Gonçalo M. Tavares: um caso tardo-modernista

May 28, 2017 | Autor: Pedro Meneses | Categoria: Gonçalo M. Tavares
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Gonçalo M. Tavares: um caso tardo-modernista?

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PEDRO MENESES [email protected]

A obra de Gonçalo M. Tavares recebeu inúmeros prémios, tem sido estudada profusamente nas academias, está traduzida em várias línguas e vem sendo publicada em várias editoras. Importa interrogar esta dispersão editorial. Estamos diante de um autor muito produtivo e consciente do seu território textual ao ponto de definir séries em função do género literário, do tema ou da linguagem. Processos que visam criar uma obra original, correspondendo a um dos postulados da modernidade literária. Além disso, Gonçalo M. Tavares resiste às interpelações da modernidade sociológica, sem que por isso a sua obra se enclausure num absoluto literário. Palavras-chave: mercado editorial; modernidade; produtividade; géneros literários The work of Gonçalo M. Tavares has received numerous awards, has been widely studied in the academies, it has been translated into several languages and has been published in various publishing houses. It is important to question such editorial dispersion. We are facing a very productive author whose great consciousness about his textual territory leads him to create series based on the literary genre, theme or style. Such processes aim to create an original work, in this way corresponding to one of the goals of literary modernity. Gonçalo M. Tavares also resists to the requests of sociological modernity, even though his work is not closed in a literary absolute. Keywords: publishing; modernity; productivity; literary genres

Un jour l’homme était virulent Antonin Artaud

1. Território textual – uma viagem errática Gonçalo M. Tavares recebeu vários prémios, entre os quais o Prémio para Melhor Livro Estrangeiro publicado em França, o Prémio APE, ambos em 2010, o Portugal Telecom, em                                                         

1 Universidade do Minho, CEHUM, Braga, Portugal e Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Portugal. Bolseiro de doutoramento no CEHUM com financiamento FCT apoiado pelo POPH/FSE.

 

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2007, o José Saramago, em 2005, e o Ler/Millenium BCP, em 2004. A sua obra tem sido estudada em muitas academias (sobretudo nas brasileiras). Publicou em editoras de projetos díspares como a Porto Editora e a Campo das Letras, ou a Relógio d’Água e a Caminho. Do exposto, podemos inferir o seguinte: 1. há um processo de canonização do autor em curso; 2. a edição é pautada por uma certa errância, fenómeno passível de interpretação. É sobretudo a partir do que significa esta errância que se coloca a hipótese de Gonçalo M. Tavares como escritor tardo-modernista. De cada vez que publicou, sobretudo no início, Gonçalo M. Tavares procurou uma convergência entre a natureza da obra e os objetivos da editora que a acolhia. O ponto de partida desta hipótese encontra-se numa entrevista concedida pelo autor a Gonçalo Mira em 2008. Quando o entrevistador lhe pergunta se o facto (raro) de a sua obra estar repartida por várias editoras está relacionado com a publicação de vários livros em pouco tempo (por exemplo, só em 2004, editou seis livros), Gonçalo M. Tavares responde: Sim, um pouco. E também dirigia livros com um certo tom para editoras que tinham a ver com esse tom. Por exemplo, a série Enciclopédia, que está a sair na Relógio d’Água, sai lá porque faz sentido. A editora tem a ver com aqueles livros. Tal como os livros que estão a sair na Caminho, acho que têm a ver com aquela editora. Acho que foi um pouco isso, dirigir os diferentes tons para diferentes editoras (Mira & Tavares, 2008).

Seguiremos esta pista até onde for possível – mas o que mais importa é interpretar esta errância. O autor estreia-se em 2001 com O livro da dança, na Assírio & Alvim, editora que durante muitos anos deu a conhecer poesia portuguesa inédita. É um livro de poesia – mais poético do que ensaístico, talvez esta seja a fórmula mais precisa, que reflete sobre a necessidade da dança num mundo a cada dia mais eficiente. Prosseguindo a viagem pelo seu território textual, registe-se, nos anos seguintes, o aumento do número de senhores de O Bairro, série editada pela Caminho – uma editora de alguma maneira especializada no género narrativo. O Bairro é, segundo Luís Mourão (2009: 4), “um dispositivo serial e maquínico, por assim dizer, capaz de funcionar ilimitadamente sobre um não menos ‘ilimitado’ campo de incidência, o dos nomes de autor”. Entre 2003 e 2007, inicia-se e conclui-se na mesma editora uma série de natureza diferente, O Reino, uma tetralogia. Nos romances que a compõem, a ênfase não é colocada tanto no ponto de partida, em exercícios de apropriação mais ou menos explícita da tradição (de resto, todos os textos literários partem em grau variável do que já se escreveu), mas no iluminar do escuro deste nosso tempo, para tanto debruçando-se, em registo ensaístico, sobre alguns temas: a doença, a guerra, a morte, a técnica, a loucura, a racionalidade, a história, a memória. Na Campo das Letras, edita A colher de Samuel Beckett (2003), Biblioteca (2004) e Histórias falsas (2006). O primeiro é um texto dramatúrgico; o segundo é um conjunto de fragmentadas reflexões literárias motivado por “uma ideia ou apenas uma palavra mais usada” (Tavares, 2006: 9) por cada um dos escritores que constituem tal ‘biblioteca imaginária’ (expressão adaptada de André Malraux); o terceiro reúne contos cujo ponto de partida tanto pode ser um conceito pré-socrático, como algum episódio histórico da Grécia Antiga, promovendo uma aproximação ao código moral clássico  

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(do qual são raros os vestígios numa era como esta, que privilegia a competência técnica). Sublinhe-se que o catálogo da Campo das Letras possui muitos volumes de teatro, ensaio e narrativa. Na extinta Difel, edita Investigações. Novalis, em 2002, livro de reflexão em verso gravitando em torno da obra de Novalis. A estreia na Relógio d’Água acontece em 2004 com a publicação de 1, livro de poesia cujos versos se aproximam por vezes da lógica, evocando Roberto Juarroz. No mesmo ano, edita A perna esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil. As personagens da primeira destas obras são Bloom, Maria Bloom, Georg e Gregor. Bloom configura-se logo aqui como nome representativo do mais prosaico na vida humana, é um símbolo da mesquinhez, numa obra de pendor ensaístico (evocando os romances de O Reino) e com citações de Bertolt Brecht e Gaston Bachelard. O texto da segunda obra tem como particularidade o estar enquadrado em tabelas, processo que questiona os nossos modos de leitura, os hábitos teóricos que limitam a potência da literatura, e o encontrar-se enxameado de citações de Roland Barthes e Robert Musil, sobretudo (mas também Artaud, Ashbery, Charles Olson, Carl Sandburg, Valéry, Ferlinghetti, James Joyce, entre outros). Não esqueçamos ainda que a Relógio d’Água é reconhecida sobretudo pela edição de ficção, textos filosóficos e poesia. Para além desta obra, inserida numa série intitulada Bloom Books, Gonçalo M. Tavares publicou, em 2006, Breves notas sobre a ciência (2006), a que se juntaram, em 2007, Breves notas sobre o medo e, em 2009, Breves notas sobre as ligações, tríptico que (por ora) constitui a série Enciclopédia. Estas obras são constituídas por pequenas reflexões ou ficções em torno dos temas declarados no título respetivo. Este é o ponto em que se deve interromper esta sucinta panorâmica para avisar que perde força doravante a hipótese segundo a qual o autor procurou uma convergência entre a natureza da editora e o tom da obra. Em poucos anos, Gonçalo M. Tavares editou obras que haviam sido escritas na década anterior. Este ritmo de edição abranda; sensivelmente a partir de 2009, pode dizer-se que se inicia outra fase na construção do seu território textual, que prolifera em novas séries. Mais nenhum volume integrará O Reino, uma série fechada (como já mencionado). O Bairro, que havia recebido oito inquilinos entre 2002 e 2008, só conhece, entre 2009 e 2015, dois novos senhores. Cessa a alternância de escrita entre o mundo de O Reino e o paradoxo do Bairro, envereda o autor na criação de obras de natureza distinta. Em consequência, as diferenças aumentam no seu território textual, a cartografia do humano expande-se (operação que respeita ao tempo: qual é a latitude e a longitude dos nossos comportamentos, dos nossos valores?), e esta viagem torna-se mais errática. Nesse sentido, deve ser abandonada aquela pista, redefinindo a tese: a errância editorial deve-se, por um lado, à produtividade do autor, dificilmente acompanhada apenas por uma editora, e, por outro, a um desejo de emancipação – explique-se: Gonçalo M. Tavares não deseja estar contratualmente obrigado a publicar, não cedendo o controlo do momento em que os seus livros são editados. É momento, pois, de retomar a cronologia que interrompemos, desta feita tendo como única finalidade interpretar esta errância. Em 2011, Gonçalo M. Tavares edita na Relógio d’Água Canções mexicanas e, em 2013, animalescos, ficções que integram a série Canções. Acrescente-se que Água, cão, cavalo, cabeça, o primeiro volume da série, havia sido editado em 2006 na Caminho. Esta série é a  

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que mais questiona os limites da sintaxe da língua, a mais balbuciante, uma espécie de máquina ostinata, linha de fuga que trucida ego, instância narrativa, máquinas binárias, ordem gramatical. A mais visceral, a mais primitivista das séries do território textual de Gonçalo M. Tavares, resposta ao desencantamento moderno através de uma pulsão regressiva, de um descontrolo vigiado da linguagem, série na qual o autor gagueja na sua própria língua. Importa chamar particular atenção para o caso de Uma viagem à Índia, editada em 2010 pela Caminho, obra que se apropria2 de Os Lusíadas – repetindo a sua estrutura, relendo alguns dos seus episódios e desenvolvendo alguns dos seus temas sem refletir sobre a identidade portuguesa (se é isso existe). Esta epopeia contemporânea é de natureza conceptual de dupla forma: não só na paródia fria e irónica deste género (tomando Bloom de empréstimo a Ulysses), como na inquirição reflexiva sobre o tempo e o ser humano que desenvolve. Em 2011, também na Caminho, Gonçalo M. Tavares publica Short movies, que integra uma série homónima. Nesta obra, o autor escolhe outra direção: promove uma aproximação sui generis ao imaginário cinematográfico, ao decidir escrever recorrendo o menos possível às classes gramaticais mais acessórias (os adjetivos e os advérbios). Ao fazê-lo, as pequenas ficções de Short movies revelam o perigo de um dispositivo retórico, a descrição. Uma descrição com muitos adjetivos e advérbios visa mais objetividade; ao detalhar a imagem que compõe, a descrição limita o poder da imaginação. Em certa medida, uma obra literária com muitos adjetivos e advérbios é mais totalitária (porque deseja impor imagens) do que outra que os use em menor quantidade (a qual dará mais liberdade ao leitor para imaginar). Ainda assim, é possível a imaginação é muito mais estimulada pela literatura do que pelo cinema. Ao assistirmos a uma refiguração cinematográfica de uma personagem literária, como, v.g., Anna Karenina, não existe a margem para imaginar as personagens que existe na literatura – o facto de ter sido escolhida a atriz A para encarná-la impõe uma imagem. Ao eliminar adjuntos verbais e nominais, pretende Gonçalo M. Tavares instigar a criação de imagens, o nosso cinema interior. A argumentação segundo a qual se procura uma convergência entre obra e editora cai definitivamente por terra com a publicação na Porto Editora, grupo com escassíssima tradição editorial, em 2010, de Matteo perdeu o emprego, conjunto de contos cuja ação decorre na cidade, e com a particularidade de uma das personagens secundárias de cada conto ser a protagonista do conto seguinte. Na Porto, um dos grandes grupos económicos portugueses que dominam o mercado editorial e que albergam várias pequenas editoras, foi editado em 2014 Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, romance sobre uma menina com trissomia 21 que procura o pai com a ajuda de Marius, um homem que, enquanto foge, procura furar a parede do significante, sair do buraco negro da subjetividade. No mesmo dia de novembro de 2014, é editado Os velhos também querem viver curiosamente na Caminho (editora há uns anos adquirida pelo Grupo Leya, concorrente principal da Porto Editora no                                                         

2 Caso em que faria sentido falar-se de um readymade. No início de Modernismo, readymade. Notícias das trincheiras, Américo Lindeza Diogo (1997: 9) considera que a inserção dos autores contemporâneos numa rede de referências passadas, em especial as referências (inalienáveis mas, em muitos casos, indesejadas, como o autor assinala) do Modernismo, originou uma “acracia radical” (ibidem). A história do século XX haveria de empurrar a arte para balbucios por largas décadas, como assinalam os versos de Paul Célan de “Tübingen, Jänner”. É o próprio material literário que se emancipa, ao ponto, diríamos, de funcionar em autogestão, compelindo os autores a reutilizá-lo (ibidem). Uma viagem à Índia é mais do que uma reutilização de materiais modernistas, é uma investigação lúcida da desconstrução do romance encetada pelo Ulysses, e, por isso, do próprio Modernismo.

 

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domínio do mercado livreiro português). Um texto dramatúrgico em verso que dialoga com Alceste de Eurípedes, tendo como pano de fundo os conflitos nos Balcãs no final do século XX. Tal sobreposição de tempos parece fazer jus a um entendimento do passado enquanto “depósito de materiais” (Calabrese, 1999: 100). Resgatar esses materiais é uma operação forçosamente subjetiva e parcial. São fragmentos do passado literário que refulgem na obra contemporânea 3 e sem o vestígio da origem – esses fragmentos encontram-se “desarqueologizados” (idem: 101). O que resulta deste trabalho na mesa de montagem é uma reflexão sobre, uma vez mais, o tempo. Mas não só – também é elaborada uma interpretação da obra de Eurípedes. Talvez seja o momento para lançar uma pergunta, formulada por Luís Mourão (2005: 535), a que conto ir respondendo até ao final desta comunicação: A questão da linhagem, na contemporaneidade mais extrema, segue também o modo alegórico, estabelecendo uma diferença tão sem nostalgia e tão sem resgate, que da origem só se vê o espaço vazio que a separa de nós?

O punctum desta pergunta é aquela diferença sem nostalgia nem resgate. Essa distância é a aura, a manifestação da lonjura daquilo que até pode estar próximo, é ela que captura, no seu brilho medusante. A relação com ela pode ser de paralisia, há muitos Bartlebys. Mas também pode ser uma relação ativa, como parece o caso de Gonçalo M. Tavares, que cultiva o passado literário através de um movimento simultaneamente de escrita e leitura. Continuemos este excurso, referindo as inquietações de um modernista incorrigível, Gabriel Josipovici (2012: 239): “Eu vejo a modernidade como uma espécie de paradoxo: seria algo como a tradição de quem não tem tradição.” No fundo, de quem inventou a sua herança, os seus modos antigos de escrever e de entender a heterogeneidade do mundo. Roland Barthes (2014: 150) enunciou uma máxima que reforça a posição de Josipovici: “ser moderno consiste em reconhecer que já há coisas que não se podem fazer.” Isto implicará que na modernidade os autores desenvolvam consciência crítica. Todavia os restos dessa tradição ainda são operativos, ainda criam o novo com que a tradição continua. Em síntese, é a montagem e a hermenêutica que colocam a obra de Gonçalo M. Tavares já como tradição. Aquele vazio como origem é fascinante e ainda produtivo, uma espécie de Tao fecundo. A agudeza desta consciência crítica evidencia-se em Atlas do corpo e da imaginação, editado pela Caminho em 2013. Um volume essencial criado por mais um leitor de Gonçalo M. Tavares, desta feita nem o leitor é um qualquer nem a obra é somente mais uma – se tudo o resto é silêncio, isso não é de crer. Que as reflexões e as referências bibliográficas do Atlas serão doravante importantes para a exegese de tudo quanto escreveu e escreverá Gonçalo M. Tavares, sobre isso restam poucas dúvidas. Atlas do Corpo e da Imaginação comenta de                                                          3 A propósito, é importante destacar a seguinte observação de Osvaldo Silvestre (1999: 116): “Um pouco como no plano final do depósito de caixotes de Indiana Jones, essas vastas telas parecem de todo indiferentes quer ao novo, quer à sua lógica do discreto: pelo contrário, tudo agora é contínuo e sem tempo, isto é: contemporâneo.” O haver arquivo acessível potencia o imaginário, dessincroniza e, por conseguinte, aniquila o novo. Tudo é contemporâneo, é do mesmo tempo – desde que possuindo uma certa força. Gonçalo M. Tavares explicou-o em passos da sua obra, como acontece em O senhor Breton: “Os versos fortes não têm currículo nem, dirá vossa excelência, passado. [...] Um verso forte não tem história como os países. [...] Mesmo que seja um verso com dois mil anos, hoje, esse verso é absolutamente contemporâneo. Porque é um verso. Um verso de Homero lido hoje, dia sete, tem esta data, e currículo nenhum. [...] Se estabelecêssemos uma fórmula final, senhor Breton, diríamos simplesmente que os melhores versos são desprovidos de currículo e de profecia. Existem neste instante, apenas: mas existem muito” (Tavares, 2008: 16).

 

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alguma maneira todos os livros que constituem e hão de constituir – o seu território textual. Aliás ‘atlas do corpo e da imaginação’ pode bem ser a designação mais concisa para todo o território textual do autor. O facto de esta obra se apresentar como atlas – devido à incorporação de imagens criadas pelo grupo Os Espacialistas, também elas narração e pensamento – vinca a impureza genológica do território textual do autor. Gonçalo M. Tavares montou uma máquina de guerra para destruir a rigidez molar dos géneros, para redefinindolhes os limites, os princípios, desterritorializando-os. O atlas é uma forma que corresponde a este desígnio, pois, segundo Georges Didi-Huberman (2013: 12), não só “perturba quaisquer limites de inteligibilidade”, como “quebra as certezas autoproclamadas da ciência convicta das suas verdades” (idem: 13). Um atlas agencia o diverso, até o que supúnhamos nãocompossível, concede-nos nesse sentido um “conhecimento transversal” (ibidem) da modernidade. Só existem vínculos entre temas tão diferentes como a técnica, a doença, o pensamento, a técnica, a cidade, a morte, a ciência, porque o método para a construção de um atlas é a imaginação. Portanto, o atlas é a manifestação de um saber inseguro, porém inquieto, inquietante, espécie de gaia ciência inquieta, ou não convocasse a obra de inúmeros escritores, filósofos, ensaístas, dramaturgos, encenadores, cineastas, pintores, sucessão de planaltos que atesta a multiplicidade do mundo e que a lê na exuberância das suas linhas. Um atlas interroga o que é inesgotável, só o inesgotável merece ser questionado – tarefa infinda que apenas admite como método a errância, como explica Gonçalo M. Tavares (2013: 28) no primeiro capítulo do Atlas do corpo e da imaginação, “O corpo no método”: Errar, ou seja, circular de modo hesitante, só é útil e profundamente humano quando é feito em redor do que não tem resposta, do que não está ainda decidido, do que ainda nos espanta, ainda nos confronta, daquilo sobre o qual ainda se discute, argumenta, luta.

2. E, e, e O que mais importa ao autor é manter vivo um espanto, um entusiasmo, uma intensidade – direcionar uma determinada força: “avançar, não em linha recta mas numa espécie de linha exaltada, que se entusiasma, que vai atrás de uma certa intensidade sentida” (idem: 26; itálicos do autor). E continua: avanço que não tem já um trajecto definido, mas sim um trajecto pressentido, trajecto que constantemente é posto em causa; quem avança hesita porque não quer saber o sítio para onde vai – se o soubesse já, para que caminharia ele? (idem: 27)

Numa entrevista concedida a Carlos Vaz Marques, Gonçalo M. Tavares afirma que nunca sabe o que vai escrever, é incapaz de o antecipar, isto é, não preside à escrita um plano transcendente (Marques & Tavares, 2010: 34). Não há definição prévia de temas ou motivos, nem estruturação de personagens, nem previsão de uma forma para o texto. Em rigor, a epopeia de Tavares é informe, o romance de Tavares é informe, assim como o ensaio, o conto, o poema – é nos interstícios das formas, como a erva, que o texto é urdido. As diferentes  

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formas sofrem uma involução, pois cada “forma [é] dissolvida para libertar tempo e velocidades” (Deleuze & Guattari, 2007: 340) – o cumprimento escrupuloso das leis de um género limitaria a potência de um texto, comprometendo a tal exaltação da linha. Gonçalo M. Tavares trabalha consequentemente num plano de imanência (idem: 339): agenciando materiais, ritmos, temas, de acordo com uma determinada força sentida. Assim proliferam as séries – aliás, o mapa do território textual do autor é alvo de permanentes ajustes (eis os mais recentes: a criação das séries “Estudos clássicos”, a que pertencem Os velhos também querem viver e Histórias falsas, obra que integrou a série “Histórias”, entretanto extinta, e “Diálogos”, de que faz parte O torcicologologista, excelência). Apenas uma cartografia em movimento será subtil o suficiente de captar o devir do projeto literário de Gonçalo M. Tavares. Tal projeto avança por experimentação, por atualização – modernização. Assim correspondendo a um dos preceitos modernistas: [...] António Franco Alexandre é decerto o melhor exemplo de cumprimento de um pouco cumprido preceito modernista – aquele que manda fazer de cada obra uma obra radicalmente diferente da anterior (Diogo, 1997: 85). 4

Alguém, todavia, poderia contrapor: Em princípio, não existe nenhum trabalho criativo que não seja experimental, nesse sentido de que ele supõe vigilância sobre o desgaste dos meios que utiliza e que procura constantemente recarregar de capacidade de exercício.

Escreveu-o Herberto Helder (apud Diogo, 1997: 30) para sublinhar que toda a poesia é experimental. Mas a aguda consciência desse processo e o não deixar-se dominar por ele é o que marca a diferença com outros autores da sua geração, nos moldes do que Gonçalo M. Tavares (2006: 9) escreveu em Biblioteca (e ao qual já aludimos): O ponto de partida deste livro é a obra dos autores – nunca aspectos biográficos. Uma ideia ou apenas uma palavra mais usada pelo escritor (por vezes, mesmo associações inconscientes e puramente individuais) estão na origem do texto. Mas cada fragmento segue o seu ritmo próprio.

A obra de Gonçalo M. Tavares materializa um desejo cada vez mais guloso, aquele desejo que Gilles Deleuze, em conversa com Claire Parnet, dizia opor-se ao prazer-descarga, isto é, ao prazer tal como a psicanálise o entende, como mecanismo que funciona por metonímia ou metáfora e que tem como função substituir o corpo da mãe (Deleuze & Parnet, 2004: 113). O desejo não é, pois, negativo, nem visa ingloriamente preencher um vazio impreenchível, é uma máquina cuja função é multiplicar conexões e agenciamentos. É nesse sentido que o território textual de Gonçalo M. Tavares não cessa de devir, de instalar séries diferentes, reinventando-se, o autor aparentemente evita cortes no fluxo do desejo. E, e, e –                                                         

4 Para compreendermos como escritores tardo-modernistas tentavam cumprir tal preceito, considere-se “De como um poeta acha não se haver desencontrado com a publicação deste livro”, o prefácio de Ruy Belo à segunda edição de Homem de palavra[s]: “O que procuro evitar a todo a custo é repetir um livro, se possível um simples poema ou processos por mim já levados porventura até à exaustão. Cada livro meu, quer-me a mim parecer, é um livro diferente do anterior” (Belo, 2011: 10). No caso da obra de Gonçalo M. Tavares, a proliferação das séries responde a este desígnio.

 

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máquina de guerra contra o essencialismo e a exclusão do ou, privilégio das multiplicidades, dos agenciamentos, das ligações. Talvez seja exagerado convocar aquele verso de Eugenio Montale em que o poeta diz ter vivido a 5% – e no entanto, arriscando alguma sociologia barata, a sobriedade com que Gonçalo M. Tavares se movimenta no campo literário reivindica para a literatura um valor degradado por muitos agentes literários (escritores incluídos). Sobriedade análoga à de autores como Herberto Helder ou Carlos de Oliveira, já considerados pela crítica como tardo-modernistas. Daí até colocar-se às avessas do modernismo sociológico – as redes sociais, os media em geral – é um passo, fundamental justamente para manter ativo o fluxo do desejo, da vida. É por esta razão que a sua obra não faz cedências praticamente nenhumas à voragem da atualidade. A este respeito, o diagnóstico de Bragança de Miranda (1998: 10) é bastante completo: “Estamos, queiramo-lo ou não, totalmente imersos na actualidade, o passado e o futuro jogam-se cada vez mais na actualidade.” A voragem informativa embrutece, subtrai tempo à reflexão, obliterando simultaneamente o lugar onde estamos, que se torna virtual, insensível. Nesse sentido, considera o autor, somos excêntricos, pois “a deslocalização moderna separa os homens das suas posições fixas e multiplica os lugares” (idem: 21), vivemos uma espécie de ópera flutuante, somos alvo de múltiplos estímulos e vozes, tomados aos solavancos. No torvelinho da técnica, em queda, conectar-se é uma injunção, é um dever estar ligado, consumir imagens: Alguns ainda se conseguem refugiar no «espírito», ou nas suas instituições «espirituais», mas os seus pobres corpos, cá em baixo, são arrastados por forças que perturbam o «espírito» e os seus exercícios monótonos (idem: 11).

Uma das manifestações do niilismo é esta, precisamente. Caídos no imanente, podemos escolher – condicionados porém e com pertinácia pela insídia da publicidade e pela compulsão gregária. Como sublinha Bernard Stiegler (2006: 146), esta miséria simbólica motiva mais gregarismo, e não mais individualismo, como é comum dizer-se.5 Isto é, os media sincronizam comportamentos, promovem a homogeneidade, alisam as singularidades. Já perdemos de vista em absoluto os factos, por muito que os blocos noticiosos reiterem o oposto. A esse respeito, afirma Roberto Calasso (1998: 29), num ensaio sobre Karl Kraus: “Os factos são uma excrescência das opiniões”. A emancipação hoje define-se pela opinião, como observa ainda Roberto Calasso (idem: 45). Todavia, as opiniões que emancipam são difundidas com objetivos e interesses precisos, embora nem sempre revelados. Um efeito pernicioso da imersão na atualidade consiste na equivalência entre o insignificante e o importante, como assinala Gonçalo M. Tavares na já aludida entrevista a Carlos Vaz Marques: Um dos grandes combates actuais é o combate entre a actualidade e o importante. É terrível ver que no site de um jornal às oito da manhã há notícia de um terramoto e se às 8.40 aparecer uma

                                                        

5 Eis o passo de Descrença e descrédito que o ilustra: “A fábula pós-industrial, para além de não compreender que a potência do capitalismo contemporâneo procede do controlo simultâneo da produção e do consumo que regula as actividades das massas na sua totalidade, assenta na ideia falsa de que o indivíduo é aquilo que se opõe ao grupo – e que a sociedade se teria tornado «individualista», quando esta nunca foi tão gregária” (Stiegler, 2006: 146).

 

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notícia insignificante sobre qualquer coisa completamente neutra essa notícia ultrapassa a do terramoto. Estamos num mundo em que a questão do actual se joga minuto a minuto. O que quer dizer que se o actual é ao minuto, o não-actual é logo passado um minuto (Marques & Tavares, 2010: 84).

O que não está na ordem do dia, como se costuma dizer, perdeu o interesse, a importância, pode esquecer-se. O senhor Breton reflete sobre este tema, opondo a informação ao que lhe resiste, a arte: “O verso que um homem saiba de cor só se elimina com a brutal amnésia. Ou, então, com o excesso de informação que o mundo imbecil o obriga a guardar. Porque o verso não tem o timbre de uma informação” (Tavares, 2008: 11). O que se sabe de cor, isto é, de coração, é a vida, é o que resiste ao apagamento, à informação, à morte. O atual tem como efeito o apagamento do inatual e do eterno, independentemente da sua relevância. A arte resiste a essa amnésia, e talvez não seja excessivo convocar o último Gilles Deleuze (1987), que desvelou os mecanismos de uma sociedade de controlo assente na – informação. A arte é um dos gestos mais importantes de resistência a esses mecanismos: “Tout acte de résistance n’est pas une œuvre d’art bien que, d’une certaine manière, elle en soit. Toute œuvre d’art n’est pas un acte de résistance et pourtant, d’une certaine manière, elle l’est” (idem).

3. Gonçalo M. Tavares: um caso tardo-modernista Em suma – o ethos de Gonçalo M. Tavares é análogo ao dos clássicos escritores modernistas. Construindo o seu território textual, o autor defende os valores literários, o que não significa uma valoração maior da literatura por relação com a vida, ou sequer que valide essas diferenças artificiais. E, neste particular, Gonçalo M. Tavares venha arrecadando vários prémios literários, ou não tenha recebido outros tantos, nem é importante, o autor coloca-se a alguma distância em relação a essa esfera sócio-simbólica. Aliás, até se pode acrescentar que o autor recebeu os prémios suficientes, em número e importância, nem tendo sido bafejado pela sorte, nem proscrito pelo campo literário. Os prémios são mecanismos de consagração que cumprem, em teoria, uma função: valorizar o que é bom. Mas nem sempre estes mecanismos estão atentos ao que é bom e, às vezes, até valorizam o que é mau. São juízos exteriores, relativos, não absolutos, e, por isso, circunstanciais. Porém, funcionam como um poder emissor que, em alguns casos, condiciona decisivamente o percurso de um autor, moldando-lhe a escrita, impondo-lhe direções ou bloqueios. Gonçalo M. Tavares, numa atitude algo estoica, afasta-se desses juízos, ou, doutra forma, responde a essa força exterior com outra força: a do desejo, a do movimento do corpo que escreve entusiasmado. Ou talvez melhor ainda: Gonçalo M. Tavares dá uma direção individual ao impulso exterior que constitui esses prémios. Importa-lhe continuar a escrever, experimentando caminhos, continuando o seu itinerário interior e literário, mantendo intactos o entusiasmo, a alegria e o movimento. Valorar os prémios (os que recebeu e os que não) em demasia poderia implicar uma paragem no ritmo de escrita, um enquistamento vaidoso ou melancólico. Mas claro que os prémios que Gonçalo M. Tavares vem recebendo são os momentos mais ruidosos de uma  

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canonização que está em curso por vários motivos, alguns dos quais discutidos ao longo deste artigo: trata-se de um autor que, em síntese, criou uma máquina de escrita que funciona segundo muitas linguagens e afeções, revisitando autores clássicos, sempre de uma forma reflexiva. Um autor que está a criar um território textual sumamente original e estimulante. As obras premiada, que foram indicadas no ponto 1 deste artigo, são momentos particularmente fortes na construção do seu território textual, o que confere justeza e solidez à tal canonização em curso. Gonçalo M. Tavares reivindica, pois, o direito a escrever (os seus cadernos), como também o destacou Luís Mourão (2005: 31): O rótulo não promete teleologias, indica apenas uma acção continuada e a continuar, uma espécie de força – e, afinal, talvez resida nesse simples traço de afirmatividade a única herança que Gonçalo M. Tavares parece reclamar da Grande Literatura: que se possa continuar a escrever, que isso seja legitimidade suficiente para alguém se apresentar com os seus cadernos.

Esta afirmatividade deveria ser apanágio de civilizações avançadas do ponto de vista ético-moral – todos deveriam poder viver de acordo com o seu desejo e não apenas conservar a sua existência. A vida é a realização da potência de cada corpo, não existe oposição entre vida e cultura. Contudo, numa sociedade de controlo essa potência é diminuída, pois toda a singularidade é sujeita a mecanismos ferozes de uniformização. A par daquela afirmação artística, a obra de Gonçalo M. Tavares enceta, portanto, reivindicações éticas e até políticas (não num tom engajado, o que não implica necessariamente um enfraquecimento da justeza do fundamento de tais reivindicações). Escrever é um ato de resistência à uniformização, à tristeza de um corpo, à atualidade, à doxa, assim como o era para os escritores tardomodernistas de gerações anteriores, atividade que não se enquista em literatura – porquanto declara a concomitância do estético e do ético, renovando a reflexão humanista: É cada vez mais claro, isto: não há políticas humanistas absolutas; o maior gesto humanista é perguntar: o que é que tu queres? O que é que quer o outro? Eis o ponto de partida para quem quer ajudar esse outro, precisamente. Por vezes começamos a ajudar o outro a partir daquilo que nós queremos e daquilo que consideramos correcto que o outro queira para si. Nos espaços mais pequenos, no maior dos espaços, a pergunta que inicia o companheirismo: o que é que tu queres? (Tavares, 2014).

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