento mas ainda humano de Grünewald, num altar de Isenheim. Bacon focava-se em registrar parcelas do ser humano que expressavam seu caráter carnal sem porém resumir-se a ele. O incômodo de ver a boca aberta do papa sugerido por Velázquez nas telas mais conhecidas do inglês dirigia-se ao fato de que aquela era uma boca, apenas, mas uma boca que revelava uma angústia que só quem sentiu na pele os gritos dos Stuka caindo como vespas numa Londres invadida poderia inculcar no ser humano como um todo, de todos os quadrantes e nacionalidades. Bacon tornou-se referência ao ainda apostar num figurativismo apesar de o século XX vir a ser povoado e dominado por abstratos ou detentores de técnicas de colagem e outros quejandos.
Mas em que deveria Bacon remeter-se ao tão distante Gógol, que se focava nos tipos russos de todas as matizes e que destacava em especial as contribuições relativas à burocracia de uma Rússia czarista e aos caracteres patéticos de pequenos proprietários e de servos que nada pareciam ter na vida a não ser sua existência miserável negociada em pregões sutis que Gógol, muito esperto, percebia e que conectava aos teatros de marionetes que curtiu em sua infância, na Ucrânia rural da época? De meu modesto ponto de vista, percebo em Bacon, e em seus tipos urbanos (que ele conhecia muito bem dos bares gays de uma Londres sub-reptícia) e personagens relativas a telas tradicionais de pintores figurativistas de primeiro nível, uma caracterização patética do ser humano deformado enquanto carne que remete, nos seus aspectos psicológicos recônditos, à divisão que torna o ser humano da segunda metade do século XX um animal enjaulado por seus próprios meios às suas próprias paixões e aos seus próprios limites que, enquanto focado nas telas (que em sua grande maioria incluem um arcabouço formal intenso, sob a forma de cubos ou redes de proteção), subentendem uma agonia primeva que, em última instância, parecia dominar vários dos tipos gogolianos. Ou seja, não remeto, em minha visão muito particular, o grotesco de Bacon às suas personagens tornadas carne, mas ao aspecto particularíssimo da psicologia que é possível entrever na animalidade transformada civilização dessas pessoas que eram tão caras a Bacon mas ao mesmo que ele analisava como se disseca um animal pronto para ser comido – tal qual um Gógol, que não parecia deixar passar nada no intuito de revelar uma arte maior.
Não foi essa, porém – a de Bacon –, a primeira aparição de um certo gogolianismo ou grotesco no teatro que passei a ver a partir da segunda metade da primeira década do novo milênio, mas as menções a, dentre outros, um Bacon por um Gerald Thomas que, não por acaso, começou tendo aulas informais com alguns dos maiores artistas plásticos brasileiros do século dos séculos (o XX), que passou em meio a michês mal-afamados e a contatos da mídia tradicional nova-iorquina e hoje mais do que ultrapassada. Pois foi com o Gerald que eu vi pela primeira vez uma personificação de um Beckett aparentado a um funcionário raquítico, da razão e da emoção, e foi com ele também que consegui acompanhar o non-sense de um Marco Nanini em Circo de Rins e Fígados, transpondo para o palco uma leitura da política mesquinha de um país sobejamente atrasado como o Brasil, em trama que remetia claramente ao passado autoritário (e ainda presente) de uma nação golpeada por uma ditadura militarista. Muito a ver com Gógol, embora distante em referências, que perpassam diversas influências históricas anacrônicas em relação a ele, e que portanto dialogam necessariamente com o que ainda há por vir – e nisto que me atingem. Thomas, cabe notar, não mais remeteu-se a figuras clownescas do tipo dessa vivida por Nanini, optando por avançar em outros rumos, de alguma forma porém ainda relacionados com o grotesco primitivo – sua última peça, se não me engano (acho que me engano, pois não acompanhei por absoluta falta de grana), foi Gárgulas.
Hoje em dia, até fevereiro, São Paulo é palco de uma exposição de Ron Mueck, artista hiper-realista – muito embora suas peças não tenham necessariamente dimensões reais – que bastante – a meu ver – remete a um Lucien Freud, próximo amigo de Bacon, neto de Freud, que desenvolveu um trabalho de pinturas realistas ou hiper-realistas que captam, a meu ver, grande parte da essência do aspecto patético das personagens gogolianas, muito embora estas remetam mais a um provincianismo típico de sua época (da época de Gógol) e a situações que desmascaram hipocrisias que, embora ocorram atualmente em qualquer época e lugar, não são, a quem bem entende a arte, especificamente similares. Pois a época czarista obedecia necessariamente a outra dinâmica de poder, e a burocracia reinante à época não aparentava os mesmos pressupostos de razão que a burocracia atual nestas paragens – embora acredite eu essa mesma burocracia em lugares como a Síria e outras ditaduras negras ou brancas deva ter bem mais a ver, especificamente falando.
2
Em que Lucien Freud poderia remeter a uma contemporaneidade gogoliana? Gostaria de sugerir que, por detrás do caráter grotesco das figuras de Gógol, em suas obras diversas, parece repousar uma incapacidade das personagens em lidar com suas insuficiências, seja em termos de ausência de ambição, seja quanto à sua tendência de mascarar a realidade por meio de subterfúgios diversos, seja pelo próprio caráter grotesco de suas existências, marcadas por expedientes de personalidade que lhes fazem esconder propensões naturais ou mesmo deturpar propensões aparentemente aceitas socialmente. Nesse sentido, as pinturas de um Freud, normalmente retratos de corpo inteiro de pessoas geralmente idosas, refletem a transitoriedade da existência de figuras aparentemente rasteiras mas que propõem em si dilemas de ordem diversa, desde o cansaço de gente idosa, a aparente inexpugnabilidade de profissionais com cargos de destaque, a contradição imanente a personalidades que mal conseguem lidar com a própria sexualidade, etc. Sabe-se, por meio de biografias mal-ajambradas de Freud, que o pintor não hesitava em frequentar ambientes mal-afamados ou em contratar amigos criminosos para estabelecer justiça pelos próprios meios naquilo que o defrontava com os códigos reinantes na sociedade. Por que isso, a meu ver, também seria sintomático de sua ligação com o grotesco? Porque, ao menos aparentemente, Freud vivia num limiar entre o que havia de mais sofisticado em sua Londres pós-guerra sem contudo recusar o caráter fantasmagórico do crime, que costuma tornar as pessoas mais abertas à sua real condição – sob pena de apanharem fisicamente, muitas vezes. Gógol frequentou, por sua vez, o que havia de mais dificultoso na vida de um artista que pena encontrar sua via pelos próprios meios, sem contudo deixar de ser apoiado – ou vilipendiado – por estratos que nada tinham de sub-reptícios, mas que diziam respeito àquilo que de mais sofisticado poderia haver nessa São Petersburgo tão fértil de gente que iria mudar o panorama da arte mundial, em suas diversas formas. Gógol vivia também num limiar, e ao que parece tentava coadunar a vida dos estratos mais pobres e interessantes na medida de um eslavismo militante com a visão mais cosmopolita dos estratos urbanos, que pendiam em grande parte a uma subserviência mascarada a modelos estrangeiros, principalmente franceses e alemães. Gógol, orientado por Pushkin, optara pelo eslavismo, e nisso residia também sua originalidade, na medida em que buscava, como muitos artistas em todas as nações, as origens de povo de que ele se originava, sem contudo torna-la objeto de gozação ou de mera folclorização.
Porém, pode parecer que só os aspectos mais psicológicos de algo ligado às artes plásticas podem realmente remeter, atualmente, em suas apresentações mais representativas, ao universo gogoliano, que nada tem a ver com tais representações, oriundas de influências outras. Mas não. Eu já citei Grunewald. O que são suas telas? Representações religiosas que remetem à carne em seu aspecto putrefato, de forma a sempre mais atingir o espectador, que precisava, nessa época, ser comovido pelo universo e história cristãs. Pois é, sabe-se muito bem que também Bosch apelava a representações grotescas – de demônios, homens-peixe, homens-répteis, seres humanos em meio a demônios, etc. – para comover a plateia de então. Mas, em que medida isso necessariamente apelaria a universos grotescos como o de um Gógol, que demandava ligações com atitudes corriqueiras de personagens bem específicas, como mujiques, prefeitos, funcionários públicos de baixo e alto escalão, etc? Eu diria que ainda no quesito de, por meio da distorção, seja nas telas do Cristo putrefato de um Grunewald, seja nas telas de demônios lutando pelo domínio dos homens, em Bosch, um aspecto absolutamente repulsivo da humanidade ser colocada diante de todos para avaliação – que é o que também acontece em Gógol. Pois em suas peças e contos tudo aparece como se precisasse ser devidamente avaliado pelos espectadores, que, defrontados com aspectos incômodos de si mesmos e dos seus semelhantes, precisariam escolher a via correta – ou seja, entender se o que viam era aceitável ou não. E, no caso, foi justamente a repulsa a diversos caracteres apresentados nas peças gogolianos que levou, por meio de interpretações diversas, o autor a crises radicais, dado que ele dizia não querer combater nada, mas apenas aprimorar a sociedade. Ele era uma espécie de moralista, portanto, muito embora não o admitisse – ou quem sabe admitisse.
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Não identifico algo do caráter grotesco das personagens gogolianas necessária ou limitadamente às artes plásticas, contudo. Gostaria de sugerir que, em seu afã de captar o que havia de mais eslavófilo nas personagens russas da época, Gógol deve ter pesquisado também músicas e demonstrações culturais outras – inclusive o teatro de marionetes de que ele tanto gostava quando criança – que povoavam o interior da Rússia, Ucrânia e outras províncias, assim como séculos depois músicos e outros artistas fizeram o mesmo com o intuito de renovar suas respectivas tradições e demonstrações artísticas. Recentemente, nesse caso, deparei-me com demonstrações populares já bastante disseminadas no país, amplamente aceitas e divulgadas pelo mainstream, que conjugam também em suas apresentações aspectos que afastam os chamados detentores do bom gosto e que apelam a aspectos, digamos, baixos da humanidade – sexo, violência, etc. Refiro-me ao funk e outras demonstrações populares. Claro está que estas demonstrações possuem origens forâneas, ou seja, que não necessariamente se originam do povo respectivo. Muitas dessas demonstrações são claramente apenas deturpações de outros gêneros musicais, criadas apenas para vender mais e mais. Mas é o aspecto difícil de aceitar dessas demonstrações que eu gostaria de ressaltar. Em que medida essas demonstrações são realmente inaceitáveis? Dentre outros motivos para isso, elencaria justamente o apelo a sentimentos baixos, como os já citados, assim como também a incapacidade de muitos intérpretes de cantarem – em muitos casos – de forma apenas afinada. Isso necessariamente afasta os bons ouvidos, acostumados a músicas feitas da forma tradicional, e em que o tratamento da letra e da música beira o artesanato. Contrariamente a isso, certas demonstrações chocam pelo aparente mau-gosto, muitas vezes não apenas aparente, mas definitivo. Será isso algo do grotesco que poderíamos entender a partir, digo a partir, da evolução do trabalho a partir de um Gógol? É só uma pergunta, na medida exata em que estou aqui levantando hipóteses com o intuito de posteriormente discutirmos fenômenos gogolianos diretamente relacionados a eventos presentes, e não necessariamente aceitos pela tradição. Claro que neste meu afã quem sabe eu esteja abusando, mas como artista sabemos que nada deve, entre nós, ser a priori descartado, sob risco de arbítrio mal-entendido e mal-digerido.


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