Gosto e consumo cultural: a apropriação de bens culturais pelos jovens

June 4, 2017 | Autor: P. Bandeira de Melo | Categoria: Youth, Taste, Cultural consumption
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Gosto e consumo cultural: a apropriação de bens culturais pelos jovens Conference Paper · January 2013 DOI: 10.13140/2.1.3853.9045

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1 author: Patricia Bandeira de Melo Fundação Joaquim Nabuco 41 PUBLICATIONS 8 CITATIONS SEE PROFILE

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Gosto e consumo cultural: a apropriação de bens culturais pelos jovens Resultado de investigación finalizada GT 03: Produção, consumos culturais e mídia Patricia Bandeira de Melo1 Resumo Nosso objetivo é discutir a constituição do gosto e a apropriação dos bens culturais por jovens entre 15 e 29 anos, a partir da pesquisa: Juventudes, consumo cultural e políticas públicas, desenvolvida entre 2010 e 2013, em Pernambuco (Brasil). Partimos do pressuposto de que o gosto e o consumo cultural precisam ser analisados de modo relacional, tecendo as relações de homologia entre as posições dos indivíduos no espaço social, as suas disposições (habitus) e a formação do gosto. O consumo cultural deve ser observado no contexto histórico e espacial em que ocorre. Os jovens, membros de um grupo social com condições econômicas específicas, estudantes e partícipes de projetos culturais diversos, formam seu gosto nas interseções destes elementos. Palavras-chave: consumo cultural; juventude; políticas públicas 1 Introdução Como se constitui o gosto dos jovens e como eles se apropriam de bens culturais? Discutimos o tema a partir do sentido dado à categoria juventude, delineada dentro da pesquisa Juventudes, consumo cultural e políticas públicas, realizada pela Fundação Joaquim Nabuco nos municípios do Recife, de Olinda e de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco(Brasil), entre 2010 e 2013,em escolas e entidades assistidas por políticas públicas culturais para a juventude. Tomamos como base a ideia de Bourdieu(1983) de que não se pode definir um ponto limite que marque a transição de uma categoria para outra: jovem/velho, branco/negro. Isso não significa dizer que essas categorias sociais não existam, mas que não há possibilidade de traçar a marca que as diferenciam. Para Lahire(2006, p.425), a compreensão dos comportamentos dentro de uma perspectiva etária só é possível se nos apropriarmos da rede de relações e interdependência dos indivíduos, “uma rede de imposições e de influências mais ou menos harmônicas e contraditórias”. Partindo da reflexão do pensamento relacional bourdieusiano, Lahire(2006) identifica a juventude como um período de vida situado após a irresponsabilidade dos atos infantis e anterior ao período das responsabilidades sociais da vida adulta. Não recusamos a existência do aparato políticosocial existente como meio regulador da vida coletiva – as instituições jurídicas, a escola, a família. O gosto e o consumo cultural precisam ser analisados de modo relacional: precisamos tecer as relações de homologia entre as posições dos indivíduos no espaço social, as suas disposições (habitus) e a formação do gosto. As escolhas dos bens culturais devem ser observadas no contexto histórico e espacial em que ocorrem (Bourdieu, 1996). Os jovens, como membros de um grupo social, com

Doutora em Sociologia – Fundação Joaquim Nabuco. A autora recebeu apoio da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco para apresentação deste trabalho. E-mail: [email protected]. 1

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condições econômicas específicas, estudantes de determinada escola e partícipes de projetos culturais, formam seu gosto nas interseções destes elementos. A ideia de habitus de Bourdieu(1996) possibilita entender as práticas exercidas pelos indivíduos no espaço social representado: o espaço dos estilos de vida. O gosto advém do habitus, que consiste num processo de transformação que torna alguém parte do grupo (Assis & Melo,2010); resulta de sua história individual, que o faz pensar, agir e ser músico, pintor etc., através de ritos de instituição, de processos sociais em seus contextos de existência: família, escola, igreja. As ações decorrentes das políticas culturais integram estes ritos, e a formação do gosto e a consequente apropriação dos bens culturais resultam da existência de algum projeto ou ação cultural, mesmo em condições precárias de execução. 2 O gosto no universo cultural O uso de bens e serviços que parece não ser do universo chamado cultural faz, de fato, parte da vida cultural dos indivíduos. O tempo da escola insere-se em parte da vida dos jovens e o que ocorre neste espaço é também de ordem cultural, ainda que rotulado como do universo da educação. Quanto mais o habitus do jovem estiver ajustado ao contato com os bens culturais, mais ele tem chance de naturalizar o uso destes bens, apropriando-se deles a partir das experiências vivenciadas nos atividades proporcionadas pelas políticas culturais existentes nas escolas. A composição do gosto e a apropriação de bens e serviços culturais somente podem ser analisados depois que compreendemos a dimensão da cultura em seu caráter antropológico e sociológico. Em termos antropológicos, a cultura integra as relações de troca, os contratos de convivência (Botelho,2001). Isso permite entender as condições regionais de interpelação de determinados aparatos culturais em detrimento de outros, como o frevo em Pernambuco e o samba no Rio de Janeiro, por exemplo. As políticas culturais devem estar sensíveis às sociabilidades dos indivíduos em seus contextos de existência. Na dimensão sociológica, a cultura carrega um sentido discursivo, constrói significados que expressam valores e que pressupõem a circulação e o consumo para existir simbolicamente. Neste nível, as políticas culturais ganham uma lógica de intervenção que “visa propiciar o acesso às diversas linguagens, mesmo como prática descompromissada, mas que colabora para a formação de um público consumidor de bens culturais” (Botelho,2001, p.05). Para Bourdieu (1999): (...) O legado de bens culturais acumulados e transmitidos pelas gerações anteriores pertence realmente (embora seja formalmente oferecido a todos) aos que detêm os meios para dele se apropriarem, quer dizer, que os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais (ao lado das satisfações simbólicas que acompanham tal posse) por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los (p.297).

Ainda que não seja objeto deste trabalho, vale ressaltar que a eleição de determinados bens em detrimento de outros acaba por fundamentar a legitimação de algumas práticas, relegando outras a uma condição secundária. A luta por posições dominantes por algumas expressões culturais está no cerne da estrutura das relações de força simbólica, que servem como instância de legitimação geral do campo cultural. Quando as políticas culturais selecionam certas práticas, estão produzindo critérios de classificação e hierarquização no mercado de bens simbólicos, ainda que esta não seja a intenção de origem da elaboração dessas políticas. O gosto agrega e separa indivíduos segundo suas preferências, expressas em seus espaços de interação. A expressão do gosto é a operação prática do habitus (Bourdieu,2007), minha prática ou consumo é a expressão distintiva do habitus, quando aprecio o bem e me diferencio por seu uso. O gosto é “uma propensão e uma atitude de apropriação (material e/ou simbólica) de uma classe determinada de objetos ou das práticas classificadas ou classificantes” (Alencar,2008,p.40). Neste

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sentido, dá aos jovens a referência de si e dos outros no espaço social, especialmente quando se vê como parte de um grupo. Neste jogo hierárquico, uma prática contemporânea comum entre os jovens é a participação em jogos virtuais e as conversas on line com amigos, como relata J. M. S., 15 anos, da Escola Luís de Camões, integrante do Projeto de Animação Cultural da Prefeitura do Recife. Porém, mesmo na era do computador, os jogos coletivos, como futebol e basquete, também integram as atividades dos adolescentes, como acontece com J., que treina basquete, participando de competições escolares. Apesar do apelo do gosto pelo mundo virtual, J. teve contato com a música. Desde 2010, ele integra a banda musical da Escola Nilo Coelho, tocando o instrumento caixa. Segundo ele, a descoberta da banda aconteceu porque “de manhã não ficava fazendo nada” em casa. Seu interesse foi despertado ao ouvir outros jovens tocando e lá descobriu gostar muito de música: seu habitus foi marcado pela experiência vivenciada na escola e o código para compreensão do seu sentido como bem simbólico começou a ser decifrado. A apropriação do gosto pela música serviu de motivação para ir à escola, fazendo-o reduzir a participação quase diária nos jogos de internet. Ainda que não perceba mudanças relacionadas ao seu reconhecimento pelos outros jovens, J. diz estar mais atento às aulas depois do ingresso na banda musical. E., 18, também da Escola Nilo Coelho, toca na mesma banda desde o seu início, em 2006 e, como J., também gosta de esporte. Além da música, ele destacou o gosto por dança popular, gosto compartilhado por M, 17, companheira da banda. Praia e filmes no cinema ou em DVD completam as opções de lazer de ambos. Assistir novela pela televisão também aparece como lazer para alguns dos entrevistados. Entre as opções de acesso cultural observadas na pesquisa, a música parece produzir um maior encantamento. M. destaca a apropriação do gosto ao salientar ser a sua participação na banda da escola seu “principal lazer”. Ensaios e apresentações são vistos como momentos de diversão. Mais envolvida na atividade musical do que J. M. S., M. é enfática: “a minha vida está sempre ligada à banda, banda, banda”. Integrante do grupo desde o início, ela toca prato e lira e já foi do corpo coreográfico. Ela diz: “eu faço um pouquinho de cada coisa, se precisar de mim...”. A animação pela música aparece de forma mais racional em E., que toca trombone e diz gostar de ouvir os concertos da Orquestra Sinfônica do Recife. Ele demonstrou grande amadurecimento ao falar de música, ressaltando a importância da leitura de partituras para a compreensão musical. E. costuma assistir às apresentações da orquestra Sinfônica, gosto do qual se apropriou após “descobrir a música” ao ingressar na banda. Isso se evidencia quando o jovem afirma não saber “o que era concerto” até a experiência vivenciada na banda. Os sentidos das práticas de cultura e lazer são reconhecidos e percebidos como ocupação para jovens que “poderiam estar fazendo coisas erradas”. Como diz M. “a banda ajuda muito porque ocupa o nosso tempo, ocupa a mente. A gente começa a fazer uma coisa que a gente gosta, começa a pegar amor”. Alguns jovens entendem que os seus contextos de existência foram entraves para a construção e a manutenção de sonhos. I.C.S., 19, toca saxofone no Projeto Pequenos Concertos Jaguar, que funciona em Jaboatão. Ela desejava seguir carreira militar, mas por razões financeiras não pode frequentar o curso preparatório para o Colégio Militar. Quando o projeto de música surgiu, I.C. teve a chance de mudar sua trajetória. Perguntada sobre que nota daria à ação cultural da qual participa, afirma: “eu daria uns 1.000!” e destaca como a participação em projetos culturais pode interferir na condução da vida dos jovens. Para ela, a oportunidade em qualquer expressão cultural deve ser ofertada desde cedo para as crianças. E., da banda musical da Escola Nilo Coelho, entende a importância da participação nestas atividades e contribui de forma diferenciada com as atividades, ajudando os mais jovens no aprendizado da leitura de partitura, o que exige, segundo ele, “interesse e foco”.Assim como E., I.C.,

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incentivada pelo professor da orquestra Jaguar ensaia ensinar a algumas crianças que residem próximas de sua casa, por incentivo do professor da orquestra Jaguar. O percurso de vida de alguns jovens demonstra que é possível incorporar às suas existências novos estilos e novas visões de mundo. É o caso de W.S.S., 23 anos. Aos 11, morador do bairro Alto Santa Terezinha, no Recife, seu cotidiano se resumia aos jogos de futebol, à pipa, à bola de gude, até que recebeu convite para estudar música, dentro do projeto Suzuki, atual Orquestrando2. Com a aprovação das mães muitas crianças do bairro também ingressaram na atividade. Hoje, grande parte dos jovens está em orquestras nos Estados Unidos ou em outros países, deixando o projeto para seguir carreiras musicais. Em 2011, W.S.S. se preparava para o vestibular de música e seu irmão já tocava na Orquestra Sinfônica de Sergipe. Com estes exemplos de êxito, enfatizamos que não objetivamos avaliar a constituição do gosto em níveis estéticos, observando em que medida alguns jovens apenas gozam os efeitos da arte que lhes é apresentada nos projetos dos quais participam ou se imergem na fruição estética dos bens culturais3. Queremos verificar a introdução de bens culturais em seus contextos de existência, a consolidação do gosto e o processo de consumo que se constitui a partir dessas interações. 3 De que cultura estamos falando? Faz-se necessário um hiato teórico ao abordarmos a questão do consumo cultural e da identidade: o que é cultura?Que são políticas culturais?A esfera da cultura é o universo de signos, imagens e sons, símbolos que permitem apreender sentidos e relacionar coisas. Não existe sociedade sem cultura, pois “os universos simbólicos ‘nomeiam’ as coisas, relacionam as pessoas, constituem-se em visões de mundo” (Ortiz,2008, p.123). Assim, é possível pensar que “a cultura, como variável determinante, são redes textuais de hábitos, rotinas e padrões cotidianos de atividade e interação, orientações e receitas tidas como dadas para a ação do indivíduo” (Melo,2010, p.19). Se a cultura é constitutiva da sociedade, é uma variável determinante dela. Portanto, quando ingressamos na lógica da “política cultural”, entramos num terreno arenoso: Ao introduzirmos a noção de política, subrepticiamente marcamos a discussão com outros indicadores. Um deles vincula-se à ideia de racionalidade. Supõe-se a existência de uma esfera, denominada cultura, e um ato cognitivo capaz de separá-la de suas outras conotações. Em seguida, pode-se propor uma ação determinada em relação a este universo previamente delimitado (Ortiz,2008, p.124).

O olhar da cultura a partir da ideia de política cria um hiato porque a política pressupõe planejamento, metas e objetivos, não conseguindo alcançar o domínio da cultura em sua condição estruturante. “O domínio da cultura como dimensão constitutiva da sociedade não coincide com a esfera da ação política” (Ortiz,2008, p.124). A política pública está no domínio da racionalidade, de algo que existe a partir de um momento da história da humanidade. A cultura é da noção da humanidade, sendo impossível entender a vida social sem apreender as relações simbólicas estabelecidas entre os seres. Ao atrelarmos uma coisa à outra – política e cultura –, precisamos entender de que cultura estamos falando agora. Com a modernidade, o desenvolvimento atrela-se à sociedade, passando a ser intrínseco a ela (Ortiz,2008). Para esta nova etapa da sociedade, o vínculo entre cultura e 2

O Projeto Orquestrando mantém as mesmas atividades antes desenvolvidas pelo trabalho do Suzuki. Eco (1979, p.73) discute a estrutura do mau gosto e a constituição do kitsch, uma espécie de arte ou objeto cultural de fácil compreensão, ofertada para um público médio e “preguiçoso que deseje adir os valores do belo e convencer-se de que os goza, sem perder-se em esforços empenhativos”. O kitsch seria um “meio fácil de afirmação cultural para um público que julga estar fruindo de uma representação original do mundo, quando, na realidade, goza unicamente uma imitação secundária da força primária das imagens”. 3

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desenvolvimento é fundamental, e para tal é preciso saber que as culturas são múltiplas e são um bem comum a toda humanidade. A política cultural é a gestão de bens culturais, com objetivos, metas e ações para o seu alcance. Em seu planejamento, alguns aspectos são privilegiados, valorizando algumas expressões em detrimentos de outras. Como forma racional de organização, insere-se na perspectiva empresarial: é um “empreendimento enraizado em determinado contexto” (Ortiz,2008, p.127), com vistas a pensar o que a sociedade produz em sua dimensão cultural como bem cuja produção carece de gerenciamento. Ao abordarmos aqui alguns bens culturais em projeção, selecionados pelas políticas públicas como relevantes para o desenvolvimento da sociedade em que as ações se desenrolam, não excluímos de nossa compreensão as barreiras de classe, gênero e as contradições inerentes aos grupos sociais. Entretanto, não é objeto deste estudo fazer uma crítica às escolhas dos gestores das ações, mas não podemos perder de vista que, ao se eleger determinada expressão de arte, há uma disputa pela definição hierárquica do que deve ou não ser reconhecido como culturalmente válido. Em sua crítica ao nacionalismo, Bourdieu (2004) alerta sobre a existência de uma identidade fabricada e tida como natural. Esta lógica é extremamente importante para pensar a questão da identidade da juventude. Isso existe ou é uma fabricação? Não há uma fronteira natural entre a infância e a juventude, entre a juventude e a vida adulta. Segundo Bourdieu(1983,p.113), “somos sempre o jovem ou o velho de alguém”. Para ele, a definição do ser jovem é uma arbitrariedade dentro do exercício do poder simbólico, que produz classificações socialmente determinadas (Bourdieu,2004). Enquanto Bourdieu (1983) questiona o sentido de juventude, estabelecendo-o como uma construção social, Lahire (2006) fala da juventude como etapa da vida, fase situada entre a irresponsabilidade dos atos infantis e a responsabilidade da vida adulta. Paralelo a isso, porém, há uma determinação de ordem biopsicológica. Para a psicologia e a medicina, há um estado de vulnerabilidade diferenciado entre os jovens em decorrência de três fatores nesta etapa de vida: os processos de aprendizado, a definição de identidades e a influência das alterações hormonais. A juventude é considerada o momento de constituição de valores e busca de reconhecimento nos inúmeros campos sociais nos quais estes indivíduos circulam (Melo & Assis,2012). Assim, o sentido objetivo de juventude resulta da concordância de subjetividades, que estruturaram objetivamente o que é ser jovem4. Porque o indivíduo não é um ser centrado – dotado de uma identidade única – não há um sentido claro para falar sobre o que é ser jovem. Os jovens, como todas as categorias definidas nas ciências sociais (como gênero, etnia, classe), são heterogêneos, descentrados. Disso decorre “a pluralização dos estilos de vida, a multiplicação de ‘tribos’ e grupos com distintas sensibilidades e preferências estéticas” (Domingues,2004a, p.113), o que desemboca no contingenciamento de situações em que os jovens estão reunidos em torno de uma identidade comum. E situações assim costumam advir de políticas coletivas que buscam aglutinar determinado perfil de indivíduos em torno de ações específicas, que, neste trabalho, se constituem nas políticas culturais desenvolvidas para indivíduos entre 15 e 29 anos. Quando estas ações conformam grupos concretos, podemos deduzir a ocorrência de vivências comuns, que podem delinear destinos comuns, enraizados em cada um dos que acessam estas políticas, que de alguma forma realizam trocas pessoais, espirituais e emocionais (Domingues, 2004a). No futuro, porém, seus destinos podem correr em direções distintas, mas as ações públicas empreendidas tinham uma intencionalidade comum: estimular os jovens a ter contato com expressões culturais 4

Embora nosso arcabouço teórico esteja vinculado ao pensamento bourdieusiano, escapamos parcialmente de sua perspectiva teórica. Bourdieu não se ateve à noção de subjetividade coletiva, visando produzir uma síntese entre objetivismo e subjetivismo e transitando nesta polarização (Domingues, 2004b). Aqui, incluímos o sentido de subjetividade coletiva como uma relativa concordância entre os sentidos atribuídos a um fato ou a um objeto por diversas instâncias (indivíduos ou instituições) em interação no sistema social.

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diversas, ampliando o horizonte de possibilidades de consumo cultural e de mudança de estilos de vida a partir deste consumo. Ora, se não existe “o jovem”, mas “os jovens”, parece-nos claro que a identidade de um grupo de jovens – em uma dada comunidade ou atendido por um dado projeto de política cultural – é o resultado do compartilhamento de sentidos sobre assuntos ou objetos, constituindo este grupo em um “círculo cultural” (Domingues, 2004a). Mas, mais do que entender as variações entre ser jovem, é fundamental entender que os jovens se veem, teoricamente, como grupo concreto, consciente de uma unidade de geração. E, ainda que isso seja empiricamente inexistente e teoricamente se constitua numa construção social, o sentir-se parte de um conjunto identificado como juventude faz cada indivíduo que se reconhece como tal ciente de si como jovem. Por isso, as consequências reais sobre a vida dos partícipes de políticas culturais para os jovens podem ser semelhantes, conformando indivíduos que apreendem os bens culturais e seus sentidos, alterando os seus estilos de vida a partir do contato com as ações sensibilizadoras quanto ao(s) sentido(s) de inúmeras expressões culturais. 4 O sentido de pertencimento e o êxito das políticas culturais Esta ideia de ser parte de um grupo parece comum aos jovens quando apontam os jogos de computador e as conversas via internet como uma prática de lazer incorporada ao habitus contemporâneo da juventude, entendida como unidade. Neste sentido, alguns jovens costumam manter contatos virtuais entre si, através da internet, mesmo compartilhando o ambiente escolar. J.M.S., da Escola Luís de Camões, ressalta a prática como comum entre amigos, principalmente nos fins de semana. Entretanto, as políticas culturais em andamento nas escolas e em entidades frequentadas por estes jovens criam outros vínculos entre eles: o gosto pela música, pela literatura, pelo teatro etc. À pergunta “por que as ações de políticas culturais têm dado certo?”, conseguimos enumerar algumas respostas. A primeira observação que podemos relatar é a da “experiência da descoberta da expressão, atividade ou bem cultural”. A música dá outro sentido de pertencimento marcado no discurso dos jovens, como afirma M., da Escola Nilo Coelho, integrante da banda. A participação no grupo fomentou novos interesses, reduzindo o tempo de permanência na internet ao trazer a experiência de descoberta da expressão cultural: “eu tenho a banda como uma família também (...). A banda querendo ou não completa alguma coisa em mim. Criei um amor, também porque a banda de certa forma traz responsabilidade”. A mesma descoberta aconteceu com E.R.,15, que participa do grupo de teatro do Programa de Animação Cultural, na Escola São Cristóvão da Guabiraba. A curiosidade o levou a descobrir o projeto, ao qual está integrado desde os 13 anos. E.R. teve a oportunidade de interpretar Jesus numa peça natalina, papel para o qual teve que ensaiar por dois meses. Em sua visão, iniciativas como a do Programa de Animação Cultural estimulam a “invenção” como, por exemplo, as idas ao teatro no ônibus escolar com alguns colegas, experiência que E.R. se recusava a participar antes de integrar o grupo de teatro. O caso de I.C.S. fala da descoberta da música e do espanto no contato com as partituras, que antes chamava de “pontinhos numa folha”. A experiência do conhecimento musical a fez ir a lugares distantes, ao ouvir e aprender a música dos mestres clássicos5. Ela conta: Como é que a pessoa consegue tocar através de um bocado de pontinho em uma folha? Eu não sabia o que era um pentagrama, eu não sabia o que era uma clave de sol. E hoje é muito bom, eu conheci muitos músicos também (...). Se a gente toca, a gente cria aquele outro ciclo, a gente sai um pouquinho dali, daquela comunidade e conhece outras pessoas.

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É interessante relatar que muitos dos jovens que participavam de atividades relacionadas à música citavam os nomes de compositores como Tchaikovsky, Schumann e o brasileiro Pixinguinha.

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A segunda observação que fazemos neste trabalho: “a relevância das lideranças é fundamental”. A presença de um líder está associada à descoberta de expressões culturais. A ação incentivadora de um mestre, professor ou gestor de políticas culturais é frequentemente relatada, mostrando como a atuação dos líderes é definidora da participação dos jovens nos projetos. E., da mesma banda de M., conta sua experiência de descoberta e a construção de identificação com os instrumentos musicais, a partir do estímulo do professor de música: O sonho de todo pré-adolescente é ser jogador de futebol. Aí quando eu entrei na banda eu queria jogar bola e não queria saber de banda. Aí ele [o instrutor] me deu um trompete, o famoso trompete... Me emprestou para eu tocar... Aí ele me deu outro instrumento, o bombardino, que é um instrumento que tem um timbre diferente... e que se destaca no meio da banda ... Aí ele me colocou no trombone e aí até hoje eu tô no trombone.

R.R.V.F., 22, que integra o projeto da Biblioteca do Nascedouro de Peixinhos6, em Olinda, relata: “também teve uma pessoa assim que me influenciou muito, foi a responsável também pelo meu interesse hoje da Literatura Brasileira, que foi minha professora do ensino médio”. Como mostra Bourdieu (2004) ao tentar solucionar a clássica tensão sociológica indivíduo X estrutura ao definir habitus, o indivíduo não fica refém da estrutura, agindo dentro das disposições subjetivas de si e das estruturas objetivas. Assim, é possível entender porque as políticas culturais são processos sociais que oferecem aos jovens o conhecimento de bens, sons e imagens expressos na arte e que podem influenciar a constituição do seu habitus no contexto aqui estudado. Cada jovem detém um conjunto de disposições adquiridas em seu contexto de vida particular, o habitus, absorvendo e externalizando estas ações que vão acontecendo em seu espaço social. Para Bourdieu (1996,p.21), “a cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou de ‘gostos’) produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente”. Os jovens entrevistados carregam consigo as suas histórias de vida, mas os seus atos também decorrem da exposição aos bens culturais, via políticas públicas, que produzem efeitos sobre a imagem de si e provocam mudanças em seus estilos de vida, como a valorização dos estudos e a relevância que passam a dar ao acesso à informação. Em processo de formação biopsicológica, os habitus destes indivíduos ainda são fluidos, com menos resistências aos estímulos produzidos nas atividades das quais participaram ou ainda participam (Nunes,2007). Por isso, as ações culturais realizadas nas instituições que estes jovens frequentam são estruturantes, muito provavelmente entrando na soma do capital simbólico que vai compor a sua existência doravante. A experiência de troca com os professores ou instrutores é relatada mesmo em experiências de curta duração, como é o caso de M.M.P.A., 21, que participou de um curso de fotografia no núcleo cultural do Burity, como parte do Programa Multicultural do Recife. Ela relatou a atenção e dedicação do professor, o conhecimento exposto por ele para os alunos como incentivo para que descobrissem a própria comunidade onde cresceram como parte de suas histórias de vida, fotografando o lugar. M.M. fala do tempo extra ofertado pelo professor, ao passar vários sábados com os alunos: “aí o professor às vezes: ‘pronto, vamos no sábado?’ ele vinha no sábado por conta própria, passava bem dizer o sábado todo com a gente, explicando para a gente”. E.R, participante do grupo de teatro do Programa de Animação Cultural, também mostra a relevância do instrutor, do mestre: “foi por causa do GAC que eu melhorei meu estudo, por causa do teatro, do professor”. Tocando saxofone no Projeto Pequenos Concertos Jaguar, I.C.S. credita a oportunidade ao professor, que a convidou para participar do grupo:

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A biblioteca é um ponto de leitura do Programa Mais Cultura do governo federal localizada no antigo matadouro de Peixinhos, numa área entre o Recife e Olinda, atendendo ao público de ambas.

8 Ele que me incentivou e eu acho até que ele acreditou mais em mim do que eu mesma, acho que foi isso. Ele viu talento em mim que eu não... Até o momento dele conversar comigo eu não tinha percebido ainda.

O relato de E., da banda musical da Escola Nilo Coelho, dá conta de mostrar como, mesmo submetido à ordem, o jovem pôde ter liberdade de ação dentro dos parâmetros estruturais existentes: antes de participar da banda musical, ele possuía uma flauta doce, que começou a tocar em casa. Entretanto, sua mãe não o incentivava. A constituição da banda musical na escola foi determinante para a quebra de resistência, permitindo-o agir dentro das disposições subjetivas e das estruturas objetivas, como E. relata, realçando o papel do líder: Além de estudar, todos os dias era tá no campo jogando bola... Quando eu descobri a banda o professor disse: “meu filho, o caminho é esse”. Aí eu realmente conheci e conheci outras pessoas e eu fui tendo um espelho para mim de várias pessoas que hoje em dia... Poxa! Que legal, o pessoal chegaram e me estimularam. Aí assim quando eu comecei a tocar trombone eu disse: “não, agora eu quero crescer no trombone”... Quero ser profissional.

Apenas a existência de uma banda musical na escola parece suficiente para atrair o desejo de jovens de participar da atividade, como relatou J. M. S. Ainda que não revele um desejo afirmativo de vir a ser músico, como fez E., J. destaca a ampliação do universo de amizades, para além dos amigos com os quais se relaciona na internet ou em sala de aula. Ainda sem clareza sobre as suas escolhas – a prática do basquete e a participação na banda de música – e sem ansiedade de descobrir outras opções de atividades culturais ou esportivas, ele soube salientar outras iniciativas da escola, como a pintura, a dança, o futebol e o voleibol. Ora, o consumo cultural é o uso de bens ou a fruição de sons e imagens existentes num sistema social de signos, e o valor dado a um objeto se insere nos processos sociais de definição do que é de bom ou de mau gosto (Assis & Melo,2010). Se o habitus consiste em disposições do indivíduo a um modo de conduta, a exteriorização de um conhecimento incorporado acrescido de sua prática particular, os estilos de vida dos jovens naturalmente são modificados depois que eles são expostos a ações culturais que os estimulam à leitura, à audição de música, ao desejo de refinar e avançar na vida escolar. Na perspectiva bourdiesiana, podemos afirmar que opera nos jovens, através do habitus, além da reprodução de estruturas internalizadas em sua história de vida, o seu poder consciente, evidenciando suas capacidades “criadoras, ativas, inventivas, do habitus e do agente” (Bourdieu,2004, p.61). 5 Mais do que a distinção: a integração pela arte Num sistema de signos, os símbolos carregam um sentido integrador na sociedade. A arte, a música, a literatura têm, simbolicamente, a função social de estabelecer distinções entre os indivíduos, legitimando o contato com as expressões culturais como porta de acesso à mobilidade social (Bourdieu,2004). A distância e a proximidade entre a expressão cultural que se apreende e passa a integrar a vida do jovem contribui para que as mudanças em seus estilos de vida incorram em novas visões de mundo e novas perspectivas de vida, provocando anseios por uma posição social diferente daquela em que se encontrava antes de manter contato com os bens culturais ora conhecidos. E. externalizou o desejo de ser profissional de música e deu passos avançados neste sentido. Além da banda da escola, ele estuda no Conservatório Pernambucano de Música. Antes, teve uma experiência na Escola de Artes João Pernambuco, onde conviveu com teatro, dança e música. Atualmente, também se inicia como orientador de novos alunos, um efeito multiplicador evidente de sua experiência cultural. Exemplo semelhante é o de R.R.V.F., da biblioteca de Peixinhos. Integrante do grupo gestor da biblioteca, R. foi usuário por 7 anos. Com o ensino médio concluído, R. se preparava, durante a

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pesquisa, para ingressar no curso de história na universidade. Dizendo-se uma “traça” de livros, ele afirma que trabalhar ali é um lazer. Além do desejo de ingressar na universidade, ele anseia tornar-se escritor. O fato de estar diariamente na biblioteca, agora como gestor, trouxe o contato mais íntimo também com o teatro de mamulengos, atividade realizada no mesmo espaço. Isso o levou a se interessar por expressão corporal. A mistura entre literatura e teatro trouxe frutos para a atividade desenvolvida na biblioteca, que entre as oficinas oferecidas aos jovens inclui também um misto de contação de histórias, teatro e recital de poesia. Ressaltamos que o processo de apreensão do conhecimento ofertado não se dá de forma direta. Nos primeiros contatos com os bens culturais, é natural que o jovem os receba com estranhamento e resista à ideia de abandonar certas práticas – por exemplo, trocar a internet ou a televisão pela leitura. Entretanto, o consumo regular desses objetos naturaliza a sua relação com eles: deixando de ser uma etiqueta de convivência para continuar parte do grupo, o jovem incorpora e se convence da relevância da leitura: ocorre a conversão da atividade cultural em consumo cultural. Daí decorre a terceira observação de nossa pesquisa: “a apropriação do bem ou atividade como consumo cultural”. Numa perspectiva goffmaniana, é a aquisição da máscara que se cola à face do indivíduo, passando a integrálo (Goffman,1975), como afirma E.: A música teve um espaço fundamental na minha vida... ela preencheu um vazio que tinha. Eu tinha perdido a minha mãe recentemente... O professor me deu muita força... A música me tranquilizou muito. Eu amadureci muito... Hoje eu só escuto músicas clássicas... Mudou o meu estilo de vida. Hoje eu só escuto música contemporânea, clássica, barroca.

Atividade cultural na escola, divertimento em casa. I.C.S., da orquestra Jaguar, fala que tocar saxofone é seu momento de diversão, ao sentar-se na porta de casa e tocar. A música induziu o desejo de voltar à literatura, que ela havia abandonado antes de estudar música. A jovem diz que a música abriu sua mente para outras formas de consumo cultural, como o cinema e programas musicais na televisão. M., da mesma banda marcial de E., reconhece o quanto a música está em sua vida cotidiana, salientando que a sua capacidade de expressão com os amigos melhorou, achando-se mais capaz de “expressar o que sente”. Também se mostrou atraída belo balé clássico e pela ginástica rítmica. As declarações de E. mostram as mudanças no consumo cultural e a incorporação do valor dado à apropriação do gosto: seu pai, diversamente da sua mãe, apoiou o desejo do filho. Ele afirma não imaginar aos 12 anos que aos 18 gostaria de música clássica e que ir a concertos seria o seu “lazer predileto”. A compreensão que a família passa a ter do jovem foi destacada também por I.C.S.. Além de perceber uma mudança nos atos rebeldes da filha, a mãe de I.C. a questiona quando ela não está estudando música, e a incentiva a tocar em detrimento de outras atividades. I.C relata: “[quando] eu chego em casa com uma música pronta, que eu toco para ela, os olhinhos chegam a brilhar para mim”. De uma forma contraditória à compreensão de Bourdieu (2007), para quem um indivíduo pode levar a vida inteira para se apropriar dos novos elementos aos quais passa a ser exposto, nunca se sentindo verdadeiramente membro do espaço no mundo social que passa a transitar, verificamos nos jovens pesquisados a sua capacidade de se descolar de suas origens, adaptando-se às novas opções de bens culturais de lazer e consumo. Os relatos anteriores de E. e de M. sobre as suas experiências com a música são um exemplo. Também I.C.S. ressalta a realização pessoal por tocar um instrumento musical: Antes desse projeto nunca passou pela minha cabeça que eu pudesse chegar perto de um [instrumento] mesmo. Mas assim também da vida muda muita coisa... A responsabilidade de fazer com que todo mundo veja que as pessoas estão acreditando em você não é em vão, você tem essa responsabilidade de assim, você acredita em mim

10 e eu tenho que provar primeiro para mim, mas para você que essa crença em mim ela é verdadeira, que não é assim, não é fútil... É uma realização total.

O mesmo acontece com R.R.V.F.. Ele ressalta que seu primeiro contato com a biblioteca de Peixinhos se deu aos 12 anos, quando foi ao local para fazer uma pesquisa escolar, depois que um amigo o informou sobre a existência do espaço. “Depois, como os trabalhos da escola diminuíram, aí eu passei a vir mais pelo interesse literário mesmo”. O processo foi gradual: de início, ia três vezes por semana à biblioteca; depois, passou a frequentá-la todos os dias. Sobre a mudança operada pelo contato com a literatura, ele fala: Mudou bastante, porque todo jovem, aí tem imaturidade, né? Tinha uma visão muito limitada das coisas. Aí através do diálogo com os gestores daqui, com o conhecimento que eu fui adquirindo, através das minhas visitas aqui, foi ampliando a minha mente e o meu conhecimento. Aí mudou muita coisa mesmo, meu conceito de vida.

Em seu relato sobre o contato com a literatura e o desejo de estudar história, R. destaca o desejo de aprofundar o conhecimento sobre mitologia. O jovem afirma que teve contato com o assunto na biblioteca em suas incursões de leitura: “[é] um livro muito bom, é Laurodo, Mitologia Jovem. Apesar de ser um livro juvenil, ele tem muitas ilustrações e tem bastantes informações sobre mitologia. Todo mundo, que pega esse livro aqui fica impressionado”. Seja como consumo lúdico ou como atividade profissional, o contato com bens culturais tem influência na vida dos jovens. P.H.D.M., 18, participou de alguns cursos de DJ7, oferecidos pelo Programa Multicultural do Recife. Estudante de educação física, ele atua como DJ e afirma ser “o que realmente gosta de fazer”. P.H. ressalta que muitos alunos egressos do mesmo curso hoje trabalham em boates e festas. Para que as políticas públicas de fato adentrem o mundo dos jovens envolvidos em atividades culturais institucionalizadas, a construção da familiaridade é fundamental. Os ritos de instituição são aplicados, como legitimadores, aos jovens partícipes dessas atividades. Estes ritos compreendem estratégias de produção de interesse desses jovens para que reconheçam determinados bens culturais como passíveis de apropriação e uso. Neste sentido, o consumo cultural torna-se o lugar para práticas distintivas, e é ainda o terreno fértil para integrar simbolicamente os indivíduos. Por isso, alguns jovens se sentem próximos de outros que não vivem em sua comunidade, mas com os quais compartilham gostos, como o interesse pela música, pela leitura e o anseio de progredir intelectual e economicamente através dos estudos. E., da Escola Nilo Coelho e integrante da banda, relata o diálogo com amigos sobre a sua relação com a música: “eles olham assim pra mim e dizem: “olha, tu vai endoidar com a música. Tua vida é falar em teoria musical e trombone”. Aí quando eu sento com um cara que entende... é o dia todinho conversando”. O reconhecimento pelo outro e a valorização de si aparecem claramente. M. diz ser “diferente” em sua família por ser a única envolvida com música. Ela relata o orgulho da avó ao vê-la em apresentações: “olha lá a minha neta, minha vó fala”. É o mesmo relato feito por R.R.V.F, indicando mais um exemplo de apropriação do bem ou atividade como consumo cultural: Minha avó [diz]: “Só vive com livro”, Hoje mesmo eu me acordei para terminar um livro, A Batalha do Apocalipse. “Já se acorda com o livro na mão, menino? Só pensa em livro”... Falam brincando, mas com orgulho... [Meus amigos] me chamam até de “o contador de história”.

O reconhecimento ajuda aos jovens a servirem de agentes estimuladores ao contato com a arte, como diz M. ao destacar que conseguiu “levar muita gente lá pra banda”, ou, no caso de E., ao dizer 7

Disc jockey, pessoa responsável por selecionar músicas em festas, muitas vezes exibidas em vídeos.

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que conseguiu “formar dois meninos no meu instrumento lá no Nilo [Coelho, escola a qual a banda está vinculada]”. Também é o caso de R.R.V.F., hoje gestor da biblioteca de Peixinhos. Na maioria dos casos observados, o consumo cultural funciona como agregador dos jovens, que muitas vezes passam a se reconhecer por estas práticas, mais do que pela proximidade de moradia ou os jogos de internet. É a “partilha de referências” que aproxima estes jovens, determinada pelos padrões culturais adquiridos a partir da participação em atividades desenvolvidas pelas várias instituições que frequentaram ou frequentam (Nunes, 2007). O exemplo de E., da banda da Escola Nilo Coelho, mostra os distanciamentos e as aproximações decorrentes dos novos padrões adquiridos. Destacamos que as instituições responsáveis pela execução de políticas culturais, como instâncias legitimadoras das práticas culturais, estão no centro de um embate histórico entre o campo de produção erudita e o campo da indústria cultural8. O mercado de bens culturais abarca, desde a II Guerra Mundial, a oposição consciente entre artistas da chamada alta cultura9 e os produtores da indústria cultural. Seja como for, as iniciativas observadas nesta pesquisa mostraram que, mesmo em condições adversas, a existência de ações que produzissem o contato de jovens com inúmeras expressões culturais foram marcantes para as suas histórias de vida. Os problemas estruturais existentes – espaços físicos precários ou falta de equipamentos – somente emergem de seus discursos quando provocados. Suas narrativas são sobre as mudanças em sua visão de mundo, o papel agregador do líder – professor, mestre, instrutor – e o reconhecimento de si no espaço dos estilos de vida, seus gostos e suas disposições alteradas após a relação construída com as expressões culturais a que tiveram acesso. Enfim, o que era comum nas falas dos jovens sobre o êxito das políticas culturais: a presença de uma liderança estimuladora, o estudo em escola pública, a existência de algum projeto ou ação cultural, mesmo em condições precárias de execução. Mesmo que não se aceite mais o ideal da cultura como algo, por natureza, acessível a poucos para ser de fato de bom gosto, ainda há discursos hegemônicos que ditam o que é de bom e de mau gosto, classificação onde há “toda carga ideológica que, definindo o legítimo, o faz descaracterizando o ‘outro’, visto como a negação do bom gosto” (Nunes,2007, p.674). Como salientamos, não há neste trabalho qualquer tentativa de classificação acerca do que os projetos executados propunham como ações culturais em si, ou seja, não buscamos definir se as políticas estavam ensejando a incorporação de capitais culturais desta ou daquela ordem – de alta cultura ou de cultura de massa – mas sim conhecer estas políticas e observar como o público atendido por elas estava incorporando o que era ofertado, a partir de suas práticas objetivadas, produzindo efeitos sobre a imagem de si e transformações em seus estilos de vida.

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O conceito de indústria cultural foi desenvolvido pela Escola de Frankfurt. Horkheimer e Adorno construíram paralelamente às pesquisas administrativas norte-americanas o conteúdo do que depois se constituiu na Teoria Crítica. Com bases marxistas, a teoria nomeou a efervescência capitalista sobre a cultura de indústria cultural. Segundo eles, havia um empacotamento de bens como arte, a percepção da cultura como mercadoria e a indústria cultural promovia a estandardização e sacrificava a distinção característica entre obras de arte. 9 A ideia de alta cultura somente faz sentido em comparação à compreensão da cultura de massa. A primeira puxa para si a condição de supremacia matricial do modelo cultural, delimitando o repertório de objetos cuja fruição contém real valor estético, uma cultura definida como original, de bom gosto e ascética, disponível a poucos eleitos; a segunda copia a primeira, numa imitação definida como kitsch, mas que se apresenta como novidade, sem assumir sua face de repetição e releitura, de produto facilmente consumível porque realizado em linguagem mediana, com esquemas prontos que facilitam a compreensão, disponíveis na mídia. Fingindo-se arte é, na verdade, reprodução de obras já produzidas (comum na música, nas telenovelas, nos filmes) (Eco,1979).

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6 A imagem de si e as mudanças nos estilos de vida O que se evidenciou claramente foi que as práticas mostraram resultados positivos, configurando a nossa quarta observação nas entrevistas com os jovens: “os efeitos sobre a imagem de si, mudanças nos estilos de vida, valorização dos estudos e do acesso à informação”. O relato de R.R.V.F. sobre a experiência estimulante na biblioteca de Peixinhos comprova: “eu sou apaixonado por esse lugar. Eu mexo um dos meus sonhos de consumo, que é quando eu tiver minha casa própria ter minha biblioteca, e também ter livros da minha autoria”. Outros jovens contam que a mudança resultante da atividade cultural em sua vida não ocorreu durante a experiência. Parece que somente com o tempo a vivência começa a refletir e produzir novas compreensões sobre o que podem mudar em suas vidas. T.P.S., 24, fez um curso de fotografia, parte das ações do Programa Multicultural, no núcleo cultural do Burity, no Recife. Embora afirme que o curso teve resultados de natureza pessoal, T. diz observar o mundo diferente, coisas que antes considerava irrelevantes ganham sentido sob o enfoque do estudo da imagem. Ela diz que está “encontrando a resposta agora” para pensar em novos projetos de vida, reconhecendo que “você tem que acordar”: “a gente aprende que até um cesto de lixo vale alguma coisa. Então, para mim, mudou isso: a visão com que eu vejo as coisas”. E.R., do grupo de teatro do Programa de Animação Cultural do Recife, destaca como o esforço nos ensaios mudou a sua vida: “depois do teatro todo mundo percebeu que eu fiquei melhor nas aulas, prestando mais atenção (...). [Estou] querendo descobrir mais coisas”. P.H.D.M., do Programa Multicultural, enfatiza a revisão que fez do seu espaço social depois de participar de oficinas de DJ: [Eu] era daquele tipo de pessoa, que eu tirava sarro da própria comunidade que eu morava, não dava valor... Depois da oficina, que quando a gente teve esse acesso cultural ao Multicultural e ao grupo de cultura, que a gente está junto, a gente passou realmente a ver o que a comunidade tem de bom, a cultura, a história que ela tem... A gente trabalha com música dentro da comunidade e hoje estou dando palestras sobre drogas dentro da própria comunidade.

A transformação na vida dos jovens pesquisados também se mostrou evidente nos casos em que o tempo e o contato com os orientadores, animadores, professores ou gestores ganhava significância por discursos que estimulavam novos conhecimentos e indicavam a importância da disciplina para o alcance de objetivos. No relato dos jovens está presente a compreensão de que houve “aumento de concentração”, de “capacidade de raciocínio lógico”, de “coordenação motora” e de “socialização”. I.C.S. fala de “sensibilidade musical” e de “responsabilidade”, enfatizando em relação ao futuro: Eu espero um dia me tornar uma grande saxofonista, e poder dizer que foi aqui que tudo começou. Eu tenho muito orgulho, porque a gente vive em uma comunidade onde nossas coisas estão completamente inacessíveis. As pessoas não têm acesso à cultura, as pessoas não têm acesso à educação, as pessoas não têm acesso a praticamente nada... Eu não estou aqui ocupando o lugar de uma pessoa não, eu estou ocupando o meu lugar mesmo. Eu estou no lugar certo.

Assim como I.C.S., H.E.F.L., 20, integrante da mesma orquestra de Jaboatão, destaca o quanto a música interferiu em sua vida. Tocando clarinete desde os 17 anos, ela diz ter melhorado nos estudos de matemática e física. Para H., o aprendizado da música foi um divisor de águas, desde o respeito conquistado por outros jovens que a admiram por tocar em um grupo musical ao sonho realizado de aprender música cada vez mais: “eu não quero parar de estudar música. Quando a gente gosta...” No cerne desses discursos, emerge uma visão de si no espaço dos estilos de vida fundada no contato com expressões culturais que não estavam na origem de suas histórias de vida, mas que agora fundamentam seu habitus: novas visões de mundo, melhoria sensível da autoestima, desejo de concluir os estudos e de construir destinos diferentes dos seus antecessores.

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7 Em síntese... À pergunta "como fazer os projetos de políticas culturais darem certo?”, enumeramos dois elementos fundamentais para o seu sucesso: o planejamento de um projeto ou ação cultural, mesmo em condições precárias de execução; e a presença de uma liderança estimuladora e agregadora – professor, mestre, instrutor, gestor. Resumimos o esquema observado conforme o quadro a seguir: Políticas culturais: processo e resultados Detonadores do processo  Existência do projeto de ação cultural Processo Percepções

O papel agregador (professores,gestores)

do

líder

 Integração dos jovens nas atividades culturais

Conversão da atividade cultural em consumo cultural

Mudanças nas disposições juvenis – práticas de consumo cultural

Identidade – reconhecimento,cidadania,projetos de vida

Fonte: elaboração própria.

Cada jovem detém um conjunto de disposições adquiridas em seu contexto de vida particular, absorvendo e externalizando as ações que vão acontecendo em seu espaço social. Se neste espaço ações culturais se desenvolvem e são geridas por professores ou lideranças envolventes, os jovens são atraídos e passam a conviver com expressões culturais que antes não estavam no seu cenário de vida. A consequência disso é a ampliação das opções de consumo cultural, a partir do conhecimento da diversidade de bens culturais existentes, e a apropriação de novas práticas passa a ser um diferencial de si dentro do universo próximo de suas vidas, redundando na elevação da autoestima de cada um. O reconhecimento de si no espaço dos estilos de vida, seus gostos e suas disposições alteradas após a relação construída com as atividades culturais são a chave de acesso para a construção de novos objetivos. A participação dos jovens nas atividades constituiu-se numa ação dual, mesclando o lazer e as oportunidades de escolhas, advindos dos conteúdos ofertados: ora se apresenta em seu aspecto lúdico, ora realça talentos, mesmo em condições adversas. Em todas as circunstâncias, as ações culturais se mostraram marcantes para as suas histórias de vida. Os problemas estruturais só vêm à tona quando os jovens são questionados diretamente sobre isso. Em seus discursos, está presente a transformação de sua visão de mundo e a relevância do líder no processo formativo das atividades culturais. Reconhecer-se no espaço dos estilos de vida, alterando gostos e disposições depois de estabelecer relações com as expressões culturais a que tiveram acesso promoveu o contentamento de muitos jovens ante a descoberta do novo, revelada no despertar de vocações latentes, mas que precisavam de um estímulo para se concretizar. Ainda que do mundo da educação, todo este processo perpassa o mundo da cultura. As mudanças positivas em níveis pessoal e coletivo nos grupos juvenis demonstram que as políticas públicas culturais devem se inserir nos projetos educacionais de forma permanente. Referências Alencar, A.L.H.(2008). Estilo de vida e sociabilidade: relações entre espaço, percepções e práticas de lazer na sociedade contemporânea. Recife, Massangana.

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