Gomes Lund vs. Brasil Cinco anos Depois: Histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas

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Coordenadoras

Flávia Piovesan | Inês Virgínia Prado Soares

Impacto das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Jurisprudência do STF

2016

Rua Mato Grosso, 175 – Pituba, CEP: 41830-151 – Salvador – Bahia Tel: (71) 3363-8617 / Fax: (71) 3363-5050 • E-mail: [email protected] Copyright: Edições JusPODIVM Conselho Editorial: Dirley da Cunha Jr., Leonardo de Medeiros Garcia, Fredie Didier Jr., José Henrique Mouta, José Marcelo Vigliar, Marcos Ehrhardt Júnior, Nestor Távora, Robério Nunes Filho, Roberval Rocha Ferreira Filho, Rodolfo Pamplona Filho, Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha. Diagramação e Capa: Marcelo S. Brandão ([email protected])

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Impacto das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Jurisprudência do STF / Coordenadoras: Flávia Piovesan, Inês Virgínia Prado Soares – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. 592 p. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-442-1026-0. 1. Direito internacional. 2. Direitos Humanos. 3. Corte Interamericana de Direitos Humanos. I. Piovesan, Flávia. II. Soares, Inês Virgínia Prado. III. Título. CDD 341.27

Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM. É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização do autor e da Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.

Gomes Lund vs. Brasil Cinco anos Depois: Histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas

Gomes Lund vs. Brasil Cinco anos Depois: Histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas Marcelo Torelly1 Sumário: I. Contexto dos fatos e judicialização das violações – II. Tramitação do caso e medidas prévias à condenação – III. Exceções Preliminares e Mérito – IV. Determinações e implementação da decisão pelo Estado brasileiro – V. Impacto da Decisão para além de seu objeto específico – VI. Evolução jurisprudencial e críticas à decisão.

O caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil, decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em novembro de 2010, constitui importante marco da luta contra a impunidade no Brasil e na América seis partes, propõe-se a (I) brevemente apresentar o contexto dos fatos e conjunto de medidas administrativas e judiciais empreendidas anteriormente à condenação, que produziram avanços pontuais mas não evitaram o reconhecimento do descumprimento das obrigações internacionais do -

os impactos da decisão para além do caso concreto, na justiça de transição e na luta contra a impunidade e por acesso à informação e, finalmen-

1.

Doutor em direito pela Universidade de Brasília e membro da Comissão de Altos Estudos do Projeto Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional. Foi assessor internacional, coordenador de memória histórica e secretário-executivo adjunto da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, pesquisador visitante do Institute for Global Law and Policy da Escola de Direito da Universidade Harvard (Estados Unidos), e acadêmico visitante no Centro de Estudos Latino Americanos e na Faculdade de Direito da Universidade de Oxford (Inglaterra). É autor de trabalhos científicos sobre direitos humanos, direito constitucional e direito internacional publicados em português, inglês, espanhol e alemão, incluindo Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito (Fórum, 2012).

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III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos

(IV) avaliar os êxitos, resistência e desafios tidos nos cinco primeiros anos

PARTE

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jurisprudenciais da Corte no caso, mais notadamente o tratamento dos crimes como “graves violações contra os direitos humanos” e a argumentação da carência de efeitos da lei de anistia brasileira em foro de controle de convencionalidade. I. CONTEXTO DOS FATOS E JUDICIALIZAÇÃO DAS VIOLAÇÕES Durante a ultima ditadura brasileira, inaugurada pelo Golpe Militar de 1964 e formalmente encerrada com a retomada do poder pelos civis conjunto de violações sistemáticas contra os direitos humanos, posteriormente consideradas pela Comissão Nacional da Verdade como uma 2 . Dados oficiais dão conta da morte e desaparecimento foram dizimados pela repressão4. governo militar suspendeu garantias fundamentais, ampliando radicalmente o espectro de sua “legalidade autoritária” mas, também, passou a valer-se mais correntemente de métodos criminosos estranhos àquela

da ditadura levou uma série de militantes da esquerda, fieis a seus ideais revolucionários, a engajarem-se na luta armada6. Esse engajamento e a escalada dos movimentos de resistência foi, finalmente, utilizado pelo

Lund vs. Brasil, transcorre exatamente neste contexto. Na metade final 2. 3. 4. 5. 6.

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Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Volume 01, Tomo 01, p. 329. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Volume 02, pp.197-256. Veja-se: Pereira, Anthony. Repressão e Ditadura – o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, pp.283-296. Skidmore, Thomas E. The politics of military rule in Brazil 1964-85. Oxford: Oxford University Press, 1988, p. 85.

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dos anos 1960, um conjunto de militantes do então extinto Partido Co-

do regime militar, instalaram-se na região do Bico do Papagaio, as margens do Rio Araguaia (fronteira entre os estados do Pará e do atual estado do Tocantins, então Goiás), com objetivo de fundar uma guerrilha rural de guerrilheiros encontravam-se na região . De acordo com informações sistematizadas pela Comissão Especial e reconhecidas pela Corte Interamericana no bojo do caso Gomes Lund,

empreendeu repetidas campanhas de informação e repressão contra os membros da Guerrilha do Araguaia”8. Tal esforço repressivo, mantido em segredo dentro da estrutura da repressão e posteriormente negado pelos envolvidos, constitui naquele momento a maior campanha militar guerrilha, o aparelho repressivo atuou ao arrepio de qualquer normativa

uma “operação limpeza”9, com vistas a garantir a ocultação definitiva dos originais de repressão. 7. 8. 9.

Monteiro, Adalberto. Guerrilha do Araguaia – uma epopeia pela liberdade. São Paulo: Annita Garibaldi, 2005. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 89. Brasil. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: 2007, p. 199.

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Alguns dos militantes e campesinos locais foram executados a sangue frio, outros capturados e mantidos encarcerados sem autorização judicial, a prática de tortura foi disseminada e brutal e, derradeiramente, aqueles que sobreviveram a todo este processo foram executados extrajudicialmente e tiveram seus restos mortais ocultados. Refere-se inclusive que

PARTE

Marcelo Torelly

A ordem do regime militar de se guardar silêncio sobre as operações no Araguaia, negando-as formalmente se necessário, somada a censura à imprensa seria um primeiro grande obstáculo imposto pelo Estado à busca dos familiares por justiça e pelos restos mortais de seus entes queridos. Oficialmente, o Estado sequer reconhecia a existência da Guerrilha e da operação repressiva contra os militantes do PCdoB e a comunidade local, quanto menos a prática de torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres. Na tentativa de derrubar tal obstáculo, os familiares iniciaram, em 1982, uma Ação Ordinária para Prestação de Fato ante à Justiça Federal do Distrito Federal10, com fito de obrigar o Estado a abrir os arquivos sobre geraria um conjunto de decisões e respostas ao largo das quase três

Para além da negativa da verdade, um segundo grande obstáculo im-

interpretada pelo judiciário antes e depois da ditadura11, a Lei de Anistia impede o processamento criminal dos agentes públicos envolvidos na repressão à Guerrilha do Araguaia. Mesmo aqueles agentes públicos que de testemunhos e confissões, jamais foram investigados por seus atos, quanto menos processados e punidos. Procurados pelos familiares e considerando tais obstáculos como

na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Na denúncia, alegaram, centralmente, a detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado

10. 11.

528

Ação Ordinária nº 82.00.24682-5, Primeira Vara da Justiça Federal do Distrito Federal. Para aprofundar esse debate, veja-se: Torelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito. Belo Horizonte: Fórum, 2012. Meyer, Emílio Peluso Neder. Ditadura e Responsabilização. Belo Horizonte: Arraes, 2012. Silva Filho, José Carlos Moreira. “O julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a inacabada transição democrática brasileira”. In: Soares, Inês Virginia; Piovesan, Flávia (orgs.). Direito ao Desenvolvimento Belo Horizonte: Fórum, 2010, pp.515-545.

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dos recursos judiciais de natureza civil para garantir o acesso as informações sobre o caso, inclusive aquelas indispensáveis para a localização dos restos mortais dos desaparecidos.

o caso seria admitido pela Comissão Interamericana apenas em 06 de março de 200112

II. TRAMITAÇÃO DO CASO E MEDIDAS PRÉVIAS À CONDENAÇÃO cessaria em tramitação ordinário por sete anos, enviando-o à Corte em

no Sistema Interamericano.

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das violações existentes antes mesmo do Estado envolver-se em processos

12. 13. 14.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório de Admissibilidade n.º 33/01. Brasil. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: 2007. Brasil. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: 2007, pp. 195-270

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do Estado quando a essas violações. O trabalho da Comissão Especial Direito à Memória e à 14 Verdade e uma primeira reparação a um conjunto de familiares. Dos 64 casos relacionados à Guerrilha apreciados pelo Comissão Especial, que finalmente

Marcelo Torelly

prios familiares em sua busca por verdade e justiça ao longo dos anos . Ainda no âmbito da evolução geral da justiça de transição brasileira, seria criada em 2001 a Comissão de Anistia, por meio de Medida Provi-

2002, responsável por reparar um amplo conjunto de violações tidas entre 1946 e 198816. Embora a Comissão de Anistia não tenha entre suas atribuições a reparação e reconhecimento de mortes e desaparecimentos, os familiares dos desaparecidos pelas perseguições diretas e indiretas . Neste sentido, por exemplo, São Domingos do Araguaia18 e em Belém do Pará19, reconhecendo múltiplas violações de direitos humanos e dando publicidade aos fatos antes escondidos pelo regime militar. nária para Prestação de Fato iniciada em 1982 seguiu tramitando. Em março de 1989 a Ação seria denegada, sem avaliação de mérito, por im-

mas devido a uma série de recursos apresentados pela União, apenas em 1998 o processo voltaria a correr na primeira instância. Uma decisão final

15.

16.

17.

18. 19.

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Veja-se, por exemplo, o relatório por eles produzido antes do início dos trabalhos oficiais: Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil: 1964-1985. São Paulo: Imprensa Oficial, 1996. Para mais informação sobre a atuação da Comissão de Anistia: Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo. “O programa de reparações como eixo estruturante da Justiça de Transição no Brasil”. In: Reategui, Felix (org.). Justiça de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Justiça/ICTJ, 2011, pp.473-516. Para uma análise da atuação da Comissão de Anistia em referencia ao Araguaia, veja-se: Yokoya, Mariana. Justiça em Transição no Brasil: Anistia política e Reparação dos militantes da Guerrilha do Araguaia. Jundiaí, Paco Editorial, 2016. Folha de S. Paulo. Comissão anistia hoje perseguidos na Guerrilha do Araguaia. São Paulo, 18 de junho de 2009. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u582824.shtml Heinen, Maíra. Caravana da Anistia julga processos de vítimas do Araguaia. EBC Radioagência Nacional, 07 de dezembro de 2015. Disponível em: http://radioagencianacional.ebc.com.br/ direitos-humanos/audio/2015-12/caravana-da-anistia-julga-processos-de-vitimas-do-araguaia

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determinou a quebra do sigilo sobre todas as informações alusivas à Guerrilha e a apresentação, em prazo de 120 dias, do local de sepultamento dos 22 desaparecidos cujos familiares titulavam na ação. Como resposta, a União constituiu uma Comissão Interministerial encarregada de tomar as medidas adequadas ao atendimento da demanda judicial20. Tal Comissão seria a primeira de uma série a coordenar esforços administrativos e buscas na região da Guerrilha. Seria esta Comissão a informar para a Justiça que “todos os documentos atinentes à repressão feita pelo regime militar 21 . A Comissão Interministerial foi seguida do estabelecimento do chamado “Grupo de Trabalho Tocantins”22, em 2009. Todos esses esforços especialmente quanto ao protagonismo do Ministério da Defesa, e pela inefetividade quanto ao objeto final de obter informações e revelar o paradeiro dos desaparecidos. Essa inefetividade das medidas domésticas foi explicitamente citada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ainda em 2001, quando da admissão do caso Gomes Lund, na terceira frente de desenvolvimentos paralelos aqui apresentada. Durante o trâmite do caso na Comissão, o Estado brasileiro negou-se a construir uma solução amistosa, solicitando o arquivamento do caso e repetindo a estratégia utilizada nas respostas judiciais domésticas: uma combinação entre assumir parcial-

20. 21. 22. 23.

Brasil. Decreto 4.850, de 02 de outubro de 2003. Brasil. Relatório da Comissão Interministerial criada pelo Decreto n. 4.850/2003, de 08 de março de 2007, p. 04. Brasil. Ministério da Defesa. Portaria n.º 567, de 29 de abril de 2009, publicada no Diário Oficial da União em 30 de abril de 2009 Uma descrição detalhada do trâmite está registrada na peça de envio do caso pela Comissão à Corte Interamericana de Direitos Humanos: Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso 11.552, Brasil – Julia Gomes Lund et al (Guerrilha do Araguaia). 26 de março de 2009, especialmente parágrafos 15-38.

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cumprindo com as obrigações internacionais do Estado, e praticar táticas .

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A Comissão finalmente concluiu que “o Estado brasileiro deteve arbitrariamente, torturou e desapareceu os membros do PCdoB e [..] camponegoverno militar do Brasil, o Estado não levou a cabo nenhuma investigação penal para julgar e sancionar os responsáveis por estes desaparecimentos formação sobre os fatos não foram efetivos para garantir aos familiares dos medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram

e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos ”24. Ante essas conclusões, a Comissão fez sete recomendações ao Estado brasileiro : adotar medidas para que a lei de anistia não represente um obstáculo à persecução penal das graves violações contra os direitos humanos

ações necessárias para a sistematização e publicação dos documentos ree tipificar no ordenamento interno o crime de desaparecimento forçado. O Estado foi notificado das recomendações em 21 de novembro de 2008. Em 26 de janeiro, solicitou uma prorrogação de prazo para apresen-

parcial de cumprimento e solicitou nova dilação de prazo. A Comissão, finalmente, indeferiu o novo pedido de extensão de prazo e, considerando 26 encaminhou o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

24. 25. 26.

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Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso 11.552, Brasil – Julia Gomes Lund et al (Guerrilha do Araguaia). Relatório de Mérito n.º 91/08, 31 de outubro de 2008, Apêndice 1, § 215. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso 11.552, Brasil – Julia Gomes Lund et al (Guerrilha do Araguaia). Relatório de Mérito n.º 91/08, 31 de outubro de 2008, Apêndice 1, § 216. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso 11.552, Brasil – Julia Gomes Lund et al (Guerrilha do Araguaia). 26 de março de 2009, § 38.

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Nesta série de desenvolvimento paralelos, a chegada do caso à Corte

Direito à Memória e à Paulo Verdade da Comissão de Anistia. Essa cumulação de vetores constitui um momento pelo Ministério da Justiça, de uma audiência pública, em junho de 2008, sobre a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos que cometeram graves violações contra os direitos humanos durante a ditadura28 e pela proposição, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), solicitando a revisão da Lei de 29 . Tal Ação seria indeferida seis meses antes da divulgação da decisão final da Corte Interamericana. III. EXCEÇÕES PRELIMINARES E MÉRITO Corte Interamericana de Direitos Humanos recebeu a defesa do Estado, exceções preliminares e argumentos opondo a existência de responsabilidade internacional pela violação dos direitos ao reconhecimento da

Quanto as exceções preliminares, a Corte acolheu parcialmente a alegação do Estado que arguia sua incompetência para processar fatos

27.

28.

29.

Favero, Eugenia Augusta Gonzaga. “Crimes da ditadura: iniciativas do Ministério Público Federal em São Paulo”. In: Soares, Ines Virginia Prado; Kishi, Sandra Akemi Shimada (orgs.). Memória e Verdade – a justiça de transição no estado democrático de direito brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp.213-232. Cf.: Abrão, Paulo. “Para romper com o medo: por que questionar a Lei de Anistia?”. In: Abrão, Paulo; Genro, Tarso. Os direitos da transição e a democracia no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp.169-172. Meyer, Emílio Peluso Neder. Ditadura e Responsabilização. Belo Horizonte: Arraes, 2012. Torelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

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garantias judiciais, à proteção judicial, e à liberdade de pensando e de expressão, protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos.

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ocorridos anteriormente a 10 de dezembro de 1998, quando o Brasil reconheceu sua competência contenciosa. A Corte destacou que daria seguimento ao caso apreciando apenas e tão somente aquelas denuncias relacionadas a atos de caráter continuo ou permanente que começaram a ocorrem antes do reconhecimento mas que, por sua natureza, seguem ocorrendo e gerando efeitos no presente . Como se verá na seção final dade. A Corte igualmente desestimou o argumento apresentado pelo Estado quanto a ausência de esgotamento dos recursos internos, baseado na existência de causa pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal quando da apresentação da defesa. Independente do posterior julgamento a disponibilidade de tal recurso deveria ter sido apresentado na fase de

Humanos, tido em 2001 . Ainda, mesmo que se viesse a considerar a possibilidade de aceitação de tal argumento em fase processual posterior, o mesmo seguiria sendo

n.º 9.882, de 1999, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental é de iniciativa restrita a um conjunto de altas autoridades governamenao Conselho Federal da OAB. A Corte Interamericana, por fim, enceraria a análise das exceções quarta instância impediria a Corte Interamericana de promover reexame 30. 31.

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Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, parágrafos 16-18. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório de Admissibilidade n.º 33/01.

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de matéria decidida pelo tribunal máximo doméstico. Contrariamente a esse entendimento, a Corte Interamericana afirmou que “a demanda apresentada pela Comissão Interamericana não pretende revisar a sentença do Supremo Tribunal Federal, decisão que nem sequer havia sido emitida ricana, mas que se estabeleça se o Estado violou determinadas obrigações internacionais dispostas em diversos preceitos da Convenção Americana” . Ao fazê-lo, a Corte introduz seu argumento-chave de diferenciação entre “controle de constitucionalidade” e “controle de convencionalidade” As alegações apresentadas pela Comissão Interamericana e pelos de direitos subjetivos positivados na Convenção Americana em relação à obrigação de respeitar os direitos (artigo 1º), ao dever de adotar disposições de direito interno para garantir os direitos expressos na Convenção milares e se complementaram reciprocamente. Já o Estado reconheceu os fatos de forma genérica ou por omissão, apresentando o conjunto de mepara questionar a existência de eventual responsabilidade internacional. O primeiro conjunto de direitos questionados diz respeito ao reconhe-

PARTE

III e dos posteriores esforços empreendidos, os direitos dos desaparecidos e seus familiares não foram devidamente garantidos. A Corte Interamericana reconheceu a natureza “pluriofensiva” à Convenção Americana do delito de desaparecimento forçado, destacando sua natureza permanente até o esclarecimento do destino e a localização dos restos mortais do desaparecido: “no Direito Internacional, a jurisprudência deste Tribunal foi precursora da consolidação de uma perspectiva 32.

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 48.

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constitui um “crime contra a humanidade” e que, a despeito do reconhe-

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abrangente da gravidade e do caráter continuado ou permanente da figura do desaparecimento forçado de pessoas, na qual o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identidade.” A Corte ainda apontaria, em consonância, que a proibição de tal pratica delitiva “alcançou status de jus cogens” . Não obstante, a Corte se afastaria da pretensão de classificar tal conduta como uma prática “contra a humanidade”, definindo-a como uma “grave violação aos direitos humanos”. O segundo conjunto de direitos questionados diz respeito às garantias aqui, não existe questionamento quanto a responsabilidade pelos crimes de desaparecimento forçado, vez que o Estado já os assumiu em âmbito interno por meio da Lei n.º 9.140, do trabalho da Comissão Especial sobre Direito à Memória e à Verdade. Assim, a Corte entendeu como objeto de deliberação decidir “se . Sem qualquer dúvida este foi o mais tormentoso ponto deliberativo para a Corte Interamericana. Não somente pela gravidade da questão em apreço como, especialmente, pelas peculiaridades do caso brasileiro em relação a outros anteriormente decididos pelo tribunal. Em suas alegações, a Comissão Interamericana repisaria a tese de que o crime de desaparecimento forçado constitui delito contra a humanidade e, porInternacional dos Direitos Humanos, e que interpretação dada à Lei de Anistia impediu o esclarecimento das circunstâncias das mortes e desaparecimentos, criando uma situação de impunidade. 33. 34. 35.

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Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 103. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 105. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 126.

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quatro obstáculos impostos pelo Estado para a efetivação das garantias e de que os crimes dos agentes da repressão seriam “conexos” aos dos mi-

o avanço das investigações e da garantia dos direitos sem que também os demais fossem eliminados ou contornados, vez que todos possuem o condão de bloquear o avanço da justiça. O contra-argumento estatal teria por fundamento o artigo 9º da Condade da lei penal. De que o conceito de “crimes contra a humanidade” não poderia ser aplicado uma vez que sua positivação deu-se posteriormente aos fatos, por meio da aprovação do Estatuto de Roma, em 1998. E, finalmente, que o caso seria distinto daqueles outros analisados anteriormente uma auto-anistia como as tidas no Chile e no Peru.

e execução extrajudicial, a ocultação dos cadáveres não poderia ter sido anistiada pois sua prática ainda se faz presente. Quanto a suposta bilateralidade da Lei de Anistia, argumento sobre o qual igualmente havia se apoiado o Supremo Tribunal Federal brasileiro cia não diz respeito exclusivamente às auto-anistias, mas sim as anistias para graves violações contra os direitos humanos. Independente dos sujeitos da anistia, sejam membros do Estado ou militantes de oposição, a mesma não pode incidir nas graves violações contra tais direitos. 537

PARTE

III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos

Conforme já explicitado nas preliminares, a Corte estabeleceria o descabimento da afirmação de existência de retroatividade ao apontar a natureza permanente e continuada da prática de desaparecimento forçado, esquivando-se do debate sobre a imprescritibilidade dos delitos contra a humanidade. Neste sentido, como a localização dos restos mortais não ocorreu, o iter delitivo se manteve. Assim, mesmo que aceita para fins

Marcelo Torelly

Afastados tais argumentos, a Corte concluiria que “a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil […] afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial consagrado gação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção. Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a idenviolações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana.” Por limitações decorrentes da regra de competência temporal a Corte se absteve de declarar responsabilidade estatal nos casos dos 24 familiares que faleceram antes de 10 de dezembro de 1998, e apontou

O terceiro conjunto de direitos questionados diz respeito à liberdade

julgados anteriores, a combinação destas disposições com as obrigações de respeitar os direitos e de adotar disposições de direito interno faz emergir um “direito de acesso à informação”, restando obrigado o Estaadministrativos e judiciais eficientes para a localização e acesso de informações em sua posse. Em consonância com essa perspectiva, a Comissão alegou a inexistência de qualquer risco ou ameaça como justificativa para a não prestação de informações aos familiares dos mortos e desaparecidos durante a repressão à Guerrilha do Araguaia. Apontou ainda a ausência de recursos 36.

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Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 172.

Gomes Lund vs. Brasil Cinco anos Depois: Histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas

efetivos para o acesso, fato ilustrado pelas negativas de informação, pelas respostas administrativas inapropriadas e pela inefetividade da Ação Ordinária de Prestação de Fato, que ademais igualmente constitui um caso de demora injustificada, vez que a sentença do caso iniciado em 1982 seria que poderiam ser excepcionais em seu contexto, apontou a inadequação aos padrões interamericanos. Como se verá mais adiante, esses apontamentos influenciariam o debate e a formulação da nova Lei de Acesso à Informação (seção V). Para além dos obstáculos injustificados ao acesso, os representantes ao longo dos anos. Especialmente aquela de que toda a documentação informação, diversos documentos que deveriam ser de posse do Estado foram relevados por ex-agentes da repressão que os detinham em guarda mações adicionais na medida em que foi demandado em novas instâncias. O Estado contra argumentou apresentando os esforços empreendidos para obtenção das informações e destacando procedimentos em curso para a modernização do marco normativo de acesso à informação. A Corte confirmou seu entendimento jurisprudencial prévio, indicando o descumprimento da Convenção Americana, vez que o direito à liberdade de pensamento e expressão inclui o direito de acesso à informação.

familiares. A Comissão e os representantes argumentaram no sentido de que a impossibilidade de saber o paradeiro efetivo e sepultar os corpos moral. Novamente excluindo os casos de familiares cujo falecimento ocorreu classificados em duas categorias. Primeiro, os familiares direitos, quais sejam os pais e mães, filhos e filhas, esposas e esposas, companheiros e companheiras, para os quais a presunção é automática, cabendo prova em 539

III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos

Finalmente, um quarto conjunto de direitos questionados diz respeito

PARTE

Marcelo Torelly

contrários. Depois, os familiares não-diretos, entendo-os como sujeitos a pelo menos uma das seguintes circunstancias ensejadoras de abalo moral luto pela incerteza quanto ao paradeiro do ente querido . Assim, avaliando as preliminares e os quatro conjuntos de direitos alegadamente violados, a Corte decidiria por acatar parcialmente a exceção arguida pelo Estado quanto a sua competência temporal, restringindo-a

em descumprimento pelo Estado das obrigações expressas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos. De maneira enfática, a Corte indicaria que: “As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.” Dispondo sobre o modo de reparar tais violações, a Corte negaria o

uma Comissão da Verdade, sem determinar ao Estado que procedesse

estabelecimento de tal colegiado. Ainda sobre a eventual criação de uma Comissão da Verdade, a Corte estabeleceria clara ressalva de que “as atividades e informações que [...] recolha a Comissão não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação 37.

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Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 238.

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judicial de responsabilidades individuais, através de processo judiciais penais” . As onze determinações emitidas contra o Estado brasileiro e seu processo de implementação serão a seguir analisadas. IV. DETERMINAÇÕES E IMPLEMENTAÇÃO DA DECISÃO PELO ESTADO BRASILEIRO39 Das quatorze disposições contidas nos pontos resolutivos da sentença do caso Gomes Lund, onze dirigem-se ao Estado brasileiro e serão aqui per se da decisão, a procedimentos para prestação de informações complementares por demonstra uma baixa implementação da decisão pelo Estado brasileiro. a) Conduzir eficazmente perante jurisdição ordinária a investigação penal dos fatos Passados mais de cinco anos da deliberação do caso Gomes Lund, o Estado brasileiro falhou completamente na tarefa de dar cumprimento ao dispositivo que determinada a investigação e processamento penal dos responsáveis, a despeito de louváveis iniciativas para reverter o cenário

2010, quanto ao qual pende recurso interposto pela Ordem dos Advogados Partido do Socialismo e da Liberdade (PSoL), demandando o cumprimento 38. 39.

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 297. Uma mais extensa e detalhada sistematização dos cinco primeiros relatórios de cumprimento da sentença consultar: Comassetto, Lucas Vicente. Cumprimento por parte do Estado brasileiro da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros. Trabalho de conclusão de curso de graduação em Relações Internacionais. Tubarão: Universidade do Sul de Santa Catarina, 2015, pp.52-81.

541

III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos

O Supremo Tribunal Federal não voltou a se manifestar sobre a Lei de

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Marcelo Torelly

das disposições internacionais contrárias à anistia para graves violações contra os direitos humanos. Não há previsão de julgamento de tal pedido pelo STF, predominando entre os operadores do judiciário a interpretação delitos cometidos por agentes da repressão durante a ditadura militar. nistério Público Federal quanto à matéria. Primeiramente, no ano de 2011, a Câmara de Coordenação e Revisão Criminal da Instituição estabeleceu um Grupo de Trabalho sobre justiça de transição com fins a dar cumprimento a sentença internacional40 e oficializou uma posição favorável à persecução penal das graves violações contra os direitos humanos cometidas pelo regime militar41. Essa posição institucional era diametralmente distinta teramericana em fevereiro de 2014 , esses desdobramentos permitiram 42

44 . Infelizmente, ambas não Moura prosperaram na justiça doméstica. Considerando esses desenvolvimentos, a resolução de 2014 da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o cumprimento desta disposição da sentença apontaria que “a medida de reparação relativa à obrigação de investigar os fatos do presente caso encontra-se pendente de cumprimento” . Não obstante a falta de êxito destas ações, uma série de outras iniciativas foi promovida pelo Ministé-

40. 41. 42. 43. 44. 45.

542

Ministério Público Federal. 2ª Câmara de Coordenação e Revisão Criminal. Documento n.º 01/2011. Ministério Público Federal. 2ª Câmara de Coordenação e Revisão Criminal. Documento n.º 02/2011. Brasil. Relatório sobre o cumprimento da Sentença – caso Julia Gomes Lund e outros. Brasília, 20 de fevereiro de 2014. Ação Penal n.º 1162.2012.4.01.3901, 2ª Vera da Subseção Judiciária de Marabá, Justiça Federal do Pará. Ação Penal n.º 4334-29.2012.4.01.3901, 2ª Vera da Subseção Judiciária de Marabá, Justiça Federal do Pará. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Resolução de 2014. § 23.

Gomes Lund vs. Brasil Cinco anos Depois: Histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas

b) Realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas caso Gomes Lund, já encontrava-se em operação o Grupo de Trabalho Tocantins, em resposta à condenação da União na Ação Ordinária proposta em 1982. O grupo atuou entre os anos de 2009 e 2010, sem produzir leceu novo GT no ano de 2011, batizado de Grupo de Trabalho Araguaia Corte Interamericana, a partir de 08 de setembro de 2014 os trabalhos, que antes eram coordenados de maneira tripartite pelos Ministério da Defesa, da Justiça e pela Secretaria de Direitos Humanos, passaram a ser coordenados diretamente pela Secretaria de Direitos Humanos46. Ao todo, foram realizadas 11 expedições antes da decisão da Corte a reformulação do GTA, em 2014). O Ministério da Defesa estima ter tas missões , excluindo-se de tais cálculos o emprego de instalações e

trabalhos periciais ficaram à cargo do Ministério da Justiça e focaram-se 48 . Foi estabelecido um perfil genético dos familiares para fins de comparação com as ossadas.

46. 47. 48. 49.

Brasil. Portaria Interministerial 1.540, de 08 de setembro de 2014. Brasil. Relatório sobre o cumprimento da Sentença – caso Julia Gomes Lund e outros. Brasília, 30 de março de 2015, § 110. Brasil. Relatório sobre o cumprimento da Sentença – caso Julia Gomes Lund e outros. Brasília, 30 de março de 2015, § 144. Brasil. Relatório sobre o cumprimento da Sentença – caso Julia Gomes Lund e outros. Brasília, 30 de março de 2015, § 148.

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III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos

banco genético dos familiares, outros 16 casos encontram-se pendentes de conclusão, e um último não teve o processo de extração de DNA iniciado.49 O Estado informou à Corte Interamericana que “tratando-se de ossadas/

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Marcelo Torelly

ácido e tendo sido enterrados há mais de 40 anos, a probabilidade de se encontrar DNA intacto é extremamente pequena” . c) Oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram Em resposta a esta disposição, o Estado brasileiro informou priorizar complementando a atenção em saúde mental com medidas adicionais a serem implementadas pelo Ministério da Saúde. Uma divergência permetodologias de acesso e implementação dos serviços de atenção tem como se verá na Seção V, a medida da Corte fortaleceu e legitimou outras

d) Publicação da sentença em veículos de mídia escrita e eletrônica uma medida de reparação, a Corte ainda terminou ao Estado brasileiro a

a sentença foi publicada no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, e no Diário em diversos portais do Governo Federal. Não obstante a publicidade dada, informações adicionais sobre a implementação da decisão são escassas, sições baseadas na Lei de Acesso à Informação. e) Ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional Esta disposição permanece pendente de implementação em razão de

50.

544

Brasil. Relatório sobre o cumprimento da Sentença – caso Julia Gomes Lund e outros. Brasília, 30 de março de 2015, § 150.

Gomes Lund vs. Brasil Cinco anos Depois: Histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas

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dos fatos poderia esvaziar, prática e simbolicamente, os trabalhos em curso, negam-se a chancelar o acordo. Assim, o Estado permanece inerte quanto a obrigação. f) Estabelecimento de curso permanente e obrigatório sobre Diretos Humanos para as Forças Armadas Apesar da argumentação apresentada pelo Estado de que conteúdos litar, tal determinação resta, em termos práticos, solenemente ignorada. Informações do Ministério da Defesa dão conta de que nos anos de 2014

Uma vez que o objetivo da inclusão dos conteúdos não é simplesmente “dar conhecimento” de um determinado tema, mas sim integrar em um curso de ética e a louvação as graves violações contra os direitos dar efetividade material a este comando, a Comissão Nacional da Verdade veio a recomendar, posteriormente, a proibição das comemorações do Golpe de 1964 51. 52.

Por exemplo: Bächtold, Felipe. “Editora Biblioteca do Exército lança livros com críticas a visões de esquerda”. Folha de S. Paulo, 26 de dezembro de 2015. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Recomendação 04.

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III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos

obstante, a simples negativa das Forças Armadas em reconhecer publicamente as violações praticadas, somadas as constantes revelações pela imprensa da circulação oficial de publicações em defesa do Golpe Militar e das “estratégias” que o sustentaram ilustram que qualquer medida eventualmente adotada não atingiu aos fins almejados, dada a impossibilidade de ensinar sobre fatos e normativas internacionais que não são efetivamente reconhecidas e respeitadas.

Marcelo Torelly

e policiais além, obviamente, do reconhecimento das violações pelas Forças Armadas . g) Tipificar o delito de desaparecimento forçado Em que pese a tramitação de diversos projetos de lei neste sentido, até o presente momento o Estado brasileiro não tipificou o delito de desaparecimento forçado em seu direito interno, restando a disposição sem implementação. h) Continuar as iniciativas de busca, sistematização, publicação e acesso de toda a informação considerou esta recomendação parcialmente implementada, destacando importantes avanços tidos, como o estabelecimento da Comissão Nacio. A Corte ainda indicou que não seguirá com a supervisão da implementação dessa medida até sua exaustão, haja vista sua amplitude. O Estado brasileiro destacou, para além das ações da CNV, outras, do Arquivo Nacional, da Comissão Especial sobre

e o acesso à informação. i) Pagamento de indenizações Com exceções pontuais, produto de dificuldades burocráticas (espe-

53. 54. 55.

546

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Recomendação 07. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Recomendação 01. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Volume 01, Tomo 01, Brasília, 2014, pp.679725.

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j) Publicação de edital para identificação e habilitação de familiares de oito vítimas não-reconhecidas internamente pelo Estado brasileiro O edital foi publicado no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, em 24 de de alcance nacional, e no jornal O Liberal, de Belém do Pará, em 22 de

k) Reabertura de prazo de seis meses para solicitação de indenização a familiares reconhecidos pela Lei 9.140 que não pleitearam reparação econômica lecendo o prazo. A Corte Interamericana considerou tal ponto resolutivo integralmente satisfeito. V. IMPACTO DA DECISÃO PARA ALÉM DE SEU OBJETO ESPECÍFICO Se um primeiro olhar para o cumprimento da decisão da Corte Interamericana no caso Gomes Lund, procedido na seção anterior, aponta para um cenário essencialmente negativo com boa parte das determinações de maior impacto não implementadas, um segundo olhar, para o impacto Interamericano, mostra-se razoavelmente distinto. Se é bem verdade

56.

Santos, Cecília MacDowell. “Ativismo jurídico transnacional e o Estado: reflexões sobre os casos apresentados sobre o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.” Revista internacional de direitos humanos SUR, Ano 04, n.º 07, 2007, pp.26-57.

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produzir mudanças na realidade doméstica pode ser alcançado mesmo quando as medidas objetivamente determinadas pela Corte Interamericana fracassam total ou parcialmente. Ao menos seis exemplos de impacto podem ser apresentados para além do monitoramento estrito do cumprimento da decisão.

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Marcelo Torelly

a) Impacto na visibilidade da causa e na mobilização social

nunca conseguiu penetrar o mainstream das organizações de direitos , entre eles o menor número de

pela militância de direitos humanos e erros estratégicos na condução da tituiu importante passo no sentido de dar visibilidade e amplificar a luta dos movimentos sociais ligados à causa. Especialmente, as comissões cumpriram o papel de reconhecer e conferir oficialidade as muitas investigações empreendidas por grupos de familiares que confrontavam as “verdades” oficiais da ditadura militar . Não obstante, tais iniciativas não detinham a prerrogativa de gerar obrigações para o Estado alusivas a implementação de medidas de responsabilidade individual. A decisão da Corte Interamericana no caso Gomes Lund provocou ampla repercussão na sociedade brasileira, não apenas em setores mais amplos da sociedade, levando alguns autores a inclusive apontarem o surgimento de um “terceira fase da luta pela anistia”60.

57.

58. 59.

60.

548

Para uma excelente análise deste processo, veja-se: Bernadi, Bruno Boti. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a Justiça de Transição: impactos no Brasil, Colômbia, México e Peru. Tese de doutorado em Ciência Política apresentada à Faculdade de Letras, Filosofia e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo, 2015, pp.382-550. Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo. “Mutações no conceito de anistia na justiça de transição brasileira: a terceira fase da luta pela anistia”. Revista de Direito Brasileira, vol.03, n.º 02, 2012, pp.357-379 Para um comparativo entre o trabalho das comissões sobre mortos e desaparecidos, da anistia e da verdade, veja-se: Torelly, Marcelo. “Das Comissões de Reparação à Comissão da Verdade: contribuições da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e da Comissão de Anistia para a Comissão Nacional da Verdade”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, v. 9, 2013, pp.368-387. Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo. “Mutações no conceito de anistia na justiça de transição brasileira: a terceira fase da luta pela anistia”. Revista de Direito Brasileira, vol.03, n.º 02, 2012

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demanda radical por justiça apresentada não apenas pelos familiares da sociedade civil organizada e da institucionalidade, como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira e Imprensa, a União Nacional dos Estudantes e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. No militantes não possuem conexão direta com a resistência à ditadura, que passam a demandar o cumprimento da decisão internacional, entre eles Quem Torturou, para referir apenas alguns. A decisão internacional produziu um efeito de “alavancagem”, sendo apropriada por distintos grupos sociais para a luta por justiça e verdade61. b) Mudança de postura do Ministério Público Federal tadura, o Ministério Público Federal (MPF), detentor da prerrogativa para o processamento penal dos crimes praticados pela repressão, funcionou garantindo a manutenção da impunidade, por omissão, ao não iniciar investigações, e por ação, ao posicionar-se formalmente pela extensão da

61.

62.

Sobre essa dimensão do litígio internacional, veja-se: Cavallaro, James L.; Brewer, Stephanie Erin. “Reevaluating regional human rights litigation in the twenty-first century: The case of the Inter-American Court.” American Journal of International Law, vol. 102, 2008, pp. 768-827. Favero, Eugenia Augusta Gonzaga. “Crimes da ditadura: iniciativas do Ministério Público Federal em São Paulo”. In: Soares, Ines Virginia Prado; Kishi, Sandra Akemi Shimada (orgs.). Memória e Verdade – a justiça de transição no estado democrático de direito brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp.213-232.

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III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos

os direitos humanos. Poucas e louváveis exceções ocorreram por meio e iniciativas individuais de membros da procuradoria que valeram-se de suas prerrogativas para investigar as violações e buscar responsabilizar os perpetradores62

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Como aponta Bernardi, com base em uma série de entrevistas com membros do MPF conduzidas entre 2011 e 2014, “a sentença da Corte Interamericana foi um divisor de águas que alterou a correlação de forças do Ministério Público que já estava predisposta a avançar nessa questão, violações da ditadura como ainda enfrentava resistências internas para a realização desse trabalho” . Para além da iniciativa de investigar e, quando apropriado, processar criminalmente os responsáveis pelas violações reconhecidas pela Corte Interamericana, a decisão do caso Gomes Lund destravou uma pauta mais ções pela Procuradoria . Segundo informações recentes da coordenação do Grupo de Trabalho, para além das duas ações criminais indicadas nos 64

66 iniciadas , o MPF passou a fundamentar seus pedidos em três argumento : 1. A necessidade tos em questão “crimes contra a humanidade” adotando, portanto, uma

permanentes os delitos de sequestro e ocultação de cadáver (valendo-se de tais tipos penais dada a ausência da tipificação do crime de desaparecimento forçado no ordenamento doméstico). A última informação 63.

64. 65. 66.

67.

550

Bernadi, Bruno Boti. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a Justiça de Transição: impactos no Brasil, Colômbia, México e Peru. Tese de doutorado em Ciência Política apresentada à Faculdade de Letras, Filosofia e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo, 2015, p. 537. Ministério Público Federal. Grupo de Trabalho Justiça de Transição. Atividades de persecução penal desenvolvidas pelo Ministério Público Federal – 2011-2013. Brasília, 2014. Ministério Público Federal. Grupo de Trabalho Justiça de Transição. Ofício 1.238/2015 – Gab/ ICM/PRDF. Procurador Ivan Cláudio Marx. Brasília, 19 de fevereiro de 2015. Autores da ciência política definem esse processo de uso do litígio transnacional para desbloqueio de pautas nas instituições domésticas como uma “efeito boomerang” onde uma demanda doméstica é remetida ao plano internacional e, depois, retorna para o processamento doméstico com um novo status. Veja-se: Keck, Margaret; Sikkink, Kathryn. “Activist beyond borders”. In: Keck, Margaret; Sikkink, Kathryn (orgs.). Advocacy networks in international politics. Ithaca: Cornell University Press, 1998. Ministério Público Federal. Grupo de Trabalho Justiça de Transição. Ofício 1.238/2015 – Gab/ ICM/PRDF. Procurador Ivan Cláudio Marx. Brasília, 19 de fevereiro de 2015.

Gomes Lund vs. Brasil Cinco anos Depois: Histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas

.

68

Evidentemente, para que tais esforços se convertam em efetivas condenações, ensejando o cumprimento da decisão da Corte Interamericana, é necessária não apenas a comprovação factual dos crimes e a correta atribuição de responsabilidade como, mais ainda, a cooperação do judiciário, que segue sendo o principal foco de resistência na luta contra a impunidade69. Os obstáculos legais impostos pelo judiciário e apontados fazendo presentes, com a totalidade das ações propostas sendo indefe-

servindo de maneira muito mais ampla para a luta por justiça no Brasil, destravando a atuação institucional do MPF para um amplo conjunto de casos relacionados ao legado da ditadura. c) Alavancagem da política pública de reparação e saúde mental para vítimas da ditadura temática. Desde o ano de 2009 a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça trabalhava em parceria com organizações da sociedade civil no desenho de

brasileiro, quando da condenação pela Corte Interamericana, o programa 68. 69.

Ministério Público Federal. Grupo de Trabalho Justiça de Transição. Ofício 1.641/2015 – Gab/ ICM/PRDF. Procurador Ivan Cláudio Marx. Brasília, 05 de fevereiro de 2015. Nesse sentido, veja-se: Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo. “Resistance to change: Brazil’s persistent amnesty and its alternatives for truth and justice”. In: Lessa, Francesca; Payne, Leigh (orgs.). Amnesty in the Age of Human Rights Accountability. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012, pp.152-180.

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existente no plano federal . O programa era ainda experimental e desvinculado do caso Araguaia. Ao determinar ao Estado a atenção a demandas de natureza similar, a Corte Interamericana apontou o acerto daqueles agentes estatais e profissionais da área de saúde mental que procurareticencias gerais. d) Nova Lei de Acesso à Informação em linha com a Comissão Interamericana, apontou diversas deficiências no marco legal de acesso à informação pública no Brasil. Apesar de não ficas com a Convenção Americana em suas disposições a Corte destacou mentou pela inexistência de processos administrativos adequados para o acesso à informação pelo cidadão. A aceitação e julgamento do caso pela Corte ocorreu em paralelo com a discussão, no Governo Federal e, posteriormente, no Congresso Nacional, da necessidade de reforma de tal marco legal. A legislação criticada pela no Fernando Henrique Cardoso, permitia, por exemplo, que documentos públicos se mantivessem eternamente classificados como sigilosos e não estabelecia um rito administrativo para a requisição de informação pelos cidadãos. O projeto enviado pelo Governo Lula ao Congresso Nacional, PL no, que fora combatente no Araguaia. A influência do direito internacional

70.

71.

552

Informações sobre as Clínicas do Testemunho podem ser obtidas nas seguintes publicações: Sigmund Freud Associação Psicanalítica (org.). Clínicas do Testemunho: reparação psíquica e construção de memórias. Porto Alegre: Criação Humana, 2014. Brasil, Vera Vital (org.). Uma perspectiva clínico-política na reparação simbólica: Clínica do Testemunho do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Projetos Terapêuticos, 2015. Silva Junior, Moisés Rodrigues; Mercadante, Issa (orgs.). Travessias do silêncio – testemunho e reparação. São Paulo: Instituto Projetos Terapêuticos, 2015. Andrade, Claudia. “FHC diz que assinou sigilo eterno de documentos sem ler”. Portal Terra, 30 de junho de 2011. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/fhc-diz-que-assinou-sigilo-eterno-de-documentos-sem-ler,8d1acc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html

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do direitos humanos avalizou ainda a manutenção de cláusula garantidora de acesso a todo e qualquer documento relativo as graves violações contra os direitos humanos e o estabelecimento de processo simplificado de acesso à informação pelo cidadão. Apesar de originalmente sustentar uma posição favorável ao sigilo eterno, orientando ministros a trabalharem junto ao Senado Federal para alteração da emenda aprovada na Câmara dos Deputados , o governo sem alterações substanciais, em 18 de novembro de 2011. Uma das justificativas para a nova lei foi, justamente, a necessidade de ajustar o direito interno aos padrões acordados internacionalmente pelo Brasil. e) Comissão Nacional da Verdade Assim como no caso da Lei de Acesso à Informação, e ao contrário do reproduzido em algumas fontes da literatura especializada e não-especializada, a criação da Comissão Nacional da Verdade não foi uma determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Como visto na Seção III, de tal instituição, o Tribunal de San José estimou o eventual estabelecimento de uma Comissão da Verdade como positivo, mas não determinou sua criação, destacando ainda não ser ela, isoladamente, necessária ou suficiente para a reparação de qualquer das lesões verificadas.

favoráveis à medida (o projeto foi apresentado ao Congresso Nacional no último ano do governo Lula e aprovado no primeiro ano do governo os anos de 2012 e 2014. final da CNV. Na apresentação

72.

73.

-

“Dilma quer manter sigilo eterno para documentos oficiais”. Agência Estado, 13 de junho de 2011. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/dilma-quer-manter-sigilo-eterno-para-documentos-oficiais-4zyth9td8g4rl3d2ijmuwok0e Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Volume I, Tomo I, pp.29-30.

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A sentença da Corte foi divulgada durante os meses de debate do projeto de lei de estabelecimento da CNV, sendo incorporada no discur-

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ceitual as graves violações praticadas pela ditadura a prática de tortura , e ao tratar da atuação do Poder Judiciário durante a ditadura . A Comissão Nacional da Verdade foi mais ousada que a Corte Interamericana ao declarar uma série de crimes praticados pelo regime como “contra a humanidade”, uma classificação mais incisiva do que “graves violações contra os direitos humanos”. Para substanciar tal assertiva em diversos momentos recorre ao direito internacional, ao caso Gomes Lund e cional foi incorporada pela CNV em seu tratamento da pauta. A decisão seria ainda explicitamente referida na fundamentação da 19ª recomendação da CNV, que trata da necessidade de tipificação no direito interno brasileiro do crime de desaparecimento forçado e dos crimes contra a humanidade . f) Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 320 Finalmente, um último impacto não previsto da decisão da Corte Interamericana foi a propositura, pelo Partido do Socialismo e da Liberdade (PSoL), de uma nova Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental junto ao Supremo Tribunal Federal. Em meio ao debate sobre “como” dar cumprimento a sentença do caso Gomes Lund e ao fracasso dos primeiros esforços do Ministério Público Federal, em maio de 2014, passado três anos e meio da decisão da Corte Interamericana e quatro da decisão do STF

74. 75. 76. 77. 78.

554

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Volume I, Tomo I, pp.286; 293 Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Volume I, Tomo I, p. 328, nota 01. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Volume I, Tomo II, pp.951-953; 966. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Volume I, Tomo II, pp.714 e seguintes. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília, 2014, Volume I, Tomo II, p. 971.

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que é a condenação internacional. No bojo desta ação um novo desenvolvimento na posição institucional do MPF ocorreria. Como visto anteriormente, no item alusivo ao impacto da decisão no MPF, a 2º Câmara de Coordenação Criminal alterou sua perspectiva sobre o tema da anistia em 2011, mas a posição do Procura. assumiria a tese do “duplo controle” de legalidade, apontando que “não

Constituição da República e da integração à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: o controle de constitucionalidade nacional e o controle de convencionalidade internacional”80 . O debate sobre o controle de convencionalidade, que vinha crescendo tas e opositores da tese do duplo controle passaram a empreender rico das decisões internacionais por uma instituição pública com o porte e a relevância do Ministério Público Federal constituem fato a ser comemorado. Esse e outros desenvolvimentos jurisprudenciais serão discutidos

Para concluir a análise sobre o caso Gomes Lund, serão apresentadas duas alterações pontuais de postura da Corte Interamericana neste

79.

80.

Ministério Público Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 153. Manifestação do Procurador-Geral da República Roberto Monteiro Gurgel Santos (n.º 1218 – PGR – RG). Brasília, 29 de janeiro de 2010. Ministério Público Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 320. Manifestação do Procurador-Geral da República Rodrigo Janot Monteiro de Barros (n.º 4433/ AsJConst/SAJ/PGR), 28 de agosto de 2014, pp.30-31

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VI. EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL E CRÍTICAS À DECISÃO

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contextualizar a decisão deste caso no conjunto jurisprudencial da Corte. Primeiro, quanto a classificação dos delitos como “graves violações contra os direitos humanos”, e não “crimes contra a humanidade”. Depois, o nados ao “absolutismo” dos direitos humanos, não serão aqui explorados por extrapolarem o caso Gomes Lund dirigindo-se de forma mais global ao funcionamento dos sistemas regionais de direitos humanos81. a) “Graves violações” ou “crimes contra a humanidade”? Quando a Corte Interamericana julgou o caso Almonacid Arellano vs. Chile, em setembro de 2006, uma de suas mais importantes contribuições como um delito contra a humanidade. Naquela oportunidade, a Corte “reconheceu que os crimes contra a humanidade incluem a realização de atos desumanos, como o assassinato, cometidos em um contexto de ataque generalizado e sistemático contra uma população civil”82. Logo “a realização de crimes contra a humanidade [...] era violadora de uma norma imperativa do direito internacional” . elas a declaração da imprescritibilidade dos crimes em questão, uma vez que “a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade surge como uma categoria de norma de Direito Internacional Geral (ius cogens), que não nasce com a Convenção [sobre imprescritibilidade dos crimes

81.

82. 83.

556

Para uma crítica neste sentido, veja-se: Veçoso, Fabia Fernandes Carvalho. Entre absolutismo dos direitos humanos e história contextual: aspectos da experiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2012. Em sentido oposto, veja-se: Saldanha, Jânia Maria Lopes; Brum, Márcio Morais. “A margem nacional de apreciação e sua (in)aplicação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de anistia: uma figura hermenêutica a serviço do pluralismo ordenado?”. Anuário Mexicano de Derecho Internacional, vol. XV, 2015, pp.195-238. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Almonacid Arellano vs. Chile. Sentença de 26 de setembro de 2006, § 96 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Almonacid Arellano vs. Chile. Sentença de 26 de setembro de 2006, § 99

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de guerra e dos crimes de lesa humanidade] mas é reconhecida por ela. Consequentemente, o Chile não pode deixar de cumprir essa norma imperativa”84. O processo de implementação da decisão da Corte no caso Almonacid, assim como no de Gomes Lund, apresenta uma baixa efetividade das medidas apontadas pela Corte, mas um alto grau de influência no direito doméstico. Em que pese o Chile jamais ter revogado ou alterado sua Lei de Anistia, saneando a incompatibilidade apontada pela Corte, o conceito de crimes contra a humanidade foi incorporado no direito doméstico e de impunidade impostas pela ditadura militar . Já no caso Gomes Lund, como visto na Seção III, a argumentação da Corte foi outra. Ao invés de buscar construir a ideia de imprescritibilidade fundada no conceito de crimes contra a humanidade, a Corte optou por afastar a prescrição classificando o delito de desaparecimento forçado como “permanente e continuado”. Tais abordagens poderiam ser compleius cogens para a prática do crime de desaparição forçada86, mas a Corte deliberadamente optou em classificar os delitos como “graves violações contra os direitos humanos”. Não há na sentença Gomes Lund uma fundamentação que explicite a razão dessa opção. Como descrito na Seção III, a Comissão Interamericana

84. 85.

86.

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Almonacid Arellano vs. Chile. Sentença de 26 de setembro de 2006, § 153 Para um maior desenvolvimento, veja-se: Torelly, Marcelo. “O direito e os legados do autoritarismo no Cone Sul: respostas nacionais à Norma Global de Responsabilidade Individual”. Revista Fórum de Ciências Criminais, ano 02, n.º 03, jan./jun. 2015, pp.143-159. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 105.

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dos “crimes contra a humanidade”, e a Corte respondeu na das “graves violações contra os direitos humanos”. Essa postura foi criticada pelos méstico. Em entrevista à Bernardi, o Procurador da República no Rio de Janeiro, Sérgio Suiama, aponta que “é esse o problema do Direito Internacional [...] eles mandam você investigar e punir, mas eles não dão [...]

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fácil que eles falassem, ‘olha, esses crimes da ditadura são crimes contra a humanidade, vocês tem que investigar crimes contra a humanidade’. Mas eles não falam isso” . No mesmo sentido, o coordenador do Grupo de Trabalho Justiça de Transição do Ministério Pública Federal, Ivan Cláudio Marx, questiona: “O que são graves violações aos direitos humanos? Isso não tem uma densidade normativa. Não se sabe o que é. Mas a Corte Interamericana ela diz que você deve processar as graves violações aos direitos humanos, por conta da obrigação de garantia existente na convenção americana”88. No sentido de diminuir a imprecisão conceitual, o Procurador-Geral da os termos “graves violações contra os direitos humanos” e “crimes contra a humanidade”89. Tal equivalência não explica o porque da Corte Interamericana não valer-se da expressão, mesmo quando a cita ao resumir as mas pode facilitar a absorção do conceito pelos tribunais domésticos. b) Revisão legal baseada na Convenção Americana? contidos na sentença Gomes Lund diz respeito ao “controle de convencionalidade”90. A doutrina do controle de convencionalidade vem se desenvolvendo

87.

88.

89.

90.

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Bernadi, Bruno Boti. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a Justiça de Transição: impactos no Brasil, Colômbia, México e Peru. Tese de doutorado em Ciência Política apresentada à Faculdade de Letras, Filosofia e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo, 2015, 548. Bernadi, Bruno Boti. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a Justiça de Transição: impactos no Brasil, Colômbia, México e Peru. Tese de doutorado em Ciência Política apresentada à Faculdade de Letras, Filosofia e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo, 2015, p. 548. “A referência à responsabilização criminal individual do agressor, pelo Direito Internacional, costumeiro ou convencional, aponta para a sinonímia entre os conceitos de ‘graves violações de direitos humanos’ e crimes de lesa-humanidade para fins de definição do objeto da persecução penal estabelecida na sentença do caso Gomes Lund”. Ministério Público Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 320. Manifestação do Procurador-Geral da República Rodrigo Janot Monteiro de Barros (n.º 4433/AsJConst/SAJ/PGR), 28 de agosto de 2014, p. 63. Entre os primeiros estudos deste tema no Brasil, destacam-se: Mazzuoli, Valério de Oliveira. “Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro”. Revista de Informação Legislativa, a.46, n.181, jan./mar. 2009, pp.113-139. Ramos, André de Carvalho. “O Supremo Tribunal Federal Brasileiro e o Controle de Convencionalidade: levando a sério os tratados de Direitos Humanos”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 104, jan./dez. 2009, pp.241-286.

Gomes Lund vs. Brasil Cinco anos Depois: Histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas

na Corte a mais de uma década91, transformando-se com o passar do tempo. Originalmente, está fundada na determinação normativa contida no dever de adotar disposições de direito interno (artigo 2º) somado com a interpretação de que a Corte é a detentora da máxima legitimidade para interpretar a Convenção, o que permite a ela indicar a incompatibilidade de leis e atos domésticos com o direito internacional. A objeção central a esta doutrina é a a prática de um controle de legalidade, em contraste com as claras previsões para a indicação de medidas de reparação e que assegurem à efetivação dos Em Gomes Lund, a Corte Interamericana reforça sua jurisprudência no sentido de que todas as autoridades públicas domésticas devem considerar em suas decisões tanto a Convenção Americana quanto a interpretação a ela dada pela Corte Interamericana92. Mas para além de apontar a incompatibilidade da Lei de Anistia com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, deixando para as autoridades locais a implementação das me. Esse é um desenvolvimento relevante, que se repete em outros casos, como Gelman vs. Uruguai, que sinaliza uma pretensão da Corte de San José de revisar diretamente legislação interna. Tal postura vem sendo duramente criticada como pouco . democrática94

91.

92. 93. 94.

95.

Ramirez, Sérgio Garcia. “El Control Judicial Interno de Convencionalidad”. In: MACGREGOR, Eduardo Ferrer; GARCIA, Alfonso Herrera (orgs.). Diálogo Jurisprudencial en Derechos Humanos. Cidade do México: Tirant lo Blancj, 2013. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, parágrafos 176-177. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, § 180. Gargarella, Roberto. “Sin lugar para la soberanía popular. Democracia, derechos y castigo en el caso Gelman.” 2012. Disponível em: http://www.law.yale.edu/documents/pdf/sela/SELA13_Gargarella_CV_Sp_20120924.pdf Malarino, Ezequiel. “Activismo judicial, punitivización y nacionalización. Tendencias antidemocráticas y antileberales de la Corte Interamericana de Derechos Humanos.” In Sistema interamericano de protección de los derechos humanos y derecho penal internacional. Montevideu: Fundación Konrad-Adenauer, 2010.

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III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos

Enquanto as doutrinas do “duplo controle”, como aquela esposada pelo Procurador-Geral da República, apontam para uma complementaridade entre o controle direito exercido pelo judiciário doméstico e

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o controle indireto exercido pela Corte Interamericana, versões mais “fortes” da doutrina do controle de convencionalidade podem indicar, em sentido oposto, a construção de uma relação hierárquica de subordinação entre direito internacional e direito doméstico. Tal perspectiva promove a soma da muito difundida doutrina da prevalência das normas de direito internacional dos direitos humanos sobre normas constitucionais domésticas menos favoráveis com a ideia de que cortes internacionais possuem poder de revisão judicial. Nesse sentido, a conclusão expressa pelo atual Presidente da Corte Interamericana é a de que “a última palavra sobre a proteção dos direitos humanos, especialmente os previstos na Convenção Americana e demais tratados regionais de Direitos Humanos, é da Corte Interamericana”96. Cinco anos depois da decisão do caso Gomes Lund, restam dúvidas quanto à disposição das instituições domésticas brasileiras em aceitar esta afirmação. Mais especialmente, restam dúvidas sobre a aceitação da premissa de que a Corte Interamericana possa declarar a nulidade de disposições de leis domésticas (para além de indicar o descumprimento da obrigação internacional de adepromovidos pela doutrina e pelo Ministério Público Federal serão efetivos. a complexidade do processo de implementação da parte dispositiva da sentença, e a resistência de determinados atores domésticos em cumprir com as obrigações internacionais do Estado, não restam dúvidas quanto a importância global do caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil para a deva ser feita, permanece sendo relevante e atual a assertiva feita por duas marco emblemático por ser o único caso do Brasil relacionado às graves violações da ditadura militar que até o presente momento foi processado cional” . Em um contexto doméstico onde graça a impunidade, a sentença da Corte Interamericana constitui um baluarte na luta por justiça.

96. 97.

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Caldas, Roberto. “”. In: O Direito Achado na Rua Vol.07 – Introdução crítica à justiça de transição na América Latina. Brasília: UnB, 2015, p. 457 Krsticevic, Viviane; Affonso, Beatriz. “A dívida histórica e o caso Guerrilha do Araguaia na Corte Interamericana de Direitos Humanos impulsionando o direito à verdade e à justiça no Brasil”.

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