Governança Transversal dos Direitos Fundamentais (Sumário, Prefácio e Introdução)

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marcelo Torelly

Governança Transversal dos direiTos FundamenTais

ediTora lumen Juris rio de Janeiro 2016

Dessa nossa nova Idade Média já se disse que será uma época de “transição permanente” na qual serão adotados novos métodos de adaptação: o problema não será tanto o de conservar cientificamente o passado quanto o de elaborar hipóteses sobre o aproveitamento da desordem, entrando na lógica da conflitualidade. Nascerá, como já está nascendo, uma cultura da readaptação contínua, nutrida de utopia. Foi assim que o homem medieval inventou a universidade, com a mesma desinibição com que os clérigos vagantes de hoje a estão destruindo; e talvez transformando. A Idade Média conservou a seu modo a herança do passado não para hibernação, mas para a contínua retradução e reutilização, foi uma imensa operação de bricolagem em equilíbrio instável entre nostalgia, esperança e desespero. Umberto Eco, 1972*

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ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 99.

Sumário AGRADECIMENTOS .................................................................................VII SIGLAS E ABREVIAÇÕES .......................................................................... XI APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 1 PREFÁCIO Do Transconstitucionalismo à Governança Transversal Por Marcelo Neves ......................................................................................... 3 INTRODUÇÃO Para além de doméstico versus internacional................................................ 9 PARTE I DA ESTATALIDADE À TRANSVERSALIDADE: EMERGÊNCIA E ESTRUTURAÇÃO DAS NORMAS GLOBAIS 1. Do Direito Internacional à Governança Global ......................................... 21 1.1 Direito internacional e assembleísmo global .......................................... 26 1.2 Balanço de poder e capacidade executiva.............................................. 31 1.3 Fragmentação, regimes jurídicos autocontinentes e novas abordagens constitucionais.................................................................... 39 1.4 Judicialização e processo jurídico transnacional .................................... 44 1.5 Evolução e características estruturais da governança global.................. 56 2. Direitos Fundamentais: do Direito Estatal às Normas Globais Transversais ................................................................................... 67 2.1 Enunciação e efetivação de direitos pelo Estado Nacional .................... 72 2.2 Declínio da estatalidade e redistribuições de capacidade decisória ....... 85 2.3 A transconstitucionalidade dos direitos fundamentais ......................... 95 2.4 A emergência de normas globais e sua estruturação em regras e princípios ...........................................................................112 2.5 A norma global de responsabilidade individual................................... 124

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2.6 Entre adequação e consistência: a diferença funcional na aplicação da norma global de responsabilidade individual ..............135 PARTE II GOVERNANÇA TRANSVERSAL NA AMÉRICA LATINA: O SISTEMA INTERAMERICANO E AS ORDENS CONSTITUCIONAIS DOMÉSTICAS 3. Transconstitucionalização Doméstica dos Direitos Fundamentais no Sistema Interamericano de Direitos Humanos .....................................147 3.1 Processo jurídico transnacional na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o uso do litígio estratégico ..............................151 3.2 As cortes e as emergências transconstitucionais: as anistias e a norma global de responsabilidade individual ..................................162 3.3 Arquitetura institucional doméstica para a abertura ao direito internacional dos direitos humanos ......................................... 207 4. Controle de Convencionalidade: perspectivas para além da solução hierárquica ...............................................................................219 4.1 Retomando metáforas “ultrapassadas”: de monismo e dualismo à unidade heterárquica ...................................................... 222 4.2 Uma ferramenta jurídica ímpar: a genealogia do controle de convencionalidade na Corte Interamericana de Direitos Humanos ... 236 4.3 Conflitos decorrentes da implementação do controle de convencionalidade nas cortes domésticas ........................................... 259 4.4 Controle de convencionalidade como acoplamento entre regimes: possibilidades e limitações da abordagem transconstitucional não-hierárquica.....................................................276 4.5 Controle de convencionalidade e processo jurídico transnacional: um balanço .................................................................. 283 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em busca de soluções constitucionais transversais ................................... 297 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 307

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Prefácio Do Transconstitucionalismo À Governança Transversal por Marcelo Neves

O transconstitucionalismo apresenta-se como um modelo teórico de análise e crítica das experiências constitucionais contemporâneas, afastando-se de modelos puramente “provincianos” de abordagem do direito constitucional, para enfatizar o envolvimento transversal de ordens jurídicas sobre um mesmo problema ou caso constitucional. Inclui tanto uma dimensão empírica referente ao entrecruzamento de ordens jurídicas expostas a problemas constitucionais comuns quanto um aspecto funcional e normativo concernente à exigência e pretensão de aprendizado recíproco das respectivas ordens jurídicas em torno de questões constitucionais, ou seja, questões relativas aos direitos fundamentais ou humanos e à limitação ou controle jurídico do poder. Daí por que se pode falar de diálogo transconstitucional, não no sentido de um discurso orientado para o consenso, mas sim na perspectiva de estar aberto à influência do outro e pronto para se surpreender com o fato de que nossas convicções mais profundas podem ser equivocadas1. Entretanto, as conexões transconstitucionais não se limitam a diálogos nesse sentido, pois também incorporam o processamento de colisões entre ordens jurídicas, implicando uma disposição subjacente de aprendizado a posteriori. O transconstitucionalismo só perde significado como exigência funcional e pretensão normativa da sociedade mundial contemporânea quando se afirma o conflito cego entre valores ou interesses, incapaz de levar a um compromisso e tendente a desembocar na mera violência física. Partindo de pressupostos conceituais e metodológicos do transconstitucionalismo e indo além deles, Marcelo Torelly, na obra ora publicada, introduz 1

Em um sentido análogo à noção de diálogo imaginada por Feyerabend: “Ele pode mostrar o efeito de argumento sobre estranhos e sobre expertos de uma diferente escola”, assim como “demonstrar que a natureza quimérica do que cremos são as partes mais sólidas de nossa vida” (FEYERABEND, P. K. Three Dialogues on Knowledge. Oxford: Blackwell, 1991, pp. 164-5).

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o modelo da governança transversal. Enquanto o transconstitucionalismo enfatiza a transversalidade de ordens jurídicas em torno da resolução de problemas constitucionais, a governança transversal salienta os entrelaçamentos de diversas instâncias de poder envolvidas na decisão de questões constitucionais no plano da sociedade mundial. Assim como o transconstitucionalismo distancia-se da ideia de uma constituição global, a governança transversal afasta-se da noção de governo mundial ou de governança global unitária e hierárquica. Da mesma maneira que o transconstitucionalismo aponta para o entrecruzamento entre diversas perspectivas jurídico-políticas em torno de questões constitucionais concretas, a governança transversal sublinha pluralidade de perspectivas político-jurídicas em torno de decisões constitucionais específicas. Torelly, em seu promissor estudo, não se limita a uma abordagem teórica dos problemas do transconstitucionalismo e da governança transversal. Além de dar uma contribuição para a compreensão teórica do tema, o autor enfrenta e manuseia consistentemente material empírico relevante relativo à América Latina, à luz do arcabouço conceitual que toma como ponto de partida, sem descuidar de pressupostos históricos. Ao conectar sobejamente teoria e prática dedicadas à governança global e ao transconstitucionalismo, Torelly dá uma contribuição singular a esse âmbito de estudos. Na introdução ao livro, o autor deixa claro que seu objetivo não é encenar a superação ou o rebaixamento do direito constitucional estatal ou das cortes constitucionais domésticas, em nome de um internacionalismo ou transnacionalismo jurídico apresentado como panaceia para todos os males da política e do direito do Estado. Trata-se, antes, de abrir novos horizontes para o direito e a política constitucionais, incluindo e indo além do Estado. É o espaço de transversalidade constitucional entre ordens jurídicas e instâncias de poder de diversos tipos que está em jogo, com a ampliação dos atores, dos documentos, das normas, das reflexões teóricas e dogmáticas, em uma pluralidade de perspectivas a confluir tanto conflituosa quanto harmonicamente, conforme a constelação concreta. No capítulo 1, ao discutir na esteira de David Kennedy a questão de um possível projeto hegemônico de governança global, Torelly não cede a uma resposta fácil. Ele analisa a transição de um modelo hegemônico vinculado originariamente à ênfase no assembleísmo, predominante na vigência da Liga das Nações, passando pela prevalência de um padrão executivo-administrativo após a criação da ONU no segundo pós-guerra, para um modelo recente em que a di4

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mensão judicial assume o primeiro plano. Embora seja controverso esse esquema, que pode ser eventualmente criticado por linearidade, e apesar de se poder afirmar que “não existe apenas um único projeto [hegemônico] que poderia dominar o contexto social, mas sim projetos concorrentes, em correspondência com a multiplicidade das diferenças antagônicas”2, a análise de Torelly não é inocente e vai muito além das aparências. Nesse sentido é que ele enfatiza ser o atual modelo caracterizado não por uma ênfase nos direitos humanos, mas sim por uma fortificação da governança tecnocrática, não como eliminação da política, mas como substituição à política democrática. No capítulo 2, com vista especificamente à emergência e estruturação das normas globais, Torelly dedica-se mais profundamente à delimitação do seu artefato conceitual e metodológico, sem descuidar, porém, da experiência, ao tomar como exemplo a norma global de responsabilidade individual. Nesse contexto, ele recorre aos elementos metodológicos do transconstitucionalismo e à abordagem analítico-classificatória de Vicki Jackson. Do transconstitucionalismo resulta a ênfase nos espaços de transversalidade constitucional entre diversas ordens jurídicas. Em complemento, a distinção entre modelos de convergência, resistência e articulação, proposta por Jackson, é articulada para apontar para as diversas formas de autocompreensão das normas globais. No modelo de convergência, a respectiva ordem jurídica está, a priori, disposta e aberta para um aprendizado com outras em relação a problemas constitucionais comuns e à emergência de normas globais. No modelo de resistência, ao contrário, a postura, é, a priori, de fechamento e de unilateralidade da ordem envolvida em problemas constitucionais comuns com outras ordens jurídicas, tendendo a rejeitar qualquer aprendizado. Por fim, o modelo de articulação implica uma análise mais contextual, considerando tanto a identidade quanto a alteridade constitucional. Torelly relaciona a metodologia transconstitucional e a classificação analítica de Jackson com a proposta de estágios de desenvolvimento das normas globais, tal como formulada por Martha Finnemore e Kathryn Sikkink: estágio de emergência, em que se procura persuadir os agentes e instituições encarregados a decidir que a norma existe; estágio de “cascata”, quando se começa a aplicar a norma e criar precedentes; estágio de internalização, em que a norma passa a 2

BUCKEL, Sonja. Subjektivierung und Kohäsion: Zur Rekon struktion einer materialistischen Theorie des Rechts. Frankfurt am Main: Velbrück, 2007, p. 223.

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ser aplicada cotidianamente pelos operadores do direito. A essa classificação de estágios, Torelly acrescenta a distinção entre transcontitucionalismo normativo e reflexivo, que, em certa medida, relaciona-se às noções de regras e princípios. Todo esse arcabouço conceitual será processado no estudo empírico de casos apresentado na segunda parte do presente livro. No capítulo 3, baseado na análise de mais de cinquenta casos, o autor considera especificamente a transversalidade entre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e as ordens constitucionais dos países latino-americanos, concentrando-se na Argentina, Chile, Brasil e Uruguai. O autor verifica um modelo de convergência desenvolvido na experiência argentina em relação à anulação ou inaplicabilidade de leis ou decretos de anistia, à luz do direito convencional. Nesse caso, o controle de convencionalidade foi posto em primeiro plano e um modelo hierárquico com prevalência do direito convencional sobre o direito constitucional afirmou-se. Já na experiência chilena, observou-se um modelo de articulação, em que os órgãos estatais trataram de desenvolver um diálogo construtivo com as instituições convencionais. No Brasil, enquanto se constatou uma prevalente resistência ao direito convencional no Judiciário, verificou-se articulação de outras instituições estatais com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como, por exemplo, o Ministério Público Federal. Por fim, o caso Uruguai vai ser enquadrado como “duplo exemplo de articulação e transconstitucionalização reflexiva”, considerando que o direito internacional será usado reflexivamente “tanto para ampliar, quanto para restringir a efetividade da norma global de responsabilidade individual”. O autor conclui que a ênfase na hierarquia normativa, seja na forma de convergência ou divergência, tendem a polarizar e engessar o discurso e a prática dos direitos humanos ou fundamentais, enquanto os modelos flexíveis de articulação tendem a incrementar o desenvolvimento desses direitos. No capítulo 4, Torelly concentra-se criticamente na noção do controle de convencionalidade. O autor não despreza a emergência desse tipo de controle para o incremento da salutar transversalidade entre ordens jurídicas na América Latina. Sua objeção é quanto ao excesso de valorização desse tipo de controle em detrimento do controle de constitucionalidade. Tal perspectiva, que se apresenta na doutrina e prática jurídica latino-americana, privilegia um modelo hierárquico, em que o constitucionalismo diluir-se-ia em convencionalismo, com prevalência absoluta do sistema interamericano sobre o direito constitucional dos respectivos estados. Dando preferência a uma articulação transversal 6

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entre controle de convencionalidade e controle de constitucionalidade, Torelly afasta-se tanto do monismo quanto do pluralismo jurídico, para adotar, com destreza, um modelo de unidade heterárquica do direito da sociedade mundial, que está subjacente à sua tese. Este não é o espaço para se fazer uma análise detalhada e abrangente da rica obra de Marcelo Torelly. Essa tarefa ficará por conta dos diversos especialistas em matérias de direito constitucional, internacional e transnacional de que trata competentemente o presente trabalho. Mas, para concluir, cumpre apontar a importância deste livro em tomar uma postura crítica contra modelos teóricos, doutrinários e dogmáticos que insistem na hierarquia entre ordens jurídicas, alimentando a crença idealista em uma ultima ratio discursiva ou um ponto arquimediano do direito e da política. Torelly percorre outro caminho, na busca de uma transversalidade que incremente as perspectivas constitucionais, em passos emancipatórios para promoção heterárquica dos direitos humanos e fundamentais em uma sociedade mundial altamente complexa, heterogênea e multicêntrica. Por tudo isso, a leitura deste livro é essencial para os estudiosos do direito, da política e do constitucionalismo no âmbito da sociedade global.

Brasília, 1º de agosto de 2016

Marcelo Neves Professor Titular de Direito Público Universidade de Brasília

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Introdução: para além de doméstico versus internacional A crescente integração social em escala mundial produziu, nas últimas décadas, uma interação sem precedentes entre ordens constitucionais domésticas dos Estados Nacionais e uma série de regimes jurídicos especializados existentes no âmbito transnacional, chamados de “autocontinentes” dada sua relativa autonomia tanto do direito estatal, quando do direito internacional geral. Essa interação propiciou a emergência de espaços de governança transversal, uma vez que determinadas questões jurídicas não podem ser integralmente solucionadas de maneira satisfatória nem pelo direito interno da ordem constitucional doméstica nem pelos regimes jurídicos especializados. Quando determinados problemas jurídicos demandam formas transversais de governança dos direitos fundamentais, a função de mediação entre direito e política tradicionalmente exercida pelo direito constitucional doméstico é substancialmente redimensionada. Na América Latina, a interação entre as ordens constitucionais domésticas e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos constitui um lócus para esse processo. Com o incremento das atividades do sistema regional criado para proteger os direitos inscritos na Convenção Americana de Direitos Humanos, um número cada vez maior de controvérsias jurídicas que antes eram definidas exclusivamente no âmbito nacional passaram a ser levadas à corte internacional, criando um espaço de governança no qual múltiplos atores interagem de maneira transversal. Com a emergência desse espaço transversal, atores que não são tradicionalmente associados aos processos constitucionais operam de maneira funcionalmente similar àqueles responsáveis pela enumeração e interpretação do direito no constitucionalismo estatal, desafiando as teorias que explicam e justificam aquele que é o mais vinculante entre os ramos do direito. Essa transversalidade emergente, não obstante, é limitada por pretensões hierárquicas próprias das ordens e dos regimes envolvidos, seja por razões de preservação de atribuições, seja por questionamentos à própria legitimidade do processo de governança transversal. Apesar de o discurso predominante na literatura e na prática judicial daqueles envolvidos na chamada “constitucionali9

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zação do direito internacional” ou na “internacionalização do direito constitucional” ser o do diálogo e da horizontalidade, em situações limite a maioria dos operadores do direito seguem articulando algum tipo de hierarquia normativa para ordenar as relações transversais que emergem da interação entre as ordens constitucionais e os regimes jurídicos externos. Propondo um caminho alternativo que rompe com alguns dos pressupostos das teorias tradicionais do direito, novas abordagens constitucionais transversais podem auxiliar a reformatar o debate. Os direitos fundamentais possuem uma dupla dimensão positiva: são direitos humanos no direito internacional e direitos constitucionais no direito doméstico. Em vez de se procurar hierarquizar os preceitos constitucionais e internacionais de direitos fundamentais, uma abordagem heterárquica que se disponha a investir na articulação normativa pode viabilizar que a dupla positividade signifique, na prática, a existência de uma dupla ordem protetiva em que nenhum ator possui a autoridade para, isoladamente, dar a última palavra sobre uma controvérsia jurídica. Avançando nessa proposição, o presente livro busca dialogar criticamente com pelo menos seis argumentos comumente encontrados na literatura do campo. Primeiro, a ideia de que o maior protagonismo das cortes internacionais implica um mais amplo uso do direito na solução dos problemas globais, na maior consolidação de um “estado de direito internacional”, ou mesmo na superação da política pela nova ordem global. Ao contrário, ao defender o deslocamento dos problemas constitucionais para um âmbito que transcende (ainda que sem excluir) o Estado Nacional, argumenta-se pela ampliação dos processos capazes de influir na conformação dos direitos fundamentais. Consequentemente, não se procura a “superação” da política pelo direito, mas a alteração do papel do direito constitucional: de mediador entre direito e política no âmbito doméstico para mediador entre direito e política e entre interno e externo em um espaço global organizado por interações parciais, estáveis ou pontuais. Sem que deixem de existir problemas constitucionais domésticos, resolvidos no âmbito nacional, passam a existir também problemas de natureza constitucional na esfera internacional. Quando um problema jurídico tem, ao mesmo tempo, dimensões nacionais e internacionais, duas alternativas se abrem: uma ordem impor-se hierarquicamente ou, alternativamente, a construção de uma solução transversal. Em qualquer dos casos, a tensão entre direito e política segue presente, sendo o maior protagonismo das cortes mais uma decorrência de 10

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uma mudança no estilo de governança hegemônico do que um sintoma de uma suposta ampliação do império do direito global. Segundo, partindo de duas constatações sobre mudanças relevantes no modo como a governança ocorre no âmbito transnacional, quais sejam, (i) a da existência de uma maior interação entre ordens e regimes e (ii) a da emergência de novos atores e normas globais, desafia-se a ideia clássica de que o direito constitucional é produto de decisões soberanas tidas nos Estados Nacionais, e de que o direito internacional é produto do acordo de vontade da maioria ou suficientes Estados Nacionais. Sem questionar a idealidade destas duas assertivas, que dominaram, por muito tempo, seus campos de estudo, se demonstrará como, em particular, a dupla positividade dos direitos fundamentais, prescritos como direitos constitucionais nas ordens domésticas e direitos humanos no direito internacional dos direitos humanos, tem como resultado que aquilo que Harold Koh definiu como “processos jurídicos transnacionais” venham a incidir de maneira determinante no escopo dos direitos fundamentais e das garantias e obrigações deles decorrentes. Nesse novo “jogo”, são atores constitucionais não apenas o povo nacional e as instituições domésticas, mas também organizações públicas e privadas, domésticas e internacionais, mediadas por uma plêiade de técnicos e especialistas que operam em redes globais. Terceiro, e como consequência, resta alterada uma das ideias-chave do constitucionalismo clássico, que conecta as garantias fundamentais ao poder constituinte originário, e sua proteção à atuação das cortes constitucionais. Sem que estes atores deixem de ter relevância, novos documentos jurídicos passam a receber interpretação análoga à constituição, ensejando a emergência de divergências e disputas quanto às cortes detentoras da “última palavra” em relação à interpretação dos direitos fundamentais. A interpretação cada vez mais comum de que a Convenção Americana dos Direitos Humanos é um documento constitucional regional, por exemplo, implica o reconhecimento de que os direitos humanos ali garantidos constituem uma espécie de direito constitucional interamericano. Se tal afirmação for verdadeira, a quem cabe a interpretação de tal instrumento? E como ele deve ser lido em relação ao direito nacional de cada uma das ordens constitucionais domésticas? Quarto, ao investir na ideia de interação, empreende-se um movimento de deslocamento de uma perspectiva substancialista estruturalmente baseada na organização institucional do Estado Nacional rumo a uma perspectiva processualmente baseada, que considera um conjunto de legalidades superpostas e 11

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não hierarquicamente coordenadas. Ao fazê-lo, questiona-se outra premissa do constitucionalismo estatal clássico, a da homogeneidade normativa. A governança transversal, ao apostar em processos de interação não hierarquicamente mediados, abre o constitucionalismo (e o direito), a uma maior heterogeneidade. Como se demonstrará na discussão quanto à emergência de normas globais, as mesmas se internalizam de maneira distinta nas variadas ordens constitucionais e regimes internacionais, funcionando ora como regras, ora como princípios e, eventualmente, sendo simplesmente resistidas. Isso ocorre uma vez que, na ausência de um recurso substancial último de precedência (por exemplo: a determinação constitucional como ápice da pirâmide normativa hierárquica), muitas normas globais emergem quando a interação entre regimes as produz, topicamente, na solução de casos concretos que podem ou não se repetir sistematicamente. Quinto, a ideia de que a concessão de um maior status hierárquico ao direito internacional dos direitos humanos nas ordens domésticas per se resulta numa maior efetividade destes instrumentos internacionais de proteção e das decisões das cortes internacionais. Em que pese uma maior abertura da arquitetura institucional das constituições domésticas contenha o potencial de ampliar a interação com o direito internacional dos direitos humanos, fatores de cultura jurídica expressos, sobremaneira, na interpretação das cortes superiores igualmente guardam potencial para inibir os processos interativos. Em outras palavras, a maior consideração da dupla positividade dos direitos fundamentais não depende apenas da arquitetura institucional, mas também da inclinação do judiciário à efetivação do direito internacional dos direitos humanos e das normas globais emergentes. Países com comandos normativos análogos quanto à utilização do direito internacional apresentarão resultados bastante díspares em casos similares, dependendo da abertura de suas cortes superiores e constitucionais para os direitos humanos. Sexto, ao apostar em uma perspectiva da governança transversal, buscando soluções não hierárquicas, questiona-se a afirmação, presente em parte da literatura e da prática judicial, de que a possibilidade de exercício de um controle de legalidade estrito por cortes internacionais, no presente caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, necessariamente implique uma maior efetividade do direito internacional dos direitos humanos e das decisões judiciais internacionais. Por meio da leitura combinada entre a evolução da ideia de controle de convencionalidade e da aplicação da norma global de responsabili12

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dade individual por graves violações contra os direitos humanos, é possível contrastar casos de maior ou menor sucesso da penetração do direito internacional nas ordens constitucionais domésticas com aqueles de prática mais ou menos incisiva da revisão judicial baseada na Convenção Americana. Embora existam bons argumentos para defender que os julgamentos da Corte Interamericana devem sempre prevalecer sobre os das cortes domésticas, o inverso também é verdadeiro. O fato é que não existe qualquer evidência de que a escolha por um modelo de vinculação hierárquica de um regime por outro venha a aumentar a proteção aos direitos fundamentais no mundo da vida, apenas de que tal escolha implica aumento do poder de um regime ou ordem sobre outro. Para dar conta deste diálogo crítico, o livro está dividido em duas partes que combinam a argumentação teórica com a análise de casos. Na primeira, composta por dois capítulos, é construído um panorama da questão da governança transversal, localizando-a dentro do mais amplo campo da governança global multicêntrica, sendo introduzido o tema da emergência das normas globais. O primeiro capítulo busca responder qual é o projeto hegemônico de governança global no qual se inserem as interações entre o regime regional de direitos humanos e as ordens constitucionais domésticas e como chegamos a ele. A partir da revisão de parte da literatura sobre a evolução dos projetos de governança global ao longo do século XX, especialmente aquela proposta pelo internacionalista norte-americano David Kennedy, busca-se demonstrar como o próprio direito internacional gradualmente migrou sua estratégia de governança de um estilo assembleísta, baseado em decisões coletivas, para outro, executivo, e, finalmente, como a combinação entre especialização funcional e expansão da capacidade autorregulatória de determinados regimes conduziu a um cenário de “fragmentação” do direito internacional. Os regimes autocontinentes resultantes desse processo, como aquele do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, valorizam o papel das cortes e tribunais na gestão de conflitos e divergências, produzindo uma judicialização internacional similar àquela experimentada em alguns contextos domésticos onde a atuação política é gradualmente colonizada pelo judiciário que, para dar conta de responder a demandas antes atendidas pelo legislativo, passa a adotar posturas crescentemente ativistas. A reconfiguração da governança global igualmente ilustra a emergência de uma nova lógica de legitimação do direito. Gradualmente abandonando 13

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uma perspectiva positivista, rumo a outra, realista e funcionalista, o direito internacional fragmentado mostra-se menos dependente da estatalidade para legitimar seu projeto de governança. A ideia de especialização funcional permite a consolidação de campos de governança em que a legitimidade democrática, característica do constitucionalismo doméstico, é substituída pela legitimidade da expertise. O foco da governança gradualmente desloca-se do eixo substancial da busca do direito a ser aplicado rumo a uma perspectiva processual e funcionalista, que reconhece a fragmentação e a pluralidade e se preocupa com o problema jurídico compartilhado. Em múltiplas áreas, inclusive nos direitos fundamentais, os técnicos, como o são os especialistas e os juízes, ganham relevância em relação aos atores políticos tradicionais, como os militantes e os parlamentares, de tal maneira que certas formas de conhecimento e o domínio de certas linguagens transforma-se em poder, sem ou com poucas mediações democráticas. O segundo capítulo contrasta o processo de afirmação de direitos na consolidação dos Estados Nacionais, que informa a teoria clássica do constitucionalismo estatal, com o processo de emergência das chamadas normas globais, valendo-se do exemplo da norma global de responsabilidade individual por graves violações contra os direitos humanos. A ideia de declínio da estatalidade, proposta por Dieter Grimm, é acionada para demonstrar a contraparte doméstica ao processo de expansão e fragmentação do direito internacional: a gradual perda de exclusividade regulatória do Estado em seu próprio domínio territorial. A esse ponto, interessa responder a duas questões: primeiro, o que são normas globais, pois leituras distintas, no direito e na ciência política, abordam o fenômeno, produzindo respostas que, embora não sejam reciprocamente excludentes, guardam distinções relevantes entre si. Segundo, como tais normas se enquadram dentro da teoria do direito, especialmente no que concerne à sua aplicação prática como regras ou como princípios. Para construir o arcabouço teórico de onde se partirá para responder a essas questões, será introduzida a teoria do transconstitucionalismo, de Marcelo Neves, entendido como uma forma de constitucionalismo relativa a problemas de natureza constitucional que ocorrem simultaneamente em diferentes ordens e regimes jurídicos que não estão hierarquicamente coordenados. Ou seja: são problemas transversais. Igualmente, articula-se a abordagem de Vicki Jackson sobre a convergência, a resistência e a articulação entre o direito constitucional doméstico e o 14

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direito internacional, para, somando-a com a ideia de transconstitucionalidade, explorar as inúmeras possibilidades que existem para além do debate estrito sobre a observância e o cumprimento das obrigações internacionais pelos Estados que caracteriza boa parte das perspectivas hierarquizantes. Mais do que ser “obedecido”, o direito internacional pode influenciar o direito doméstico, incidindo na interpretação sobre dispositivos jurídicos, introduzindo exceções ou sendo usado como instrumento de mobilização por mudanças legais. Uma perspectiva da governança transversal heterárquica oferece alternativa aos antigos modelos hierárquicos de solução de conflitos, reposicionando o problema dos direitos fundamentais sem recorrer a precedência exclusiva do direito constitucional estatal, mas também afastando o argumento da precedência absoluta do direito internacional dos direitos humanos. Daí seu diálogo crítico com as teorias hegemônicas nos dois campos de conhecimento, que pretendem, cada uma, afirmar sua superioridade hierárquica sobre a outra. A análise da emergência da norma global de responsabilidade individual em processos jurídicos transnacionais igualmente permite avançar com a resposta a outras indagações necessárias para o questionamento dos pressupostos presentes na literatura acima elencados. Mais notadamente, quem são os atores constitucionais relevantes na emergência das normas globais que substituem, mesmo que momentânea e parcialmente, os atores constitucionais tradicionais? Nesse mesmo capítulo, são diferenciados dois usos do transconstitucionalismo: o reflexivo e o normativo. Ainda, discute-se como as normas globais se internalizam e se diferenciam como regras e como princípios nas múltiplas ordens jurídicas sobrepostas, afirmando outro elemento central para o argumento desta obra: o da heterogeneidade das normas globais. A teoria tradicional do direito, por ser substancialista, nega a possibilidade de contradição normativa. Toda a contradição deve ser eliminada. Porém, em um sistema multicêntrico onde há independência entre as ordens e os regimes, é impossível garantir que tal homogeneidade ocorra sem romper com a própria independência que os caracteriza. Como as soluções para colisões ocorrem procedimentalmente dentro das próprias ordens e regimes que procuram, por meio de uma decisão dentro de sua esfera de atuação, equacionar conflitos, temos de aprender a conviver com alguma heterogeneidade. A segunda parte da obra analisa a experiência de governança transversal dos direitos fundamentais na América Latina. Mais especificamente, analisa as relações entre as ordens constitucionais dos Estados Nacionais da região e 15

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o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Para tanto, busca suporte em 54 casos: 05 relatórios da Comissão Interamericana; 21 sentenças da Corte Interamericana contra os estados da Argentina, Barbados, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guatemala, Honduras, México, Paraguai, Peru e Uruguai, e seus posteriores relatórios de cumprimento; e de 28 decisões domésticas das cortes supremas e tribunais locais da Argentina, Brasil, Chile, México e Uruguai. Foca-se em responder se existe um espaço transversal de governança na região e como se dá a relação entre as ordens constitucionais e o regime regional em um contexto que combina uma heterarquia geral com mecanismos específicos de hierarquização e soluções ad hoc em casos concretos. O terceiro capítulo do livro parte do questionamento sobre como ocorre o processo jurídico transnacional na América Latina? O recorte da pesquisa primeiramente foca na mobilização pela enunciação jurídica de pretensões políticas por direitos fundamentais na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na teoria jurídica tradicional, é o poder legislativo que enuncia direitos nacionalmente e os tratados internacionais, ratificados por tais poderes domésticos, é que o fazem internacionalmente. A crescente judicialização, doméstica e internacional, fez com que gradualmente tribunais e órgãos análogos tenham também se transformado em espaços de produção de novos direitos. São exemplificativamente analisados dois casos de reforma legal e de políticas públicas alavancados pela Comissão Interamericana e, na sequência, as respostas nacionais à norma global de responsabilidade individual que se insurgiu contra leis de anistia domésticas na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. Os casos permitem verificar, na prática, quem são os novos atores constitucionais mobilizados no processo jurídico transnacional e como ocorre em concreto a transconstitucionalização normativa e reflexiva. Ainda, explicitam a heterogeneidade da norma global de responsabilidade individual e as tentativas de solução hierárquicas a essa heterogeneidade que prevalecem na prática e no discurso jurídico, mesmo quando a transconstitucionalização se faz presente na prática. A parte final do capítulo é dedicada à discussão em concreto de outro dos pressupostos geralmente verificados na literatura do campo: o maior status hierárquico do direito internacional dos direitos humanos nas ordens constitucionais domésticas implica em maior efetividade das decisões internacionais.

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Governança Transversal dos Direitos Fundamentais

Em outras palavras: é a arquitetura institucional um elemento determinante na interação entre ordens e regimes? Em que pese a constatação de que, sim, uma arquitetura constitucional favorável é benfazeja para a maior articulação dos direitos fundamentais, os casos apontam que formas reflexivas de transconstitucionalização, ou mesmo formas normativas no plano infraconstitucional, podem gerar resultados mais positivos do que aqueles tidos onde se buscou uma vinculação hierárquica forte. A hipótese discutida é a de que tentativas de solução hierárquicas fortes tendem a respostas polarizantes, de resistência ou convergência entre a ordem doméstica e o regime regional, enquanto formas de abertura mais flexíveis podem permitir um processo de articulação dos direitos fundamentais. O capítulo final é dedicado à emergência da prática e da doutrina do controle de convencionalidade. O controle de legalidade baseado na Convenção Americana é uma das mais promissoras ideias nascidas na Corte Interamericana no período recente, mas sua evolução e aplicação levantam questionamentos: como e em que medida a ideia de um controle judicial de legalidade desta natureza é compatível com a perspectiva de “diálogo” e “horizontalidade” defendida na literatura e nas falas da própria Corte Interamericana? Retomando o debate entre monistas e dualistas, por muitos considerado ultrapassado, procura-se demonstrar como boa parte da retórica da comunidade global de cortes, para usar a definição de Anne-Marie Slaughter, esbarra em pretensões hierárquicas, não apenas dos tribunais superiores domésticos (como geralmente se imagina), mas também da Corte Interamericana. Em contraposição, formula-se uma proposta de unidade heterárquica do direito global, inspirada no transconstitucionalismo de Neves e no constitucionalismo societal de Teubner. A aplicação da revisão judicial baseada na Convenção Americana pela Corte de San José, pelas cortes superiores domésticas, e pelos demais atores públicos nacionais, faz retomar o tema da fragmentação do direito, explorado na primeira parte do livro. Diferentes critérios normativos podem emergir da Convenção Americana quando lida por distintos atores com assento em diferentes tribunais. Novamente são contrastadas as alternativas hierárquicas para uniformizar aquilo que, nas palavras do ex-Presidente da Corte Interamericana Sérgio Garcia Ramirez, as vezes parece “uma locomotiva fora de controle”, com a proposta do transconstitucionalismo, avaliando-se as possibilidades e limites do instituto desde uma perspectiva de governança transversal dos direitos fundamentais. 17

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