Gordo ou Integral? Práticas alimentares dos migrantes portugueses no Rio de Janeiro, Brasil - Dissertação de Mestrado, 2015

July 1, 2017 | Autor: V. Pereira Machado | Categoria: Material Culture Studies, Anthropology of Food, Migration Studies
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Escola de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Antropologia

Gordo ou Integral? Práticas alimentares dos migrantes portugueses no Rio de Janeiro, Brasil Vânia Daniela de Sousa Pereira Machado

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Antropologia, ramo de especialização Globalização, Migrações e Multiculturalismo

Orientadora: Doutora Marta Vilar Rosales, Investigadora Auxiliar, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Junho, 2015

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DEDICATÓRIA

Aos meus avós, João e Antónia (1920-1999 e 1925-2010)

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AGRADECIMENTOS

À Profª. Marta Vilar Rosales por ter acreditado no meu projeto e ter aceite esta orientação. Por toda a amizade, paciência, entusiasmo, apoio e todo o acompanhamento científico e intelectual deste projeto. À minha mãe, por muito do que sou, por tudo o que as palavras não medem, pela incondicionalidade do seu apoio e amor em todas e cada uma das minhas escolhas e decisões. À minha madrinha pelo carinho constante, pela irreverência e jovialidade que sempre me inspiraram e fizeram sonhar. Ao João por todo o apoio. Ao Glauber, pelo amor, alegria e suporte infinitos e incondicionais. À minha restante família pelo carinho, partilha e convívio sempre rodeado de uma deliciosa mesa de memórias, histórias, cuidado e amor. À Anita, pela mais longa e genuína amizade. À Joana, por partilharmos as mesmas angústias. Aos meus colegas e amigos da residência, pela convivência, pelo carinho e solidariedade durante todo o mestrado e especialmente durante a elaboração da dissertação. À minha professora primária, Cândida Silva, por me ter dado asas para sonhar. Aos restantes professores que me foram formando e abrindo os horizontes. A todos os meus mestres das várias instituições superiores pelas quais passei: Universidade de Coimbra (20092012); Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil (2011-2012); ISCTE-IUL (2012-2014); Universidade Federal Fluminense, Brasil (2013-2014), por todos os ensinamentos, partilha e discussões que me fizeram antropóloga. Um agradecimento especial à Profª. Lívia Barbosa (PUC-Rio) pelas conversas tão ricas e sábias que me ajudaram a lapidar e maturar esta investigação. Aos meus colegas de equipa do Travessias, Inês, João, Daniela, Rita e Diana pelo apoio, pelas trocas de impressões e pelo companheirismo. Aos meus colegas de turma do Mestrado. Um agradecimento muito especial à minha irmã do coração, Cláudia Gurgel, pela hospitalidade, amizade e companheirismo incansáveis nesta aventura na cidade do Rio de Janeiro. Por último, e mais importante, para todos os interlocutores que generosamente participaram nesta pesquisa, que me receberam em suas casas e que comigo partilharam as suas histórias de vida e os seus quotidianos. Sem eles, esta dissertação não existiria.

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RESUMO

Os movimentos de pessoas implicam a circulação de coisas, memórias, imagens, informações, saberes e sabores que viajam acompanhando quem migra no processo de adequação a um novo contexto. Paralelamente, todo o migrante tem necessariamente que lidar com um novo mundo material, cultural e simbólico no contexto de chegada. De entre as várias dimensões que constituem as novas configurações da materialidade com que a pessoa deslocada é confrontada, a alimentação constitui, pelo seu caracter primário e imediato, um dos primeiros aspetos fundamentais. Nesta dissertação analisa-se, a partir de uma abordagem etnográfica realizada durante seis meses, as práticas de consumo alimentares de um grupo de migrantes portugueses recém-chegados à cidade do Rio de Janeiro, no Brasil.

Palavras-chave: Alimentação; Consumo; Migrações Contemporâneas; Cultura Material.

ABSTRAT

Peoples’ flows imply the movement of things, memories, images, information, knowledge and flavors, which travel following who migrates in the process of adaptation to a new context. Alongside, all migrants have necessarily to deal with a new material, cultural and symbolic world at the contexts of arrival. Among the various dimensions that constitute the new configurations of materiality with which the displaced person is faced with, food constitutes by its primary and immediate character, one of the first fundamental aspects. From an ethnographic approach that took part for six months in Rio de Janeiro, this dissertation analyzes the food consumption practices of a group of newly arrived Portuguese migrants to this Brazilian city.

Keywords: Food; Consumption; Contemporary Migrations; Material Culture.

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GLOSSÁRIO DE SIGLAS B-ON – Biblioteca do Conhecimento Online CEE – Comunidade Económica Europeia CGIg – Coordenação Geral de Imigração (Brasil) EUA – Estados Unidos da América FCT – Fundação da Ciência e da Tecnologia IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICMPD – International Centre for Migration Policy ICS-UL – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa INE – Instituto Nacional de Estatística ISCTE-IUL – Instituto Universitário de Lisboa MTE – Ministério do Trabalho e do Emprego (Brasil) OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico OEm – Observatório da Emigração (Portugal) OIM – Organização internacional para as migrações ONU – Organização das Nações Unidas UFF – Universidade Federal Fluminense RJ – Rio de Janeiro

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ÍNDICE DEDICATÓRIA ................................................................................................................. iii AGRADECIMENTOS ....................................................................................................... iv RESUMO............................................................................................................................. v ABSTRAT ........................................................................................................................... v GLOSSÁRIO DE SIGLAS ............................................................................................... vii INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1 CAPÍTULO I - TEMA, OBJETIVOS, PERGUNTA DE PARTIDA, HIPÓTESES, CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA ........................................................................ 3 1.1. Apresentação e orientações gerais......................................................................................... 3 1.2. Estratégia metodológica ........................................................................................................ 9

CAPÍTULO II – ENQUADRAMENTO TEÓRICO ......................................................... 14 2.1. Consumos alimentares: uma perspetiva antropológica ....................................................... 14 2.1.1. Cultura material: a importância do consumo ............................................................... 14 2.1.2. Da alimentação na antropologia a uma antropologia da alimentação .......................... 20 2.1.3. Tendências da alimentação contemporânea ................................................................. 24 2.2. Migrações contemporâneas ................................................................................................. 29 2.2.1. Quadro geral ................................................................................................................. 29 2.2.2. A emigração portuguesa para o Brasil ......................................................................... 34

CAPÍTULO III – UM RIO SEM PEIXE ........................................................................... 39 3.1. A emigração portuguesa no Rio de Janeiro ......................................................................... 39 3.2. Morar na Zona Sul .............................................................................................................. 46 3.3. A gastronomia portuguesa no Rio de Janeiro...................................................................... 48 3.4. Entre a casa e a rua: perceções e impactos na alimentação quotidiana ............................... 52

CAPÍTULO IV – MUDANÇAS E CONTINUIDADES: QUANDO CONTINUIDADE NÃO É REPRODUÇÃO E MUDANÇA NÃO É ROTURA .................................................. 62 4.1. Comprar............................................................................................................................... 63 4.2. Preparar ............................................................................................................................... 74 4.3. Consumir ............................................................................................................................. 80

CONCLUSÃO ................................................................................................................... 88 FONTES ............................................................................................................................ 92 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 93 ANEXOS ........................................................................................................................... 98

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação apresenta um estudo antropológico sobre as práticas alimentares de um grupo restrito de migrantes portugueses recém-chegados à cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Baseia-se numa etnografia realizada durante 6 meses, entre dezembro de 2013 e maio de 2014, predominantemente na Zona Sul da cidade1, lugar onde se concentram grande parte das suas rotinas: casa, trabalho, lazer. Tendo como principal foco o espaço doméstico desses migrantes, procura-se refletir sobre os discursos e as práticas de consumo alimentares quotidianos em contextos migratórios, suas mudanças e continuidades e o impacto que as suas redes sociais e as práticas transnacionais detêm neste campo específico da cultura material. Isto é, procurou dar-se conta de que modo a intensidade dos fluxos e os seus impactos nas políticas de identidade e pertença de quem migra se materializam e objetificam nas suas práticas e hábitos alimentares. A presente dissertação encontra-se dividida em quatro capítulos, para além da conclusão e da presente introdução. O Capítulo I “Tema, objetivos, pergunta de partida, hipóteses, contextualização e metodologia” é dedicado à apresentação do tema e da metodologia utilizada neste trabalho, que tem por base uma parte dos dados recolhidos no âmbito do projeto “Travessias do Atlântico: materialidade, movimentos contemporâneos e políticas de pertença”2. Neste capítulo são apresentados os objetivos do presente trabalho, bem como a pergunta de partida que norteou esta investigação, sucedida por uma breve contextualização do terreno de estudo. No segundo Capítulo, “Enquadramento Teórico” serão apresentadas e discutidas as orientações teóricas que suportam a pesquisa antropológica aqui apresentada – alimentação, cultura material e migrações contemporâneas –, de modo a ultrapassar as limitações da produção académica, no quadro das ciências sociais, face à relação entre movimentos contemporâneos e consumos alimentares.

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A Zona Sul do Rio de Janeiro é uma região da cidade que compreende os bairros mais nobres da cidade. No

terceiro capítulo este conceito será desenvolvido de forma mais aprofundada. 2

Projeto PTDC/CS-ANT/119803/2010, financiado pela FCT, sob a coordenação científica de Marta Vilar

Rosales (PI), acolhido pelas instituições CRIA e ICS-UL, no qual a autora participou como assistente de investigação, desde junho de 2013 até abril de 2015, e colaborou na recolha empírica dos dados e materiais apresentados nesta dissertação.

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O Capítulo III, intitulado “Um Rio sem Peixe” é dedicado à contextualização sociográfica do grupo de 25 migrantes portugueses recém-chegados à cidade do Rio de Janeiro face à emigração portuguesa residente na cidade. Ainda neste capítulo, analisam-se os dados do inquérito por questionário, no que respeita aos discursos e representações sobre práticas de consumo alimentares, que viabilizaram a elaboração de um mapeamento de algumas das temáticas a explorar posteriormente, ao longo do trabalho de campo. Especificamente, foram recolhidas informações sobre a relação com a alimentação em Portugal e no Brasil; o que mudou no processo de fazer compras, escolher alimentos, lidar com novos produtos, marcas e preços; de que forma essas mudanças afetaram o consumo; o que foi integrado, que hábitos se perderam e se ganharam. No Capítulo IV “Mudanças e continuidades: quando continuidade não é reprodução e mudança não é rotura” procura-se debater a articulação entre discursos e representações (vistos no Capítulo III) com as práticas alimentares efetivas no novo contexto, que orientam e objetificam ideologias, critérios e valores culturais. Esta análise basear-se-á sobretudo nos dados recolhidos durante a etnografia, junto das cinco famílias. Através da observação das práticas alimentares atuais, procuraremos refletir sobre as mudanças e continuidades que a alimentação doméstica enquanto atividade abrange em três momentos distintos – compra, preparação e consumo. Por fim, a conclusão é dedicada, por um lado, às principais reflexões decorrentes da pergunta de partida que orientou esta pesquisa, e, por outro lado, aos resultados dos 25 inquéritos por questionário e da etnografia com as cinco famílias realizada em contexto doméstico. As conclusões finais procuram resumir esta reflexão sobre como a alimentação é percebida, ajustada, avaliada, apropriada e manuseada no novo contexto. Para tal, discutiu-se as influências mútuas do “cá” e do “lá”, procurando compreender-se como são geridas as pertenças e experiências sociais dos migrantes.

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CAPÍTULO I - TEMA, OBJETIVOS, PERGUNTA DE PARTIDA, HIPÓTESES, CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA “The interesting thing about migrants nowadays is that, in general when they move across national boundaries, they do not simply leave their ‘homelands’ behind.” Inda & Rosaldo

1.1. Apresentação e orientações gerais Recordo-me, claramente, da auspiciosa manhã de sol de Outono do dia 2 de outubro de 2012 em que, sentada no comboio, me despedi, uma vez mais, dos ares vimaranenses rumo a um novo destino. Chegada à estação de Santa Apolónia, avistava uma Lisboa cinzenta, para além do sentido meteorológico da palavra. Carregando as mesmas duas malas que me acompanham desde que saí de casa pela primeira vez, caminhei pelas ruas que me levavam àquela que viria a ser a minha nova “casa” em Lisboa, durante a frequência do Mestrado em Antropologia: Globalização, Migrações e Multiculturalismo, no ISCTE-IUL. Mudar de casa, como o próprio termo sugere, é sempre um processo que, de uma maneira ou de outra, envolve mudanças, ruturas e continuidades a vários níveis: materiais, emocionais, relacionais e geográficas. O facto de esta ser a minha décima terceira casa, em nada fizera com que o sentido de novidade se perdesse. Fui recebida com uma visita guiada ao Mosteiro de Santos-o-Novo, que hoje alberga a residência universitária do ISCTE – IUL. Mesmo não sendo a primeira residência onde vivi, surpreendeu-me pela particularidade das suas características que me intrigaram mais ainda para a pesquisa antropológica sobre a relação entre a alimentação, globalização e mobilidade. Se as residências anteriores separavam os seus moradores segundo critérios de género, geração, de estatuto, e nacionalidade, fazendo com que cada um dos grupos ocupasse um andar ou mesmo um edifício distinto, dificultando a convivência quotidiana mais próxima entre os residentes, esta prima justamente pelo oposto. E sim, não é uma casa portuguesa, com certeza. A minha nova casa têm a particularidade de ser casa para muitos estudantes, professores e visitantes dos quatro cantos do mundo. Professores visitantes dividem quarto com estudantes, tal como estrangeiros com nacionais, homens com mulheres e todos partilham exatamente os mesmos espaços comuns: cozinha, sala de jogos, sala de cinema e sala de estudo. No dia em que cheguei, fui surpreendida ao entrar na cozinha. Confesso que de todos os espaços, este foi o que me suscitou mais curiosidade. Num primeiro momento, questionei a sua capacidade para atender a todos os moradores, cerca de sessenta, uma vez que era a única 3

em todo o edifício. Ao longo do tempo, fui-me apercebendo do quão especial este espaço se demonstrava, sobretudo ao nível da diversidade de produtos nos interiores dos frigoríficos e armários; dos vários objetos que compunham a cozinha; a observação da preparação dos alimentos pelas diferentes pessoas; os seus horários; com quem se sentavam à mesa; como comiam. A residência proporciona uma observação e participação de práticas da esfera da vida privada – a intimidade do espaço doméstico – de um grande número de indivíduos que dificilmente ocorreria no domínio das relações sociais no espaço público. Estas observações foram muito importantes para mim sobretudo porque me fizeram revisitar e refletir sobre a minha experiência enquanto estudante de intercâmbio em Florianópolis, Brasil, durante um ano, em 2011. No meu caso particular, ao estar deslocada, sem dúvida que a alimentação era um elemento chave para materializar saudades, pertenças, convívios, nostalgia e afetos. Esta constatação da importância de uma prática discreta e automática como a alimentação, que me afetou não apenas a mim, como também a muitos dos meus colegas, levou-me a questionar o seu potencial para perceber as apropriações que dão sentido às práticas quotidianas específicas, em articulação com as dinâmicas globais do mundo contemporâneo. A partir daí, ao regressar do intercâmbio e ao ingressar no mestrado sabia de antemão que este seria o campo de estudo que queria explorar dentro da antropologia: a relação dos migrantes com a alimentação e suas práticas em contexto de migrações transnacionais. Nesse sentido, ter escolhido viver na residência foi uma agradável e inesperada surpresa. À medida que ia observando e ganhando mais afinidade e amizade com os meus novos companheiros de casa, particularmente os estrangeiros, fui-me apercebendo que a alimentação constituía um elemento muito importante na gestão dos seus quotidianos, envolvendo as suas redes de pertença “cá” e “lá”. Ao questionar a procedência dos novos produtos que chegavam à cozinha, se haviam sido comprados e onde ou se haviam sido recebidos, constatei que nas suas malas havia sempre espaço para alimentos, condimentos e objetos que participavam na produção de determinados pratos. Na mala de Veracity, um estudante de Kampala, Uganda, houve espaço para dois sacos de 2kg do cereal que sempre tomava pela manhã, de modo a manter esse hábito de pequenoalmoço. Gui, estudante japonês cuja família migrou para Berlim, não poderia ter feito Erasmus sem a sua panela elétrica para fazer arroz. Shuichiro, japonês, decidiu trazer 20kg de arroz uma vez que já havia viajado para o Sul europeu e não conseguiu encontrar um “bom”. Annica, todos os dias de manhã preparava o seu café na cafeteira que trouxera de Itália. Um grupo de cinco peruanas que passou três semanas numa escola de verão trouxe enlatados de 4

feijão, frango e atum e preparados de bebidas para toda a sua estadia em Lisboa. Christopher, austríaco, trouxe o espremedor de laranjas que usa para fazer sumo duas vezes por dia. Muitos outros pedem especiarias e produtos específicos aos seus conterrâneos quando estes viajam, ou aos seus entes queridos quando estes os visitam. A comida, além de muitas vezes materializar nostalgia e de ser um elemento definidor de fronteiras entre pessoas também é, simultaneamente, um veículo que as aproxima. Assim, as várias “cozinhas”, técnicas e alimentos proporcionaram convívios e jantares “internacionais” que, não só me aproximaram dos novos colegas, como me possibilitaram contar estas histórias no presente. Nas últimas três décadas, tanto a globalização, quanto as migrações contemporâneas são tópicos importantes no mundo académico (Inda & Rosaldo, 2001). Se a identificação da migração como um fenómeno presente ao longo da história é amplamente reconhecida, quer por académicos, quer pela generalidade das pessoas, o mesmo não pode ser afirmado sobre a globalização. Alguns textos de referência (Appadurai, 1996; Inda & Rosaldo, 2001; Ritzer, 2010) alertam para o facto de muitas das análises contemporâneas sobre a globalização a tomarem como um fenómeno recente. Todavia, a relação entre os dois fenómenos é inegável. A globalização, enquanto “a proliferação dos fluxos transfronteiriços e de redes transnacionais alterou o contexto das migrações” (Castles, 2005: 43), produzindo importantes transformações nas suas características. A mobilidade internacional, que se reflete no aumento do número de intercâmbios, passeios turísticos e de migrações internacionais, está intrinsecamente relacionada com outros fluxos (políticos e económicos) e constitui uma das principais fontes de mudança contemporânea (Appadurai, 1996; Castles, 2005; Inda & Rosaldo, 2001). A sua intensificação deve-se maioritariamente às novas tecnologias da comunicação e dos transportes que permitem os fluxos constantes de pessoas, ideias, objetos, alimentos e símbolos culturais. Utilizando o conceito de Miller (2007) de um mundo global que se começa a tornar uma entidade em si mesmo – o macrocosmo da análise social – pode afirmar-se que a residência onde moro pode ser pensada como um microcosmo desse mesmo mundo. A globalização significa sobretudo uma mudança na organização espacial do mundo, passando de um mundo de lugares definidos para “a world in motion” (Inda & Rosaldo, 2001). Isto é, um mundo de movimento e interconexões complexas onde as fronteiras se têm tornado gradativamente mais porosas. Cada vez mais pessoas e culturas têm contatos mais intensos e imediatos umas com as outras. Nesse contexto, à semelhança das pessoas, as coisas (alimentos, roupas, estilos, modos de vida) fluem rapidamente de um lugar para o outro,

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levando a que a atividade de consumo se torne um mediador primário no encontro de outros culturalmente distantes. Nesta dissertação, procuramos explorar uma das dimensões dos complexos fenómenos da globalização: a dimensão cultural que intersecta as migrações transnacionais e as práticas alimentares contemporâneas. Sendo as migrações um objeto de estudo complexo e aberto a múltiplas abordagens, escalas e níveis de análise, privilegiou-se uma abordagem do quotidiano, à escala micro, explorando as práticas de consumo alimentares de um grupo restrito de migrantes portugueses residentes no Rio de Janeiro. Estas serão discutidas à luz das tendências dos estudos da alimentação contemporânea no quadro das ciências sociais, explorando-se especialmente as tensões local-global, tradicional-cosmopolita. Seguindo uma orientação antropológica, este trabalho procura observar as práticas e respostas humanas às mudanças introduzidas pela migração, dando voz a um conjunto de cinco famílias. A escolha deste universo de estudo, “portugueses no Brasil” resultou da minha entrada como assistente de investigação para o projeto “Travessias do Atlântico: materialidade, movimentos contemporâneos e políticas de pertença” doravante “Travessias”, em junho de 2013. Como o título indica, este projeto pretende explorar a cultura material no âmbito da mobilidade internacional entre Portugal e o Brasil. Partindo de uma metodologia que envolveu o levantamento de inquéritos em Lisboa, Porto, São Paulo e Rio de Janeiro e quatro etnografias simultâneas nesses mesmos contextos, o projeto procura descortinar as experiências vividas por brasileiros e portugueses que circulam entre os respetivos países de origem e tem como objetivo entender o papel da materialidade nas dinâmicas de mobilidade internacional. A migração portuguesa é caracterizada por um longo e complexo processo que envolveu diferentes destinos, motivações e grupos sociais. No caso do sistema migratório PortugalBrasil, as primeiras migrações ocorreram no século XV como resultado da expansão colonial (Feldman-Bianco, 2001). Desde então até à atualidade, apenas com pequenas variações pontuais, a população portuguesa constitui a maior comunidade de estrangeiros residentes no país. Recentemente, no contexto da crise, Portugal vêm presenciando um crescimento económico nulo e elevadas taxas de desemprego, ao passo que a economia brasileira vive tempos de expansão que tornam o país novamente atrativo enquanto destino migratório para os portugueses. A atual migração portuguesa para o Brasil coexiste com a circulação ativa daqueles que migraram nas décadas de 50 e 60, e que estiveram e estão no presente associados à emblematização da cultura e tradições portuguesas visíveis ainda hoje nas casas regionais, predominantemente da região Norte do país, na cidade do Rio de Janeiro. No caso 6

dos migrantes recentes, o discurso mediático vem apontando um perfil que se distancia do anterior, na medida em que exalta a saída de uma população jovem e fortemente qualificada. As particularidades sociográficas e os projetos de vida das famílias que integram a investigação serão considerados na análise operacionalizando o conceito de habitus (Bourdieu, 1984 [1979]) e, por conseguinte, os conceitos diretamente com ele relacionados como o de classe, gosto e estilo de vida de modo a aferir de que modo estas categorias sociais se produzem e refletem nas práticas alimentares. Na generalidade, os movimentos migratórios contemporâneos são possibilitados por redes transnacionais que procuram diminuir os perigos e riscos presentes na mudança para outro país (Glick-Schiller, Basch, & Blanc-Szanton, 1994; Vertovec, 2007). Todavia, a maioria dos movimentos afeta as relações entre os que partem e os que ficam, pelo que são associados a sentimentos de rutura e mudança (Glick-Schiller, Basch, & Blanc-Szanton, 1994; Massey, 1990). As relações são necessariamente (re)negociadas e os vínculos mantidos à distância são muitas vezes mediados pelo consumo, materializados através de alimentos, receitas e práticas que resgatam e são resgatadas pelas memórias, permeadas por afetos e cuidados. A deslocação de pessoas implica, habitualmente, a substituição de objetos, produtos e alimentos uma vez que a migração acarreta, além de continuidades materiais e simbólicas, a tarefa de lidar com um mundo material distinto (Burrell, 2008; Rosales, 2012), com outras normas e valores de materialidade, paladares e sabores. Além de afetar as relações entre quem parte e quem fica, também afeta a produção e a expressão de identificações e alteridades, e os modos como a migração enquanto processo é vivida e objetificada no dia-a-dia. Das várias dimensões que constituem as novas configurações de materialidade com que a pessoa deslocada é confrontada à chegada, no novo contexto de destino, a alimentação constitui, pelo seu caracter primário e imediato, um dos primeiros aspetos que se lhe impõe para ser gerenciado. Na década de oitenta, a globalização permitiu que determinadas tendências da alimentação contemporânea evoluíssem de forma conectada entre diferentes sociedades em termos de representação e práticas, suportadas pelos avanços tecnológicos das comunicações digitais. As escolhas alimentares são cada vez mais complexas na medida em que envolvem questões políticas, morais, estéticas e éticas, contribuindo para que a alimentação seja percebida como uma atividade crescentemente consciente, individualizada, dirigida, regulada e politizada em vez de uma atividade banal, prazerosa e essencialmente privada. Como prática humana, a alimentação é omnipresente, porém possui formas, meios, costumes e relações que se apresentam de modos múltiplos e variáveis, conforme aspetos culturais, económicos, 7

geográficos, ideológicos e sociais que a moldam e que são moldados por ela. Assim sendo, a apropriação de determinados critérios e categorias para classificar e pensar as escolhas alimentares implicam, por vezes, retóricas globais e globalizantes cujo sentido ou interpretação levam a particularismos locais (Wilk, 2006). Os principais objetivos desta pesquisa consistem em: a) Observar como são geridas as pertenças e discutir as influências mútuas do “cá” e “lá”; b) Perceber qual é o trabalho das práticas de consumo alimentares no (re)fazer, na avaliação e na gestão das pertenças e experiências sociais dos migrantes; c) Analisar como a alimentação é percebida, ajustada, avaliada, apropriada e manuseada e em que esferas do quotidiano atua com mais intensidade; d) Discutir as mudanças e continuidades ao nível das práticas alimentares e como se objetificam identificações e alteridades. São premissas desta pesquisa: a) As práticas alimentares domésticas constituem uma lente importante através da qual as experiências migratórias podem ser analisadas, uma vez que estruturaram relações (e posicionamentos) com os contextos envolvidos (Codesal, 2010; Counihan, 2004; Rosales, 2012; Wilk, 2006). b) Os consumos alimentares são dimensões chave das sociedades contemporâneas, fornecendo ferramentas para uma pluralidade de práticas significativas: exprimir e afirmar identidade(s) e pertença, acumular recursos, narrar experiências de vida, confirmar posicionamentos (Barbosa , 2009; Bourdieu, 1984 [1979]; Counihan & Van Esterik, 2013; Miller, 2009; Mintz & Du Bois, 2002; Rosales, 2009b). Assim, a pergunta de partida que orientou esta pesquisa é: como é que a alimentação, uma prática tão embodied (internalizada), estruturada, inscrita no habitus dos sujeitos, opera em terrenos instáveis como os contextos das migrações contemporâneas? Priorizar os consumos alimentares enquanto elemento da cultura material para discutir as migrações contemporâneas, resultou de um conjunto de contributos teóricos3que, ao enfatizar a existência de uma relação significativa entre contextos culturais e práticas de consumo, descreve as relações entre as pessoas e coisas como uma forma particular de relação social (Appadurai, 1986, Basu & Coleman, 2008; Douglas & Isherwood 1979; Miller 1987; 2009) e 3

Estes contributos serão abordados de forma mais extensiva e detalhada no próximo capítulo, dedicado ao

enquadramento teórico.

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valida o princípio teórico do “consumidor ativo”. Isto é, a capacidade das pessoas apropriarem estrategicamente alimentos com o intuito de (re)produzir significados e estruturar certas dimensões das suas vidas sociais, assume uma importância significativa na (re)construção de processos de identidade (Appadurai, 1986; Bourdieu, 1984 [1979]; Miller 1987). O consumo é entendido como um conjunto de práticas que vai muito para além da aquisição de produtos (Appadurai, 1986; Miller, 1987; Warde, 1997) dado que integra também processos de apropriação, uso e reuso, avaliação e acomodação (Rosales, 2010). O consumo envolve uma relação especial com as coisas que circulam através das experiências quotidianas de cada família. Por isso, estudar os consumos alimentares implica, muito mais do que o exame dos processos de escolha e aquisição dos produtos e alimentos. Envolve também e sobretudo (Rosales, 2010) a análise do que acontece quando as coisas deixam a esfera do mercado (supermercados, feiras etc) e entram nos domínios particulares da vida familiar. A tarefa complexa de “domesticar” (Miller, 2010) ou apropriar os alimentos e produtos é mediada pelas especificidades do contexto espacial, histórico e cultural, onde ocorre. Ela traduz um processo criativo de utilização e reutilização das coisas, cujos significados são muitas vezes ajustados em consequência desses mesmos processos (Appadurai 1986, Miller, 1997). 1.2. Estratégia metodológica No seguimento da pergunta de partida que norteou o objeto de estudo do presente trabalho, impunha-se a escolha da estratégia metodológica mais adequada à viabilização do mesmo. Se determinados paradigmas teóricos tendem a ser absorvidos por muitas das ciências sociais, os métodos, tendem a seguir rotas disciplinares específicas – “disposições metodológicas” (Cabral & Lima, 2005). Assim sendo, a realidade e as mudanças do mundo contemporâneo não apenas nos obrigam a refletir sobre elas, mas também sobre a forma como as enquadramos e analisamos, sendo da maior importância a discussão entre os terrenos de pesquisa e as metodologias utilizadas. Algumas metodologias clássicas de que o etnógrafo dispõe quando vai para campo têm que ser (re)pensadas e adaptadas à realidade do contexto de pesquisa. No contexto das mobilidades contemporâneas, o campo torna-se muitas vezes descontínuo, quer do ponto de vista espacial quer temporal, com as organizações dispersas ao longo de fronteiras e os atores envolvidos em processos de mobilidade. Ao contrário da residência do ISCTE-IUL que comecei por descrever no início deste capítulo, onde o acesso ao quotidiano dos seus moradores era possível pelo recorte de um espaço comum, o terreno do presente trabalho, situado num contexto metropolitano como a 9

cidade do Rio de Janeiro, coloca alguns desafios no que respeita ao acesso ao tipo de familiaridades quotidianas, que em contextos maiores se tornam mais difíceis. Por conseguinte, procuramos integrar um conjunto de metodologias de modo a suplantar as limitações de um terreno com estas características. A partir das premissas que a antropologia procurou estudar determinados grupos a partir dos conceitos de sociedade e cultura como produtos de uma diversidade histórica baseada em regiões e do desafio que o mundo atual coloca ao desafiar tais fronteiras, Miller (2007) defende que a antropologia “tem potencialidades para tratar tanto o macrocosmo (global) como o microcosmo (individual) e ainda a relação entre um e outro” (2007: 112), desde que “o global seja tratado como uma sociedade muito grande” e os indivíduos “como uma multiplicidade de sociedades muito, muito pequenas” (idem). Seguimos Miller (2010) ao assumir uma abordagem micro, de baixo para cima, ao desenvolver uma análise do microcosmo, ou seja, do individuo, sem que com essa redução da escala se perca a legitimidade do “gesto etnográfico” (Cabral, 2007) ou o holismo da ciência antropológica. Trazer luz às cosmologias que organizam as vidas das pessoas ou de uma família a partir de uma lógica mais ampla do sistema social ou cultural é uma proposta tão igualmente válida e interessante quanto as meta cosmologias de uma unidade de análise maior. Uma abordagem que vá além das representações e dos discursos de pertença deve depositar mais atenção no que as pessoas fazem nos seus quotidianos, dando voz aos seus realizadores. Tomar como foco a materialidade das práticas alimentares em contextos migratórios, envolvendo alimentos através dos quais os migrantes incorporam novos contextos, em vez das representações e dos discursos de identificação e pertença, permite dialogar sobre o potencial desta análise para descobrir mais semelhanças do que diferenças entre pessoas, muitas vezes consideradas como diferentes devido às suas afiliações étnicas, o que é comum no estudo das migrações (Frykman, 2009). Procurou-se perceber não tanto as práticas dos portugueses, mas antes as práticas regulares de cada um dos indivíduos portugueses que compõem o grupo como se de uma microsociedade se tratasse. Complementarmente observaram-se as suas casas tomando-as como microcosmologias, isto é, palcos que organizam e dão sentido aos projetos de vida dos seus habitantes (Miller, 2007). O presente trabalho foi elaborado em quatro fases: revisão bibliográfica e estado da arte; o inquérito por questionário; etnografia e análise do material recolhido.

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Para a tarefa de construir o estado da arte e o enquadramento teórico foram recolhidos materiais bibliográficos de instituições como a Biblioteca do ISCTE-IUL, a Biblioteca do ICS-UL, o Real Gabinete Português de Leitura, o INE e o IBGE. Destaca-se ainda a o recurso à B-ON no que respeita à pesquisa bibliográfica virtual de artigos científicos. A pesquisa de terreno teve, como já foi explicado, a duração de 6 meses. A escolha do lugar em que decorreu resultou, por um lado do Rio de Janeiro ser uma das quatro cidades do projeto Travessias (Lisboa, Porto, Rio de Janeiro e São Paulo) identificadas em pesquisas anteriores (Feldman-Bianco, 2001; Malheiros, 2011; Peixoto, 2012) como contextos significativos para o estudo de migrações portuguesas e brasileiras no Brasil e em Portugal e, por outro, por ser o contexto que me foi atribuído enquanto bolseira do mesmo projeto. Como foi referido anteriormente, foram adotadas metodologias etnográficas clássicas. É nossa convicção que o objeto de estudo deve ser abordado através da observação direta e de entrevistas. Estas foram precedidas por uma contextualização, de modo a promover a integração de diferentes níveis de análise – descritivo e interpretativo – e estabelecer um diálogo produtivo entre estrutura e agência e universalismo e particularismo. No âmbito do projeto Travessias, foi construído um inquérito por questionário com o intuito de elaborar uma sociografia das populações em estudo, recolher informação geral sobre as suas trajetórias migrantes e a sua relação com a cultura material da casa (Burrell, 2008; Rosales, 2010). As questões relativas a este último ponto integraram também os consumos alimentares, o que viabilizou a elaboração de um mapeamento de algumas das temáticas a explorar posteriormente ao longo do trabalho de campo. Mais especificamente, recolheram-se informações sobre a relação com o consumo em Portugal e no Brasil; o que mudou no processo de fazer compras, escolher alimentos, lidar com novos produtos, marcas e preços; de que forma essas mudanças afetaram o consumo; o que foi integrado, que hábitos se perderam e se ganharam. Foram aplicados 25 inquéritos no Rio de Janeiro. Os entrevistados foram selecionados através de contatos gerados pela aplicação do método bola de neve (Wasserman & Faust, 1994). Nesta fase da pesquisa, a unidade de análise privilegiada foi o indivíduo cuja seleção procurou ser fiel a uma amostra o mais heterogénea e diversificada possível em termos de género, classe social, antecedentes migratórios, temporalidade dos projetos migratórios e ocupação profissional, de modo a dialogar o melhor possível com os objetivos desta investigação. A única condição prévia necessária para a seleção dos sujeitos/interlocutores era terem residido anteriormente numa das cidades selecionadas pelo projeto, ou seja, Lisboa ou Porto. Para além de permitir o exercício de contextualização inicial, a aplicação do 11

questionário teve a função de apresentar a investigadora, bem como os objetivos da investigação aos interlocutores. Numa segunda parte do trabalho de campo, a pesquisa consistiu na seleção de 5 unidades domésticas, a partir dos inquéritos por questionário, para desenvolver a etnografia centrada na casa. Nesta etapa da pesquisa, a unidade de análise foi a família uma vez que parte significativa dos projetos migratórios, sejam eles individuais ou coletivos, são envolvidos, apoiados e/ou sustentados em estratégias familiares (Massey, 1990). Além disso, a alimentação ao ser uma atividade repetitiva, aprendida (Sutton, 2001) é orientada no espaço das práticas e rotinas familiares quotidianas (Warde & Martens, 2000). Seguimos o conceito de família de Fog-Olwig (2007) como um grupo de pessoas que compartilham um determinado conjunto de valores morais e expectativas que os impelem a envolver-se em relações intensivas de troca, envolvendo ajuda, visitas, recordações, memórias e comunicação constantes. A seleção dos cinco casos foi fundamentada na diversidade da amostra mediante a disponibilidade dos participantes da fase do inquérito e suas famílias em participar desta pesquisa e me receberem nas suas casas e suas rotinas. A escolha da casa como o lugar central para o decorrer da etnografia prende-se com a importância que ela assume como centro das práticas de consumo contemporâneas em geral (Miller, 2009), e em contextos migratórios em particular (Rosales, 2012). Não obstante, a pesquisa também contemplou outros espaços de observação como mercados, supermercados, cafés, lanchonetes 4 e outros estabelecimentos, que contribuíram para estar familiarizada, não apenas com aquilo que os interlocutores pensam, mas também com o contexto intersubjetivo em que os interlocutores pensam (Cabral & Lima, 2005). As metodologias aplicadas nesta etapa foram a observação direta e participante, entrevistas semiestruturadas, registadas por meio de gravação áudio e posteriormente transcritas,5 e conversas informais (Devillard, Mudanó, & Pazos, 2012) muito importantes para criar afinidade entre a pesquisadora e os interlocutores, em momentos em que a formalidade do gravador pudesse inibir ou causar algum tipo de constrangimento. Para além do diário de campo, procurou-se fazer um registo visual através de desenho e fotografia. Como Miller (2007) argumenta, do mesmo modo que é necessário recorrer à história para explicar determinada sociedade, é preciso compreender a história da família para compreender um dado indivíduo. Nesse sentido, as entrevistas semiestruturadas incidiram 4

Lanchonete é um termo utilizado no Brasil para designar o que em Portugal habitualmente se conhece por

snack-bar, um serviço de refeições rápidas como lanches, sanduiches, bebidas e sucos naturais. 5

De modo a preservar a identidade dos entrevistados, todos os nomes citados ao longo do texto são fictícios.

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numa aproximação à metodologia desenvolvida por Couniham (2004) nas histórias de vida centradas na comida. Como nota final, ressalvo a disponibilidade, acolhimento e simpatia de todos aqueles que me abriram as portas das suas casas, suas vidas e memórias, recebendo-me num ambiente marcado pela convivialidade característico de uma mesa ou espaço de refeições e comensalidade.

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CAPÍTULO II – ENQUADRAMENTO TEÓRICO “Our three basic needs, for food and security and love, are so mixed and mingled and entwined that we cannot straightly think of one without the others.” M.F.K.Fisher

Neste capítulo serão discutidas as orientações teóricas que suportam a pesquisa antropológica aqui apresentada. Uma vez que a construção do objeto que aqui se propõe leva à confluência de três áreas temáticas – alimentação, cultura material e migrações contemporâneas, a organização deste capítulo gera-se em volta das referências bibliográficas às quais fui sendo dirigida no decorrer da pesquisa da construção deste trabalho. Na caracterização desse quadro teórico-metodológico dedicamos particular atenção à relação existente entre migração/movimentos contemporâneos e consumos alimentares que tem sido pouco explorada nas ciências sociais. Para ultrapassar essa limitação, apresentam-se os contributos mais importantes dos diferentes eixos teórico-conceituais que orientam esta pesquisa, de forma a embasar o objeto de estudo aqui proposto. 2.1. Consumos alimentares: uma perspetiva antropológica 2.1.1. Cultura material: a importância do consumo Várias das referências e conceitos que se seguem, no âmbito dos consumos e da cultura material não foram problematizados a partir da alimentação especificamente, mas sim para o mundo dos objetos em geral. Contudo, consideramos da maior importância pensar também os alimentos enquanto parte integrante da cultura material, de modo a permitir reposicionar o papel do consumo alimentar na teoria social contemporânea. O olhar da antropologia para a cultura material deteve-se, durante grande parte do século XX, para as sociedades não-industriais onde as coisas constituíam um fator chave para entender os respetivos contextos (Miller, 1987). Já nas sociedades industriais, segundo a teoria marxista, o produto do sistema de produção capitalista – mercadoria –, não pode desempenhar a mesma função simbólica que os objetos desempenhavam nas sociedades tradicionais, uma vez que o objetivo do lucro distorce sistematicamente, o seu uso em termos comunicativos (Rosales, 2009a). Assim, do ponto de vista histórico, a produção académica recaía sobre a produção como o momento chave das relações de dominação presentes nas sociedades contemporâneas, tornando-se o consumo entendido como o produto da produção. Isto é, o consumo é determinado pela produção que tem como finalidade obedecer a vontades 14

e necessidades com vista à satisfação individual. Nessa perspetiva, os consumidores são reduzidos a “sujeitos passivos”, vítimas do capitalismo, do marketing e da publicidade (Barbosa & Campbell, 2006). A oposição entre sociedades industriais e não-industriais encontra o seu maior desenvolvimento na distinção entre dádiva e mercadoria no Ensaio sobre a dádiva de Marcel Mauss (2011 [1925]). Para o autor, dádiva e mercadoria podem existir em ambas as sociedades: industriais e não-industriais, o que as distingue é a índole do regime de trocas e, subjacente a ele, a natureza das relações entre pessoas e coisas. Isto é, nas sociedades nãoindustriais a dádiva é um objeto uma vez que impõe a retribuição da mesma por quem a recebe; a lógica da reciprocidade é entendida como uma força espiritual que sustenta o sistema de prestações totais6 e, por isso, “não se observam nunca simples trocas de bens, de riquezas e de produtos no decurso de um mercado passado entre os indivíduos [como acontece nas sociedades industriais]” (Mauss, 2011 [1925]: 58). Apesar da dádiva ser de grande riqueza conceptual para enquadrar algumas práticas sociais contemporâneas no campo da alimentação, o seu conceito, ao ser formulado a partir de uma perspetiva dicotómica que opõe sistema de dádiva e sistema de mercado, contribuiu para legitimar a relação impessoal entre pessoas e coisas nas sociedades industriais. Os estudos de consumo e cultura material têm sido largamente examinados desde a década de 80 (Rosales & Marques, 2010). A complexidade da relação entre o trabalho (produção) e o consumo, bem como a necessidade de discutir o assunto tem sido amplamente reconhecida por vários autores (Miller, 1987; Slater, 1992; Warde & Martens, 2000), resultando numa panóplia de contribuições que abordam o tema através de diversas lentes e modalidades. Um dos primeiros trabalhos que marca um ponto de viragem na reflexão sobre o consumo, como o momento mais significativo para pensar a produção cultural nas sociedades contemporâneas, é The World of Goods: torwards an anthropology of consumption (1979) de Douglas & Isherwood. Ao confrontar as dimensões económicas e culturais do mundo

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O autor define o sistema de prestações totais como o conjunto de prestações e contraprestações que ocorrem

sob uma forma preferencialmente voluntária, que envolvem coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam. Além disso, o que é trocado caracteriza-se não apenas por “bens e riquezas, móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de mais, amabilidades, festins, feiras cujo mercado não é senão um dos seus momentos e em que a circulação de riquezas mais não é do que um dos termos de um contrato muito mais geral e muito mais permanente” (Mauss, 2011 [1925]: 58).

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material, os autores constroem uma reflexão antropológica que quebra a dicotomia sociedades industrializadas versus não-industrializadas. Instead of supposing that goods are primarily needed for subsistence plus competitive display, let us assume that they are needed for making visible and stable the categories of culture. It is standard ethnographic practice to assume that all material possessions carry social meanings and to concentrate a main part of cultural analysis upon their use as communicators (Douglas & Isherwood, 1979: 38).

A relação com as coisas pode e deve ser pensada em ambas as sociedades, devolvendo a dimensão cultural às sociedades denominadas como “economias de escala” ou industrializadas, e a dimensão económica às sociedades ditas tradicionais, reificando a ideia de que o consumo assume múltiplas dimensões, independentemente da sociedade que queiramos estudar, e que todos os bens em circulação servem como dispositivos de comunicação, entre diferentes pessoas, grupos e culturas. Desse modo, o consumo permite a materialização da vida social dos indivíduos através da troca, aquisição e usos dos objetos, de entre os quais os alimentos constituem mediadores por excelência, que se traduzem em termos comunicativos, produzindo significados sociais e culturais, tornando visíveis e estáveis as categorias da cultura que permitem a estabilização dos sistemas de classificação social (Douglas & Isherwood, 1979). Ainda antes da obra de Douglas & Isherwood (1979), Baudrillard (2012 [1968]) foi um dos primeiros autores a alertar para o consumo como um processo de significação e comunicação onde as suas práticas ganham sentido, o que permite que o consumo seja também encarado como uma forma de objetificar a distinção, posicionamentos e classificação na hierarquia social, ou seja, não se consomem objetos em si, mas sim o que eles simbolizam. Nesse sentido, entendemos que os objetos [e os alimentos] têm capacidade de produzir uma linguagem própria, autónoma do sistema de produção, capazes de comunicar entre si, de transmitir distinção, mas que também é através deles, como meio, que se dá a reprodução social (Bourdieu, 1984 [1979]). Em La Distiction (1979), Pierre Bourdieu propõe-se a entender como é que numa sociedade capitalista, hierarquizada, os diferentes grupos sociais, estando em posições desiguais de poder na sociedade, desenvolvem estratégias no sentido de manutenção e alteração nos lugares que ocupam na hierarquia social. Para responder a esse princípio, Bourdieu (idem) argumenta que as diferentes posições que os indivíduos/grupos ocupam na estrutura social advêm da distribuição desigual de recursos e poderes, isto é, dos diferentes capitais: económico, social e cultural. Uma vez que os três capitais são distribuídos de forma 16

desigual, nem todos os grupos têm a mesma capacidade de participação e apropriação na cultura de consumo de massas, ou investimento em bens simbólicos cuja função de signo lhes confere status, prestígio e pertença a determinado segmento da sociedade. Através do estudo das práticas sociais quotidianas, entre elas a alimentação, o autor argumenta que determinados grupos manifestam a sua superioridade perante outros grupos, destacando o caracter superior do seu gosto, inscrito no habitus, de forma a legitimar a sua identidade social e assumirem-se como o grupo que estabelece os padrões de gosto partilhados socialmente. O gosto, ao funcionar como uma espécie de sentido de orientação social (sense of one’s place), orienta os ocupantes de um lugar determinado no espaço social para as posições sociais ajustadas às suas propriedades, para as práticas ou bens que convêm aos ocupantes dessa posição (Bourdieu, 1984 [1979]: 680).

O habitus é padronizado historicamente e adquirido socialmente no contexto da classe de origem, manifestando-se no âmbito do consumo através de disposições (e não de regras) e de estratégias (e não de determinações). Ou seja, os indivíduos têm as suas condições objetivas interiorizadas através do habitus e expressam-se através do gosto, apresentando “predisposição natural” para determinados bens, produtos e alimentos (Bourdieu, 1984 [1979]). Um aspeto de especial relevância para esta pesquisa foi proposto por Appadurai, em The Social Life of Things (1986) quando apresenta a particularidade de discutir os contornos do consumo, como um fenómeno eminentemente social, relacional e ativo, a partir duma perspetiva centrada nos próprios objetos e na sua circulação. Isto é, como “seres sociais” que ao longo da sua vida vão adquirindo (ou perdendo) valor e mudando de significado, os objetos detêm a sua biografia e trajetórias particulares que devem ser analisadas, de modo a entender como o desejo e a “procura”7 se articulam para criar valor económico em determinados contextos sociais, onde entram em jogo mecanismos de controlo político e estratégico. Ao centrar-se nas trajetórias das coisas, esta perspetiva permite a análise dos vários estágios das suas “vidas sociais”, desde a produção ao consumo, onde a relação histórica e dialética entre “percursos” (socialmente regulados) e “desvios” (competitivamente motivados) constitui a natureza da mudança na construção cultural da mercadoria. Assim, a movimentação de grande parte das mercadorias ao longo da história, e o crescente abismo de conhecimento entre produtores e consumidores que a caracteriza leva-nos a aplicar este raciocínio aos alimentos que ultrapassam constantemente as fronteiras culturais específicas e, portanto, regimes de valor e significado específicos. Ao atribuir vida aos objetos, Appadurai (1986) alerta para a 7

Tradução de demand no original.

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agencialidade que as coisas podem ter na vida dos indivíduos, com “poder para influenciar crenças, direcionar práticas, desenvolver ações, extrair obrigações e proporcionar prazer” (Rosales, 2009ª: 61). Deste modo, estudar a “vida social” dos alimentos proporciona a identificação de diferentes modos de organização cultural do consumo, uma vez que implica observar os diferentes significados, regimes de valor e trajetos através dos quais os alimentos viajam. As contribuições vistas anteriormente tomavam o consumo pelas suas dimensões simbólicas e expressivas (Baudrillard, 2012 [1968]; Douglas & Isherwood, 1979) ou estratégicas (Bourdieu, 1984 [1979]). Porém, os usos das coisas que saem da esfera do mercado, ou seja, o que acontece depois do momento de escolha, foram largamente marginalizados uma vez que os estudos de consumo, durante bastante tempo, estiveram subordinados à esfera da produção que pensava o momento da compra como momento final do consumo (Miller, 1987; Rosales, 2009a). O que acontece depois da escolha, ou seja, o consumo enquanto uso, surge com o trabalho de Miller (1987) que propõe uma análise do consumo baseada nas suas dimensões constitutivas. Nas sociedades contemporâneas, a interpretação que se faz do consumo, dos consumidores e dos espaços de consumo tornou-se de tal forma comum que uma nova denominação passou a caracterizar tais sociedades – “sociedade de consumo”. Tornar-se sociedade de consumo “is generally seen as symptomatic of a loss of depth in the world” (Miller, 2010: 37). Não apenas restrita ao senso comum, a visão negativa e imoral do consumo, como se este fosse apenas um resultado maléfico do capitalismo (Miller 1987) estendeu-se à tradição académica que, até então, pensava o consumo como uma atividade de destruição, mesmo que pudesse ser produtivo do ponto de vista simbólico. Para Miller, algumas correntes teóricas anteriores identificavam a cultura com “um conjunto de objetos”8, constituindo uma visão limitada de um conceito que deve ser entendido como um processo que nunca é passível de ser reduzido à sua forma enquanto objeto ou enquanto sujeito, e sim na relação dialética e dinâmica entre ambos (Miller, 1987). Para isso, o autor desenvolve a sua reflexão sobre uma teoria da cultura que permita uma abordagem ao consumo moderno a partir do conceito hegeliano de objetificação como “a dual process by means of witch a subject externalizes itself in a creative act of differentiation, and in turn reappropriates this externalization through an act witch Hegel terms sublation” (Miller, 1987: 28). Com esta proposta Miller legitima a transição do materialismo histórico marxista, em que

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Tradução de set of objects no original (Miller, 1987: 11).

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o sujeito, no sistema de produção capitalista, se torna incapaz de reconhecer e de apropriar dos bens ou objetos materiais disponíveis, para um materialismo hegeliano, onde o sujeito não é alienado da sua cultura material, pelo contrário, a sua construção enquanto sujeito só se viabiliza na sua relação com ela. Desse modo, o autor sublinha a importância que o consumo moderno assume nas sociedades industriais uma vez que se trata do mecanismo pelo qual os sujeitos se reapropriam da externalização9 – de bens e produtos produzidos em larga escala – e lhes dão sentido. Assim, o autor rejeita a redução do consumo à própria natureza dos bens como meras mercadorias existentes na esfera do mercado, facilmente substituíveis. Segundo Miller, a análise dos objetos deve ser alargada ao momento posterior que decorre da saída da mercadoria da esfera mercado, isto é, do ato da compra. This is the start of a long and complex process, by which the consumer works upon the object purchased and recontextualizes it, until it often no longer recognizable as having any relation to the world of the abstract and becomes its very negation, something which could be neither bought nor given […] thus, consumption as work may be defined as that which translates the object from an alienable to an inalienable condition (Miller, 1987: 190).

Consideramos, tal como Miller, que nas sociedades contemporâneas, onde os produtos e alimentos que chegam ao consumidor se encontram maioritariamente distantes da sua esfera de produção, o consumo representa o espaço onde é possível ressignificar e expressar formas de ser e estar no mundo. Este cenário “makes the domestic arena, the main site of consumption, of considerable importance” porque “home is where most people spend most of their time” (Miller, 1997: 20). Para tal, Miller alerta para a urgência de se deslocar o foco de observação para as práticas efetivas de consumo de modo a entender as “diverse strategies by means of which people transforme recources both purchased through the market and allocated by the council into expressive environments, daily routines and often cosmological ideals (Miller, 1987: 8). Para isso, a análise deve direcionar-se para o nível micro das práticas quotidianas uma vez que constitui o terreno onde se cria sentido e se constroem formas particulares específicas – e a antropologia, através da tradição etnográfica, desempenha um papel fundamental nesse exercício. Não obstante, o consumo doméstico não poderá ser isolado das suas consequências no sistema económico global, e das instituições-chave que estruturam as relações entre os diversos países.

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Tradução de externalization no original (Miller, 1987: 28).

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2.1.2. Da alimentação na antropologia a uma antropologia da alimentação A alimentação sempre ocupou um lugar de destaque no que respeita às preocupações humanas e está profundamente relacionada com outras dimensões da experiência humana. Embora a formação de um campo disciplinar que toma a alimentação como objeto de estudo seja mais recente (Mintz & Du Bois, 2002; Counihan & Van Esterik, 2013), a antropologia vem mostrando, desde a sua formação, interesse pela temática, através das monografias clássicas. Recuando ao século XIX, Frazer (1982 [1922]) dedica-se ao estudo do totetismo e tabu, sacrifício e comunhão, onde o alimento se relaciona com esses temas. Tal como em Frazer, a alimentação para Durkheim (2002 [1912]) aparece relacionada com a religião, levantando questões relacionadas com o que se comia, inevitáveis para refletir sobre os “povos primitivos”. Também nesta época, Smith (1889) abordou a capacidade do alimento criar solidariedades, ser catalisador de comunidade ao estudar o sacrifício junto dos semitas. Na década de trinta, a funcionalista Audrey Richards (1932, 1939), discípula de Malinowski, dedica-se inteiramente ao estudo da alimentação na Rodésia, situando o alimento como o centro da sociedade. A perspetiva funcionalista produziu relatos sólidos sobre a produção, distribuição, preparação e consumo alimentar, descrevendo as várias crenças e rituais relacionados com cada atividade. Contudo, como era preceito na época, as pesquisas baseavam-se no estudo do exótico, isto é, nas práticas e comportamentos alimentares do “outro”, salvo alguns excertos como os encontrados em Mauss (2003), onde se encontram referências às práticas alimentares das “nossas” próprias sociedades. Na década de sessenta, com os estruturalistas, a alimentação volta a ocupar um lugar de destaque na antropologia. Lévi-Strauss (2004 [1964], 2006 [1968]) apoia-se nos alimentos e no ato de cozinhar para desenvolver a sua teoria estruturalista, que consiste em interpretar a sociedade como um todo, em função de uma teoria da comunicação, descodificando as estruturas do sistema alimentar, relacionando-o com a cultura e a sociedade. Com o triângulo culinário (1968), relaciona o estado dos alimentos em três vértices: cru, cozido e podre, estabelecendo um padrão universal para a concepção humana do sistema alimentar (LéviStrauss, 1968). Através da dicotomia “natureza” e “cultura”, mediada pelo “fogo”, o homem aparece como um “animal cozinheiro”, capaz de transformar um alimento de um estado “natural” num estado “cultural”. O princípio metodológico que inspira tais distinções (linguísticas) é transponível para a cozinha, em relação à qual não se tem observado com muita frequência que, como a linguagem, ela

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constitui uma forma de atividade humana verdadeiramente universal: assim como não existe sociedade sem linguagem, não existe nenhuma que, de um modo ou de outro, não cozinhe pelo menos alguns de seus alimentos (Lévi-Strauss, 1968: 25).

Na obra de Lévi-Strauss intitulada O cru e o cozido (2004 [1964]), está igualmente implícita uma contraposição de género na oposição cozido e assado que iria ser traduzida no trabalho de outros autores. A panela que ferve sobre o fogão doméstico faz parte preferivelmente das competências femininas. A gestão do fogo para assar as carnes é frequentemente uma operação masculina, aliás, máscula, que traz imagens de simplicidade brutal, de domínio imediato sobre as forças naturais (Montanari, 2008: 80).

A descrição de Montanari aponta para uma divisão de género na cozinha ainda predominante em muitos contextos se pensarmos nos churrascos que ficam geralmente à responsabilidade do homem ao passo que os acompanhamentos para essa refeição ficam a cargo das mulheres. Além da relação da alimentação com cultura e género, em Mitologias (1957), Barthes relaciona alguns pratos e alimentos atribuindo-lhes significados relacionados à construção de uma identidade que remete à nação francesa. Tal como o vinho, na França o bife é um elemento básico, mais nacionalizado do que socializado, estando presente em todos os cenários da vida alimentar. Além de tudo isso, é um produto eminentemente francês. Como acontece com o vinho, qualquer dificuldade de ordem alimentar faz com que o francês sonhe com o bife. No exterior, a nostalgia é imediata. (Barthes, 2001 [1957]: 55).

Através do estudo da pureza, poluição e dos tabus judaicos ao retomar o Levítico, Mary Douglas dá continuidade à análise estrutural da alimentação já que “o único modo no qual as ideias de poluição fazem sentido é em referência a uma estrutura total de pensamento cujo ponto-chave, limites, linhas internas e marginais, se relacionam por rituais de separação” (Douglas, 2012 [1966]: 57). Ao partir dessa análise, Douglas questiona-se sobre as práticas alimentares na sua sociedade (britânica), mostrando que a alimentação dos grupos humanos se estrutura num sistema e nas suas proibições. Para a autora, as refeições organizam-se segundo a escala de importância no dia (do pequeno almoço à ceia), na semana (semana versus fim-desemana), no ano (feriados – datas coletivas), no ciclo de vida (batismo ao funeral), sendo que até a menor refeição tem um significado que reflete a estrutura maior (Douglas, 1984). Paralelamente, depois da segunda guerra mundial, o pensamento ecológico cativou o olhar de alguns pesquisadores, como Marvin Harris que ao longo das suas obras, contrariamente às abordagens simbólicas anteriormente descritas, considerava que as práticas alimentares eram explicadas à luz do meio ambiente e adaptações ecológicas: “the Bible and 21

the Koran condemned the pig because pig farming was a threat to the integrity of the basic cultural and natural ecosystems of the Middle East” (Harris, 1974: 35). Desta forma, para o autor, as escolhas culturais, tabus e preferências ocultavam uma vantagem adaptativa sem que os sujeitos a percebessem. Harris rejeita a abordagem simbólica por ela não considerar a dimensão material, nem os aspetos ecológicos, nutricionais e económicos na sua análise. A perspetiva de Harris foi contestada por um de seus alunos, Marshall Sahlins, para quem “a relação produtiva da sociedade americana com seu próprio meio ambiente e com o meio ambiente mundial é organizada por avaliações específicas de comestibilidade e incomestibilidade, elas próprias qualitativas, e que não se justificam pela vantagem biológica, ecológica ou económica” (Sahlins, 2003: 184). À semelhança de Leach (1964), que relacionou o tabu alimentar com a distância em relação aos humanos, Sahlins argumenta que “a diferenciação parece estar na participação da espécie como sujeito ou objeto no convívio com os seres humanos” (2003: 188). Isto é, não se come o que está longe e nos é desconhecido, nem o que está demasiado perto e que, por isso, assume a condição de “sujeito”. Pelo contrário, aquilo que se come tem status de “objeto”, tornando a “comestibilidade inversamente relacionada com a humanidade” (2003: 189). As contribuições apresentadas anteriormente foram bastante importantes por terem identificado os processos culturais como determinantes e por terem questionado sobre os significados do que é classificado como alimento. Não obstante, todas estas formas de encarar a alimentação desconsideravam as dimensões económicas e sociais e desigualdades internas das sociedades em questão, que interferem no seu domínio (Goody, 1982), contribuindo para a construção de discursos hegemónicos sobre as práticas de consumo alimentar (Caplan, 1997). Segundo Mintz & Du Bois (2002), a obra de Jack Goody, Cooking, Cuisine and Class (1982) viria a tornar-se um ponto de viaragem na forma como os antropólogos passam a estudar o fenómeno da alimentação, acalmando a controvérsia das prespetivas anteriores. Alguns autores, designadamente Mennell et al. (1992), agruparam os trabalhos de Jack Goody (1982), Stephen Mennell (1985) e Sidney Mintz (1985) no que apelidaram de perspetiva desenvolvimentista. Estes “partilham a insatisfação com o legado estruturalista, mas existe um terreno comum considerável entre os estruturalistas e os desenvolvimentistas” (Mennell, Murcott, & Van Otterloo, 1992: 14). Os últimos não negam o poder do significado simbólico da comida na formação e controle do comportamento social, contudo, as suas análises atentam também para um conjunto de fatores socioculturais externos, nomeadamente as relações de poder presentes nas transações dos alimentos e nas mudanças alimentares 22

geradas pelo crescimento e intensificação dessas transações (Goody, 1982; Mennell, 1985; Mintz, 1985). Ao contemplar uma abordagem histórica no olhar para a alimentação Goody (1982) e Mintz (1985) demonstraram como ambas as representações, materiais e simbólicas, mudaram ao longo do tempo. Nos seus trabalhos, a globalização dos sistemas de produção alimentar e o impacto da industrialização da produção e do desenvolvimento das tecnologias de conservação sobre as transformações na alimentação quotidiana são temas centrais. Mantendo o cultural como foco de sua análise, Goody (1982) compara as sociedades eurásias e africanas e lista um conjunto de características10 que tornaram possível o aparecimento da high cuisine nas primeiras e não nas segundas. O autor enfatiza também a dimensão económica e política no estudo da alimentação e das práticas alimentares, que abordará em ambos os níveis, micro - unidade doméstica e macro - estados. Na obra Sweetness and power: the place of sugar in modern history (1985), Mintz traça através da história do açúcar – de um bem de luxo a uma mercadoria básica –, as alterações dos hábitos no Ocidente nos últimos séculos, sobretudo os séculos XIX e XX, aquando do aumento do consumo do açúcar. Ao olhar para ambos os momentos, produção e consumo deste produto, o autor argumenta ainda que o seu crescente consumo nas sociedades industrializadas não pode ser justificado com base na apetência inata para coisas doces, mas sim pela interação que ia sendo construída ao longo do tempo entre interesses económicos, políticos, questões fisiológicas e significados culturais (Mintz, 1985). Then and for long thereafter, most Europeans produced their own food locally, as best they could. Most basic foods did not move far from where they were produced; it was mainly rare and precious substances, principally consumed by the more privileged groups, that were carried long distances (Mintz, 1985: 75).

A realidade descrita por Mintz (1985), tomando como exemplo uma Europa longínqua, está longe de corresponder ao cenário que se impõe nos dias de hoje. Para analisar qualquer sistema alimentar é necessário considerar a dimensão do espaço e do tempo, bem como as dinâmicas seguidas por pessoas e grupos em determinados contextos sociais, culturais e socioeconómicos específicos (Mennell, 1985). Esse exercício de contextualização permitiria explicar como muitas das relações do sistema alimentar ultrapassam as fronteiras territoriais.

10

Dentro desse conjunto de características destaca-se a existência de uma cultura escrita, que através da

complicação das receitas, permitiu uma especialização da cozinha, e a passagem das tarefas culinárias de maior status das mulheres para os homens.

23

Ao refletir sobre o crescimento do açúcar através de sistemas globais de produção e consumo, de sociedade e de identidade, Mintz abre um caminho para discussão e exploração de sentidos entre alimentação e globalização, que estará no foco de várias pesquisas posteriores. Para além do impacto nas dietas, Mintz (1985) observou que as transformações nos bens e nos serviços proporcionados pela indústria alimentar, nomeadamente na disponibilidade de alimentos e refeições pré-confecionadas causaram impacto nas práticas alimentares. 2.1.3. Tendências da alimentação contemporânea Nas ciências sociais, as práticas alimentares como tema sempre tiveram um carácter muito discreto (Mintz, 2001). Contudo, a alimentação sempre foi muito importante para conhecer o outro através dos seus rituais, tabus e hábitos alimentares. Na antropologia, à semelhança das temáticas do consumo e da cultura material, a formação de um campo disciplinar que olhasse para alimentação enquanto objeto de estudo, aquilo que hoje se apelida de antropologia da alimentação, teve início na década de 80 (Counihan & Van Esterik, 2013; Mintz, 2001; Mintz & Du Bois, 2002). Como possíveis motivos para a sua invisibilidade académica, Mintz (2001) alude a predominância dos homens na disciplina e o consequente desvalorizar de uma atividade associada ao espaço doméstico, que é por excelência um espaço feminino, em detrimento de outra áreas de estudo como guerra, religião e magia. Além disso, a alimentação enquanto atividade inscreve-se no conjunto das práticas domésticas do quotidiano, automáticas, discretas e corriqueiras, com pouca visibilidade no discurso público (Miller, 2010; Rosales, 2010). Nas últimas duas décadas, os estudos relacionados com a alimentação têm-se afirmado como um campo autónomo de reflexão. Food and Culture: a Reader, editado por Counihan & Van Esterik pela primeira vez em 1997, constitui uma obra de referência que reúne os principais trabalhos sobre esta área de estudo. Devido à crescente produção e pesquisa neste campo disciplinar, a obra foi reeditada e conta já com sua terceira edição (2013), com recentes contributos sobre a alimentação no mundo contemporâneo. Para a crescente explosão deste campo de estudos, Counihan & Van Esterik (2013) apontam três motivos principais. Em primeiro lugar, a emergência das teorias feministas, que permitem legitimar um domínio do comportamento humano fortemente associado às mulheres ao longo do tempo em várias culturas. Em segundo, a politização da comida e expansão dos movimentos sociais ligados à comida, criados pela consciência das ligações entre produção e

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consumo. Em terceiro, a sua originalidade e riqueza de análise, capaz de ligar corpo e mente, self e outro, pessoal e político, público e privado, local e global, material e simbólico. Algumas mudanças na alimentação contemporânea foram impulsionadas pela industrialização e pela modernização dos sistemas alimentares e agrícolas e consequente aparecimento do mercado global de alimentos, caracterizado pela existência de cadeias cada vez mais longas que separam produção, distribuição e consumo (Mintz, 2001; Wilk, 2006). Esta conjuntura provocou mudanças significativas ao nível do estudo da cultura material e dos consumos alimentares. Se no passado, as sociedades estudadas pelos antropólogos possuíam um circuito fechado, isto é, “a produção, a distribuição e o consumo em tais sociedades tendiam a ser partes intimamente relacionadas de um único sistema” (Mintz, 200: 33), no mundo atual, as análises tornaram-se mais complexas dado que muitas das pessoas não mais produzem o que consomem ou consomem o que produzem, e os alimentos fluem e viajam em tal volume e velocidade, que a unidade de produção e consumo muitas vezes se perde ou se oculta (idem). Como todos os elementos materiais culturalmente definidos e utilizados na criação e manutenção de relações sociais, a comida serve para solidificar a pertença a um grupo, mas também para separar grupos (Mintz & Du Bois, 2002). O que aprendemos sobre comida está inserido num corpo substantivo de materiais culturais historicamente derivados (Mintz, 2001). Nas palavras de Bourdieu (1984 [1979]), o que aprendemos sobre comida está inscrito no habitus e manifesta-se através do gosto. Aprendemos com Douglas (1997[1975]) que as refeições são eventos alimentares estruturados que desempenham um papel importante na reprodução social e cultural, através do qual construímos e reproduzimos relações sociais, valores e cosmologias. Logo, não é de surpreender que tendências como a comercialização global de alimentos e a individualização alimentar tenham constituído “ameaças” a determinadas formas de pertença (Barbosa, 2009; Warde & Martens, 2000). O comércio global de alimentos contribuiu para o aparecimento rápido de indústrias de serviços, como grandes supermercados e restaurantes de fast-food que, juntamente com o fluxo de pessoas, redefiniram modos de comer (Wilk, 2006). Estas reconfigurações na “paisagem alimentar”11 global levaram à associação entre globalização e homogeneização dos hábitos alimentares (Ritzer, 2004 [1993]) como fenómenos perigosos/ameaçadores das identidades locais, da variedade e tradição que lhes são associadas. A argumentação que baseia este tipo de perspetiva parte da dicotomia local versus global e da globalização como

11

Tradução de food landscape, no original.

25

um fenómeno recente, sinónimo da americanização ou do imperialismo dos bens e representações do ocidente sobre o mundo (Inda & Rosaldo, 2001; Warde & Martens, 2000; Wilk, 2006). No sentido de complexificar a relação entre globalização e homogeneização, Appadurai (1996) refere que a globalização não pode ser concebida como algo unidirecional, uma vez que nela estão presentes também formas culturais não ocidentais. Trata-se de “um processo profundamente histórico, desigual e mesmo localizador” (Appadurai, 1996: 32) que nem sempre implica homogeneização. Além disso, diferentes grupos e indivíduos têm diferentes formas de se responder aos vários produtos em circulação (Appadurai, 1996; Inda & Rosaldo, 2001), que variam entre resistência, hibridismo e apropriação (Wilk, 2006), resultando em diferentes atribuições de usos e significados (Miller, 1997; Rosales, 2010). A propósito dos fast-food, um dos maiores símbolos da globalização alimentar, o trabalho de Watson (1997) demonstra que aquilo que a McDonald’s vende e o que as pessoas compram não é exatamente a mesma coisa. Nele estão inscritos valores e representações que superam uma simples refeição rápida, tida como não autêntica e o ex libris da gordura. A ideia da oposição produzida pela globalização entre a autenticidade das culturas tradicionais/locais e a monocultura global é contestada por Wilk (2006), que considera ambas as tendências como aspetos de um mesmo processo. Ao relacionar o papel dos processos globais na produção de recentes tradições culinárias locais em Belize, Wilk (2006) demonstra a importância da mobilidade e das práticas alimentares transnacionais na construção da identidade nacional/local. Nunca se escreveu tanto sobre comida e há um enorme aumento de livros sobre comida e receitas que contribuem para a imaginação das cozinhas (Murcott, 1996). Se os primeiros livros de cozinha eram destinados às elites, dominados por uma cozinha de matriz cosmopolita e “exótica”, a popularização dos livros de culinárias teve um importante papel na construção de identidades regionais e nacionais (Appadurai, 1988; Sobral & Rodrigues, 2013). Assim, nas últimas três décadas assistimos à gastronomização (Barbosa, 2009) da alimentação, ou seja, à estetização, à ritualização, à valorização do sabor e do prazer ao ato de comer e de cozinhar. Este fenómeno deve-se, em parte, à explosão da gastronomia, em todo o mundo que, a partir da globalização dos média tradicionais e novos média, popularizou os prazeres da mesa através da divulgação de novos ingredientes, culinárias, de novas dimensões estéticas e sensoriais, permitindo a extensão dos horizontes culturais. O papel de autoexpressão que a alimentação e a comensalidade desempenham na história de vida das famílias, nas relações sociais, nos rituais e no lazer, é demonstrado por Counihan 26

(2004). Ao trabalhar com histórias de vida centradas na comida, a autora mostra como a alimentação contem poderosos significados, memórias e emoções e pode ser usada como uma lente para descrever as mudanças nas dinâmicas familiares, as relações de género e ideologias ao longo dos tempos. O deslocamento de pessoas e alimentos, a crescente separação de produtores e consumidores, a disposição cada vez maior para consumir alimentos prontos e o declínio da habilidade culinária das classes médias constituem algumas das tendências da alimentação contemporânea (Mintz, 2001). O processo da globalização permitiu que determinadas tendências ao nível das representações e práticas evoluíssem de forma conectada entre diferentes sociedades, suportadas pelo avanço da comunicação digital (Barbosa, 2009). Com a proliferação dos meios de informação, programas, filmes e documentários produzidos nos últimos anos para o grande público, sobre a globalização dos alimentos e industrialização dos sistemas alimentares, foi instalado uma espécie de medo dessa força homogeneizadora. Por um lado, porque põe em risco a perda dos hábitos locais e nacionais, por outro porque a produção alimentar massiva, que usa pesticidas e tóxicos, ameaça a sustentabilidade do planeta e os corpos. Assim, as escolhas alimentares têm-se tornando cada vez mais complexas na medida que envolvem questões políticas, morais, estéticas e éticas, contribuindo para que a alimentação seja encarada como uma atividade consciente, regulada, dirigida e politizada em vez de uma atividade banal, prazerosa e privada (Barbosa, 2009; Warde & Martens, 2000). A alimentação mais do que nunca se tornou, nos termos de Mauss (1967), um fato social total que mobiliza todas as esferas da vida social e atravessa temas como: sustentabilidade, meio ambiente, segurança alimentar, saudabilidade, corpo, memória e estilo de vida (Barbosa, 2009). Ao se tornar numa atividade cada vez mais presente no espaço público, através dos discursos sobre culinária, nutrição e medicina (Barbosa , 2009; Fischler, 1993), a alimentação traz novas questões sobre o que comer, onde encontrar bons alimentos, como cozinhá-los, as consequências para a saúde e para o ambiente. A par da consciência que temos sobre aquilo que comemos, e da responsabilidade individual por ela gerada, o consumidor contemporâneo encontra-se em constante “dilema do omnívoro” (Fischler, 1993), com dificuldades em fazer escolhas

perante

inúmeras

fontes

de

informações

distintas

e

contraditórias.

A

responsabilidade em “comer bem” pode causar ansiedades aos consumidores, fazendo com que a comida seja vista não em termos do gosto e do prazer mas sim em termos dos efeitos que calorias e nutrientes causam nos corpos e na saúde dos indivíduos (idem). Ao entrar no corpo, a comida ingerida carrega uma espécie de carga moral e o comer constitui a atividade 27

que “liga o mundo das coisas ao mundo das ideias por meio dos nossos atos” (Mintz, 2001: 32). Por sua vez, o corpo é constantemente alvo de um poder disciplinar por parte dos indivíduos, que têm a capacidade de se autorregularem por meio dos discursos médico e nutricional que expressam conhecimentos e normas inteligíveis aos sujeitos (Foucault, 1978). Assim, o corpo, como construção de um novo tipo de subjetividade que privilegia a autorrealização, o autoconhecimento o individualismo, o hedonismo (Barbosa, 2009), abriu espaço para que a alimentação se torne um dos principais domínios de prazer e expressividade. Como as comidas são associadas a regiões e a povos e em particular, e muitas delas são consideradas inequivocamente nacionais, a alimentação é associada frequentemente com questões relativas à identidade. Porém, a notável circulação global de comidas e pessoas levantam novas questões sobre comida e identidade (Mintz, 2001). James (1994, in Mintz & Du Bois, 2002) argumenta que as cozinhas não são limitadas pela geografia ou pela nacionalidade uma vez que cada uma delas apresenta influências do mercado, de viagens, de tecnologias, das migrações – a rigor, a comida é mais corretamente constitutiva de culturas globais do que estritamente locais (Mennell, 1985). Em Remembrance of Repasts (2001), Sutton levanta críticas às abordagens que tomam a comida como símbolo de identidade, em vez dos processos/práticas que estruturam o quotidiano, sugerindo que o seu significado (tal como o ato de cozinhar) está muito no fazer, nas técnicas aprendidas e nos sentidos. In thinking about cooking, attention to memory is important in connecting the senses to the kind of embodied practices that we see in the kitchen. Skill raises issues of apprenticeship and repetition, and the education of the senses that allow for the comparisons necessary to judge the successful dish (Sutton, 2013: 300).

A comida transmite memórias, e ao faze-lo, engendra e mantém a consciência histórica. Se a capacidade de criar essas memórias é universal, a sua construção é elaborada segundo contingentes familiares, históricos e culturais. O autor destaca ainda que o consumo, para além de um processo criativo, é sobretudo um processo de aprendizagem e repetição que envolve o julgamento e os usos dos sentidos. Por esse motivo, a nostalgia dos sabores e cheiros de infância podem ser uma força potenciadora de diferenciação entre grupos, especialmente em contextos migratórios onde pode haver uma disrupção das continuidades materiais, simbólicas e valorativas. Ao trabalhar com famílias indianas cosmopolitas nos EUA, Srinivas (2013) esclarece a importância do consumo de produtos “étnicos já preparados” no quotidiano dessas famílias. 28

Aliando a portabilidade e rapidez necessárias num mundo “moderno”, esses produtos tornamse instrumentos e veículos para a transmissão intergeracional da tradição e identidade que remeta à figura da mãe e da nação. The paradox of the cosmopolitan in an existing multicultural context is that as the local becomes less significant physically, the memory and the imagination of that place become stronger. As people are living abroad or away from what they consider their “home culture”, the idea of “homeland” becomes an important nucleus for nostalgic sentiment (Srinivas, 2013: 365).

A autenticidade na comida pode residir na capacidade de reconhecer a identidade através da comida “de casa” (Srinivas, 2013) em vez de outros critérios como saudabilidade, frescura ou de rastreabilidade; pode estar associada à forma ou pelo qual a comida é preparada (onde os objetos envolvidos adquirem bastante importância), ou mesmo através do julgamento baseado na memória dos paladares para os quais o gosto foi educado e passa a ser algo “internalizado ”12 pelos sujeitos (Sutton, 2001). As escolhas alimentares são fenómenos complexos, moldados pela memória, experiências inscritas no corpo, posicionamentos políticos, ideologias alimentares, classe social, género e relações intergeracionais dentro da família. Em contextos migratórios transnacionais, a alimentação constitui um dos principais mecanismos de mediação. Muitas das relações são (re)negociadas e vínculos são mantidos à distância, objetificando-se através de alimentos, receitas e práticas que resgatam e são resgatadas pelas memórias (Sutton, 2001), permeadas pelos afetos e cuidados (Srinivas, 2013). 2.2. Migrações contemporâneas 2.2.1. Quadro geral Na década de noventa, as migrações passaram a ocupar um lugar de relevo na agenda política internacional, fruto do colapso do bloco soviético que originou fluxos incontroláveis de imigrantes ilegais e requerentes de asilo com destino à Europa Ocidental e à América do Norte (Castles, 2005). Esta situação conduziu à constituição de políticas de controlo de fronteiras mais severas quanto aos diversos tipos de mobilidade. Não obstante, ao longo desta década, como revelam os mais recentes dados na publicação da ONU sobre migrações globais, o fenómeno migratório, longe de apresentar sintomas de enfraquecimento, tomou proporções maiores, envolvendo novas rotas e configurações, que contribuíram para a sua atual diversidade e visibilidade (vide quadro 2.1. do Anexo A). No final de 2013 existiam no

12

Tradução de embodied no original.

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mundo 231,5 milhões de migrantes internacionais13, o que representa um aumento de cerca de 50% do total de migrantes desde 1990. Estas tendências elucidam as estreitas ligações que existem entre as mudanças políticas e económicas e os movimentos das populações. As migrações contemporâneas não são um tópico novo para a antropologia. Segundo Vertovec (2007) o desinteresse pelo assunto manifestado pela disciplina nalgumas fases do século passado teve que ver com a sua preocupação acrescida em elucidar os padrões de ordem social e cultural que sustentavam as sociedades, tais como a organização social e parentesco, em vez de revelar potenciais processos impulsionadores de mudança social, como os processos migratórios. Porém, a partir da década de trinta, e muito devido à Escola de Manchester, as dinâmicas e impactos migratórios chamaram à atenção dos antropólogos. Na década de setenta, o tópico da etnicidade ganhou notoriedade na disciplina, em larga medida devido à obra Ethnic Groups and Boundaries (Barth, 1969). O estudo das migrações foi por sua influência caracterizado pelo estudo da identidade étnica entre migrantes, pelos seus mecanismos de manutenção, construção e reprodução (Vertovec, 2007). Também na década de 70, a teoria da prática de Bourdieu14 constituiu um cânone nas ciências sociais, visando entender, de forma articulada, por um lado as dimensões mais estruturais e por outro, dimensões mais diretas e visíveis das práticas sociais. No caso particular das migrações, esta teoria vem influenciar na procura dos seus processos concretos, abandonando a centralidade nos aspetos económicos e sociais, valorizando a forma como as migrações são vividas, ou seja, a experiência de vida de pessoas concretas envolvidas nos processos de mobilidade. No final do século passado, mais precisamente a partir da década de 90, o campo da antropologia das migrações assistiu a uma mudança no foco de análise – dos grupos localizados em determinadas regiões específicas, para os grupos e suas atividades, envolvidas em práticas transnacionais: “Subjects did not fit into the expected research categories of ‘immigrants’ and those ‘remaining behind’. Their experiences and lives were not sharply segmented between host and home societies” (Glick-Schiller, Basch, & Blanc-Szanton, 1994: 5). Os migrantes caracterizam-se por se movimentarem com frequência e por parecerem sentir-se em casa em vários lugares, o que torna a tarefa de definir modos de pertença mais

13

Por migrantes internacionais entendem-se os indivíduos que vivem fora do seu país de nascimento pelo

período igual ou superior a doze meses (cf. ONU, 2013). Esta contagem refere-se a estimativas de número oficiais que excluem muitas vezes migrantes ilegais, pelo que o número real será ainda maior do que o apresentado. 14

Discutida em: (Bourdieu, 1972).

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complexa. A partir deste momento, o transnacionalismo assume papel de relevo para descrever experiências sociais interconteadas. Seguindo o trabalho de Glick-Schiller, Basch, & Blanc-Szanton (1994:7), podemos definir transnacionalismo como: The process by which immigrants forge and sustain multi-stranded social relations that link together their societies of origin and settlement. We call these process transnacionalism to emphasize that many immigrants today build social fields that cross geographic, cultural, and political borders (Glick-Schiller, Basch, & Blanc-Szanton, 1994: 7).

As migrações transnacionais são entendidas como processos dinâmicos, sustentados por redes desenvolvidas pelos migrantes, que vão formando comunidades que estabelecem laços entre países cuja constituição é facilitada pelas bases materiais da globalização: melhorias nas tecnologias da comunicação e dos transportes (Appadurai, 1996; Glick-Schiller, Basch, & Blanc-Szanton, 1994; Castles, 2005; Inda & Rosaldo, 2001; Massey, 1990; Vertovec, 2007). Contudo, nem todos os migrantes podem ser considerados como transmigrantes. Segundo Vertovec (2009), a principal característica que define um transmigrante é que as atividades transnacionais constituem uma parte fundamental e central das suas vidas. Se as comunidades transnacionais “são grupos cuja identidade não assenta primordialmente na ligação a um território específico” (Castles, 2005: 68), estas apresentam um desafio às ideias tradicionais de pertença a um estado-nação (Appadurai, 1996; Castles, 2005). Trata-se de um mundo onde os assuntos culturais e objetos – ou seja, formas significativas, tais como capital, pessoas, mercadorias, imagens e ideias – se tornaram desarticulados de localidades específicas (Inda & Rosaldo, 2001). O mundo atual está organizado em estados-nação onde permanecer no país de nascimento ainda é visto como a regra e mudar-se para outro país, ou seja, migrar como exceção (Castles, 2005). Não obstante, no mundo contemporâneo, as relações sociais e os critérios da comunidade não são mais confinadas apenas dentro dos limites de espaços territoriais nacionais singulares (Inda & Rosaldo, 2001). A fragilidade da soberania do estado-nação é então apontada por vários autores que, por sua vez, conceptualizam a cultura como desterritorializada, uma vez que a globalização corrói as bases do controlo da diferença baseadas na territorialidade (Appadurai, 1996; Glick-Schiller, Basch, & Blanc-Szanton, 1994; Inda & Rosaldo, 2001; Castles, 2005; Portes, 2001; Vertovec, 2007). Com base nesse argumento, Appadurai (1996) defende a presença de uma rutura geral nos modelos de relações entre as sociedades na contemporaneidade. A formulação da teoria de rutura toma os meios de comunicação social e a migração como os seus principais diacríticos, e explora os

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seus efeitos conjuntos sobre “a obra da imaginação” 15como uma característica constitutiva da subjetividade moderna” (Appadurai, 1996: 14). Através da comunicação, o campo da mediatização foi-se transformando permitindo a possibilidade de construção de “selfs” e mundos imaginados. Assiste-se assim a uma transformação no discurso quotidiano uma vez que a mediatização fornece recursos para experiências de construção do eu, permitindo que cada individuo se imagine como um projeto social em curso. Segundo o autor, à semelhança do que acontece com a mediatização as migrações, junto com o rápido fluxo de imagens, textos e sensações, geram uma nova ordem de instabilidade na produção de subjetividades, criando cada vez mais esferas públicas de diáspora (Appadurai, 1996). A imaginação como fato social coletivo é palco para ação quotidiana de vários sujeitos de muitas sociedades que nunca como na atualidade se imaginaram a viver as suas vidas fora, isto é, a imaginar novas formas de viver. As migrações sempre apresentaram causas múltiplas. Segundo Castles (2005), na última metade de século XX, as migrações predominantes foram migrações de fixação definitiva, laborais temporárias e movimentos de refugiados. No cenário atual, emergem novos tipos de migrações, sendo as altamente qualificadas aquelas que constituem o tipo de migração mais procurada por alguns governos de países de acolhimento como o Canadá, os EUA, Austrália e a Grã-Bretanha. Este tipo de migração pode representar uma “fuga de cérebros” de capital humano tipicamente de países pobres para países ricos. Contudo, no contexto de crise económica atual que afeta sobretudo o sul da Europa, fala-se desse mesmo fenómeno no sentido norte-sul, isto é, da saída relativamente consistente de populações qualificadas dos países do sul da Europa em direção a vários países do hemisfério sul, tais como Brasil, Angola e Moçambique. Mais recentemente tem-se escrito sobre novas formas de migração baseadas na procura de uma “boa vida”16 por parte das classes médias mais cosmopolitas (Benson & O'Reilly, 2009). Neste contexto, os média e a experiência turística têm influenciado na escolha do lugar de destino. A procura de melhores condições de vida e o “seguir os sonhos” é transversal a todos os migrantes, porém, para estes migrantes, essa é a razão que se sobrepõe a todas as outras. Associada à mudança de local está a noção de que o novo lugar lhes permite que sejam “mais eles próprios”, que vivam a vida mais próxima da ideia que possuem de si mesmos. Outra obra importante no quadro das migrações contemporâneas é a publicação de Vered Amit, 15

Cf. Anderson (1983) o capitalismo impresso pode ser um meio muito importante para que grupos se comecem

a pensar em conjunto. Para Appadurai (1996) as formas de capitalismo eletrónico têm um efeito semelhante mas a uma escala transnacional. 16

Tradução de good life no original.

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Going First Class (2007) que discute perceções sobre modalidades de mobilidade transnacional voluntária que se situam entre o turismo e a migração. A autora mostra como a experiência da viagem, ao alcance de um maior número de pessoas, pode contribuir para o aumento e valorização da mobilidade do âmbito de classes médias. A associação entre mobilidade e cosmopolitismo “has been further heightened by the elaboration of a public discourse within many industrialized countries that trumpets the importance of ‘international experience’ within a globalizing economy” (Amit, 2011 [2007]: 6). Se as migrações internacionais têm sido amplamente estudadas devido à sua visibilidade e diversidade (Vertovec, 2009), a sua interseção com o consumo e suas mútuas relações não tem recebido muita atenção (Basu & Coleman, 2008; Rosales, 2012). Como afirma Rosales (2010), muitas contribuições têm-se focado nas dimensões imateriais (normas, atitudes, valores, estratégias, políticas de visibilidade) manifestadas no espaço público, ou nos impactos políticos, económicos ou demográficos das migrações. Contudo, as dimensões materiais das migrações enquanto expressões particulares que ocorrem também no âmbito privado têm sido desconsideradas. Todavia, a deslocação de pessoas implica habitualmente substituição de objetos [e alimentos], uma vez que a migração acarreta obrigatoriamente, além de continuidades materiais e simbólicas, a tarefa de lidar com um mundo material distinto, com outras normas e valores de materialidade (Burrell, 2008). Nesse sentido, estudos etnográficos recentes têm demonstrado a produtividade da abordagem às migrações através da lente da cultura material (Burrell, 2008; Frykman, 2009; Rosales, 2009b). Como apelam Basu e Coleman (2008), é urgente explorar não só “the materiality of migration itself, but also with the material effects of having moved, perhaps many years earlier, to a new place, and with the inter-relatedness of the movements of people and things” (2008: 313). O consumo e a cultura material constituem um campo significativo de práticas para abordar as migrações contemporâneas (Frykman, 2009): The expansion of relatively cheap travel options and the enormous quantities of objects – mostly intended for everyday use – transported in overloaded cars, buses, ships and planes, beg for ethnographic descriptions and interpretations that outline relationships and processes embedded in transnational practices (Frykman, 2009: 106).

Para a autora, esta perspetiva permite evitar abordagens exclusivamente centradas nos processos de etnicização, uma vez que se propõe a complexificar o seu estudo, a partir de uma agenda onde “how belonging is embodied, reciprocity materialised and social networks re-

33

created in different locations in the transnational social fields created by migrants” encontra lugar (2009: 106). Além disso, como mostra o trabalho de Burrell (2008) para muitas pessoas, a tarefa de delimitar as suas histórias de vida dos seus pertences constitui um desafio. Como tal, este trabalho orienta-se por esta perspetiva, procurando focar nos movimentos e nas práticas de apropriação dos alimentos de um grupo de emigrantes portugueses, e discutir em que medida eles podem ser considerados mediadores de experiências migratórias contemporâneas. 2.2.2. A emigração portuguesa para o Brasil No final do século passado, Baganha & Góis (1999) fizeram uma análise crítica e diacrónica à produção académica sobre a emigração portuguesa, descrevendo-a como constante desde a expansão colonial e separando-a em três fases. A primeira ocupa o espaço que compreende o início dos fluxos até aos anos 60 do século XX e é caracterizada pela migração transatlântica em direção às Américas. A segunda fase migratória tem início nos anos 1950, quando as migrações intraeuropeias passam a tornar-se preferenciais, e entra em retração a partir de 1974, fazendo com que a análise da emigração para o Brasil fosse relegada para segundo plano. Esta é retomada na terceira fase da emigração portuguesa, considerada pelos autores como o período entre 1985 até à data da publicação, 1999. Segundo Peixoto (2012), o crescimento da imigração estrangeira em Portugal nas últimas décadas, a crença na modernização do país e consequente desvalorização das saídas e uma maior facilidade pragmática em se estudar as entradas do que as saídas poderiam ser possíveis fatores explicativos para a quase inexistência de referências e produção académica recente em Portugal sobre a emigração portuguesa. Desde o estalar da crise de 2008, Portugal encontra-se num momento de recessão económica severa que, do ponto de vista clássico da análise dos fluxos, faria crer em fluxos de saída acentuados (Peixoto & Iorio, 2011). Essa conjuntura traduz-se no saldo migratório que após duas décadas de relação positiva, se inverte radicalmente em 2011, apresentando um valor de -24,3, em contraste com os 3,8 de 201017. Dessa forma, a temática das emigrações portuguesas ganhou visibilidade no espaço público e no espaço académico. Fala-se sobretudo numa “fuga de cérebros”, isto é, a saída de jovens profissionais altamente qualificados, marcando uma nova geração de migrantes no cenário da história da emigração portuguesa (Peixoto, 2012). O autor alerta, contudo, para o caracter 17

Fonte:

Pordata,

saldos

populacionais

anuais:

total,

natural

e

migratório.

Disponível

em:

http://www.pordata.pt/Portugal/Saldos+populacionais+anuais+total++natural+e+migratorio-657 [Consultado em 03/09/14].

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simplista dessas observações alegando de que grande parte dos fluxos continua a ser de uma emigração com baixos níveis de escolaridade que, em rigor, pouco diferem da emigração da década de 60 e 70. Os movimentos entre Portugal e Brasil são caracterizados pelos fluxos transatlânticos que instituíram um sistema migratório recíproco entre os dois países marcados pelo colonialismo que associou os dois territórios, pelo idioma comum e pelos argumentos lusotropicalistas de Freyre. Ao longo dessa relação, ambos os países atravessaram profundas transformações nas suas sociedades, tanto a nível económico quanto social e político, que se repercutiram nas dinâmicas dos fluxos migratórios (Feldman-Bianco, 2001). A emigração portuguesa iniciou-se no século XV, inserida num processo colonizador que envolveu a transferência de grandes contingentes populacionais para os arquipélagos da Madeira e dos Açores, para as então colónias de África, Índias e Brasil (Arroteia, 2011). Os movimentos em direção ao Brasil intensificaram-se a partir da segunda metade do séc. XVIII, após a descoberta de minas de ouro no território, constituindo este o principal destino migratório português desde então até ao século XX. De um perfil administrativo da época colonial, nos séculos XVII e XVIII a emigração para o Brasil passou a ser maioritariamente masculina, individual e temporária, enquadrada na exploração mineira e, posteriormente, da cultura do café (Arroteia & Fiss, 2007). No século XIX, com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, parte da elite política portuguesa também se mudou para o país. A manutenção de circuitos comerciais fez escoar do país uma migração associada a esta atividade, alfabetizada, de “quadros superiores” (Rodrigues, 2007), que muitas vezes regressou enriquecida a Portugal e que alimentou, de certo modo, o “mito da migração”. É na segunda metade do século XIX, após o retorno da corte portuguesa, que o perfil do emigrante português “decai”, consequência da procura de mão-de-obra barata após a abolição da escravatura no Brasil e da expansão da economia cafeeira18 (Pereira, 2007). A emigração portuguesa ocorreu, maioritariamente, de forma independente e não organizada, quer pelo estado, pelas companhias transatlânticas ou mesmo pelos proprietários das explorações de café, tornando-se sobretudo numa migração urbana e dispersa. A essas características adiciona-se a língua comum como fatores que terão facilitado a inserção dos migrantes na sociedade brasileira, contribuindo, de algum modo, para uma certa 18

Neste período, a imigração foi bem vista pela política brasileira, atraindo migrantes de várias nacionalidades,

que chegavam com expectativas de prosperidade e abundância. Contudo, a política brasileira de imigração foi-se tornando progressivamente mais restritiva, com critérios de restrição raciais (1890), seguindo os de caracter social e sanitário no início do século XX (Bôas & Padilla, 2007).

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“invisibilidade” desta população (Bôas & Padilla, 2007). Os migrantes eram, na sua maioria, jovens e recém-adultos, com nível de instrução primária. Todavia, o contingente feminino cresceu gradualmente, com um aumento significativo de mulheres casadas que indicavam o aumento da migração familiar. O fluxo migratório para o Brasil atingiu o auge nos anos entre 1901 e 1911 e abrandou no período entre as duas Grandes Guerras, ao coincidir com o período da crise económica dos anos 30 (Pereira, 2007) e com a aplicação das restrições nas políticas imigratórias, durante o Estado Novo19, nomeadamente o regime de quotas20 (Arroteia, 2011). Posteriormente, a perspetiva lusotropicalista de Freyre21 tornar-se-ia matriz no governo de Vargas e, em 1939, os portugueses passaram a ser excluídos do regime de quotas, usufruindo, daí em diante, de uma série de privilégios abrigados pela política e legislação imigratórias que simplificaram os fluxos migratórios (Bôas & Padilla, 2007). A caracterização mais aprofundada da terceira vaga migratória para o Brasil, nas décadas de 50 e 60, foi possibilitada posteriormente por historiadores que cruzaram os dados estatísticos disponíveis nacionais com fontes alternativas, tanto da origem como do destino, de forma a caracterizar os fluxos legais e clandestinos ocorridos entre Portugal e Brasil, os seus volumes e perfis (AAVV, 2007a; AAVV, 2007b). Nesse período, os portugueses migravam para o Brasil por razões de ordem económica e política, grande parte para fugir do serviço militar ou da pobreza, e dirigiam-se principalmente para grandes centros, como o Rio de Janeiro. Esta vaga era constituída maioritariamente por habitantes da região rural do Norte do país, com baixos níveis de escolaridade, que no Brasil desenvolviam atividade ligadas ao comércio - padarias, restaurantes, cafés, frutarias, (alguns) à produção hortícola e distribuição do pão (Bôas & Padilla, 2007). Durante esse período são formadas várias das casas regionais22,

19

Regime político fundado por Getúlio Vargas 1937 - 1945.

20

O governo de Getúlio Vargas trouxe, contudo, alterações ao regime de quotas para com os portugueses. Em

função da ameaça representada pela formação de colonias de imigrantes no país, o referido governo implementou a “assimilação forçada”, integrada numa política de nacionalização do ensino e da valorização da língua portuguesa que proibiu os imigrantes de falarem as suas línguas nos espaços públicos e domésticos (Bôas & Padilla, 2007). 21

No contexto de tensão cultural consequente da política de “assimilação forçada, Gilberto Freyre partiu em

defesa da cultura luso-brasileira e da figura caluniada do colonizador português, elogiando a capacidade portuguesa de convívio com a diversidade, fundamental à unidade de um país continental, e os valores tradicionais portugueses como o necessário lastro comum (Bôas & Padilla, 2007: 119). 22

Casa dos Açores, 1952; Casa das Beiras, 1935; Casa de Espinho, 1964; Casa de Lafões, 1944; Casa do Minho

1924; Casa do Porto 1945; Casa dos Poveiros 1930; Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro 1923; Casa Regional

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predominantemente da zona Norte de Portugal, que se mantêm até à atualidade e que fazem da área consular do Rio de Janeiro aquela que concentra o maior número de casas regionais portuguesas no Brasil (Knopfli, 2007). Estas associações dedicam-se a atividades de natureza cultural, desportiva, beneficente e, principalmente, recreativa, dado o envelhecimento da comunidade portuguesa. Entre 1974 e 1985, com o término da ditadura, assistiu-se a um decréscimo da emigração permanente bem como um elevado número de regressos a Portugal. Não obstante, com o 25 de abril de 1974 e com a descolonização de África ao longo da década de setenta, o Brasil volta a ser palco de emigração portuguesa, motivado pela conjuntura política dos dois contextos. A então ditadura militar brasileira abriu portas às elites portuguesas ameaçadas pela revolução dos cravos e aos portugueses que vinham das ex-colónias (Graça, 2009). Neste período, a emigração portuguesa era compota essencialmente por uma elite empresarial que saiu de Portugal e das ex-colónias africanas por questões políticas, por falta de adaptação durante o período de retorno a Portugal ou por afinidade com o Brasil a nível da língua, do clima e da abertura, viabilizada pela existência de redes. Percebe-se também a presença cada vez maior de mulheres e de jovens adultos com níveis de instrução mais elevados (secundário, profissionalizante ou superior) (AAVV, 2007a; AAVV, 2007b). No período de rescaldo, entre o 25 de abril de 1974 e a consolidação da democracia portuguesa, circulava no país uma série de bens culturais brasileiros, como a música e a literatura. O ano de 1977 marca a estreia da primeira de muitas telenovelas brasileiras transmitidas em Portugal, “Gabriela, Cravo e Canela” de Jorge Amado 23. Para além de ter provocado um enorme impacto na sociedade portuguesa da época, a telenovela constituiu um vetor mediador importante na construção de representações do Brasil no imaginário dos portugueses, permeadas pelas narrativas, símbolos, imagens e personagens que, pela primeira vez, chegavam à generalidade da população. Na década de noventa, com as políticas de privatização do governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil volta a ser procurado como destino por empresas portuguesas à procura de mercado, num movimento que ficou conhecido pelo “regresso das caravelas” (Feldman-Bianco, 2001). Embora o movimento seja caracterizado sobretudo pelo fluxo de capitais, este conduziu a uma maior fluidez dos

de Aveiro 1958; Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria 1953; Casa de Viseu 1966; Casa de Gondomar 1984 (Knopfli, 2007). 23

Cunha, I. F. (2003). A revolução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal. In: Biblioteca Online de Ciências da

Comunicação. Disponível em: http://bocc.ubi.pt/pag/cunha-isabel-ferin-revolucao-gabriela.html [Consultado em 25/08/2014].

37

movimentos e das diversas motivações que orientam as pessoas a migrar (Bôas & Padilla, 2007). Dos vários lugares para onde a emigração portuguesa recente se tem direcionado, o Brasil é talvez um dos destinos mais mediatizados pela imprensa, que refere com intensidade a saída de jovens qualificados que procuram uma oportunidade no país, em tempos de expansão da economia brasileira. Porém, segundo o relatório estatístico de 2014 da OEm24, quando analisados os dados, o Brasil parece corresponder apenas a 1% das saídas, sendo a Europa o destino privilegiado (entre 80 a 85%) dos emigrantes portugueses.

24

Fonte:

OEm,

2014.

Emigração

Portuguesa,

Relatório

Estatístico

2014.

Disponível

em:

http://www.observatorioemigracao.secomunidades.pt/np4/?newsId=3924&fileName=OEm_EmigracaoPortugues a2014_RelatorioEst.pdf [Consultado em 25/08/2014]

38

CAPÍTULO III – UM RIO SEM PEIXE 3.1. A emigração portuguesa no Rio de Janeiro Apesar da diminuição progressiva do volume da emigração portuguesa para o Brasil a partir da década de 60, os residentes nascidos em Portugal constituem a maior população imigrante no país. Com 137 973 mil habitantes em 2010, distribuídos maioritariamente pelo estado de São Paulo (47%) e do Rio de Janeiro (37%), representam cerca de 23% do total de residentes nascidos no estrangeiro. É importante referir que mais 80% dessa população residente se instalou no Brasil antes da década de 70, constituindo hoje uma população envelhecida25. Para além destes dados demográficos, o relatório do projeto ITINERIS26 (ICMPD, 2013) refere ainda a presença de duas gerações distintas de portugueses: uma composta pelos que migraram na década de 50 e 60 e outra mais recente, que migrou após a crise de 2008. Esta última geração apresenta um perfil jovem, com nível de instrução elevado, atua em nichos de mercado específicos, sobretudo na área da engenharia, da arquitetura e das tecnologias da informação. Segundo dados do MTE, em 2013, as entradas de portugueses no Brasil representaram 5% das entradas totais de estrangeiros, sendo a quinta nacionalidade com mais emigração no país, nesse ano (vide quadro 3.1. do Anexo A, relativo à evolução de conceções de autorização de trabalho atribuídas a portugueses, no período entre 2008 e 2013). Após o valor de entradas se ter mantido constante nos primeiros três anos do intervalo considerado, em 2011 o número aumentou em mais de 100% em relação ao ano anterior, continuando a aumentar progressivamente até 2013. Das autorizações concedidas nesse ano, 44% destinaram-se ao estado de São Paulo e 20% ao estado do Rio de Janeiro. Apesar dos dados oficiais corroborarem a tendência anunciada nos meios de comunicação em relação à emigração portuguesa para o Brasil e contribuírem para a avaliação de aspetos da migração laboral, estes representam apenas uma parte daqueles que migram para o país. Situações de reagrupamento familiar, entradas de estudantes e de turistas que podem ser transformadas em outros estatutos migratórios já em território brasileiro não são contabilizadas neste conjunto de dados. Mesmo tendo vivido no Brasil anteriormente, onde construí relações afetivas com portugueses, brasileiros e estrangeiros, em território brasileiro e fora dele, quando parti para o

25

IBGE, Censos 2010.

26

O “ITINERIS - Proteção da Exploração dos Direitos dos Migrantes do Brasil para Estados Membros da EU”, é

um projeto do ICMPD, cofinanciado pela União Europeia.

39

Rio de Janeiro, para iniciar o trabalho de terreno, não levava contato algum, ora de recémchegados portugueses à cidade, ora de emigrantes de vagas anteriores. Como tal, ainda em Lisboa, a primeira estratégia desenhada para encontrar portugueses na cidade do Rio de Janeiro passou pela tentativa de contato junto de instituições como o consulado português, associações migrantes e também as várias “casas” regionais portuguesas existentes na cidade. Logo no terceiro dia de estadia no Brasil, numa sexta-feira, decidi deambular pelas ruas que circundavam o meu novo pouso, situado numa espécie de fronteira entre os bairros de Laranjeiras e Cosme Velho, na cidade do Rio de Janeiro. Entre lanchonetes com as mais variadas frutas, drogarias Peixoto27 e vendedores ambulantes, avistava, ao longe, um casario amarelo com o que parecia ser uma bandeira portuguesa hasteada, lado a lado, com a brasileira. Aproximei-me e percebi que era a própria, a casa do Minho. Decidi entrar para conhecer e tentar falar com algum responsável. Nesse dia, apesar do diretor da casa não estar presente, fui recebida pela sua secretária, que imediatamente me convidou para o arraial da Quinta de Santoinho28, a realizar-se no dia seguinte. No sábado, ao subir as escadas que levavam ao salão nobre onde decorreria o evento, sentia o cheiro da sardinha a aproximar-se, ao som das concertinas, que me soava tão familiar. A casa estava cheia. O ambiente era de festa e folclore, intervalado com os anunciados pratos portugueses que se podem degustar neste arraial, realizado no primeiro sábado de cada mês: bolinhos de bacalhau de entrada, vinho verde e maduro, sardinha portuguesa assada na brasa, batata cozida, pão de milho e caldo verde. No ambiente, o português do Brasil era dominante, assim como a presença esmagadora de pessoas mais velhas, nomeadamente os emigrantes portugueses das vagas anteriores (décadas 50, 60 e 70) e, também, as segundas e terceiras gerações das suas famílias, já brasileiras. Vários dos presentes afirmaram que semanalmente participavam nas amostras de música popular portuguesa, almoços de domingo de bacalhau e cozido à portuguesa. Alguns deles cooperavam ainda na administração desses espaços. Nos discursos dos mais velhos estava presente uma forte relação de afeto com Portugal, ou mais criteriosamente, com regiões e terras (aldeias) específicas que frequentemente, apesar das suas dimensões geográficas, pareciam ser elevadas a estatuto de “nação”.

27 28

Rede de farmácias popular no Rio de Janeiro, Brasil. A Quinta de Santoinho é um empreendimento turístico folclórico com as principais tradições laborais e

divertimentos rurais da região do Minho, situado na freguesia de Darque, em Viana do Castelo, Portugal. Durante uma viagem a Portugal, o atual presidente da casa do Minho, Agostinho dos Santos, ao assistir ao dito arraial, decidiu promover a sua réplica, na casa do Minho no Rio de Janeiro. O primeiro arraial aconteceu no ano de 1979, mantendo-se até aos dias de hoje.

40

Mais do que ser portuguesa, ser minhota tornou-se no meu cartão-de-visita por excelência naquele espaço, onde sempre fui calorosamente recebida e convidada para vários eventos. Através do presidente da casa, um minhoto que emigrou de navio nos anos 50 para o Rio de Janeiro, conheci muitos outros presidentes e frequentadores de outras casas que visitei posteriormente: Vila da Feira e Terras de Santa Maria, Viseu, Benfica e Porto. Em nenhuma das inúmeras visitas encontrei algum português de uma geração mais jovem, recém-chegado. Do mesmo modo, não encontrei ninguém com conhecimento ou quiçá uma relação de parentesco com algum jovem com esse perfil, o que seria expectável tendo em conta a estratégia do recurso a redes pré-existentes no contexto migratório escolhido (Massey, 1990). A única exceção foi uma avó que conheci na Casa da Vila da Feira cuja neta migrou para o Brasil em 2011 mas já com mestrado em Psicologia e que contou com o seu apoio no estabelecimento na cidade. Quando abordados sobre a nova vaga migratória, os emigrantes desses espaços referiam-se aos novos migrantes com certo desdém, recusando qualquer comparação com eles, argumentando que “os doutores vêm com canudos e parece que têm vergonha de serem portugueses, não se interessam pela cultura portuguesa”. No que respeita à presença de trabalhadores recém-chegados menos qualificados, os relatos também foram bastante assertivos no sentido de não ser uma prática frequente, alegando que o Brasil de hoje “está muito difícil”. Segundo eles, o país não permite mais o estabelecimento e melhoria das condições de vida proporcionadas da década de 70 e 80, na qual esta geração constituiu algum património que ainda hoje é responsável por grande parte dos seus rendimentos familiares. Perante a dificuldade em encontrar migrantes recentes nas casas regionais, aliada à não abertura por parte dos funcionários do consulado português, vi-me coagida a mudar de estratégia. Comecei por fazer pesquisa nas redes sociais, principalmente no Facebook, por grupos de portugueses no Rio de Janeiro. Depois de ter sido aceite no grupo, conheci alguns dos lugares e estabelecimentos preferidos dos membros do grupo, que passei posteriormente a frequentar. Através de informações sobre bares, cafés e restaurantes populares entre os portugueses, aliada à minha participação em alguns eventos organizados pelo grupo, fui conhecendo alguns portugueses que me indicavam outros possíveis contactos para a pesquisa. Durante a pesquisa de terreno, pude perceber alguma heterogeneidade dos portugueses residentes no Rio de Janeiro em relação à cidade de proveniência em Portugal, nomeadamente a presença significativa de pessoas de outras regiões, além das consideradas nesta investigação, tais como Minho, Coimbra, Leiria e Alentejo. Surgiu igualmente uma percentagem significativa de sujeitos de Lisboa, mas não do Porto. Esta situação pode não ser 41

inteiramente ilustrativa da realidade e sim consequência da metodologia aplicada – método bola de neve (Wasserman & Faust, 1994). No que respeita ao perfil destes migrantes, depareime com um grupo homogéneo, constituído por pessoas qualificadas, com ensino superior e, em vários casos com mestrado ou doutoramento, ou em processo de finalização dos mesmos. Os 25 sujeitos que participaram na fase inicial desta pesquisa, isto é, no inquérito por questionário, compõem uma amostra maioritariamente jovem, entre os 28 e 47 anos, de ambos os sexos. Todos os indivíduos entrevistados possuem, de acordo com Bourdieu (1984 [1979]), capitais culturais elevados, provenientes, grosso modo, daquilo que se pode entender como classe média ou média alta em Portugal, salvo raras exceções onde ocorreu mobilidade social ascendente em relação às gerações anteriores das suas famílias. Quanto ao estado civil, este grupo divide-se igualmente entre solteiros e casados (ou união de facto). No último grupo, para além da maioria das famílias ainda não ter filhos, a ida para o Rio foi, para vários, a concretização do projeto conjugal para as relações que em Portugal ainda não haviam atingido tal grau de compromisso. Nesse sentido, para muitos, o Rio de Janeiro significa a sua primeira casa enquanto casal e a constituição da família per si. Além disso, o casamento civil29 surge como uma estratégia dos jovens migrantes para ultrapassar barreiras burocráticas que lhes são impostas na obtenção de vistos que lhes permitam a permanência no país, bem como a comodidade de não ter a preocupação constante com a renovação desses títulos. À exceção dos expatriados, concursados30, e alguns profissionais na área de engenharia cujos contratos foram estabelecidos ainda em Portugal, grande parte dos emigrantes, tal como descrito no relatório ITINERIS (ICMPD, 2013), não havia chegado ao país com visto de trabalho, nem tampouco com trabalho. Do ponto de vista das atividades profissionais destacam-se a engenharia, arquitetura, artes e humanidades e gestão como as mais significativas neste grupo. A maioria entrou em território brasileiro com visto de turista ou visto de estudante. Estes foram posteriormente transformados em vistos de trabalho nalguns casos. Há igualmente situações de irregularidade entre estes migrantes. Apesar de diferentes tempos de inserção no mercado de trabalho, no momento da entrevista, todos pareciam explorar áreas de conhecimento e de trabalho que desejavam, em concordância com as suas formações, ainda que as condições de trabalho ou o tipo de remuneração nem sempre fosse o desejado. Vários são os casos em que as empresas se recusaram a fazer contratos de 29

Nos casos em que um dos cônjuges: têm visto de trabalho permanente, tem dupla nacionalidade, portuguesa e

brasileira, ou nacionalidade brasileira. 30

Termo utilizado no Brasil para designar os funcionários públicos, habilitados através de concurso por provas

públicas.

42

trabalho, deixando os emigrantes numa situação vulnerável, com salários mais baixos, sem usufruto de direitos e seguro de saúde. Esta situação de constante insegurança e instabilidade causa muito descontentamento em relação às expectativas por muitos criadas sobre o Rio de Janeiro, um lugar cujo custo de vida se vem mostrando muito superior ao alguma vez por eles imaginado. Este grupo tem igualmente em comum anteriores experiências migratórias, quer em contextos profissionais prévios quer académicos, nomeadamente intercâmbios e estágios profissionais, ou a aquisição de um dos seus graus de ensino no exterior. Os destinos escolhidos foram essencialmente dentro do espaço europeu – Paris, Londres, Amesterdão, Madrid, Nápoles ou Roma –, entre outros e EUA. O Brasil, e em alguns casos o Rio de Janeiro, foi também um destino de eleição para algumas pessoas. Embora nem sempre sejam estabelecidas pelos sujeitos relações diretas entre as experiências migratórias anteriores e a presente, parece que as primeiras são importantes para abrir a possibilidade (imaginada) da experiência do presente (Appadurai, 1996), uma vez que redimensionam o espaço e encurtam noções de distância. Os poucos que nunca migraram anteriormente encararam o projeto migratório apenas quando este assumiu a forma de um projeto seguro, isto é, quando conseguiram um contrato de trabalho firmado ainda em Portugal, antes da vinda para o Rio de Janeiro. Por outro lado, para alguns dos que já haviam migrado, o “tentar” ou ir à “aventura” com “dinheiro para 6 meses”, “sem nada garantido” surge como uma possibilidade plausível que acabou por conduzir à permanência no destino. As razões que sustentam os projetos migratórios destas pessoas para o Rio de Janeiro foram várias. A mais recorrente parece ser “ter uma experiência profissional e pessoal”; uma “aventura familiar” em decorrência de uma oportunidade profissional. Nalguns casos esta oportunidade passa por tentar um concurso público num lugar que, ao contrário de muitos países europeus, proporciona um “emprego para a vida” numa cidade brasileira específica, muito presente no imaginário dos portugueses: Já tinha ligações de trabalho por um lado, era a única cidade do Brasil que eu conhecia. O que eu conhecia do Brasil era só aquilo que toda a gente também conhece. Tu sabes que São Paulo tem muita oferta cultural, mas que é uma cidade mais monótona, em que demoras horas para chegar aos sítios. Aqui no Rio, se tudo falhar, tens o Cristo e o Pão de Açúcar, aquela coisa. É clichê mas também é verdade! Preferia estar lá e arranjar qualquer coisa, mesmo que fosse ganhar menos, do que ir desterrado para Tocantins ou assim [Tiago, 36 anos. Prof. Unv. Catete].

As oportunidades de trabalho, a valorização dos seus currículos no Brasil e o momento económico particular do país foram apontados, a par da afinidade cultural, como motivos para 43

migrar, associados a um gesto de “prevenção”. Isto é, apesar de grande parte se encontrar, no momento da saída, com condições de trabalho aceitáveis, temiam que mais cedo ou mais tarde o cenário de crise acabasse por lhes afetar. A nossa vida acabou por se afastar um pouco das outras gerações da minha família. É impossível termos a vida garantida como eles tiveram. Eles têm a sensação perfeita que se estivessem numa situação semelhante tinham feito a mesma coisa (migrar) e que não fizeram porque não precisaram [Tiago, 36 anos. Prof. Universitário. Catete].

Nesse sentido, a migração surge também como uma vontade de procurar condições objetivas que permitam a manutenção e reprodução de determinados modos de vida, com os quais cresceram e/ou que idealizaram para si, e que consideram estar ameaçados pela conjuntura atual em que Portugal está mergulhado. Assim, apesar da questão económica não ser evocada explicitamente como motivo principal para a migração, no decorrer do trabalho de terreno surgiram algumas ideias que se podem relacionar com a atual conjuntura económica e social em Portugal: a) a ideia de que os contratos de trabalho são, por norma, temporários; b) que o mercado é demasiado pequeno para as experiências que querem ter; c) que para atingir determinada progressão na carreira (nos casos em que é possível) demoraria muito mais tempo. Estas conceções podem corresponder a representações subjetivas ligadas às experiências individuais. No entanto, elas estão igualmente relacionadas com o contexto político e económico recente em Portugal. Esta segunda dimensão não é claramente expressa pela maioria dos sujeitos que tendem a sobrevalorizar a primeira e a sublinhar o seu papel de escolha no processo migratório. Assim, e apesar das dimensões estruturais do país a maioria das pessoas relaciona a migração como uma escolha individual, por vezes até “natural”, no sentido da continuidade daquilo que idealizam para as suas vidas, na busca contínua por uma good life (Benson & O'Reilly, 2009). Nesse cenário, a relação com a migração (e mobilidade num sentido mais amplo), por vezes é valorizada como capital cultural e simbólico (Bourdieu, 1984 [1979]). Apesar do trabalho parecer ocupar uma posição central da vida dos sujeitos, a sua articulação com a realização pessoal parece ter direcionado a escolha específica deste destino. O Rio de Janeiro, cenário idealizado pelos interlocutores como cidade maravilhosa, como nas palavras de André Filho31, surge como um destino que permite associar a realização dos sonhos profissionais com uma qualidade de vida singular, que só este contexto parece 31

Músico e cantor brasileiro que compôs a marcha de carnavam Cidade Maravilhosa, em 1935, posteriormente

oficializada hino da cidade do Rio de Janeiro.

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proporcionar, ao conjugar o clima de verão constante, com a proximidade de praia e da natureza, num centro urbano que permite “viver para além do trabalho”. Aqui hoje, eu tenho já uma independência, em termos de escritório, ou seja, eu cheguei cedo, mas se amanhã não quiser ir ao trabalho não vou, é uma independência e acho que há uma noção maior aqui de que há vida para além do trabalho. É uma qualidade de vida brutal. Poder vir almoçar a casa, sem ter que depender de transportes [José, 31 anos. Arquiteto. Glória].

É de sublinhar que grande parte dos recém-migrantes não possui uma tradição migratória familiar para o Rio de Janeiro, tratando-se de uma migração de primeira geração. Embora alguns não conhecessem o Rio de Janeiro diretamente, conheciam-no através das experiências e relatos de amigos e conhecidos que, juntamente com os média constituem mecanismos responsáveis pela transferência de capital cultural que contribui para imaginação (Appadurai, 1996) e escolha deste destino migratório. Os capitais culturais e sociais (cf. Bourdieu, 1979) constituem elementos importantes nos percursos migratórios dos sujeitos. Oferecem informações sobre outros contextos e sobre o modo de se deslocar e de procurar trabalho. Oferecem igualmente os relacionamentos necessários para migrar de modo seguro no que respeita a custos, simplificando os processos burocráticos, a procura de emprego e alojamento (Castles, 2005). Por esse motivo, os migrantes seguem “caminhos já trilhados” (Massey, 1990) por outros no passado, o que faz com que haja uma estreita ligação entre a escolha do lugar e o passado colonial, devido à existência de maior afinidade linguística e cultural. Todavia, muitos destes migrantes já conheciam o Rio de Janeiro, devido a programas de intercâmbio e viagens turísticas. Segundo Benson & O'Reilly (2009), a experiência turística (e também a de intercâmbio), ao estar à margem daquela vivida pelos habitantes, proporciona ao visitante a aproximação a um estilo de vida romantizado, que pode direcionar, quer a escolha do destino quer o estilo de vida desejado após a migração, que, neste contexto, se distingue da imagem da emigração clássica portuguesa – “aqueles que só trabalham para fazer dinheiro, sem aproveitar a vida” (notas do diário de campo). Apesar destes sujeitos serem formalmente enquadrados como emigrantes e alguns deles se identificarem como tal, sobretudo na dimensão emocional e da ousadia que ser emigrante representa, outros têm resistência na identificação com esta categoria. Mais frequentemente identificam-se como “estrangeiros”, particularmente quando se posicionam face aos brasileiros, ou ainda “expatriados”. Apesar de reconhecerem que o objetivo é o mesmo – grosso modo, melhorar as condições de vida – fazem claramente a distinção entre outros emigrantes portugueses, em particular aqueles que migraram para França ou mesmo para o Brasil em décadas passadas, ainda presentes na cidade. Uma distinção sobretudo em termos 45

socioeconómicos, ao nível da educação e classe social, implícita na ideia de diferentes gostos e modos de vida, inscritos no que Bourdieu (1984 [1979]) descreveu como habitus: O habitus é, simultaneamente, principio gerador de práticas objetivamente classificáveis e o sistema de classificação dessas práticas. É na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e produtos (gosto), que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida (Bourdieu, 1984 [1979]: 270).

Como se verá nos próximos capítulos da dissertação, através dos consumos em geral e da alimentação em particular, é possível perceber determinadas disposições e estratégias de distinção entre a emigração recente e a mais antiga, que permanece na cidade. Um dos aspetos mais visíveis que diferencia a vaga migratória mais recente da anterior, associada à imagem dos padeiros e comerciantes, é o lugar da cidade onde vivem – a Zona Sul. 3.2. Morar na Zona Sul Ao contrário dos emigrantes portugueses residentes no Brasil, chegados nas décadas de 50, 60 e 70, que se estabeleceram sobretudo nas zonas mais periféricas da cidade – Zona Norte e Centro – em bairros como Tijuca, Benfica e Maracanã, onde se situam vários comércios, padarias e casas regionais portuguesas (vide figura 3.2. do Anexo A), os recémmigrantes encontram-se a viver na designada Zona Sul32 (vide figura 3.3. do Anexo A onde estão assinaladas as residências deste grupo). Mais do que delimitações geográficas, morar na Zona Sul para estes emigrantes significa pertencer e estar dentro dos limites e representações simbólicas importantes para eles, sinónimo de segurança, status e qualidade de vida. Contudo, o estilo de vida idealizado pelos portugueses, próximo da praia, do calçadão33 e água de coco, influenciado pelo imaginado “Rio das novelas”, é proporcionado apenas por alguns bairros da Zona Sul – Leblon, Ipanema, Copacabana (por vezes Lagoa) – os bairros mais nobres da cidade. Por isso, morar nesses bairros, não significa o mesmo que viver nos bairros mais periféricos da Zona Sul como o Catete, Glória ou Cosme Velho, embora sejam bairros de classe média e média- alta no contexto carioca (vide figura 3.4. do Anexo A, relativo ao valor imobiliário estimativo dos bairros da Zona Sul em 2013).

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Zona Sul é uma área geográfica da cidade do Rio de Janeiro que compreende os bairros de São Conrado,

Vidigal, Leblon, Ipanema, Copacabana, Leme na orla, tal como os bairros da Urca, Botafogo, Flamengo e Glória, na Baía de Guanabara, e Santa Teresa, Catete, Laranjeiras, Cosme Velho, Humaitá, Lagoa, Jardim Botânico e Gávea. 33

Designação do passeio público “Calçadão de Copacabana”, um dos símbolos mais conhecidos do Rio de

Janeiro, feito de calçada portuguesa que beira a orla marítima e que simbolicamente se prolonga até ao Leblon.

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Morar junto à orla, requer uma disponibilidade financeira elevada, sobretudo no que respeita aos encargos com alojamento. Contudo, mesmo estando conscientes do elevado custo de vida destes bairros, quase todos os sujeitos se imaginaram a viver nestes lugares, num primeiro momento. Qualquer pessoa que venha para cá viver, a não ser que seja executivo da Petrobras, percebe que isso é um estilo de vida que não está ao alcance de praticamente ninguém, só se já viveres lá desde que nasceste, ou se fores um executivo de topo, ou uma estrela de cinema [Tiago, 36 anos. Prof. Universitário. Catete].

Perante a impossibilidade de escolher a região mais desejada da cidade, vários portugueses, sobretudo aqueles cuja intenção de ficar se prolonga mais no tempo, optaram por outros bairros da Zona Sul, beneficiando de alugueres mais baixos. Isso permite-lhes uma melhor gestão e flexibilidade do orçamento para investimento pessoal e material na casa, bem como outros tipos de consumo, como viagens, espetáculos e jantar fora. Além dos “expatriados” que vivem no Leblon ou Ipanema e que usufruem de condições particulares, nomeadamente de habitação, parcial ou totalmente assegurada pelas empresas, os sujeitos que vivem na orla da Zona Sul tendem a ter projetos migratórios individuais e fluídos. Para eles, a escolha do bairro tem primazia em relação à casa que assume, muitas vezes, um papel secundário, resultando no aluguer de casas muito pequenas, partilhadas, por vezes, com várias pessoas para poder fazer face aos custos dessa escolha. Marina, freelancer na área de marketing desportivo que reside atualmente numa casa compartilhada no baixo Gávea, já definiu os limites geográficos que irão definir a sua estadia na cidade: “Leblon em qualquer lugar, Gávea aqui em baixo, Ipanema mas só até à Nossa Senhora da Paz. Para lá da Nossa Senhora da Paz já não quero, aí vou-me embora”. Se em 2003, época em que fez intercâmbio, a aspiração de viver nesses bairros era alcançável, quer pelo momento económico da época, quer pela sua condição de estudante em que os custos eram suportados por bolsas ou por ajudas familiares, no presente, na condição de trabalhadora, esse desejo torna-se mais difícil de concretizar. Assim, a permanência no Rio, não apenas para Marina como para outros interlocutores, torna-se viável desde que haja a possibilidade de viver num bairro em que a fruição do tão desejado “estilo de vida carioca” seja concretizável. A divisão, geográfica e simbólica, entre os bairros da orla e os restantes da Zona Sul, delimita, por sua vez, diferentes grupos de portugueses, que se percebem mutuamente de forma distinta na forma de estar e viver a cidade. De um lado, os que vivem na orla, maioritariamente inseridos nas áreas de gestão e engenharia, associados pelos demais interlocutores a um padrão elitista, de bon vivant cosmopolita, que vivem no “el dourado” 47

imaginado. De outro, os que vivem nos bairros mais periféricos da Zona Sul, com profissões mais voltadas para as artes e humanidades, ciências sociais e arquitetura que vivem, na perspetiva dos restantes portugueses, de forma mais conformada e menos ambiciosa. Recentemente houve uma prima minha que veio morar no Rio de Janeiro e está a viver em Santa Teresa, como muitos portugueses. E são estilos de vida completamente diferentes. Eu quero uma coisa para a vida e ela quer outra. Não quero parecer arrogante, mas quero ser um dia diretora de alguma coisa, percebes? Ela contenta-se com outras coisas que eu não me contentaria, eu quero morar ao pé da praia, a ela não lhe faz diferença [Marina, 32 anos. Especialista de Marketing. Gávea].

Entendemos a escolha da localização da casa como a vontade de consumir o bairro. Isto é, consumir os estilos de vida e representações desses espaços como estratégia de integração e pertença. Através do consumo de determinados espaços da cidade, os indivíduos demarcam estratégias de distinção, onde o capital cultural e o gosto desempenham um papel fundamental enquanto mecanismos de hierarquização e reprodução social. Este mecanismo funciona, quer no quadro da distinção entre classes, quer no contexto da mesma classe, como se pode ver pelo exemplo descrito por Marina. 3.3. A gastronomia portuguesa no Rio de Janeiro Antes de tratar sobre o impacto da migração nos hábitos e práticas alimentares deste grupo de portugueses no Rio de Janeiro torna-se necessário fazer um exercício de contextualização histórica e sociológica da alimentação brasileira. De modo semelhante, perceber que alimentos, produtos e estabelecimentos estão disponíveis no mercado ajuda a problematizar escolhas e posicionamentos destes migrantes no que respeita aos seus discursos e práticas alimentares. Muitos dos alimentos e ingredientes que hoje caracterizam várias cozinhas “típicas” de cada país ou região provêm, efetivamente, de influências de vários lugares espalhados mundo. Ao longo da história, foram muito mais frequentes os períodos de contato entre os povos e lugares do que os períodos de isolamento, por vezes romantizados nos relatos nas monografias clássicas dos antropólogos. No entanto, como narra Wilk (2006), muitos dos lugares etnografados mantinham há vários períodos contatos e relações de comércio e de troca com grandes impérios e governos coloniais (Mann, 2012). Como tal, as mais variadas cozinhas eminentemente “nacionais” têm, na sua composição, ingredientes cuja proveniência parece ter perdido referência no tempo e no espaço. A cozinha brasileira, analisada por Cascudo (2004[1967]) e Freyre (2003 [1933]) é apresentada como uma mistura de costumes e alimentos relacionados com o período colonial, 48

onde terá ocorrido, segundo o autor, a junção de três raças formadoras do Brasil: indígena, africana e portuguesa. Esta última é considerada a mais influente já que “prestara duas contribuições supremas no domínio do paladar: valorizar o sal e revelara o açúcar aos africanos e amerabas [ameríndios] do Brasil” (Cascudo, 2004[1967]: 239). Na tentativa de reproduzir as suas práticas alimentares, na época, os portugueses trouxeram com eles várias técnicas, conhecimentos e produtos, de influência árabe e das relações que já tinham com o Oriente e a África, que não existiam no Brasil. A ciência colonizadora do português atingiu o esplendor na transmissão do seu paladar aos aborígenes e sucessores. O que não era brasileiro e vinha de Portugal tornou-se brasileiro pela continuidade do uso normal; toucinho, linguiça, presunto, vinho, hortaliças, saladas, azeite, vinagre (Cascudo, 2004[1967]: 242).

Todavia, também se adaptaram aos alimentos dos trópicos que posteriormente trouxeram para o continente europeu. Além do período colonial, as posteriores migrações de vários grupos para o Brasil, alemães, polacos, italianos japoneses vão influenciar a alimentação em diferentes regiões e estados brasileiros. Os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro destacam-se pelo cosmopolitismo das suas cozinhas, resultantes não apenas das imigrações mas também das migrações internas e visitantes que recebem de outras regiões do país e do mundo. Assim, diferente de outros estados que têm associados pratos típicos, como a moqueca na Bahia, o feijão tropeiro em Minas, ou a carne seca no Nordeste, a culinária destes estados é uma mistura de todo o Brasil e influências exteriores (Fagliari, 2005). A cidade do Rio de Janeiro foi capital do Brasil entre 1763 a 1960, altura em que foi transferida para Brasília, tendo sido inclusive capital de Portugal entre 1815-22 devido à transferência da corte e nobreza para o Brasil. Presente por mais de dois séculos, a culinária lusa influenciou a culinária carioca com as devidas adaptações ao longo do tempo. Para além da portuguesa, esta região recebeu influências árabes - os quibes, as esfihas e o grão-de-bico e espanholas que, pelas semelhanças com a portuguesa, muitas vezes se confundem. Apesar de haver vários restaurantes portugueses no Rio de Janeiro, que se intitulam de cozinha tradicional portuguesa, muitos possuem uma cozinha híbrida nem sempre anunciada: Um bom bacalhau à Brás, leitão à bairrada, isso eu sinto muita falta. Aqui já encontrei em restaurantes, mas não é igual, já era uma mistura de Portugal e Espanha e Brasil, tudo misturado. O sabor nunca é igual, mas na ausência de melhor, acabo por ir, esporadicamente [Gonçalo, 43 anos. Engenheiro. Copacabana].

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Não vou a restaurantes portugueses porque te desiludes sempre, é muito caro. Tipo vais pagar 150 reais34 para comer um bacalhau à Gomes de Sá em que vais ficar a olhar para a travessa e vais ficar a pensar onde? Onde é que isto é um bacalhau à gomes de sá? [Luísa, 29 anos. Consultora ONG. Glória].

Muitos dos interlocutores desta pesquisa veem com descontentamento os restaurantes portugueses, alegando o custo muito elevado e a falta de autenticidade dos pratos e sabores para justificar a sua avaliação negativa. Para além da fusão de cozinhas, existem várias adaptações ao paladar carioca que se distinguem do prato original, sobretudo no que respeita ao bacalhau, um dos produtos que mais compõe os menus no Rio de Janeiro. O proprietário de um dos restaurantes portugueses mais afamados e requintados, o Antiquarius, situado no Leblon, em entrevista ao Radar News35 explica: No começo, houve certa resistência. Os pratos mais pedidos eram os mais brasileiros, o picadinho, a carne-seca. Aos poucos, os clientes começaram a pedir receitas mais ousadas. Hoje, sirvo bochechas de javali, um dos maiores sucessos atuais, e as pessoas comem, mas antes era impensável. Também foi preciso fazer algumas adaptações. O arroz de pato, por exemplo, na tradição portuguesa, é mais seco, mas os brasileiros queriam mais húmido, e assim fizemos. Restaurante é casa de família, tem que ser confortável. Hoje o arroz de pato é uma referência do Antiquarius, um dos mais pedidos. 36

Tal como refere Mennell (1985), a cozinha não pode ser limitada pela geografia ou pela identidade nacional e regional uma vez que é suscetível a mudanças e adaptações ao longo do tempo e do espaço. A cozinha recebe múltiplas influências, simultaneamente de natureza local e global, do mercado, das migrações, do turismo, de viagens e de diferentes tecnologias e pessoas. Neste caso, a cozinha portuguesa, ao ser desterritorializada, tende a possuir características de adaptação e apropriação ao gosto local. Para além da existência de vários pratos “tradicionais” portugueses nos restaurantes da Zona Sul, existe ainda uma série de petiscos que remetem à gastronomia portuguesa, comumente encontrados em qualquer boteco37 ou restaurante carioca como bife de fígado, sardinhas fritas e bolinho de bacalhau, geralmente acompanhados do chope38. Na pastelaria,

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Equivale a aproximadamente 50 euros.

35

Jornal digital e impresso com sede em Ribeirão Preto, São Paulo.

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Disponível em linha em: http://radarnews.grupomidia.com/2013/11/influencia-portuguesa-a-gastronomia-

carioca-e-intensamente-influenciada-pelos-lusitanos/ [Consultado em 25/11/2014]. 37

Espécie de tasca ou taberna onde se servem refeições rápidas – tira-gostos – e bebidas alcoólicas.

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A cerveja servida a partir de barris sob pressão, vulgarmente conhecida como fino ou imperial em Portugal.

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encontram-se também várias sobremesas com ovos-moles (rocambole), pastéis de nata e rabanadas. Inevitavelmente, a oferta de produtos portugueses na região acompanhou o aumento do fluxo de portugueses para o Rio de Janeiro. Maria, natural de Santo Tirso, chegada ao Rio de Janeiro em 1962 com 15 anos, relembra o quão difícil foi desabituar-se da cevada e pão de milho que tomava ao pequeno-almoço no contexto de escassez emergente que a fizera emigrar. Na época em que chegou, Maria relembra que a disponibilidade de produtos portugueses era praticamente inexistente. Tanto que, quando alguns produtos começaram a ser comercializados no Rio de Janeiro, como a cevada Pensal de que tinha tantas saudades, já não encontrou “aquele prazer, porque já estava acostumada ao café carioca”. Tal como Fischler (1993) argumenta, a demanda de produtos cresce ou declina consoante aqueles que os consomem. Ao ser destino de grande parte da emigração portuguesa das décadas de 50, 60 e 70 a cidade recebeu novas influências dos portugueses que vieram para o Rio de Janeiro. Entender a sociografia desses portugueses é importante para perceber a composição da oferta de produtos portugueses na região. Além de estarem ligados ao setor alimentar, nomeadamente ao trabalhar em restaurantes, bares, padarias, e pequenos e médios comércios tais como mercearias e supermercados, os portugueses foram trazendo algumas práticas e produtos como enchidos, azeite e vinhos, ligados com o seu passado rural, como forma de objetificação material da memória. Esses e outros produtos são hoje encontrados para venda em alguns supermercados na Zona Sul, nomeadamente o Pão de Açúcar 39 e algumas mercearias específicas que se concentram na Zona Norte e na Cadeg 40, em Benfica (vide figuras 3.5 a 3.9 do anexo A). Entre os produtos anunciados destacam-se os vinhos, a cerveja, as águas gaseificadas, conservas (azeitonas e tremoços), os enchidos, queijo da serra, azeite e bacalhau, que refletem a patrimonialização crescente de sistemas e produtos culinários. Durante o trabalho de terreno percebi juntos de vários comerciantes portugueses, antigos e recém-chegados, e também de consumidores, que a política de importação e taxação do 39

Pão de Açúcar é uma rede de supermercados de classe média-alta e alta, pertencente ao Grupo Pão de Açúcar,

que começou inicialmente por uma mercearia (1948) de um emigrante português no Brasil, Valentim dos Santos Diniz. 40

Situada em Benfica, Zona Norte, a CADEG (Central de Abastecimento do Estado da Guanabara) é um

mercado carioca conhecido pela variedade de frutas, verduras, plantas e atualmente pelos vários restaurantes que lá se situam. É na CADEG que se realiza semanalmente, aos sábados, uma das mais famosas festas portuguesas abertas da cidade, na rua 16. A festa promove a cultura do Alto Minho português, local de origem da maioria dos comerciantes portugueses instalados no Mercado, desde a época do antigo porto do Rio de Janeiro.

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Brasil constitui um fator de enorme constrangimento, quer para a importação de produtos quer para compra e consumo dos mesmos, uma vez que os produtos chegam ao mercado com preços muito elevados. Por esse motivo, e diferentemente de outras comunidades da diáspora portuguesa em países da União Europeia, Canadá ou EUA onde os interlocutores já haviam estado, o Brasil ao ter uma política económica protecionista não dispõem das condições objetivas favoráveis à criação/consolidação de um comércio étnico. Para este grupo, a circulação de produtos, alimentos e comidas entre Portugal e Brasil – o mercado da saudade – é importante e frequente. Apesar das restrições sanitárias estabelecidas, produtos e comidas circulam de um país para o outro em malas de viagem e/ou encomendas de correio. Mais do que o simples fluxo de mercadorias, a circulação é uma prática importante na manutenção dos laços de afeto entre as pessoas “cá” e “lá”. Isto é, através do fluxo de objetos, comidas e outras mercadorias, circulam relações e lembranças que ligam os indivíduos na cidade do Rio de Janeiro com indivíduos em Portugal. Esta circulação pode funcionar como uma estratégia de (re)conexão com o passado e estar relacionada com a ideia de regresso a casa, através de um experiência emocional, sensorial e social partilhada. 3.4. Entre a casa e a rua: perceções e impactos na alimentação quotidiana Nos dias de hoje, a crescente circulação de produtos, ideologias alimentares transnacionais e as alterações nos métodos de produção e distribuição alimentar colocam novas questões sobre a alimentação contemporânea. Se no passado o acesso a diferentes gastronomias ditas nacionais era limitado às classes mais abastadas, na atualidade a circulação além-fronteiras de diferentes informações, gastronomias e produtos popularizou a possibilidade de experimentar novos sabores e adquirir novos hábitos. Para além da inclusão de circuitos gastronómicos no âmbito do turismo, cuja experiência constitui uma das dimensões mais significantes no contato com o outro, cada vez mais crescem lugares cosmopolitas que disponibilizam diferentes produtos e cozinhas através da proliferação de restaurantes e mercados étnicos, influenciados pelo estabelecimento de comunidades/redes migratórias, que viram neste nicho de mercado uma possibilidade de negócio. Independentemente das influências serem mais globalizadas ou localizadas, a alimentação enquanto prática é aprendida e incorporada pelos sujeitos em contextos sociais, culturais e familiares específicos. Ao ser um momento de forte disrupção na vida dos sujeitos, a migração permite-lhes a revisão e reavaliação das práticas quotidianas mais naturalizadas, como a alimentação. Assim, a alimentação pelo seu carácter vital, necessário e imediato é uma das primeiras práticas com as quais os sujeitos têm que lidar quando chegam a um novo 52

destino. Simultaneamente, o novo contexto também é avaliado por quem chega e a sua relação com a alimentação constrói-se e problematiza-se na tensão entre práticas e contextos anteriores com os atuais. No que respeita aos hábitos alimentares locais, o grupo que integra esta investigação apresenta duas perceções dominantes e aparentemente bem demarcadas na cidade. É estranho porque no Brasil tu vais aos supermercados e tu vês o que é que as pessoas compram: Coca-Cola, bolachas, Doritos, a alimentação das pessoas é essa. Mas depois há toda uma classe muito fanática, toda do arroz integral, massa de arroz, coisas sem glúten, sem lactose e essas coisas que eu até nunca tinha ouvido falar [Miguel, 38 anos. Cineasta. Jardim Botânico]. A comida tradicional é extremamente calórica, comida de boteco. Feijão, batata frita, inhame, croquete, pastel, coxinha é tudo muito frito, muito pouco saudável, é pesada. Mas depois tens uma oferta natural aqui muito maior que em Portugal. Então aqui quem é das bases, muito provavelmente tem hábitos alimentares mais difíceis, tu vês pelas pessoas fisicamente também, não é? Depois tem o outro extremo da classe média que é ridiculamente fã do corpo. Então aí eles comem aquelas saladas, fazem dietas absurdas, bebem sucos, é uma coisa assim meia doentia. O povo aqui é de extremos [Sara, 31 anos. Profa. Universitária. Flamengo].

Os seus discursos evidenciam uma perceção estereotipada que relaciona ideologias alimentares e classe social. A classe popular surge como adepta de uma alimentação onde a dimensão sensorial, do prazer é sobrevalorizada em detrimento da saudabilidade e do corpo. Do outro lado, estão as classes mais abastadas cuja preocupação central passa por uma ideologia onde a saudabilidade e a busca de um corpo esteticamente atrativo e saudável são fundamentais. Contudo, como argumenta Barbosa (2009), as várias tendências da alimentação contemporânea apesar de afetarem distintamente diferentes grupos sociais e indivíduos tendem a ser apropriadas de formas muito diversas, podendo sobrepor-se umas às outras. Algumas são mais restritas e localizadas, e outras podem ser de ordem mais global e duradoura pelo que a sua essencialização inviabiliza uma leitura que faça jus à complexa realidade que é a alimentação na contemporaneidade. Nos últimos anos a alimentação ganhou uma visibilidade e uma centralidade que não tinha anteriormente (Barbosa, 2009). Apesar de sempre ter sido importante do ponto de vista simbólico e comunicativo, na medida em que sempre teve relação com a identidade e distinção entre diferentes grupos e coletividades, a alimentação na atualidade levanta novos questionamentos sobre a sustentabilidade ambiental e epidemiológica cuja responsabilidade incide sobre os indivíduos e consequências das suas escolhas e práticas alimentares. A lógica da autogestão dos indivíduos está ancorada a uma mudança do papel do estado em relação à 53

noção de risco41 (cf. (Giddens, 1991; Luhman, 1993) que determinados comportamentos alimentares colocam em termos de saúde pública. Assim, de uma atitude reativa o estado passou a adotar uma atitude proactiva, que tem como objetivo geral a promoção da saúde, através de medidas que regulam e indicam o que é uma alimentação correta. Poder-se-á dizer que ao invés de “sermos aquilo que comemos” como proclamou Hipócrates, cada vez mais “comemos aquilo que somos” na medida em que as nossas escolhas alimentares dizem sobre os nossos posicionamentos políticos relativos ao ambiente, à criação animais, à forma de produção dos alimentos, à proteção de comunidades locais, entre outros. Num sentido amplo, a ideologia da saudabilidade, ou a noção de estilo de vida saudável, é uma das preocupações citadas pelos interlocutores em relação à sua alimentação. As associações entre saúde, alimentação e corpo são constantes na procura por uma forma “correta” e saudável de se alimentar e viver. Nos seus discursos sobre a alimentação local, o corpo surge como a materialização das escolhas alimentares dos indivíduos que, por sua vez, são responsáveis pela produção dos seus corpos. Nesse sentido, implícita no discurso, existe uma dimensão moral que associa as escolhas e práticas alimentares a uma espécie de terapia e medicalização da alimentação na produção de determinados corpos. Num contexto onde se situam simultaneamente os bairros mais nobres da cidade e favelas que se ergueram nos morros próximos desses bairros, a Zona Sul torna-se inevitavelmente um espaço de cruzamento de diferentes grupos sociais. Mais do que a materialização das escolhas alimentares, o corpo e o conjunto de elementos que o compõem (cor, cabelo, roupas) constituem elementos de distinção e demarcação entre os grupos sociais, num contexto marcado pela acentuada desigualdade social e económica, que gera implicações quanto ao campo de possibilidade de acesso ao consumo pelos diferentes grupos sociais. No Brasil em geral e no contexto da Zona Sul do Rio de Janeiro em particular, o corpo parece adquirir uma importância e visibilidade acrescida em relação aos contextos anteriores destes emigrantes portugueses uma vez que está constantemente exposto em diversos espaços, físicos e simbólicos. Num clima marcado continuadamente pelo verão, na Zona Sul, seja na

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Cf. Giddens (1991) e Luhman (1993) que apresentam o risco como um fenómeno social, que implica uma

nova atitude da sociedade em relação ao futuro. O risco ter-se-ia transformado num conceito cultural e político central através do qual indivíduos, instituições e grupos sociais são organizados, monitorizados e regulados, envolvendo a racionalização sobre o futuro. O cálculo do risco é o elemento que, nas sociedades atuais, passa a definir e a fundamentar estratégias de gestão nos mais variados níveis, desde a gestão do indivíduo sobre o seu próprio corpo até à gestão local/global das ameaças, passando pela gestão económica e do Estado.

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praia, no calçadão ou simplesmente na rua, o corpo é constantemente “terreno privilegiado” (cf. Giddens, 1991) de disputas e avaliações. O fato de estar sempre verão e não ter inverno acaba por também dar uma certa continuidade às pessoas de estarem fora de casa e fazerem coisas. A vida do carioca: as pessoas são muito descontraídas, são muito relaxadas. Encontram-se na praia, encontram-se no calçadão, encontram-se a andar, encontram-se a correr. Os programas e a lógica das coisas é um bocado essa. De facto o Rio tem esse viés de desporto, natureza, etc que acaba por influenciar forçosamente as pessoas a terem mais cuidados com o corpo. Claramente ajuda as pessoas a ter um drive mais natureba42, a por a pessoa a fazer mais desporto e a ser mais saudável. Existe claramente uma energia nesse sentido na cidade [António, 36 anos. Gestor. Leblon]. É uma cidade que ao respirar muito o exercício físico e a cultura do corpo, às vezes exageradamente, faz com que tu “pratiques mais desporto”, que tenhas uma vida mais saudável bla bla bla. Isto aqui há uns contrapontos, por um lado há essa coisa de ser uma cidade saudável e esse tipo de coisas, tens muitos lugares onde comes saladinhas e esse tipo de coisas, sucos naturais, etc. Mas depois tens as churrasqueiras, que é carne, carne, carne. São filas indetermináveis de pessoas que consomem carne o dia todo. A ponte é muito ténue, por um lado leva-te a praticares mais desporto e a te alimentares melhor, mas depois tem outras coisas que te fazem muito pior” [André, 37 anos. Designer. Vidigal].

As associações entre corpo e estilo de vida “saudável”, que passam pela conjunção de atividade física e por uma alimentação regulada, são constantemente reforçadas pelos interlocutores. Mais do que isso, parecem ter uma forte influência no direcionamento das suas práticas. Ao ser exposto constantemente, o corpo torna-se alvo de uma série de práticas e cuidados que ultrapassam o domínio da alimentação e do desporto. Tenho o corpo mais exposto então tenho que ter mais cuidado com ele. Lá passo meses com o corpo coberto então não tenho noção das coisas que são precisas, e isso mudou. Portanto, compro muito mais produtos de beleza, passei a pintar as unhas dos pés, coisa que nunca fiz antes, faço depilações com mais frequência e também exercício físico [Júlia, 31 anos. Museóloga, Catete].

A produção do corpo tem uma relação muito estreita não só com a alimentação regrada mas com uma definição mais ampla de saudabilidade como estilo de vida, onde a atividade física também possui um papel de coparticipação na produção desses corpos. Segundo Fischler (1993) as práticas alimentares são mediadas por um conjunto de regras nutricionais que circunscrevem e definem o que se deve comer. Contudo, a ideia do comer

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Designação popular para um estilo de vida que se aproximam de uma ideologia de alimentação “natural”.

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“corretamente”, bem como as prescrições dos discursos médicos e nutricionais não são alheias ao contexto, senão situadas culturalmente, historicamente e, também, socialmente. Por esse motivo, as diferentes perceções sobre um estilo de vida saudável podem facilmente entrar em conflito e resultar em avaliações morais que tendem a diminuir ou depreciar conceções de saudabilidade dos “outros”. Do mesmo modo, a produção do que se entende por um corpo (biologicamente) são ou (socialmente) desejado, também obedece a diferentes normatividades históricas, culturais e sociais. Outra coisa que me impressionou muito é a facilidade com que se veem operações plásticas aqui. O não lidar bem com o envelhecimento da pele, tudo isso, que eu acho, não sei, nem consigo ver se é saudável se não é. O certo é que aqui dou por mim a olhar para as pessoas e a detetar “tem operação plástica ou não tem operação plástica”, [risos] é um exercício que eu faço, porque eu não fazia, é novidade [Júlia, 31 anos. Museóloga, Catete].

A relação de normatividade em relação à estética e padrões de beleza que Júlia percebe nos corpos cariocas, socialmente distinta da sua, leva a pensar o corpo conforme Giddens (1991), como um terreno das recontextualizações locais de tendências globais, lugar das disputas em torno de novas identidades, sejam pessoais, de manutenção de identidades históricas ou híbridos culturais. Quando questionados sobre os seus hábitos alimentares no novo contexto os sujeitos de pesquisa afirmavam, na maioria das vezes, não terem feito muitas alterações. Alimentam-se de forma similar à que tinham em Portugal, seguindo o “mesmo esquema”, isto é, uma lógica de continuidade, que pode significar tanto ao nível dos produtos como das regras, valores, critérios e noções relacionadas à boa alimentação. Acho que não alterou nada. Obviamente que introduzi coisas novas, mas não houve nenhuma alteração… nem sequer nunca tinha pensado nisso. Até porque o Brasil não é a mesma coisa que eu de repente ir para o Japão e comer algas que eu nunca tinha visto, ou não sei o quê, não é? [Hugo, 37 anos. Editor. Humaitá].

A reflexão de Hugo sobre a sua alimentação no Brasil recai maioritariamente sobre a familiaridade e reconhecimento dos ingredientes que compõe a culinária e hábitos locais em oposição a outros contextos mais exóticos, do que propriamente sobre o impacto da migração nas suas práticas alimentares efetivas. Esta perceção é partilhada por outros interlocutores com base em experiências alimentares anteriores em termos migratórios, turísticos ou simplesmente cosmopolitas, onde a cozinha brasileira em geral, e carioca em particular, parece ocupar um lugar de semelhança e proximidade com a cozinha portuguesa. Eu nem acho que a cozinha brasileira seja particularmente diferente da portuguesa. Aqui, diferente de São Paulo que tem uma influência italiana e japonesa muito forte, a maior

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comunidade, a que deixou mais peso foi claramente a portuguesa até. Não é a mesma coisa que ir viver pra Israel ou para Marrocos onde a dinâmica é totalmente diferente Claramente há uma diferença básica que é: o peixe é melhor lá; e a carne é melhor cá. Há muita parte de identificação culinária. O padrão da alimentação aqui não é muito diferente, mas… de facto, também não é igual [António, 36 anos. Gestor. Leblon].

Se, numa perspetiva genérica, a gastronomia brasileira e portuguesa podem ser vistas como semelhantes, sobretudo se comparadas com outras mais “exóticas” e distantes, quando comparadas entre si percebem-se bastante diferentes, nas preferências, modos de comer, representações e cosmologias. A comparação entre a gastronomia portuguesa e brasileira parte da semelhança e da partilha de determinados alimentos e produtos. Contudo, a culinária embora possa ter por base alimentos e produtos semelhantes, reflete uma combinação própria que a distingue da outra. Culinária é “o conjunto que engloba manipulação, técnicas de cocção, representações e práticas sobre as comidas e as refeições” (Barbosa, 2009), que transforma alimentos na comida que caracteriza as diferentes regiões e sociedades humanas. Portanto, as culinárias variam de região para região, de casa para casa, não só ao nível dos ingredientes como ao nível da materialidade dos utensílios utilizados e dos processos de preparação dos mesmos. De modo semelhante, como descrito na secção anterior, dentro de cada uma das “gastronomias” também se identificam diferentes indivíduos e grupos sociais, o que torna a alimentação num campo de distinção. Assim, quando se elaboram discursos sobre as próprias práticas alimentares e práticas alimentares dos outros, são reveladas cosmologias e critérios sobre o que é considerado bom e mau e o que é passível de aprovações e reprovações. Apesar da aparente semelhança presente nos seus discursos e da lógica de continuidade das suas práticas alimentares, a migração implicou para os sujeitos em estudo transformações que podem ser observadas sobretudo nas suas tentativas (ou não) de reproduzirem ambientes sensoriais familiares. Como tal, as práticas alimentares dificilmente poderão ser eminentemente iguais às anteriores, ainda que haja um esforço para que tal aconteça. Por diferentes motivos e circunstâncias, que veremos com detalhe no próximo capítulo, a alimentação foi alvo de reflexão e reavaliação, conduzindo tanto a resistências como alterações e apropriações nos três momentos que envolvem o consumo alimentar doméstico – compra, preparação e consumo. No decorrer do inquérito por questionário, os 25 interlocutores foram questionados sobre o impacto da migração na alteração efetiva nos seus consumos e práticas alimentares. A resposta passava primeiramente por uma avaliação quantitativa de 1 – “agora estou muito 57

pior” a 6 – “agora estou muito melhor”, seguida de uma descrição que a fundamentasse de forma qualitativa. As respostas a esta pergunta resultaram em avaliações muito antagónicas que oscilam entre apreciações bastante positivas e outras bastante negativas da mudança, fruto de novas rotinas, que se relacionam com algumas tendências da alimentação contemporânea, nomeadamente saudabilidade, prazer, gosto e identificação alimentar. As apreciações negativas da alimentação no novo contexto aglomeram um conjunto de motivos que se prendem com as ofertas do mercado (supermercados e restaurantes), fatores económicos, critérios de saudabilidade, modos de comer e a valorização do sabor e do prazer gerados pela tensão entre “comida portuguesa” e a alimentação local. Peço à minha mulher para fazer um bacalhau espiritual ou uma lasanha que ela fazia lá, ou um doce de chocolate que a minha mãe fazia, com a receita dela. Então, tem mais a ver com a casa do que propriamente com o teu país [Pedro, 34 anos. Especialista de Marketing. Copacabana].

A “comida portuguesa” a que frequentemente se referem, mais do que estar ligada a uma ideia de nação, remete para um meio sensitivo que lhes é familiar, aquilo que aprenderam com a mãe, bem como noções do discurso nutricional e médico socialmente construído. A nossa alimentação é muito saudável, tu comes peixe, peixe, peixe. Eu comia peixe todos os dias, depois é a comida da mamã, a comida é muito mais variada, muito mais saudável a comida portuguesa, as quantidades, sei lá, aqui é muita carne, tudo fritos e não sei quê [Rita, 30 anos. Arquiteta. Copacabana].

A “comida portuguesa” é aqui associada a uma alimentação prazerosa, variada e saudável, por oposição à comida local descrita como menos saudável e menos variada. No âmbito da saudabilidade os alimentos são também hierarquizados, por essa razão, o maior consumo de peixe em detrimento da carne é moralmente valorizado como superior e como parte fundamental a uma dieta equilibrada. A dificuldade em encontrar peixe, quer em restaurantes quer nos mercados é para todos os interlocutores a barreira principal à manutenção das suas práticas alimentares, que questiona ambas as noções de equilíbrio e de prazer associadas ao ato de comer. Mais do que as propriedades nutricionais dos alimentos em si, os modos como se combinam e ingerem parecem constituir o principal elemento de alteridade, no que respeita à alimentação ofertada na rua. Faz-me confusão e não me passa pela cabeça comer a mistura que fazem aqui, o prato feito que é cheio de batata frita, arroz, feijão e esparguete assim ao molho, depois um prato com um bocadinho de alface e assim um bife com um ar um bocado suspeito. Então principalmente na variedade, a pessoa tem que batalhar um bocadinho para arranjar uns restaurantes um bocadinho mais diferentes, já para não falar no preço, substancialmente mais elevado do que em Portugal [Tiago, 36 anos. Prof. Universitário. Catete].

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A mistura do prato feito pode ser contornada pela frequência dos restaurante a kilo43 que disponibilizam uma variedade de diferentes elementos de forma separada – saladas, vários tipos de arroz, massa, feijão, carnes, frango, sushi, entre outras – o que permite a individualização da escolha do prato. Contudo, a conceção de variedade presente, não apenas no restaurante de kilo mas também no âmbito doméstico de muitas casas brasileiras, contrasta com a definição de variedade dos interlocutores que está relacionada com a disponibilidade e diversidade de pratos fechados, (que variam ao longo da semana) às quais a dimensão da moral, identificação, do sabor e do prazer são associadas. Eu não gosto de comer nos restaurantes de kilo, não é o meu estilo. Eu tenho saudades do prato fechado em que tu vais para comer feijoada de tripas, polvo à lagareiro ou comer aquilo e não comer um pouquinho disto e daquilo, em que nada combina com nada. Eles querem fazer tanta variedade ao mesmo tempo que depois acabam por se descorar da qualidade de cada um dos pratos, não gosto nada [Andreia, 29 anos. Psicóloga. Botafogo].

Além das dimensões culturais dos diferentes modos de comer que geram um impacto negativo nas suas cosmologias alimentares, a origem dos alimentos, sobretudo dos “frescos”44 parece ser uma incógnita para alguns interlocutores que representa simultaneamente um risco para o corpo e para o ambiente. A qualidade dos alimentos não é muito boa aqui. O agronegócio tem muito power. Muitas vezes tu pedes uma salada e ela vem já murcha, ou o tomate que não sabe a nada. O Brasil é o país com mais agrotóxicos no mundo então a fruta e legumes é uma loucura porque tu comes fruta e legumes e estás-te a intoxicar [Miguel, 38 anos. Cineasta. Jardim Botânico].

Por outro lado, a “biografia social” (cf. Appadurai, 1986) do que é ingerido, isto é a sua proveniência e modos de produção, além de dimensões políticas e ideológicas, está intimamente ligada a dimensões sensoriais e de prazer que relacionam qualidade superior com alimentos advindos de um meio de produção mais “limpo”, “natural”, “biológico”, “orgânico” ou “ecológico”. Mais do que a dimensão ecológica ou política, a dimensão central pela qual avaliam negativamente a mudança dos seus hábitos alimentares está associada ao gosto e à (não) identificação com determinados modos de comer que este contexto (não) disponibiliza. Por outro lado, a privação de determinados produtos e práticas proporcionadas por este contexto pode ser avaliada de forma positiva. Nós temos muita comida animal de qualidade, presunto, enchidos, os queijos. A quantidade de queijos alentejanos e de queijos da serra. E aqui, talvez por não serem as mesmas coisas que eu 43

Modalidade de estabelecimento alimentar que surgiu no Brasil e que oferece vários tipos de alimentos que são

conjugados livremente pelo consumidor, cujo valor da refeição é calculado em função do peso do prato. 44

A denominação que se refere a frutas, legumes e vegetais por vezes também chamados de naturais.

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estava habituado, cortei nessa parte, que é uma parte muito grave, muito “colesterólica”, então eu comecei a melhorar muito nesse aspeto [Luís, 30 anos. Engenheiro. Ipanema]. Aqui é rara a vez que vou comer doces, se eu vou a um café peço um suco, no máximo um açaí45, não vou pedir pastelaria deles, é muito gordurosa, muito doce e muito exagerada, não se entranha [André, 29 anos. Arquiteto. Humaitá].

A ausência de determinados produtos muito apreciados e que faziam parte do quotidiano anterior como os salgados mencionados por Luís, aliada à não identificação com as “tentações” locais citadas por André, parece facilitar a resistência a uma alimentação “gostosa” e abrir portas para a adoção ou reforço de práticas “mais saudáveis”, fazendo com que a mudança seja avaliada de forma positiva. Melhorou porque nós optamos por ir mais pelo lado mais saudável. E tudo o que são sucos verdes começámos a tomar, tudo o que é fruta, que é maravilhosa aqui, as saladas. O facto de se fazer muito exercício físico aqui também ajudou, então toda a parte de saúde nós melhoramos bastante aqui. A forma como como não se alterou, só tenho mais facilidade em concretizar essas ideias aqui [Vera, 41 anos. Bióloga. Leblon].

Contudo, apesar das apreciações refletirem ganhos em termos de saúde, cuja definição é altamente polissémica como veremos no próximo capítulo, alguns interlocutores fazem a distinção clara entre “melhorar em termos de gosto e melhorar em termos de saúde”. No que respeita ao gosto, existe uma clara identificação com meio sensorial anterior, das memórias e dos afetos. Posso dizer que a minha alimentação é mais saudável porque a nossa alimentação, apesar de tudo, é muito saborosa mas é um pouco gorda, mas é boa, eu não a troco por nada e tenho muitas saudades. Aqui tenho uma alimentação melhor, mais saudável, tento reduzir os hidratos de carbono e comer mais proteínas e vegetais. Não preciso dos hidratos do arroz ou do feijão, posso tê-los numas cenouras ou nuns tomates [Gonçalo, 43 anos. Engenheiro. Copacabana].

Tal como argumenta Barbosa (2009) a saudabilidade enquanto prática tende a enfrentar alguns desafios devido à distinção simbólica que existe entre alimentos “saudáveis” e alimentos “saborosos”. A restrição destes últimos juntamente com a influência do contexto atual parece renovar os hábitos e a própria linguagem da alimentação, onde predomina o discurso nutricional que enfatiza determinadas composições alimentares, como gorduras, proteínas e hidratos de carbono em detrimento dos alimentos em si.

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Fruta brasileira, produzida na região Norte do Brasil, geralmente preparada da polpa congelada que gera uma

pasta parecida com um gelado, onde podem ser adicionadas frutas e cereais.

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Ao contrário da rua, lugar marcado pela impessoalidade e ausência de vínculos culturais e sociais, que dispõe de uma oferta de alimentação mais restrita e imparcial, a casa surge como o centro principal das práticas alimentares destes emigrantes como o lugar de pertença, conforto, afinidade, reconhecimento, controle e (re)produção dos consumos alimentares. Assim, segundo vários interlocutores, cozinhar em casa intensificou-se consideravelmente após a migração por diferentes razões, apesar dos desafios impostos pela rotina e habilidades culinárias. É muito difícil comer bem aqui se uma pessoa não cozinhar. Há muita coisa fresca aqui, só que é preciso cozinhar, isso na rua não há, e quando há o preço é de fugir. Cozinho bastante em casa, e mesmo para o trabalho, levo a marmita ao almoço porque se estás dependente da rua é muito complicado fazeres uma boa alimentação [Rita, 33 anos. Jornalista. Centro].

Motivada sobretudo pela identificação e liberdade da escolha da alimentação que caracteriza o ambiente doméstico esta mudança reflete também as especificidades da alimentação de alguns sujeitos (vegetarianos), o custo elevado de comer fora, a inexistência de pais e amigos e um conjunto de práticas de sociabilidade relacionadas onde a alimentação desempenha um papel significativo.

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CAPÍTULO IV – MUDANÇAS E CONTINUIDADES: QUANDO CONTINUIDADE NÃO É REPRODUÇÃO E MUDANÇA NÃO É ROTURA

Até agora vimos como a alimentação se constitui, no contexto estudado, como um conjunto de elementos e tensões que se relacionam com as tendências da alimentação contemporânea, nomeadamente com a saudabilidade e com a dimensão sensorial prazerosa do gosto que advêm da comida. No capítulo anterior, foi possível constatar que os interlocutores possuem perceções bastante distintas em relação às mudanças alimentares provocadas pela migração, que resultam em avaliações positivas – “agora estou muito melhor” e negativas – “agora estou muito pior”. Porém, ambas refletem relações com ideologias alimentares que encontram barreiras ou facilidades no novo contexto, relações com a alimentação local no domínio público e no âmbito doméstico das suas práticas. Não obstante a avaliação do impacto da migração nas suas práticas alimentares, os discursos dos interlocutores possibilitam o que pode ser entendido como uma continuidade das práticas alimentares que tinham em Portugal, às quais não se referem necessariamente como (a) “comida portuguesa”: “Tenho outra consciência, mas não me identifico com a forma de comer brasileira, nem um pouco. A minha forma de comer continua a ser portuguesa, aliás mediterrânica” (Marina, 32 anos. Especialista de Marketing. Gávea). “Comida portuguesa” para estes sujeitos significa sobretudo o “esquema” e regras nutricionais que refletem noções de saudabilidade associadas à “dieta mediterrânica”, por oposição à “comida tradicional” portuguesa que descrevem como calórica e não saudável. Muitas vezes, a avaliação que os sujeitos fazem da sua alimentação reporta-se, não ao que efetivamente fazem, mas mais ao que entendem como “boa alimentação”. Desse modo, os discursos sobre alimentação tendem a possuir um carácter normativo e uma carga moral muito forte que nem sempre refletem as práticas efetivas dos sujeitos. Por esse motivo, procurei estar atenta, quer aos discursos quer às práticas, que nem sempre se mostravam compatíveis ou coincidentes. No capítulo que se segue procuraremos debater a articulação entre discursos e representações (vistos anteriormente) com as práticas alimentares no novo contexto, que orientam e objetificam ideologias e valores culturais. Esta análise far-se-á sobretudo com base nos dados recolhidos durante a etnografia. Através da observação das práticas alimentares atuais, procurámos refletir sobre as mudanças e continuidades que a alimentação doméstica enquanto atividade abrange – a compra, a preparação e o consumo.

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4.1. Comprar A compra, longe de ser o momento final do consumo, como em tempos foi entendida, é apenas um dos momentos da alimentação doméstica quotidiana. Do mesmo modo que determinadas práticas como comer fora ou apreciar diferentes cozinhas podem constituir mecanismos de hierarquização e distinção social (Warde & Martens, 2000), na medida que agregam um certo requinte e acumulação de capital cultural (Bourdieu, 1979), comer em casa, para estes portugueses, reflete a integração na cidade e o conhecimento da mesma. Preparar e consumir comida em casa requer todo um conhecimento sobre onde comprar os alimentos, conhecer a oferta e disponibilidade de produtos vendidos na cidade, bem como encontrar mecanismos para saber fazer substituições ou apropriações de novos produtos. Nesse sentido, as práticas alimentares no âmbito doméstico relacionam-se com uma acumulação de conhecimento sobre a cidade e o modo de circular na mesma, as suas ofertas em termos comerciais e as redes de sociabilidade que nela (não) se constroem. Inicialmente era muito confuso, não sabia bem onde comprar e o quê, o que é bom, o que é que não é. Agora há coisas que eu já sei: que não se compra peixe no supermercado, não se compra carne no talho, frutas e legumes só se compra em alguns lugares. Aí ganha-se um pouco o conhecimento que nós vamos tendo automaticamente em Portugal. Porque no fundo tem a ver com cultura, o teu pai ou a tua mãe compram naquele lugar e nós temos um hábito de comprar semelhante [Luísa, 29 anos. Consultora ONG. Glória].

Tal como explica Luísa, o novo contexto impõe uma reaprendizagem dos processos de compra. Para além disso, é importante saber o que comprar especificamente em cada um deles e, ainda, saber escolher marcas e produtos específicos dentro de uma categoria mais ampla de produtos. As decisões de quando, como e onde comprar articulam-se ainda com outras dimensões e atividades relacionadas com o quotidiano como a mobilidade, o tempo e as rotinas dos compradores. Para todas as famílias houve uma mudança fundamental no que respeita à geografia das compras. Ao contrário do que acontecia em Portugal onde todos tinham carro, o que permitia deslocações mais ou menos distantes a espaços comerciais distintos, no Rio de Janeiro estas estão condicionadas quase exclusivamente aos bairros onde vivem. Bairros esses que apresentam a particulariedade de não possuir grandes superficies comerciais e hipermercados, dentro ou fora de centros comerciais, semelhantes ao Continente, El Corte Ingles ou Jumbo que existiam em Portugal, e onde estas famílias concentravam maioritariamente as suas compras. Pelo contrário, a Zona Sul dispõe de cadeias de vários pequenos e médios supermercados localizados ao longo dos bairros. 63

Vera e António, além de constituirem o único casal com filhos deste grupo, são também os únicos que dispõem de carro atualmente, pois este faz parte do pacote de benifícios que a condição de expatriado de António proporcionou à família. O carro, é utilizado diariamente por Vera, que leva as duas filhas ao colégio privado situado a três quarteirões de sua casa, e por toda a família, quando esporadicamente saem da cidade. Contudo, para as demais atividades do quotidiano os dois optam por andar a pé, uma prática comum entre os habitantes do bairro, que potencia um estilo de vida mais calmo e acolhedor: Especificamente viver aqui no Leblon é muito simpático, a pessoa faz tudo a pé. É bom, é uma espécie de microcosmo onde acaba por conhecer depois as pessoas numa coisa de bairro que acaba por ser simpática: faz-se as coisas a pé ou de bicicleta e não se está tão dependente do carro, é mais saudável [António, 36 anos. Gestor. Leblon].

Quanto às compras, Vera assume fazê-las apenas no Leblon, sem a utilização do carro: Aqui funciona como um bairro. Portanto até daria para fazer as grandes compras com o carro e ir ao Pão de Açúcar da Barra [da Tijuca], fazer o mesmo esquema de lá, e até ter preços mais em conta e mais variedade. Mas optei por fazer como os de cá fazem: faço uma vez por semana compras grandes para a semana, e peço para entregar e depois vou repondo as coisas que vou precisando [Vera, 41 anos. Bióloga. Leblon].

Fazer as compras no Leblon, além de ser sinónimo de uma vantagem que contribui para uma prática mais saudável, proporciona simultaneamente maiores contatos e sociabilidades com as pessoas do bairro. Reflete igualmente a relação de crescente insegurança que se gera para além dos limites do bairro. Tal sensação acabou por criar um conjunto de hábitos preventivos na circulação no Rio de Janeiro como não usar relógio e joias. Vera assume ter medo de andar de carro fora do bairro, razão pela qual não se sente tentada a conhecer outros supermercados. Um dos mais famosos do bairro recebe o nome de Zona Sul Supermercados justamente por existir apenas nessa região e não em todos os bairros, senão naqueles cujo valor de mercado é mais elevado46, como é o caso do Leblon. Este supermercado à semelhança de outros da região, como o Pão de Açúcar, têm um preço relativamente elevado já que o público alvo, segundo as próprias empresas, é a classe A e B47. Os bairros do Catete, Glória e parte do Flamengo, onde vivem três das famílias que acompanhei, apesar de estarem

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Em 2014 a rede atendia os seguintes bairros: Copacabana (6 lojas), Ipanema (5 lojas), Leblon (5 lojas), Jardim

Botânico (2 lojas), Flamengo (2 lojas), Leme, Urca, Botafogo, Laranjeiras, Gávea, São Conrado, Humaitá e Barra da Tijuca (3 lojas). 47

Classificação da estrutura brasileira de classes utlizada pelo IBGE, com base na renda familiar calculada a

partir do número de salários mínimos (1sm= 788reais = 230euros): A (>20 sm), B (10 a 20 sm), C (4 a 10 sm), D(2 a 4 sm) e E (
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