Governança de TI na Administração Pública Federal: constrangimentos institucionais e políticos à padronização

May 23, 2017 | Autor: Ana Júlia Possamai | Categoria: E-Government, IT Governance
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Governança de TI na Administração Pública Federal:
constrangimentos institucionais e políticos à padronização

Ana Júlia POSSAMAI
Diego Rafael CANABARRO
Marco CEPIK

CENTRO DE ESTUDOS INTERNACIONAIS SOBRE GOVERNO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
[email protected]; [email protected]; [email protected]


RESUMO
O trabalho apresenta os constrangimentos institucionais e políticos
existentes atualmente no âmbito da Administração Pública Federal brasileira
(APF) à adoção de soluções de TI diversas – dentre ela os padrões Web.
Enquadra-se esta apresentação no contexto da crescente institucionalização
da gestão e da governança de TI no setor público no Brasil, processo que
define as possibilidades e os limites às interações comerciais e não
comerciais entre o mercado, os governos e a sociedade no que diz respeito à
padronização da TI governamental.


Palavras-Chave
Gestão de TI; Governança de TI; Administração Pública Federal.






INTRODUÇÃO[1]


O presente artigo objetiva apresentar os constrangimentos
institucionais e políticos à adoção de soluções de diversas Tecnologias da
Informação (TI) – dentre ela os padrões Web – no âmbito da Administração
Pública Federal (APF) brasileira, onde apenas recentemente os temas da
governança e da gestão de TI passaram a permear as ações da burocracia
estatal. Essa condição impõe limites, por um lado, e possibilidades, por
outro, às interações comerciais e não-comerciais estabelecidas entre o
mercado, os governos e a sociedade no que tange ao emprego da TI no setor
público.
O texto está dividido em três seções. Em primeiro lugar, buscaremos
analisar e relacionar a evolução do tratamento da TI nos Estados
contemporâneos ao duplo problema da emergência e eventual superação do
chamado Novo Gerencialismo Público (NPM) e da transição tecnológica rumo ao
que vem sendo chamada de "Era Digital" – tanto em referência ao marco
tecnológico quanto ao gerencial. Num segundo momento, apresentaremos como a
configuração e a atuação do Sistema de Administração dos Recursos de
Informação e Informática (SISP) da APF enquadra-se nesse processo, segundo
os constrangimentos institucionais que lhe foram e são colocados. Em
seguida, ilustraremos os balizamentos políticos percebidos pelos atores da
burocracia estatal ante a adoção de novos padrões e formas de contratação,
emprego e tratamento dado às diversas tecnologias no plano da Estratégia de
Governança de TI que vem sendo encabeçada pelo SISP. Considerações finais
encerram o trabalho, retomando os principais pontos abordados e propondo um
ponto a mais na pauta de discussão da padronização, diante da destacada
posição do setor estatal enquanto um dos maiores consumidores e produtores
de TI.



DA GESTÃO DE TI À GOVERNANÇA DE TI NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

As Tecnologias da Informação têm sofrido constantes processos de
modificação, atualização e inovação, inerentes à sua natureza. É possível
compreender esse processo de evolução do emprego e do tratamento dado à TI
nas organizações administrativas a partir de quatro eras: a era do
mainframe, a era da microcomputação, a era da Internet e, hoje, a Era
Digital. No setor público, porém, além dos imperativos tecnológicos, faz-se
necessário compreender ainda que a adoção de soluções da TI relaciona-se
diretamente com os quadros de referência que guiam a Administração Pública
contemporânea, o que implica constrangimentos político-institucionais às
mudanças e inovações em matéria de contratação, adoção e emprego de novas
tecnologias e padrões.
Na fase inicial de seu desenvolvimento, dado seu alto custo, a
utilização de TI limitou-se a áreas específicas de inovação e de defesa. Já
nos anos 1960 a 1970, a redução dos custos dos equipamentos e soluções
possibilitou ampliar o emprego de ferramentas de informática para outras
esferas da atividade governamental, como sistemas de pagamento, de
armazenamento de dados, etc. [4]. Tarefas características da Administração
Pública Burocrática (APB), com processos definidos, hierarquizados e
rotineiros, passaram a ser automatizados através da criação de sistemas e
aplicações [6]. À época, a gestão da tecnologia preponderava sobre a gestão
da informação, e ficava restrita e centralizada nos data centers, baseados
em tecnologias de mainframe [4]. A então Gestão de Sistemas de Informação
era realizada por profissionais de informática, isolados dos braços
gerenciais e administrativos, sendo responsáveis apenas por automatizar os
processos já existentes. Os usuários pouco tinham contato com os sistemas
de informação, muito menos com seu planejamento e formulação [6].
A partir do surgimento dos PCs, a TI passou a ser incorporada à
rotina de vários órgãos como ferramenta estratégica na busca de eficiência.
Ao serem percebidas como componente estratégico, os órgãos passaram a
adotar soluções de TI conforme suas necessidades, passando a adquirir seus
próprios equipamentos, sistemas e profissionais, de forma descentralizada
[4]. Os data centers tornarem-se centros fornecedores de tecnologia,
segundo a demanda dos órgãos – que passou a ser suprida também, e
sobretudo, por outsorcing. Dessa forma, foi reforçado um modelo de gestão
de TI voltado para dentro, com vistas à redução dos custos associados à
realização das tarefas administrativas dos órgãos. Este modelo
descentralizado, adotado na era dos microcomputadores, ficou conhecido como
Gestão de Recursos de Informação [6]. Observa-se, portanto, que as
iniciativas de centralização da gestão de TI que tiveram lugar entre 1960 e
meados de 1970, foram descontinuadas ao longo do período seguinte.
Esse tratamento não é por acaso contemporâneo ao desenvolvimento e
aplicação de estratégias e fórmulas gerencialistas no setor público. Ao
longo dos anos 1980 e 1990, o Novo Gerencialismo Público (New Public
Management, NPM) difundiu a crença de que era necessário reinventar o
governo [9], alterando o foco da departamentalização e centralização do
modelo burocrático em direção à descentralização, focada no cliente-
cidadão. Criticando o tamanho e a ineficiência do setor público, o NPM
apregoou a privatização, a terceirização e a descentralização como meios de
incrementar a perfomance e a eficiência do setor público. Os gestores foram
transformados em gerentes, com significativo poder discricionário sobre as
decisões do órgão sob sua responsabilidade (free to manage) [7]. Contudo, o
receituário do NPM acabou gerando a desagregação, isto é, a repartição do
setor público em estruturas isoladas e não verticalizadas, personificadas
nas agências executivas [2; 4]. Ainda, os sistemas de incentivos adotados e
a promoção da competição entre os órgãos acabaram criando ilhas
burocráticas, com baixo incentivo para o compartilhamento de dados e
informações, bem como para a coordenação e a colaboração interagências [10;
4]. A presença dessas ilhas apresenta-se hoje como um dos grandes entraves
à interoperabilidade, aos padrões de dados abertos, e à entrega de serviços
integrados e transversais.
Diante da era da Internet, a ampliação exponencial da capacidade de
produção e compartilhamento de dados e informações em redes (públicas,
privadas e/ou sociais) tornou evidentes os limites e os entraves de uma
gestão de TI voltado para dentro e descentralizada segundo as necessidades
de cada órgão [6]. Ademais, o crescimento no número de atores interessados
e envolvidos na formulação das políticas públicas (cuja operacionalização
e/ou realização passou a se assentar cada vez mais em sistemas de
informação) evidenciou a necessidade de repensar não apenas as práticas da
administração pública (transição governo–governança) mas também a maneira
de pensar e gerir a TI nesse âmbito. Concebeu-se a ideia de Gestão do
Conhecimento, que altera a ênfase da gestão física da tecnologia e da
informação para a gestão de conteúdo dos inputs recebidos dos atores em
geral. Com a maturação tecnológica (interfaces gráficas, arquiteturas
cliente-servidor, etc), passou-se a entender o emprego da TI não só para
fins de automatização, mas como meio de tornar os órgãos mais responsivos e
orientados à prestação de serviços ao cidadão [6].
Na atual Era Digital, cresceram as oportunidades de se criar,
trabalhar e compartilhar dados e informações através de diversos
dispositivos, por distintos atores, usuários e órgãos. Nesta realidade,
relegar a gestão de TI apenas a técnicos agindo em desacordo com
planejamento político-estratégico holístico do governo não mais é
admissível [6]. Logo, um novo modelo de tratamento da TI está em pleno
desenvolvimento, cujos objetivos transcendem a automação e a eficiência ou
a gestão de conteúdos. Adequando práticas consagradas no setor privado à
realidade política e multissetorial do setor público, hoje se percebe a TI
como a ferramenta essencial para a transformação da administração pública,
deixando de ser objeto apenas de gestão para ser objeto de governança. Mais
ampla que a gestão de TI, a governança de TI busca trabalhar as
possibilidades das tecnologias na sustentação, viabilização e realização
dos fins, presentes e futuros, dos objetivos globais e setoriais da
administração pública, suas atividades finalísticas e seus usuários
(cidadãos, empresas, terceiro setor) [8; 11]. Logo, envolve outros atores,
para além do órgão, e depende do diálogo coordenado entre analistas de TI,
agentes políticos (ministros, secretários-executivos, diretores,
secretários, etc), gestores públicos, e usuários. Por meio da governança de
TI, decide-se quem toma as decisões relativas à TI e como estas decisões
são monitoradas, de modo a alinhar as tecnologias aos objetivos e metas
globais e setoriais da Administração. A diferença entre gestão e governança
de TI reside no foco e no locus das atividades: a gestão foca o ambiente
interno da organização e é realizada no nível departamental, já a
governança congrega o foco interno e externo e deve ser realizada em nível
hierárquico superior, de modo a englobar a organização como um todo [11].
Essa posição garante ao analista de TI maior visualização dos fins, da
lógica e das etapas dos processos de governo, o que lhe confere maior
capacidade de reavaliar o desenho de processos e otimizar a adoção de
padrões tecnológicos. A governança de TI envolve planejamento estratégico
que avalie a natureza do impacto organizacional do uso de TI, determine o
treinamento de recursos humanos e alinhe os recursos de TI aos objetivos
institucionais da administração pública, bem como proteja e relacione os
interesses de atores internos e externos à organização. Sendo assim, os
analistas de TI, atores fundamentais desse modelo, passam a ter que
compreender não só a técnica, mas também o ambiente institucional e
político no qual serão empregadas as soluções disponíveis.
Como nas demais eras, a emergência da governança de TI no setor
público deve ser compreendida a partir de um processo mais amplo de
transformação e reforma do aparelho do Estado, no qual as tecnologias têm
sido empregadas não apenas como ferramentas auxiliares, mas como
componentes fundamentais da administração. Para compreender a administração
pública contemporânea é necessário, então, compreender o modo de tratamento
da TI [5]. Observa-se que há um novo quadro referencial da Administração
Pública, no qual a governança de TI tem sido desenvolvida, o qual busca não
apenas eficiência, mas a ampliação e efetivação de uma governança política
e processual ampla e integrada, com vistas a atender o objetivo global do
setor público, qual seja: prover bens e serviços públicos de qualidade.
Trata-se da Governança da Era Digital (Digital Era Governance, DEG), um
conjunto de práticas assentadas no uso da TI, que vem sendo aplicado nos
governos contemporâneos no intuito de reintegrar órgãos, digitalizar
processos e serviços e criar uma visão holística da organização, voltada ao
atendimento das necessidades dos cidadãos [4]. Dadas suas características,
a DEG só será realizada quando possibilitados e viabilizados os princípios
e meios de atuação e interação da governança de TI.
Sustenta-se aqui, portanto, que é a partir desse paralelo entre
variáveis político-institucionais e tecnológicas que melhor se compreende o
tratamento dado à TI no setor governamental. A seguir, analisaremos o
histórico do desenvolvimento e da atuação do (SISP), segundo o quadro de
transição da gestão de TI (APB ( NPM) para a governança de TI (DEG) na
Administração Pública Federal brasileira.



O PAPEL DO SISP

O tratamento da informática na Administração Pública Federal
brasileira inaugurou-se, em 1990, com a criação do "Sistema de Controle da
Informática do Setor Público - SISP" (Decreto nº 99.180/1990), rebatizado
em 1994 de "Sistema de Administração dos Recursos de Informação e
Informática, da Administração Pública Federal" (Decreto 1.048/1994) –
mantendo-se, no entanto, o acrônimo. O SISP foi criado para desempenhar o
papel de órgão responsável pelo "planejamento, a coordenação, a
organização, a operação, o controle e a supervisão dos recursos de
informação e informática dos órgãos e entidades da APF direta, autárquica e
fundacional, em articulação com os demais sistemas que atuam direta ou
indiretamente na gestão da informação pública federal". De 1990 até os dias
atuais, o Sistema passou por um processo de institucionalização, durante o
qual se observa a transição da gestão de TI (descentralizada) para a
governança de TI (integrada e holística) no setor público brasileiro, no
contexto da também transição (e eventual superação) do NPM para a DEG.
Essa dupla transição pode ser enquadrada em dois momentos: Governo
FHC e Governo Lula. Durante a gestão do Presidente FHC (1995-2002), não
houve institucionalização substancial do SISP. Embora o período
correspondesse ao momento de inserção do país na Sociedade da Informação
(através do comércio eletrônico, da busca pela universalização dos serviços
de comunicação, da aplicação de tecnologias pretensamente em busca do
desenvolvimento sustentável e da inclusão digital, etc) [13], as novas
tecnologias foram percebidas mais como um elemento-chave ao alinhamento e
ao ajustamento do país aos imperativos de uma nova ordem internacional,
baseada em uma "nova economia" digital. No âmbito governamental, o emprego
de soluções de TI foi pautado pela reforma administrativa ao estilo do NPM,
guiada pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), de
1995. Buscou-se orientar a APF à realidade do setor privado em termos de
resultados, desempenho e produtividade, buscando mecanismos e práticas de
gestão estratégica de mercado. Ao Estado caberia apenas um rol de
"atividades principais" (de cunho finalístico), enquanto que as "atividades
auxiliares" (de suporte) deveriam ser terceirizadas. Em decorrência desse
entendimento, serviços técnicos de informática e processamento de dados, ao
lado de outros serviços definidos como de 'suporte' (transporte, coperagem,
vigilância e limpeza) passaram a ser objeto de terceirização e contratação
externa, descentralizada, pela lógica do menor preço (Decreto nº
2.271/1997). Aos servidores públicos responsáveis pelo tratamento da TI foi
relegado o último lugar dentro da hierarquia burocrática. Com isso, grande
parte dos órgãos da APF foi levada a constituir departamentos responsáveis
pela 'gestão dos seus recursos de informação', segundo as exigências das
atividades ali desempenhadas (de maneira autônoma, desvinculada de uma
estratégia coerente e sem articulação e interoperabilidade global). O papel
secundário atribuído às tecnologias da informação e da comunicação pode ser
considerado a causa imediata do hiato existente entre as atividades meio e
fim dos órgãos governamentais, bem como do desalinhamento entre tais
atividades e a TI governamental.
Por sua vez, durante o Governo Lula (2003 a 2010), dois momentos
devem ser destacados para compreendermos o momento da transição técnico-
genrencial. Em primeiro lugar, observou-se uma reorientação das aplicações
da TI governamental para o apoio mais substancial dos grandes eixos
temáticos da ação do governo, uma vez que a prioridade anunciada no período
passou a se relacionar com as áreas-fim da ação governamental,
especialmente no que diz respeito ao exercício da cidadania e da inclusão
social, ao invés de se concentrar na reforma administrativa do estado
brasileiro [1]. Essa medida pode ser entendida como resposta direta ao
insulamento burocrático anterior – tanto dos órgãos entre si, quanto do
governo em relação à sociedade. A partir de 2003, o Governo Federal passou
a investir na constituição da DEG no país, visando incrementar a capacidade
estatal de entregar serviços públicos e mesmo ampliar os canais de
participação democrática dos cidadãos [3]. Os investimentos e o emprego de
tecnologias, seja no back-office, seja no front-office dos mais variados
órgãos e ministérios da APF cresceram consideravelmente na última
década[2].
Apesar dessa perspectiva, foi somente diante da atuação do Tribunal
de Contas da União (TCU), sobretudo a partir do ano de 2006, que se pode
falar em direcionamento das ações da APF à governança de TI. O TCU
realizou, entre 1994 e 2006, algumas dezenas de fiscalizações em diferentes
sistemas de informação da APF. Em resposta ao crescente emprego de TI na
APF, o órgão de controle debruçou-se sobre os investimentos e as
contratações de TI. Em 2006, a Secretaria de Fiscalização de Tecnologia da
Informação (SEFTI/TCU) foi criada especialmente para fiscalizar a adoção de
recursos de TI na APF. Desde 2006, a SEFTI realiza auditorias relacionadas
à governança e gestão de TI na APF, e recomenda medidas necessárias
relacionadas a: governança, segurança, sistemas, dados, infraestrutura,
contratações, programas e políticas públicas. É especialmente como resposta
aos acórdãos 1603/2008 e 2471/2008 TCU-Plenário que se percebe o momento de
inflexão da relevância, das ações e das medidas adotadas e promovidas pelo
órgão central do SISP, que passou a atuar diretamente nas temáticas acima
para concretizar a governança de TI no âmbito federal.
Hoje, a atuação do Sistema divide-se em três linhas: (1) assegurar
suporte de informação adequado, dinâmico, confiável e eficaz à APF; (2)
estimular o uso racional dos recursos de informação e informática,
contribuindo para incrementar a qualidade do ciclo da informação; e (3)
integrar as áreas de TI do Governo Federal, concatenando esforços pelo
compartilhamento de experiências comuns e soluções adotadas. Nesse sentido,
desde 2008, as ações do SISP têm-se organizado em torno da formulação e
promoção da Estratégia Geral de Tecnologia da Informação (EGTI), um
planejamento estratégico global de TI para o conjunto de órgãos vinculados
ao SISP. A EGTI (2008/2009) adotou um modelo de governança moldado em torno
do aperfeiçoamento da gestão de TI e do alinhamento de tal atividade com o
planejamento institucional do órgão; do aprimoramento quali-quantitativo
dos recursos humanos da burocracia estatal; da melhoria das contratações de
TI pelo Governo Federal; da construção e adoção de padrões e modelos de
apoio à gestão e à tecnologia; da segurança da informação. Segundo esse
modelo, cada órgão integrante do Sistema está obrigado a preencher
formulários eletrônicos de autodiagnóstico, de maneira a possibilitar o
constante mapeamento e aperfeiçoamento da governança de TI na APF. Cada
órgão integrante do Sistema, ainda, deve realizar seu Planejamento Diretor
de TI (PDTI), com o objetivo de alinhar o emprego de TI às necessidades
decorrentes das atividades por ele desempenhadas.
Dentro desse modelo de governança e gestão de TI, um dos principais
desdobramentos jurídico-institucionais para a adoção de padrões Web pelo
Governo Federal foi a adoção da Instrução Normativa nº 4, de 19 de maio de
2008, reformulada em 12 de novembro de 2010, responsável pelo "processo de
contratação de soluções de Tecnologia da Informação pelos órgãos
integrantes do SISP do Poder Executivo Federal". O instrumento estabelece
fases e requisitos para a contratação de soluções de TI pela APF e
especifica quais são os critérios para a escolha de fornecedores. Na IN-04,
determina-se, por exemplo, que "não poderão ser objeto de contratação: mais
de uma Solução de Tecnologia da Informação em um único contrato; e gestão
de processos de Tecnologia da Informação, incluindo gestão de segurança da
informação." (Art. 5º, I e II). A viabilidade ou não de se contratar
determinada solução fica restrita, entre outras coisas, "à disponibilidade
de solução similar em outro órgão ou entidade da Administração Pública; a
soluções existentes no Portal do Software Público Brasileiro [...]; e à
capacidade e alternativas do mercado, inclusive a existência de software
livre ou software público" (Art. 11, II).
Portanto, fica claro que o tratamento despendido à TI na APF
acompanhou o quadro de referência de gestão primada nos distintos momentos
(NPM – FHC; DEG - Lula) e os decorrentes constrangimentos institucionais
criado e/ou impostos. E, sendo assim, interagir (comercial ou não-
comercialmente) com a APF neste tema exige a compreensão do quadro
institucional em que se insere. Além disso, o quadro político também se
mostra relevante, e é para ele que nos voltamos, brevemente, agora.



O SISP NA OPNIÃO DOS GESTORES

Além dos constrangimentos institucionais, é visível o balizamento
criado por atores políticos, direta ou indiretamente afetados pela adoção
de novos padrões e tecnologias na APF. Apresenta-se, abaixo,
sinteticamente, opinião de algumas autoridades do alto escalão do Governo
Federal em relação ao tema, colhidas em entrevistas realizadas durante o
segundo semestre de 2010[3]. Em geral, as posições destacam os
constrangimentos políticos e estruturais à efetividade da governança de TI
no setor público brasileiro e permitem identificar as potencialidades e os
desafios percebidos para o modelo adotado pelo SISP.
O tema da tecnologia está na pauta da APF. Um dos entrevistados foi
sintético ao declarar que: "o conceito de governo eletrônico perdeu
importância no mundo, foi superado por outros. Governo que não for
eletrônico não é mais governo". Percebe-se que "a TI é o coração da
Administração Pública Federal, podendo fazê-la avançar ou estagnar". No
entanto, ciente disso, alertou-se que: "cada vez mais o governo vai prover
serviços eletronicamente, então aumenta demais o risco. [...] Estamos sob
risco desse governo eletrônico, [...] de alguém entrar com dados e perder
dados, de alguém entrar com dados e alguém manipular esses dados. [...]
Tudo vai ficar eletrônico, então nossa preocupação é grande". É neste ponto
que entra a necessidade não apenas de uma gestão, mas de uma governança
(trabalhada, coordenada, acordada) de TI. No entanto, na APF, o emprego de
soluções de TI é ainda percebido como "feito a partir de ilhas de
excelência [...] independente de ter um plano mais global. [...] com o
tempo, o crescimento dessas ilhas de excelência obrigou a uma tentativa de
unificação, que em geral passa por dificuldades, porque as corporações
resistem a essa unificação". Isso acontece, porque essas "corporações", ou
seja, os distintos órgãos da APF, "não querem abrir seus dados, [pois] na
medida em que eu restrinjo ou facilito o acesso aos dados, eu estou tirando
ou dando poder de uma corporação pra que isso aconteça". Com isso, "a TI
governamental está dividida em blocos: o MEC, a Saúde; o MP; a Receita
Federal e o SERPRO. Fora dessas cinco instituições, há situações muito
críticas. Em alguns lugares, tais situações críticas sustentam áreas
essenciais para o país, como a Agricultura".
O reposicionamento do SISP e de sua atuação é muito recente. Sendo
assim, ainda se entende que "ao longo do tempo, a situação não mudou muito.
A situação, em certo sentido, está semelhante à de trinta anos atrás. Há
recursos [...] mas ocorrem péssimas contratações".
O tema "contratações" foi um dos pontos centrais das manifestações
colhidas em Brasília. A quantidade de terceirização, e a consequente baixa
internalização do conhecimento em desenvolvimento e contratação de bens e
serviços de TI, é outro problema levantado. Há, segundo uma das
manifestações, "uma fragilidade do Estado brasileiro em contratar. Nós
vamos por dois caminhos: o Estado não sabe contratar para fora e não sabe
contratar para dentro". Como salientou um dos entrevistados, "na medida em
que se define a terceirização, não se pensa que para poder contratar isso
bem é preciso ter gente que entenda de um negócio cada dia mais complexo e
cuja complexidade vem crescendo, [...] e não tem gente qualificada pra
gerenciar essa complexidade". Da mesma forma, todo o processo de
contratação e de adoções de padrões futuros precisa levar em conta as
aplicações e soluções já existentes: "não é possível tratar do processo,
sem tratar do legado. E tem que dizer o seguinte: o legado é constante.
[...] O que precisa fazer é estar organizado para enfrentar essa mudança
contínua, pra ter flexibilidade de mudar."
No que se refere aos recursos humanos, afirma-se que o que "falha
muito pra nós no Brasil em geral é o treinamento. Não adianta nada você
entregar o melhor computador possível, com os melhores programas possíveis
pra alguém que não sabe usar. [T]em que insistir muito em treinamento".
Situação crítica também é percebida na possibilidade de oferta de soluções
de TI pelas empresas de informática pública, que são menos competitivas em
relação ao setor privado. Além da desatualização tecnológica, segundo um
dos entrevistados, "nós padecemos da desatualização da forma de gestão.
Essas empresas ainda estão vinculadas ao modelo de mainframe, e, por isso,
acabam não dando as respostas esperadas segundo os padrões atuais do
mercado". No entanto, observa-se o fundamental de sua existência, dado que
"está relacionada àquilo que é crítico para o Estado, isto é, a guarda de
informações públicas".
Em linhas gerais, portanto, apesar da retomada do SISP e do avanço no
sentido da governança de TI, o quadro político-institucional em torno do
qual (e contra o qual) o tema vem sendo trabalhado é bastante delicado,
cabendo observar e compreender suas limitações e deficiências em termos não
apenas tecnológicos, mas de gestão e de recursos humanos.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da segunda metade do século XX, foi crescente a produção e
adoção de aplicações e soluções de Tecnologia da Informação pelos governos.
No entanto, o tema não chegou a receber um tratamento analítico adequado
desde uma ótica político-institucional. A literatura de administração e
política trabalhou apenas marginalmente a TI, considerando-a ferramenta
auxiliar de gestão. A produção acadêmica da área acabou sendo conduzida,
sobretudo, por acadêmicos e técnicos da área de sistemas de informações [6]
e, por conseguinte, questões como restrições políticas, institucionais e
econômicas às ações dos técnicos e burocratas, bem como o controle público
da ação governamental, ficaram de fora do estudo do da adoção de TI no
setor público.
Contudo, cada vez mais se percebe a centralidade do Estado enquanto
usuário, consumidor e promotor das novas tecnologias. O setor público é
apontado como o que mais investe em P&D e tem crescentemente aplicado
recursos na criação do "Estado Digital", tanto no que diz respeito à
dinâmica interna de back office quanto à faceta de front office exposta à
sociedade. Projeto de pesquisa desenvolvido pela União Europeia [12] aponta
que, em grande medida, as soluções de TI no setor público referem-se não
apenas ao suporte das atividades de governo eletrônico, mas também das
atividades de setores responsáveis pela infraestrutura crítica (energia,
transportes, finanças, etc) de um país. Nesse quadro, o papel das soluções
de computação em nuvem vem progressivamente aumentando.
Sendo assim, o crescente debate sobre a evolução da Web, a
padronização de suas tecnologias e o decorrente impacto disso sobre governo
e sociedade merecem atenção e cuidado renovado do campo de estudo da
Administração Pública e Ciência Política. Por sua vez, inevitavelmente,
qualquer debate ou reflexão acerca de padrões tecnológicos aplicados ao
setor público devem levar em conta, hoje, as restrições à adoção e difusão
de novos padrões, tecnologias e rotinas de trabalho. Não se pode esquecer
que os objetivos e práticas em no setor público e no setor privado são
diferentes, visto a própria natureza distinta do primeiro, a citar:
diferença nos fatores ambientais (menor exposição ao mercado, maiores
constrangi-mentos legais e formais e maior influência da política),
diferença nas transações entre a organização e o ambiente (maior poder
mandatário, escopo de atuação e responsabilidades muito mais amplo, maior
nível de escrutínio dos servidores públicos, maiores expectativas quanto à
atuação do setor) e diferenças nas estruturas e processos internos
(critérios mais complexos, papéis e poderes dos gestores, maior modificação
dos diretores executivos, maior dificuldade em criar incentivos para
requerer performances mais efetivas e eficientes). "A governança de TI no
setor público [é] mais complexa que no setor privado" [8: p. 3] e, como
tal, o debate e a adoção de padrões e estratégias de TI devem levar em
consideração as especificidades do setor.
Este trabalho tem a intenção de chamar a atenção das entidades não
governamentais envolvidas na difusão dos padrões Web acerca dos limites e
possibilidades de se levar tal evolução tecnológica para dentro da
burocracia estatal no Brasil. Saber o que o governo pode e não pode em
termos de contratação e de aquisição de soluções de TI passa por
compreender os modelos de gestão e governança de TI vigentes e o quadro
institucional em que se insere. Compreender as variáveis políticas e
estruturais da APF no país (como no caso da discrepância entre os distintos
órgãos e a disputa de poder, bem como a existência de sistemas legados) é o
caminho-chave para aumentar as interações entre os governos, os integrantes
do mercado e da comunidade de usuários em prol do uso de soluções Web na
digitalização do Estado brasileiro.





REFERÊNCIAS

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Systems IT Governance in the Public Sector, Too woomba, 2007.
[12] SOMMER, Peter; BROWN, Ian. Reducing Systemic Cybersecurity Risk.
Working Paper No. IFP/WKP/FGS (2011)3, 2011. [13] TAKAHASHI, T. Sociedade
da informação no Brasil: Livro Verde. Brasília: MCT, 2000.


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[1] Este trabalho é uma versão adaptada dos relatórios de pesquisa do
projeto "Governança de TI no Brasil: Análise da Institucionalização do
Sistema de Administração dos Recursos de Informação e Informática – SISP"
desenvolvido em parceria pelo GT Governo, Digitalização e Informática
Pública do CEGOV/UFRGS e pela Secretaria de Logística e Tecnologia de
Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Os autores
gostariam de agradecer aos membros da equipe do GT, ao CNPq e aos
integrantes da equipe da SLTI/MP ao longo do ano de 2010. Versão completa
dos resultados da pesquisa pode ser obtida no livro "Governança de TI:
Transformando a Administração Pública no Brasil", organizado por Marco
Cepik e Diego Canabarro. Disponível no portal virtual do CEGOV:
http://cegov.ufrgs.br. Acesso em: 23/08/2011.
[2] Para maiores informações sobre a evolução e o perfil das compras
públicas de TI no período de 2002 até o primeiro semestre de 2010, ver:
HENKIN, H.; SELAO, D. C. A contratação de serviços de tecnologia da
informação pela Administração Pública Federal. In: CEPIK, M.; CANABARRO, D.
R. Governança de TI: Transformando a Administração Pública no Brasil. Porto
Alegre: WS Editor, 2010.
[3] Para informações sobre as autoridades entrevistadas, vide pp. 197 e 198
do livro referenciado na nota "1", acima.
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