Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Governo de Mortes Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro

Juliana Farias

Rio de Janeiro 2014

Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Governo de Mortes Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro

Juliana Farias

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas (Sociologia). Orientador: Luiz Antônio Machado da Silva

Rio de Janeiro 2014

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Governo de Mortes Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro Juliana Farias Orientador: Luiz Antônio Machado da Silva Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas (Sociologia).

Aprovada por: ________________________________________________________ Prof.Dr. Luiz Antônio Machado da Silva, Presidente da Banca PPGSA/IFCS/UFRJ ________________________________________________________ Prof.Dr. Fernando Rabossi PPGSA/IFCS/UFRJ ________________________________________________________ Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna PPGAS/Museu Nacional/UFRJ ________________________________________________________ Profª. Dra. Márcia da Silva Pereira Leite PPCIS/UERJ ________________________________________________________ Profª. Dra. Patrícia Birman PPCIS/UERJ ________________________________________________________ Profª. Dra. Beatriz Maria Alasia de Heredia (Suplente) PPGSA/IFCS/UFRJ ________________________________________________________ Profª. Dra. Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira (Suplente) CPDOC/FGV

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FARIAS, Juliana. Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro / Juliana Farias. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2014. xviii, 248f. il; 31cm. Orientador: Luiz Antonio Machado da Silva. Tese (doutorado) – UFRJ / Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Referências bibliográficas: pp 208 – 219. 1. Antropologia do Estado. 2. Execução sumária. 3. Favela. 4. Auto de resistência. 5. Violência institucional. 6. Militarização. I. Machado da Silva, Luiz Antonio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro.

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Para Maria Dalva da Costa Correia da Silva e Gabriela Deivid Correia da Silva, mãe e filha de Thiago da Costa Correia da Silva.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas e todos que hoje integram a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência: Dona Ana, Deize Carvalho, Dona Izildete, Dona Julia, Márcia Jacintho, Patricia Oliveira, Alexandre Magalhães, Deley de Acari, Fabio Araujo, José Luiz e Maurício Campos; e também àqueles que se articulam ou já se articularam a esse espaço político de outras formas: Elaine Freitas, Luciane Rocha, Maristela Santos, Maria da Penha, Josilmar Macário, Luciano dos Santos (Cuca!), Marcelo Braga e Wesley Denílio – por terem me concedido o privilégio da convivência, da interlocução e da militância. Agradeço também àqueles cujos encontros se deram através da Rede e marcaram o início da trajetória desta pesquisa: Marta Dahyle, Sônia, Elizabeth, Dona Aldeci, Isabel Ferreira, Regina Bordalo, Susanne Dzeik, Kirsten Wagenschein, Gas-PA, Joel Valentim, Marcio Jerônimo, Jonas, Baiano, Aurélio e Augusto. Agradeço também às mães de vítimas já falecidas com quem tive a oportunidade de conviver e aprender muito: Dulcinéria, Vera Lucia e Marilene Lima. À Maria Dalva Correia também devo um agradecimento especial, pela confiança depositada no meu trabalho, por ter aberto as portas de sua casa para mim, por todo o afeto com o qual sempre me acolheu e pela interlocução política construída ao longo desses anos. Ao meu orientador, Luiz Antonio Machado da Silva, agradeço por todos os anos de formação, pautados por uma interlocução sincera e compreensiva – o que foi fundamental para um processo de escrita onde a minha liberdade esteve plenamente garantida. À Márcia Leite, com quem aprendi, ainda na graduação, que era possível fazer pesquisa acadêmica politicamente comprometida e posicionada. À Patrícia Birman, a quem devo a possibilidade de olhar o mundo com as lentes da antropologia. À Adriana Vianna, com quem tive o privilégio de dividir parte do trabalho de campo desenhado no projeto de tese e a quem devo, portanto, muitas das ideias exploradas neste trabalho. Considero um verdadeiro privilégio ter podido contar com essas quatro interlocuções ao longo desta etapa da minha formação, visto que estas se desdobraram em uma espécie de comissão informal de orientação – o que me coloca em eterna dívida com todos, ao mesmo tempo em que me obriga a dizer que qualquer aspecto positivo deste trabalho compartilho com eles, ao contrário dos aspectos negativos, dos quais sou inteiramente responsável. Agradeço ao professor Fernando Rabossi e à professora Beatriz Heredia, por terem concedido tempo e atenção ao meu trabalho, aceitando compor a banca de defesa desta tese, juntamente com Letícia Ferreira.

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À Letícia Ferreira agradeço ainda por toda a atenção concedida durante a realização deste trabalho – sua interlocução foi realmente um presente que recebi no início do doutorado e do qual nunca mais abri mão. A Carla Mattos, Christina Vital, Jussara Freire, Lia Rocha, Márcia Leite, Palloma Menezes, Wania Mesquita, Dinaldo Almendra, Cesar Teixeira, Fabio Araujo, Luiz Antonio Machado da Silva e Luis Carlos Fridman – com quem tive o privilégio de realizar uma segunda etapa da minha formação enquanto pesquisadora, no âmbito do CEVIS – Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (Instituto de Estudos Sociais e Políticos / UERJ). Em função de outra parte da minha dívida com Adriana Vianna, agradeço à Paula Lacerda, Angela Facundo, Maria Gabriela Lugones e Antonio Carlos de Souza Lima pelas possibilidades de interlocução no âmbito do LACED – Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ). Agradeço imensamente à toda a equipe da Justiça Global: Alexandra Montgomery, Alice De Marchi, Ana Esther, Andressa Caldas, Cristiana Andrade, Francisca Moura Lopes, Glaucia Marinho, Greice Lima, Isabel Lima, Lourdes Deloupy, Marisa Viegas, Melisanda Trentin, Natália Damazio, Sandra Carvalho, David Ramos, Eduardo Baker, Gabriel Strautman, Mario Campagnani, Rafael Dias e Renato Cosentino – pelos diversos tipos de apoio a este trabalho e pelo período de licença que me foi concedido para finalizar a escrita. Agradeço especialmente à Gláucia, Alice, Bel e Sandrinha, que acompanharam mais de perto as questões e os dramas relativos à elaboração da tese e à Greice Lima, pela consultoria na produção dos anexos. Agradeço ainda à Renata Lira, Isabel Mansur, Camila Ribeiro, Taiguara Soares e Tomás Ramos pelos diferentes suportes e incentivos à pesquisa a partir da qual foi realizado este trabalho. Agradeço especialmente à Marielle Franco por toda atenção, cuidado e interlocução. Às companheiras e companheiros do Bloco Se Benze que Dá, por me ensinarem a cruzar fronteiras físicas e políticas. Agradeço especialmente à Gizele Martins, Geandra Nobre, Priscila Monteiro, Josi Lira, Mariluci Nascimento, Renata Souza e Leonardo Melo, pelo incentivo e pelas trocas de ideias. Agradeço também às interlocuções acadêmicas/militantes/boêmias do eixo Rio-SP, em especial à Natalia Padovani e Larissa Nadai e do eixo Rio-Córdoba, em especial à Graciela Tedesco, Natalia Bermudez e Marina Liberatori (muitas saudades de todas!). Sou extremamente grata à Patrícia Rivero, pelos incentivos fundamentais no período inicial do doutorado e à Leilah Landim, pelas possibilidades de trocas. Agradeço às professoras e aos professores com quem realizei cursos no PPGSA, no PPGAS/MN e no IESP/Uerj: Elisa Reis, André Botelho, Michel Misse, Pedro Paulo Oliveira, Adriana Vianna, vii

Luiz Antonio Machado da Silva, Jussara Freire e Alexandre Werneck. Agradeço ainda a todos os funcionários do PPGSA, nas figuras de Claudia e Verônica. Durante a realização do doutorado pude contar com bolsas de estudo concedidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) – apoio imprescindível para a realização deste trabalho. Ao final do quarto ano do curso, fui contemplada com a Bolsa para Jovens Investigadores, concedida pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, através da qual tive a oportunidade de construir importantes interlocuções para o meu campo de pesquisa: agradeço especialmente à professora Tatiana Moura e ao professor José Manuel Pureza por toda a atenção durante minha curta estadia em Portugal. Deixo registrado um agradecimento sincero à Alexandra Pereira, pessoa responsável pela melhor acolhida que um centro de pesquisa pode proporcionar, bem como a Maria Jose Carvalho e Acácio Machado, por todo suporte durante o mês de trabalho na Biblioteca Norte-Sul. Agradeço imensamente à Juliana Pimenta, Flavia Calmon e Tania Fróes – figuras centrais para que a maluquice que me habita fosse sempre produtiva e não o contrário. Agradeço finalmente à minha família, aos meus amigos e aos meus amores: À minha mãe, Andrea, agradeço por ter sido – durante o doutorado e sempre – o meu grande porto seguro. A João, agradeço por ter sido – durante o doutorado e sempre – o meu melhor amigo. À minha avó Mariazinha, por ter estado sempre ao meu lado, em todos os momentos, especialmente os mais difíceis. À minha avó Jacira e ao meu avô José, por terem sempre apoiado os meus estudos. Aos meus padrinhos, tios e primos, pelos vários incentivos, com um agradecimento especial ao meu primo Bernardo, que tem talento na arte de torcer. Agradeço ao meu pai, Julio, à minha biza Rosinha e ao meu avô Hugo, por ter a certeza de que a torcida dos três está viva dentro de mim. À Patrícia Pedrosa, por todo apoio, carinho e cumplicidade. Às amigas e aos amigos que há muito (ou pouco) tempo torcem para que tudo dê certo, em especial agradeço a Diana Tubenchlack e Pedro Nasser, Mônica Coelho, Amanda Coelho, Licius Coelho, Francine Ramos, Paula Pimenta, Paula Quaresma, Claudia Pinheiro, Cynthia Bimbi, Juliana Pitta, Flavia Cupolillo, Camila Galvão, Lia Baron, Ursula Peres, Camila Sampaio, Alberto Calil, Suellen Guariento, João Paulo Rodrigues, Vanessa Leite, Guilherme Almeida, Andréia Resende, Ana Cunha, Aline Morais, Bruno Zilli, Flavia Braga, Michel Carvalho, Bárbara Pires e Felipe Lins. A Mônica Dias, Julia Malafaia e Alessandra Magalhães, pelas interlocuções e navegações. A Raquel Barros, Marilia Marcia e Alexis Cortés, por todas as trocas.

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A todas as amizades que cresceram entre pesquisa e/ou militância. Aos amigos do “quinteto”: Claudia Trindade, Lia Rocha, Marielle Franco e Otto Faber, pelas tantas trocas de ideias ao longo da realização dessa pesquisa. Um agradecimento especial à Lia Rocha e Graziella Silva pela paciência e pelo carinho nos momentos de “pânico de doutoranda”. À Palloma Menezes e Bianca Freire-Medeiros, pelos apoios vários e por uma amizade que atravessa tempo e espaço. Agradeço à Mônica Santos e Patrícia Lanes, pelos ensinamentos e parcerias de tantos anos. À Carolina Gonçalves e Roberta Zanatta, irmandades uerjianas para o resto da vida! A Fred Martins, pela torcida à distância, mas sempre presente. À Fabiene Gama, pela irmandade mais aquariana e internacional (agradeço especialmente por todas as horas de skype e pelo headphone babado, que tornou possível a escrita da tese em temporada de obras no prédio!). Com minha outra irmandade aquariana, Silvia Aguião, dividi algumas dores e delícias nesses últimos 5 anos – e agradeço especialmente pelo intercâmbio de playlist “força na peruca” dessa reta final da escrita! A Wallace Lino, pelo apoio, pelo carinho e pelas visitas no período barra pesada do “confinamento”. Essa e outras visitas trouxeram alegria no momento de escrita. Agradeço especialmente a Caju Bezerra, Thais Justen, Taiane Mendonça e Romulo Beck – presenças sempre muito bem-vindas. A Jaqueline Andrade, por todas as trocas e todo o companheirismo, do início desse doutorado até hoje. A Paulo Victor Leite Lopes, por todo o cuidado, todo o carinho e apoios tão diversos que não cabem em lista, nem em agradecimento. À Raíza Siqueira, minha irmã e dupla desde o início da graduação, agradeço por cada semana, cada mês e cada ano de lá pra cá. A ela e a Daniel Rodrigues, assim como a Paulo Victor, são tantos os agradecimentos que não caberiam aqui. Agradeço finalmente à Tássia Mendonça, com quem dividi os momentos de maior entusiasmo e maior dificuldade durante esse processo. Foi um privilégio e um presente poder escrever em sua companhia, contando não só com sua interlocução, mas também seu carinho. Nem sei como começar a agradecer, então espero apenas poder retribuir sempre, na mesma intensidade, tanto cuidado, tanta atenção, tanta paciência, tanto papo reto, tanto companheirismo e tanto amor.

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Quem é morador sabe, ao mesmo tempo tá ligado Que quando os vermes vêm dentro ou fora do blindado Vem mandado, programado pra matar Despreparado, mas sabendo muito bem atirar Nos excluídos, incluídos em um plano perverso Bala perdida, tiro aqui tem endereço certo Segue o recém nascido até o mais idoso Tudo plano de rico pra manter o controle do povo É louco o amor que eles têm pelo dinheiro Fazem lágrimas de sangue escorrerem no mundo inteiro Kponne e us neguin que nunca vão ficar calado Contra a política de extermínio adotada pelo Estado Us Neguin q Não C Kala e Família Kponne, Lágrima de Sangue x

RESUMO

Governo de Mortes Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro Esta tese é construída a partir do interesse em compreender determinadas angulações da engrenagem governamental de gestão das mortes dos moradores de favelas no Rio de Janeiro. O momento da efetuação do disparo da arma de fogo que atinge o morador de favela demarca a produção de um recorte analítico do processo de gestão dessas mortes, considerando papéis e registros oficiais – sendo o laudo cadavérico acionado enquanto documento a partir do qual são exploradas outras movimentações (burocráticas ou não) que compõem o inquérito policial e o processo judicial de casos de homicídio ocorridos durante intervenções militares em favelas. As formas como chefes e agentes de Estado se referem a essas mortes em declarações públicas, assim como as repercussões sobre o enquadramento dessas mortes por entre diferentes instâncias estatais, referenciam o quadro político enfocado na tese – cuja elaboração decorre de um trabalho de campo pautado pela agenda dos familiares de vítimas de violência institucional. Trata-se do resultado de uma experiência de pesquisa junto a coletivos políticos protagonizados por esses familiares, entendendo seus enfrentamentos, demandas, dores e conquistas enquanto orientação primeira para a conformação do olhar sobre forças de estado que produzem legitimidade e legalidade para mortes completamente ilegítimas.

Palavras-chave: execução sumária; favela; auto de resistência; violência institucional; militarização.

Rio de Janeiro 2014 xi

ABSTRACT

Government of Deaths An etnography of population manegement of Rio de Janeiro's favelas This thesis seeks to comprehend specific variations within the government machinery devoted to the management of deaths of a particular population: the one who lives in the Rio de Janeiro favelas. The very moment when a firearm is fired against a favela resident demarcates the production of an analytical approach that concerns the management of those deaths, considering official papers and records – being the cadaverous report taken as the document upon which I examine other flows (bureaucratic or not) that are part of the police investigation and persecution related to homicide cases occurred during military operations in the favelas. The way State leadership and agents refer to those deaths in public speeches, as well as the repercussions propagated by the framing of such deaths within different State bodies, inform the political framework that this thesis focus upon – whose elaboration is the result of a fieldwork which was guided by the schedule followed by the relatives of victims of institutional violence. It is the result of a research experience conduct with political groups, which have those relatives as their forefront. The aim was to understand their struggles, demands, pains and gains as the primary window through which one sees the State forces producing legitimacy and legality to deaths which are completely illegitimate.

Key-words: summary execution; favela; resisting arrest; institutional violence; militarization.

Rio de Janeiro 2014

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LISTA DE FIGURAS Figura 1

Cartaz bilíngue / Movimento Posso Me Identificar?

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Figura 2

Capa da Folha SP

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Figura 3

Capa da Carta Capital

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Figura 4

Screenshot 1 – Entre Muros e Favelas

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Figura 5

Screenshot 2 – Entre Muros e Favelas

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Figura 6

Screenshot 3 – Entre Muros e Favelas

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Figura 7

Postal 1 Frente – Campanha contra o Caveirão

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Figura 8

Postal 1 Verso – Campanha contra o Caveirão

44

Figura 9

Adesivos 1 e 2 – Campanha contra o Caveirão

45

Figura 10

Postal 2 Frente – Campanha contra o Caveirão

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Figura 11

Postal 2 Verso – Campanha contra o Caveirão

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Figura 12

Charge Latuff Cauê armado e Caveirão

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Figura 13

Detalhe (Caô e Caveirão) – faixa da Rede contra Violência

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Figura 14

Stencil Caô 1

53

Figura 15

Stencil Caô 2

53

Figura 16

Charge Latuff (2008) / Outdoor

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Figura 17

Outdoor Censurado 1

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Figura 18

Outdoor Censurado 2

60

Figura 19

Foto - Matheus Rodrigues (Baixa do Sapateiro)

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Figura 20

Cartaz de Convocação do Ato do dia 20/12/2008

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Figura 21

Capa do Relatório produzido por Justiça Global, MNMMR e

65

OMCT Figura 22

Cartaz de convocação da atividade dos 5 anos da morte de

65

Matheus Figura 23

Material de convocação / Fórum de Juventudes do Rio de

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Janeiro Figura 24

#somostodosamarildo (Buika)

78

Figura 25

Capa de Facebook (Onde estão os Amarildos?)

78

Figura 26

Somos todos Amarildo (Coletivo Projetação)

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Figura 27

Arte e foto: Coletivo Projetação 1

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Figura 28

Arte e foto: Coletivo Projetação 2

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Figura 29

Arte e foto: Coletivo Projetação 3

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Figura 30

Arte e foto: Coletivo Projetação 4

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Figura 31

Print Screen – Petição online pela desmilitarização das polícias

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do Brasil. Figura 32

Laudo cadavérico, Face anterior – Emanuel.

153

Figura 33

Screenshot 4 – Entre Muros e Favelas

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Figura 34

Material – Campanha Nacional contra o Extermínio da

196

Juventude Negra Figura 35

Jornal O Dia – Caso do Borel 1

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Figura 36

Jornal O Dia – Caso do Borel 2

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Figura 37

Cartaz – Dalva

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Figura 38

Charge Latuff – 10 Anos Chacina do Borel

199

Figura 39

Siluetazo

201

Figura 40

Cartaz – Silhuetas – Desaparecidos

201

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ALERJ AMB BAC BAM BO BOPE BPM BPCHq CDDHC CDDPH CIDH CORE CPP CREMERJ DP DRCPIM

DH DDH FAC FSM FJRJ GTNM-RJ ICC ICCE IFP IML IMLAP ou IML-RJ IPM ISP MNDH MJ MP NUDEDH

Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro Associação dos Magistrados Brasileiros Batalhão de Ações com Cães Boletim de Atendimento Médico Boletim de Ocorrência Batalhão de Operações Especiais Batalhão da Polícia Militar Batalhão de Policiamento de Choque Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana Comissão Interamericana de Direitos Humanos Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro Código de Processo Penal Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro Delegacia de Polícia Delegacia de Repressão aos Crimes de Propriedade Imaterial Divisão de Homicídios Instituto de Defensores de Direitos Humanos Folha de Antecedentes Criminais Fórum Social de Manguinhos Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro Grupo Tortura Nunca Mais – Rio de Janeiro Instituto Carioca de Criminologia Instituto de Criminalística Carlos Éboli Instituto Félix Pacheco Instituto Médico-Legal Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto ou Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro Inquérito Policial Militar Instituto de Segurança Pública Movimento Nacional de Direitos Humanos Ministério da Justiça Ministério Público Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

xv

OAB-RJ OEA ONG ONU PAF PCERJ PMERJ REDE RO SDH/PR SENASP SESEG UPP

Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Estado do Rio de Janeiro Organização dos Estados Americanos Organização Não-Governamental Organização das Nações Unidas Projétil de Arma de Fogo Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência Registro de Ocorrência Secretaria de Direitos Humanos – Presidência da República Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria de Estado de Segurança Unidade de Polícia Pacificadora

xvi

SUMÁRIO

Introdução Cena 1 Da entrada (e permanência) em campo Redesenhos da pesquisa Desse Estado que se reconstrói nos intervalos do cotidiano Sobre materiais de pesquisa e decisões metodológicas Organização da tese Uma consideração inicial

1 1 2 7 15 21 24 25

Parte I Capítulo 1. Execuções e chacinas em pauta

27

1.1 Traduzindo violência de Estado pra quem é brasileiro e pra quem não é 1.2 Cartões postais e adesivos contra um veículo de guerra 1.3 Charge, stencil e outdoor: detenções e censura nos anos 2000 1.4 Da foto por e-mail à capa do Facebook: divulgação das mortes dentro e fora da internet

29 41 47 60

Capítulo 2. Discutindo um enquadramento de morte por dentro do Estado

84

2.1 Entendendo o auto de resistência a partir dos familiares de vítimas 2.2 Uma audiência no Rio de Janeiro 2.3 Uma reunião em Brasília 2.4 Detalhes gramaticais e políticos

85 87 103 112

Parte II Advertência Morro do Russo, zona sul do Rio de Janeiro – junho de 2008 Parque Andrade, zona norte do Rio de Janeiro – dezembro de 2010

115 116 118

Capítulo 3. Imbricação “Estado-família”: capilaridades extremas da gestão

119

3.1 Que tipo de interlocução “Estado-família” é essa? 3.2 Como tal interlocução produz atualizações do exercício do poder de Estado? 3.3 Como se configuram as legitimidades “de Estado” e “de família” nesse desenho das atualizações do exercício do poder estatal?

122 126 143

xvii

Capítulo 4. Registros de morte em atos e papéis: obscuridades oficiais

149

4.1 Disputa de versões sobre as mortes na ação penal 4.2 Releitura dos fatos com a lente da perícia independente 4.3 Zona de tatuagem: um carimbo do Estado no corpo do favelado 4.4 Ortopedias discursivas para informações estatais 4.5 O documento laudo cadavérico, para além da necropsia

154 168 178 188 193

Considerações finais: do poder sobre a vida e a morte

203

Referências bibliográficas

208

Anexos

220

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Introdução

Cena 1. [Dois minutos antes do letreiro anunciar o título do documentário.] Na rua de uma favela plana do Rio de Janeiro, uma mulher mostra a casa onde mora e convida a equipe de filmagem para entrar. “Este é o meu lar”, diz ela, entrando na sala. Em seguida, aponta para cima do armário, continuando a apresentação: “e este aqui é o retrato do meu filho”. O zoom da câmera revela um jovem negro, sério, fazendo pose num pátio arborizado. À fotografia emoldurada se sobrepõe outra, do mesmo rapaz, desta vez andando de bicicleta. O colorido e o movimento dos retratos são substituídos em fade pela silhueta de um corpo masculino, em preto e branco, visto de frente. O mesmo dedo da mãe que apontou a fotografia, aponta agora uma marca assinalada no antebraço esquerdo da figura reproduzida numa das páginas do laudo cadavérico do filho: “Aqui. Ele levou um tiro aqui.”. A mãe fala, vira a página e mostra outra marca, desta vez assinalada na silhueta de um corpo masculino visto de costas: “Aqui, o outro tiro que ele levou, que você vai ver que foi covardia, esse entrou, esse ficou. Foi o que matou. Esse tiro das costas aqui foi o que matou ele”.

Reunidas, as quatro imagens descritas nos apresentam Julio César da Silva: um jovem de 16 anos que morava em uma das favelas do Caju, onde foi executado por agentes do 4º Batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro na noite de 06 de janeiro de 2004. Neste mesmo dia foram executados1 também Wallace Damião

1

Nesta tese utilizo a definição de execução tal qual formulada pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), a partir da qual os crimes de execução sumária correspondem a “homicídios dolosos, nos quais existem evidências (implícitas ou explícitas) de que os agressores perpetraram a ação: com a intenção prévia de eliminar a vítima, ficando excluídos os casos de morte resultante de assalto (tentado ou consumado), seqüestro, tortura, brigas ou discussões, bala perdida, tiros acidentais ou outros delitos em que a morte da vítima não seja resultado dessa intenção prévia; tendo motivações específicas, sobretudo vingança, acerto de contas ou dívidas. As execuções podem ocorrer por outras motivações, desde que, ao agirem, os agressores tenham um mínimo de planejamento e a intenção de cometer o homicídio; de uma tal maneira e com um modus operandi (tipo de armas e de ferimentos, número de tiros e de vítimas e qualificação dos agentes) que nos permitam qualificar a ação como execução sumária; sem que a vítima tenha tido oportunidade de esboçar reação física ou jurídica.” Disponível em . Ao longo da tese, os motivos para a priorização da utilização de “execução” e “execução sumária” vão se tornando mais evidentes, no entanto, é no capítulo 4 que são explicitadas as conexões entre justificativas técnicas e políticas para tal escolha.

1

Gonçalves, Eduardo Moraes de Andrade, Flávio Moraes de Andrade e José Manoel da Silva, cujas idades marcavam, respectivamente, 13, 17, 19 e 26 anos. Todos negros. Reunidas, as cinco mortes configuram o episódio que ficou conhecido como Chacina do Caju – chacina escolhida pelos diretores do documentário Entre Muros e Favelas para abrir uma segunda edição do filme2, produzida especialmente para exibições fora do Brasil, mais especificamente para um circuito europeu articulado junto ao Comitê Suiço de Apoio aos Direitos Humanos nas Favelas do Rio de Janeiro3. Entre Muros e Favelas foi filmado no Rio de Janeiro, durante os anos de 2003 e 2004: dirigido por Márcio Jerônimo, Susanne Dzeik e Kirsten Wagenschein, traz histórias relacionadas a seis casos de violência institucional em favelas cariocas – todos os casos envolvendo execuções sumárias provocadas por agentes de Estado4. O acionamento do documentário nesta introdução se deve a um motivo específico, diretamente conectado à cena descrita. Em 40 segundos, a Cena 1 desenha um trajeto: uma favela, um beco, uma casa, uma mãe, a foto de um filho, um laudo cadavérico. Esse trajeto condensa elementos centrais do percurso de pesquisa que realizei e a partir do qual construo essa tese.

Da entrada (e permanência) em campo

Em abril de 2004, tive a oportunidade de participar de uma manifestação contra a violência do Estado nas favelas5. Tratava-se de um ato no Largo do Machado, seguido de uma caminhada até o Palácio das Laranjeiras, marcando um ano da Chacina do Borel – episódio no qual Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento, Everson Gonçalves Silote e Thiago da Costa Correia da Silva foram executados por policiais militares do 6º BPM6. O ato havia sido organizado pelo 2

A versão em inglês do título do documentário é About walls and favelas. Tal atividade é explorada no Capítulo 1 desta tese. 4 Os referidos casos de execução sumária são apresentados no capítulo 1, quando o documentário Entre Muros e Favelas é novamente acionado na discussão do trabalho. 5 Na época, eu estava cursando o último ano da graduação em Ciências Sociais na UERJ e tal manifestação fazia parte da agenda de pesquisa no qual eu era bolsista de extensão: o projeto “Cidadania e Imagem” (no Núcleo de Antropologia e Imagem – NAI/UERJ), coordenado por Márcia Pereira Leite – a quem nunca serão suficientes os agradecimentos pelos ensinamentos e pela cumplicidade nas orientações e nas parcerias que se estendem até os dias de hoje. 6 No dia 16 de abril de 2003, dezesseis policiais do 6º Batalhão da Polícia Militar realizaram uma operação no Morro do Borel, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, operação que resultou nas quatro mortes 3

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Movimento Posso me identificar? – coletivo que reunia moradores do Borel, integrantes de outros coletivos políticos (como a Frente de Luta Popular, o Centro de Cultura Proletária, e a Central de Movimentos Populares) e familiares de vítimas7 daquele e de outros episódios marcados pela violência do Estado8. A partir de então, comecei a acompanhar as atividades deste movimento, decidindo realizar minha monografia de conclusão de curso sobre seu primeiro ano de atuação9. Ainda durante 2004, algumas divergências políticas internas ao movimento10

mencionadas, além de ter deixado mais dois moradores do Borel feridos. O episódio ficou conhecido como “Chacina do Borel” e passou a ser apresentado por organizações de defesa dos Direitos Humanos como “caso emblemático” do uso excessivo da força pelos agentes do Estado (cfr. Justiça Global, 2003; 2004a; 2004b e Anistia Internacional, 2003). Para uma análise detalhada deste episódio e seus desdobramentos políticos, ver Farias (2007; 2008; 2009). 7 Apesar de considerar a pertinência da discussão realizada por um segmento forte do campo de defesa dos Direitos Humanos (que se expressa de forma muito contundente através do posicionamento político de Cecília Coimbra – nas suas atuações mescladas entre academia e movimento social, a partir de sua inserção no Grupo Tortura Nunca Mais – RJ) sobre as conotações negativas que o termo “vítima” carrega. Muitos dos familiares da Rede realizaram ou ainda realizam atividades de apoio psicológico com integrantes do GTNM-RJ – que compartilham desse posicionamento contrário ao termo “vítima” – e aí está em questão muito menos o tratamento que outros (incluídos aí pesquisadores, como eu) dão ao termo e muito mais a maneira como cada familiar se reconhece subjetivamente e se apresenta publicamente após esses “eventos críticos” (Das, 1995). A partir de uma definição de Furet (1989) para a revolução francesa – como um “evento por excelência” porque, segundo Das (1995: 5), “instituiu uma nova modalidade de ação histórica que não estava inscrita no inventário dessa situação” –, Veena Das explica que nenhum dos eventos analisados por ela podem ser comparados à revolução francesa, mas que eles possuem um traço em comum: após esses eventos, novos modos de ação redefinem categorias tradicionais como códigos de honra e pureza, como o significado de martírio, como a construção de uma vida heróica; assim como novas formas são adquiridas por uma variedade de atores políticos, como coletivos internos a castas específicas, comunidades religiosas, coletivos de mulheres, bem como a nação como um todo. Das afirma, ainda, que os terrenos nos quais se dão esses eventos críticos podem ser localizados via o entrecruzamento de diferentes instituições, atravessando família, comunidade, burocracia, tribunais de justiça, a profissão médica, o estado e corporações multinacionais (DAS, 1995: 6). Segundo Das (1995), a descrição de eventos críticos proporcionam a elaboração de uma etnografia que produz uma incisão sobre todas essas instituições ao mesmo tempo e assim suas respectivas implicações nos eventos são trazidas para o primeiro plano da análise. Dito isto, aciono neste trabalho o termo “vítima” para me referir especificamente às pessoas que foram mortas ou feridas por agentes de Estado, enquanto aciono o termo “familiares de vítimas” para me referir às mães, irmãs, irmãos, enfim, parentes dessas vítimas em geral, enfocando, a partir de uma abordagem antropológica, o fato de esses “familiares de vítimas” terem experimentado situações aproximadas do que Das (1995) chama de “eventos críticos”. 8 Vale destacar que a articulação do Posso me identificar? expressa um entre tantos momentos significativos do histórico de resistência dos moradores do Borel, cujos primeiros registros datam do ano de 1954 – ano no qual se formalizaram as primeiras organizações de moradores de favelas no Rio de Janeiro, dentre as quais a União dos Trabalhadores Favelados do Morro do Borel (Lima, 1989; Machado da Silva, 2002; Feire-Medeiros e Chinelli, 2003). 9 O trabalho foi orientado por Márcia Pereira Leite e intitulava-se “Movimento Posso me identificar?: De objetos da violência a sujeitos da política”. Parte dos resultados apresentados nesta monografia encontrase em Farias (2005). 10 Após alguns dos integrantes responsáveis por gerir seus eventuais recursos financeiros retirararem-se do movimento, é acirrado o debate em torno da modalidade de atuação do mesmo: um grupo defendia a organização permanente de passeatas e atos públicos para pressionar o poder público, exigir justiça,

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se desdobraram numa divisão do grupo – divisão a partir da qual surge a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, movimento cuja marca de atuação foi sendo construída em torno do protagonismo dos familiares de vítimas de violência do Estado em favelas, em especial das mães de vítimas.11 Ao analisar experiências de familiares de desaparecidos durante a última ditadura militar na Argentina, Catela (2001a) chama atenção para a eficácia política de símbolos que indicam uma substância comum, como laços de sangue e metáforas de parentesco. Para pensar na construção desse repertório simbólico ligado a uma substância comum, a autora se baseia nas formulações de Geertz (1978) a respeito dos laços primordiais – ideia que é retomada por Leite (2003; 2004) durante suas investigações sobre a atuação política de mães de vítimas de violência na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Leite, o acúmulo de significados em torno dos laços primordiais – aqueles experimentados como “vínculos inefáveis, vigorosos e obrigatórios em si mesmos” (Geertz, 1978: 261) – possibilita a constituição de uma identidade política, a de “mãe de vítima de violência”, dotada de forte legitimidade em seu clamor por justiça12. Em suas etnografias, ambas as pesquisadoras dirigem o olhar para formas de apropriação dos espaços públicos durante a atuação política dos familiares. Catela (2001a) examina o processo de construção de territórios de memória na paisagem urbana, identificando as disputas em torno do que os familiares de desaparecidos

denunciar a violência policial e reivindicar acesso à cidade; outro sustentava a idéia de atuar através do desenvolvimento de projetos pontuais, especialmente cursos profissionalizantes direcionados aos jovens. 11

Segundo a explicação de um dos integrantes mais antigos, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência (movimento ao qual também me refiro nesta tese como Rede) é constituída por três grupos distintos: um formado por pessoas que não necessariamente moram em favelas, mas que participam de movimentos sociais urbanos e atuam contra a violação dos Direitos Humanos; outro composto por moradores de favelas que participam de atividades políticas dentro e fora das favelas; e um terceiro – em sua opinião o “mais forte”, formado pelos familiares das vítimas de violência policial em favelas. Participam ou já participaram da “Rede” moradores das seguintes favelas: Acari, Borel, Caju, Cantagalo, Coroa, Jacarezinho, Manguinhos, Maré, Rocinha, Pedreira, Pica-Pau, Providência e Vigário Geral; além de integrantes da Frente de Luta Popular, do Centro de Cultura Proletária, da Central de Movimentos Populares e do coletivo de Hip-Hop Lutarmada. 12 Sobre o protagonismo de mães e familiares de vítimas de violência do estado em favelas cariocas, além de Leite (2003; 2004; 2013) e Vianna (2011; 2013a), destaco também os trabalhos de Moura (2007); Soares, Moura e Afonso (2009); Araujo (2008 e 2012) e Freire (2010). Para a análise de coletivos políticos protagonizados por familiares frente a outros enquadramentos de violência em território nacional, ver Ferreira (2011) e Lacerda (2012). Para análises produzidas a partir do contexto argentino, além de Catela (2001a), ver Bermúdez (2010).

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reivindicam que seja lembrado e do que o Estado julga merecer (ou não) status de memória oficial. Leite (2004), por sua vez, monta uma espécie de cartografia dos espaços de protesto, explicitando como as tensões embutidas nas relações entre as mães de vítimas pertencentes às classes mais abastadas e as mães de vítimas moradoras de favelas acabam sendo reproduzidas através das escolhas dos roteiros das manifestações públicas e do próprio conteúdo discursivo dos materiais apresentados nas mesmas. Quando se focaliza diferentes tematizações da violência e de elaboração de acontecimentos traumáticos na cidade do Rio de Janeiro, os casos específicos das mães de vítimas de violência policial em favelas chamam atenção, especialmente porque estas mulheres têm que lidar com duas modalidades distintas de violência: a violência física, que interrompe inesperadamente a vida de seus filhos; e a violência moral, configurada na criminalização das vítimas, na destituição de sua dignidade como pessoas e como cidadãos, seguindo a análise realizada por Birman e Leite (2004). Esse quadro de enfrentamentos políticos passa a ser demarcado a partir dessa figura englobante da mãe, que, como observamos Adriana Vianna e eu, expressa “uma insurgência política definida em estreitas conexões com as construções – sempre em processo – de gênero” (Vianna e Farias, 2011): mães, tias, irmãs ou irmãos (ou seja, tanto mulheres, quanto homens) se movem nessa busca por justiça a partir de uma inscrição no feminino – trazendo esse feminino não nos seus corpos, mas como “marca de significação das relações que se romperam, bem como da violência ilegítima que as destruiu” (idem). Nesse contexto, a busca pela reparação moral passa a nortear as ações cotidianas de muitas destas mães. Diversas manifestações públicas por elas protagonizadas são marcadas por homenagens aos filhos mortos, configurando o que Catela e Novaes (2004) denominam rituais para a dor. As diferentes etapas que compõem esses rituais permitem às mães vivenciarem publicamente a experiência do luto, reconstruindo a imagem de seus filhos como mártires da luta contra a violência, como observamos Márcia Leite e eu, ao analisarmos diferentes situações deste

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movimento social marcado pelo protagonismo das mães de vítimas (Leite e Farias, 2006; 2009).13 Analisando ritos funerários da Austrália, Mauss (1979) argumenta que o luto não é uma expressão espontânea de emoções individuais. Para além de uma manifestação dos próprios sentimentos, o luto é um rito, e como tal compreende um modo de manifestar estes sentimentos aos outros.14 Esta chave interpretativa foi explorada em minha dissertação de mestrado (Farias, 2007), marcando a conclusão de uma etapa da análise deste processo de elaboração de um idioma de ação (Steil, 2002), isto é, de um repertório político próprio das mães de vítimas de violência policial em favelas, focalizando o valor simbólico da mobilização dos sentimentos em manifestações públicas – o que implica atualizações fundamentais para a reconstrução das linguagens de protesto de movimentos sociais urbanos como a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência. Enquanto acompanhava o trabalho da Rede, compreendi que a participação da maior parte daqueles familiares de vítimas na luta contra a violência policial em favelas era alimentada cotidianamente através de ações que, embora menos visíveis, também demandavam um forte investimento emocional. Refiro-me aos percursos compostos por suas idas a delegacias, quartéis, batalhões, ao Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública (NUDEDH), à Subprocuradoria-Geral de Justiça de Direitos Humanos e Terceiro Setor do Ministério Público (MPRJ), a comissões de Direitos Humanos da ALERJ e da OAB-RJ, diferentes secretarias municipais e estaduais, ONGs de Direitos Humanos, enfim, uma lista considerável de instituições e organizações através das quais essa rede de familiares estabelece relações com determinados setores da sociedade civil e com o poder público em diversos níveis. Mapeados esses percursos, então, elaborei o desenho de pesquisa que compôs o projeto desta tese, considerando especialmente as condições de possibilidade para observar encontros entre agentes de Estado e os familiares de vítimas com os quais eu

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Seguindo a sugestão de Catela e Novaes (2004), os “rituais para a dor” são pensados nesses trabalhos como um “modelo para interpretação do presente”; como manifestações capazes de apontar alternativas para “evitar a banalização das mortes violentas”. 14 “Todas as expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais que meras manifestações, são sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem” (Mauss, 1979: 153).

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havia construído uma interlocução sólida em função da minha participação (ora como pesquisadora, ora como militante, ora como apoiadora) nas atividades da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência.

Redesenhos da pesquisa

A decisão por acompanhar os encontros entre agentes de Estado e os familiares de vítimas decorreu do interesse em compreender algumas das angulações menos explícitas da engrenagem que compõe a gestão governamental das mortes dos moradores de favelas ocorridas durante ações militarizadas nesses territórios. Partindo de um enquadramento teórico-metodológico que articula o controle de corpos ao controle de populações e territórios, entendo que a gestão dessas mortes envolve forças de Estado que exercem seu poder sobre os corpos de todos os moradores de favelas – os mortos e os vivos. O enquandramento teórico-metodológico deste estudo é construído, portanto, a partir do argumento de Foucault (2008a) de que não devemos nos prender à ideia de que “a soberania se exerce nos limites de um território”, “a disciplina se exerce sobre o corpo dos indivíduos” e “a segurança se exerce sobre o conjunto de uma população”, visto que tanto a soberania, quanto a disciplina e a segurança lidam com multiplicidades. Seguindo essa linha de raciocínio, entende-se que 1) o exercício da soberania em seu desenrolar cotidiano indica uma multiplicidade que é tratada como multiplicidade de sujeitos ou como a multiplicidade de um povo (mesmo que a ideia de soberania sobre um território não povoado seja jurídica e politicamente aceita e, em diferentes leituras, a primeira a ser acionada); 2) que ainda que a disciplina seja exercida sobre o corpo dos indivíduos, o indivíduo pode ser compreendido como uma maneira de recortar a multiplicidade, visto que não é o dado primeiro sobre o qual a disciplina é exercida. Sob esse enquandramento, então, as diferentes disciplinas – a disciplina escolar, a disciplina militar ou a penal, para seguir os exemplos de Foucault (2008a) – são compreendidas enquanto maneiras de administrar as multiplicidades. No presente estudo, volto minha atenção para a gestão da população residente em favelas considerando as conexões existentes entre as políticas de segurança pública atuais com as políticas destinadas a essas pessoas e a esses territórios em função da sua 7

identificação (por parte do poder público, especialmente) enquanto lepra da estética ou enquanto uma ameaça à saúde da cidade, como demonstram as análises de Valladares (2000; 2005). Refiro-me a formas atuais de administrar a favela e seus moradores que que reeditam antigas pedagogias civilizatórias (Burgos, 1998), conectando-as a outras formas de controle. A implementação dos parques proletários na cidade do Rio de Janeiro é um bom exemplo para pensarmos reedições contemporâneas dessa pedagogia, visto que evidencia procedimentos governamentais desenvolvidos para conhecer, dominar e utilizar os indivíduos – marcas da arte das distribuições sobre a qual se refere Foucault (2007) ao refletir sobre a fabricação de corpos submissos15. Tanto a técnica de distribuição dos indivíduos no espaço, quanto o desenvolvimento de uma mecânica do poder direcionada aos corpos, fornecem elementos para uma interpretação dos objetivos políticos (incluídos aí os interesses econômicos) que sustentaram a implementação dos parques proletários na cidade do Rio de Janeiro. Enquanto a pobreza era vista como opção e o favelado apontado como aquele que estava recusando o mundo do trabalho (Valladares, 1991), os parques apareciam como uma dupla-solução: além de deslocarem espacialmente parte da pobreza e concentrá-la em áreas cercadas, os parques eram equipados com aparelhos que possibilitavam um controle da rotina dos indivíduos, mantendo a disciplina como garantia da pedagogia civilizatória. Valladares (2005) aborda o período de surgimento dos parques proletários em um sub-capítulo intitulado Conhecer para melhor administrar e controlar a favela e seus habitantes. Durante sua análise, a autora destaca a ligação entre os primeiros estudos estatísticos a respeito das favelas (e seus moradores) e a política de construção destes parques. Valladares refere-se à ótica populista do governo Vargas, chama atenção para a ligação entre o nome ‘parques proletários’ e uma suposta valorização do trabalhador,

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A “arte das distribuições”, nos termos trabalhados por Foucault (2007), é marcada por procedimentos desenvolvidos para “conhecer, dominar e utilizar” os indivíduos. Tal utilização está diretamente relacionada à “fabricação de corpos submissos e exercitados” – o que é realizado através de processos impostos para “responder a exigências de conjuntura”. O filósofo evidencia como os processos disciplinares se constituem de métodos que impõem às operações do corpo uma relação de “docilidadeutilidade”: “a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (Foucault, 2007:119).

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e faz questão de apontar o fato de que tais iniciativas “não foram simples operações de realojamento provisório”:

“Não se tratava apenas de retirar as famílias dos espaços insalubres das favelas, fornecendo-lhes novas moradias de acordo com as regras sanitárias. O objetivo era também dar assistência e educar os habitantes para que eles próprios modificassem as suas práticas, adequando-se a um novo modo de vida capaz de garantir sua saúde física e moral. [...] Esses parques também compreendiam dispensários, escolas, centros sociais, equipamentos esportivos, creches e um posto de polícia” (Valladares, 2005: 62).

Tais referências aos parques proletários tanto podem remeter a técnicas de controle marcadas pela “invenção de um lugar de coação onde a moral grassa através de uma disposição administrativa” – como descreve Foucault (2005a) ao analisar o Hospital Geral, quanto podem indicar uma comunicação direta entre o que era construído enquanto proposta governamental de gestão das populações de favelas nos anos 1940 e propostas atuais que mesclam tentativas de intervenções pedagógicocivilizatórias com policiamento, como no caso das Unidades de Polícia Pacificadora16. Considerando, também, a ligação entre a política de implementação dos parques proletários e a produção de estatísticas sobre os favelados, bem como a instalação de um posto de polícia em cada parque (local de “valorização do trabalhador”), como observa Valladares (2005), teríamos nesse cenário da década de 40 a combinação entre a “decifração das forças constitutivas de um Estado” (Foucault, 2008a) e um modelo de controle que guarda estreitas ligações com aquele objetivado pela constituição da polícia enquanto elemento central da arte de governar que conformava os estados nacionais no século XVII: “o objetivo da polícia é o controle e a responsabilidade pela atividade dos homens na medida em que essa atividade possa constituir um elemento diferencial no desenvolvimento das forças do Estado” (Foucault, 2008a: 433). Foucault (2008a) explica que a arte de governar se manifesta em um campo relacional (ou concorrencial) de forças – o que se expressa através da instalação de dois grandes conjuntos de tecnologia política: um marcado pela técnica de “ordenar a 16

Dentre as análises atuais a respeito das Unidades de Polícia Pacifica, destaco: Barbosa (2012), Cano (2012), Carvalho (2011), Cavalcanti (2013), Davies (2013), Fleury (2012), Leite (2012b), Loretti (2013), Machado (2010a, 2010b), Meirelles et all (2013), Mendonça (2014), Menezes (2013), Miagusko (2013), Rocha (2011), Rodrigues et alii (2012), Silva (2012) e Passos e Franco (2013).

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composição e a compensação interestatal das forças” (via instrumentação diplomática e organização de um exército profissional); o outro conjunto seria formado pelo que se chamava então (no século XVII até o fim do século XVIII) de “polícia”. Tal “polícia” corresponderia ao cálculo e à técnica responsáveis pelo estabelecimento de uma relação “entre a ordem interna do Estado e o crescimento das suas forças” – que ainda que móvel – seria estável e controlável17. Esses dois “conjuntos tecnológicos” característicos desta “nova arte de governar” estariam articulados através da estatística – a estatística enquanto instrumento de saber do Estado sobre o Estado, enquanto “saber de si do Estado” inerente ao funcionamento de uma engrenagem administrativa capaz de identificar em cada Estado suas possibilidades de desenvolvimento. Refletindo sobre as atualizações dos mecanismos de controle governamentais sobre as populações residentes em favelas nas quais a centralidade da atuação da polícia se dá de forma articulada a uma determinada forma de administração burocrática desses corpos, considero o registro do auto de resistência como um dos elementos através dos quais é possível compreender essa engrenagem de gestão. Segundo Cano (1997), “auto de resistência” é a “nomenclatura oficial que a polícia usa para definir as mortes e os ferimentos ocorridos em confronto, decorrentes da resistência à autoridade policial.” Inicialmente regulamentado pela Ordem de Serviço “N”, no 803, de 2 de outubro de 1969, da Superintendência da Polícia Judiciária, do antigo estado da Guanabara, o “auto de resistência” foi registrado pela primeira vez no dia 14 de novembro do mesmo ano, após uma ação policial realizada por integrantes do Grupo Especial de Combate à Delinqüência em Geral – grupo que também havia sido

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É destacada ainda uma outra definição para “polícia”, cuja circulação predominou no início do século XVII, que Foucault resume como sendo o que deveria “assegurar o esplendor do Estado”. Não vou estender o debate a partir deste enquadramento, mas gostaria de registrar que tal definição de “polícia” certamente abre pistas para refletir sobre o atual processo de reordenamento urbano pré-megaeventos pelo qual a cidade do Rio de Janeiro está passando (especialmente para se pensar pontos de contato entre aquela “polícia” do século XVII e algumas ações da Guarda Municipal do Rio de Janeiro, dos agentes da Secretaria Municipal de Assistência Social, da Secretaria Municipal de Habitação, entre outros), pois, perseguindo o significado com Foucault, chegamos a ‘esplendor’ como sendo ao mesmo tempo “a beleza visível da ordem e o brilho de uma força que se manifesta e que se irradia”, o que leva o autor a reapresentar a definição de “polícia” como “a arte do esplendor do Estado como ordem visível e força brilhante” (2008a: 422). Para uma análise de processos atuais de invisibilização da pobreza no Rio de Janeiro, ver Consentino (2013).

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formado em 1969 e ficou conhecido como “Grupo dos Onze Homens de Ouro” (Verani, 1996)18. Em dezembro de 1974, o conteúdo da Ordem de Serviço 803/69 foi ampliado pela Portaria “E”, no 0030, do Secretário de Segurança Pública. De acordo com o Desembragador Sergio Verani (1996), esta Portaria desenvolveu uma ilegalidade básica, pois estabelecia que o policial não poderia ser preso em flagrante nem indiciado. Verani destaca que: “A preocupação fundamental da Portaria é com o esclarecimento, no inquérito, das ‘figuras penais consumadas ou tentadas pelo opositor durante a resistência’. E determina que o inquérito, com o auto de exame cadavérico e o atestado de óbito do opositor, seja remetido ‘ao Juízo competente para processar e julgar os crimes praticados pelo opositor’, com o fim de ‘permitir ao juízo apreciar e julgar extinta a punibilidade dos delitos cometidos ao enfrentar o policial’. Se o opositor não morrer, a autoridade deverá ‘Ordenar a lavratura do auto de prisão em flagrante para os que foram dominados e presos’” (1996: 37).

Para o desembargador, tal Portaria seria marcada por uma “absurda inconstitucionalidade”, pois, através dela, “quem legisla para o policial que mata é o próprio Secretário de Segurança, de nada valendo o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Constituição Federal” (Verani, 1996: 37). Quando, a partir da década de 90, tal registro é reeditado no repertório de práticas burocráticas da Polícia Militar do Rio de Janeiro19, o “auto de resistência” se configura enquanto um desafio burocrático e político a ser enfrentado pelos familiares das pessoas mortas durante operações policiais nas favelas, afinal, a imensa maioria dos casos registrados como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte” são casos nos quais as vítimas foram executadas sumariamente, como discuto ao longo da tese, a partir de diferentes enquadramentos. Convidado para expor seu posicionamento sobre o tema em audiência pública realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia

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Diferentes aspectos do registro “auto de resistência” são explorados ao longo da tese, em especial no capítulo 2 e no capítulo 4. Abordagens mais recentes sobre o tema informam a presente reflexão, com destaque para Nascimento, Grillo e Neri (2009), Leite (2012), Líbano (2013), Ferreira (2013) e Misse et al (2013). 19 Para análise da intensificação dos registros de auto de resistência na década de 1990, ver Cano (1997).

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Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em junho de 200920, o desembargador Sergio Verani retoma o ponto abordado em seu livro sobre a inconstitucionalidade do registro de “auto de resistência” e sua origem datada da ditadura civil-militar no Brasil, destacando que todos os Secretários de Segurança Pública que sucederam o período ditatorial mantiveram o registro enquanto um recurso possível de ser acionado pelos policiais em serviço. Na ocasião, Verani afirmou estarmos diante de “um escândalo democrático”, enquanto o sociólogo Ignacio Cano, também presente na audiência, tratou a possibilidade do registro do “auto de resistência” como “um limbo legal que invisibiliza o problema”. Os exemplos mais gritantes de “auto de resistência” decorrem dos casos nos quais a morte foi provocada por tiro de fuzil na nuca ou casos nos quais os laudos cadavéricos atestam que os disparos foram efetuados à curta distância, atingindo regiões do braço e do antebraço das vítimas que só poderiam ser atingidas caso as mesmas estivessem rendidas – de joelhos no chão, com os braços na cabeça. O desafio burocrático e político que se coloca aos familiares destas vítimas fatais, portanto, está relacionado à possibilidade que o policial tem de realizar o registro de “auto de resistência” descrevendo os fatos do episódio no qual se deu a morte do morador de favela de outra forma – trata-se da produção de um documento oficial que localiza a morte em questão como decorrente da resistência à autoridade policial, como se tivesse havido confronto, como se o agente de Estado que efetuou o disparo o tivesse realizado para se defender. Analisando dispositivos de produção das favelas como espaços heterotópicos no Rio de Janeiro, Leite (2013) localiza o “auto de resistência” em um conjunto de dispositivos governamentais que atribuem “ao agente policial “na ponta” a prerrogativa de decidir quando, como e contra quem agir de forma extra-legal, em um movimento discricionário que "embaralha" o legal e o ilegal, o legítimo e o ilegítimo”21. Leite (2013)

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Esta atividade é analisada no capítulo 2 desta tese. Esta linha interpretativa se fundamenta no trabalho de Das e Poole (2004), no qual as autoras insistem em demonstrar que apesar de todos os antropólogos que participam da coletânea Anthropology in the Margins of the State (2004) terem trabalhado em estados e regiões que são freqüentemente caracterizados em teoria política comparativa como “novas nações” com estados “falhos”, “fracos”, ou “parciais”, suas etnografias sobre disciplina, regulação e práticas de aplicação da lei estão formuladas como convites para se repensar as fronteiras entre centro e periferia, público e privado, legal e ilegal – e não como estudos de estados falhos. Volto a este ponto da discussão na seção a seguir. 21

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desenvolve esta linha de raciocínio acionando os estudos de Telles (2010) desenvolvidos a partir do argumento de que as relações de poder se processam nas “dobras do legalilegal”. Assim como Telles (2010), Leite (2013) se inspira na noção de “gestão diferencial dos ilegalismos” (Foucault, 1987), trazendo para o centro da discussão a possibilidade de enxergar positividades nos ilegalismos, ao invés de imperfeições ou lacunas na aplicação das leis – ou seja, enxergar agenciamentos, ações possíveis dos ilegalismos na composição dos jogos de poder. Tal enquadramento é fundamental para compreender a possibilidade da existência do registro do “auto de resistência”, mas também para refletir sobre outros processos desta gestão governamental das mortes dos moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro, que são analisados ao longo deste estudo. Dando continuidade a esta introdução, retomo outra parte do argumento desenvolvido por Leite (2013) ao analisar “a dimensão segregatória e excludente” da relação do Estado com as favelas e seus moradores para dar continuidade à reflexão sobre o desafio burocrático e político colocado aos familiares das vítimas desses casos registrados como “autos de resistência”: o peso da versão do “confronto” não se faz valer apenas no momento do registro na delegacia, mas é atualizado em diferentes momentos, especialmente nas audiências públicas desses casos, como mencionei anteriormente. Leite (2013) destaca a relação entre o fato destas mortes serem registradas como “legítima defesa em exercício do dever legal pelo agente policial” e a possibilidade da inimputabilidade dos agentes policiais, lembrando que o Código de Processo Penal estabelece que “não há crime quando o agente pratica o fato: I em estado de necessidade; II em legítima defesa; III em estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito”22. Nestas audiências, a impossibilidade do ataque ao réu está diretamente conectada ao campo de possibilidades de formular acusações a respeito das vítimas, suas famílias e seus territórios de moradia – e é através de mecanismos deste tipo que a criminalização dos moradores de favelas vai sendo reeditada de formas variadas ao longo de cada etapa dos processos judiciais desses casos de mortes registradas como “autos de resistência”. Por esse motivo reside aí um dos desafios mais cruéis a ser enfrentado pelos familiares das vítimas que decidem

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Artigo 23 do CPP. Para uma análise detalhada sobre o registro do “auto de resistência” e entraves em processos judiciais dos mesmos, ver Leandro (2012) e Misse et al (2013).

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investir no encaminhamento jurídico dos mesmos, aspecto que desenvolvo de forma mais detida no capítulo 3 desta tese. Seja na organização e realização de manifestações públicas, seja nas peregrinações cotidianas a diferentes instituições e órgãos públicos que passam a compor a agenda desses familiares de vítimas, faz-se necessário reunir esforços para construir um rebatimento desse processo de criminalização: uma contra-argumentação frente ao “argumento de autoridade” do agente do estado; uma contra-imagem frente à parcela de “imagens de favela” (e de favelado) que alimentam aquela ideia da favela como foco irradiador da violência que assola a cidade – que alimentam, portanto, a “metáfora da guerra” (Leite, 2000) no Rio de Janeiro. Como anunciado anteriormente, tive a oportunidade de acompanhar parte destes esforços durante os períodos de trabalho de campo que antecederam minha entrada no doutorado, quando minhas atenções estavam voltadas para processos de reconstrução das linguagens de protesto de movimentos sociais urbanos, em especial o Movimento Posso me identificar? e a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência. Foi justamente durante este período (que se estendeu de abril de 2004 ao final de 2008) que, através da interlocução com os familiares de vítimas e demais integrantes destes coletivos, eu fui amadurecendo um olhar de estranhamento em relação aos poderes de Estado. E quanto mais se ampliavam as possibilidades de observação de situações nas quais os moradores de favelas com quem passei a conviver evidenciavam suas estratégias de resistência política frente às opressões e violações atravessadas por forças estatais, eu ficava mais atenta às engrenagens de gestão governamental dessas populações. Fui articulando, assim, a essa experiência de trabalho de campo/militância 23, atividades de formação acadêmica (orientações, cursos, seminários, bem como os projetos nos quais tive a oportunidade de trabalhar como assistente de pesquisa e, posteriormente, pesquisadora24) através das quais obtive os aportes teóricos e

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Retorno a este ponto adiante, ao tratar dos materiais com os quais trabalhei nesta pesquisa e das trocas produzidas ao longo da interlocução com os familiares de vítimas e demais integrantes da Rede contra Violência. 24 Dentre as atividades de pesquisa das quais tive a oportunidade de participar neste período que antecedeu o curso de doutorado, destaco os projetos “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em busca do reconhecimento”, coordenado pelo professor Luiz Antonio Machado da Silva, e “Quando a Cidade é um Cartão-Postal: O Rio de Janeiro dos Guias e Relatos de Viagem - 1922-2002”,

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metodológicos acionados na elaboração do projeto que deu origem ao presente estudo25.

Desse Estado que se reconstrói nos intervalos do cotidiano

A peregrinação institucional realizada pelos familiares de vítimas aqui referidos é entendida nesta tese como parte da reconstrução cotidiana de um Estado encravado em práticas, linguagens e lugares considerados às margens do Estado nacional – lendo essas margens no sentido proposto por Das e Poole (2004), como: 1) periferias habitadas por pessoas tidas como insuficientemente socializadas de acordo com as leis e a ordem vigentes; 2) lugares onde os direitos podem ser violados através de dinâmicas distintas de interação das pessoas com documentos, práticas e palavras do Estado; e 3) um espaço localizado entre corpos, leis e disciplina (2004: 8-10)26.

coordenado pela professora Bianca Freire-Medeiros. Tais projetos desdobraram-se, respectivamente, nas seguintes pesquisas das quais eu também participei: “Direitos humanos, pobreza e violência no Rio de Janeiro: moradores de favelas em busca de reconhecimento e acesso à justiça”, coordenado pela professora Márcia da Silva Pereira Leite; e “Para Ver os Pobres: A Favela Carioca como Destino Turístico”, também coordenado pela professora Bianca Freire-Medeiros. A cada um dos coordenadores e integrantes das equipes de pesquisa deixo registrados meus agradecimentos pelo privilégio da interlocução. 25 Vale registrar que, ainda que a análise empreendida neste estudo focalize ângulações da gestão governamental das favelas e suas populações a partir das execuções sumárias dos moradores desses territórios, os estudos sobre diferentes políticas públicas destinadas a esss populações, bem como as reflexões sobre as políticas associativas em favelas e periferias (e sua interlocução com o poder público, em diferentes níveis) conformaram uma forma de pensar a relação Estado-favelas que atravessa a elaboração desta tese. Para análises sobre as primeiras tentativas de organização dos moradores de favelas, através da formação de comissões de moradores, ainda na década de 40 e para as relações entre essas organizações e poder público, ver Machado da Silva (1967), Lima (1989), Burgos (1998), Pandolfi & Grynszpan (2002), Machado da Silva e Leite (2004), Valladares (2005). Para leituras de períodos mais recentes sobre política e associativismo em favelas e periferias cariocas, ver Leite (2000), Machado da Silva (2002), Machado da Silva e Leite (2004), Silva e Rocha (2008), Rocha (2009), Siqueira (2009), Guariento (2009), Landim e Guariento (2010), Rodrigues et alia (2012), Trindade (2012), Landim (2013), Landim e Siqueira (2013) e Mendonça (2014). Para uma análise sobre institucionalidades outras que – articuladas de formas variadas a forças de Estado – também agem na gestão das populações de favelas e periferias urbanas, ver Birman (2012), Birman e Machado (2012) e Machado (2012; 2013). 26 Das e Poole afirmam que a antropologia sempre foi (embora de formas não reconhecidas algumas vezes), “sobre” o estado – mesmo (e segundo as autoras, talvez especialmente) “quando seus objetos eram constituídos como excluídos (de), ou contrários a formas da racionalidade administrativa, da ordem política e da autoridade relegada ao estado” (2004: 5). As “margens do Estado”, no contexto dos trabalhos organizados para Anthropology in the Margins of the State, não são demarcadas somente a partir de aspectos geográficos: o descolamento de um modelo espacial de centro e periferia foi acontecendo na medida em que se percebia que várias ideias a respeito de “margens” eram baseadas em relações entre soberania e formas de poder disciplinar, assim como em genealogias específicas de assuntos políticos e econômicos.

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Dando continuidade à sua linha de raciocínio, Das e Poole (2004) recuperam o trabalho de Pierre Clastres (2003), para quem a racionalidade e as formas de vida características dos objetos etnográficos “não modernos” poderiam ser melhor compreendidos como expressões de um desejo coletivo de defender-se da iminente emergência do estado27. Argumentando que atualmente seja impossível pensar em sistemas políticos habitando qualquer forma de sociedade sem estado, as antropólogas perguntam: “estamos nós observando formas de estado simplesmente incompletas – ou frustradas – nessas situações? Ou as formas de ilegibilidade, pertencimento parcial e desordem que parecem habitar as margens do estado constituem sua condição necessária como um objeto teórico e político?” (2004: 6)

Através da tentativa de responder a este questionamento, Das e Poole abrem espaço para uma parte importante deste debate – relacionada diretamente à relação entre a formação do estado e o monopólio do uso da força. Para elas, a relação entre as funções de ordenamento do estado e a violência se apresenta como uma possível chave de interpretação. A reflexão é desenvolvida ironicamente: “Informada como é por um retrato particular da natureza humana, a teologia política européia presenteou o estado com a qualidade da transcendência e com o monopólio sobre a força” (2004: 7). A criação das fronteiras entre as práticas e os espaços que seriam vistos como parte do estado e aqueles que seriam excluídos do mesmo foi inerente à imaginação da figura da lei, segundo as autoras. A partir desta chave interpretativa, a legitimidade emerge como uma função desse efeito “marcador de fronteira” (Das e Poole, 2004) das práticas do estado. Nas “margens” por elas estudadas, a questão da origem da lei emerge não como o mito do Estado, mas na forma de homens cujas habilidades para representar o Estado ou para aplicar suas leis estão localizadas em uma disposição para se mover impunemente entre o que aparece na forma da lei e práticas extrajudiciais.

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A afirmação de que “todos os povos policiados foram selvagens”, se torna o ponto de partida para a o início da formulação da crítica que conduz ao argumento central do trabalho clássico de Pierre Clastres (2003). A resposta de Clastres à afirmação citada é a seguinte: “o registro de uma evolução evidente de forma alguma fundamenta uma doutrina que, relacionando arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do Estado, designa este último como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode-se então indagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens.” (Clastres, 2003: 208).

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Falar de relações estado-margens é falar de relações estabelecidas, mas não estabilizadas; marcadas por fragilidades, ruídos, surpresas, desgastes... enfim, elementos variados que se combinam na configuração de arranjos para governamentalidades específicas – a partir dos quais torna-se possível acessar uma extensa lista de recursos acionáveis, que se estende desde carimbos e papéis timbrados a medidas provisórias e decretos-leis. Quando recorto essa lista tomando como referência especificidades da gestão das favelas e dos favelados no Rio de Janeiro, aparecem, obviamente, os registros de “auto de resistência” e as “fraudes processuais” que geralmente os acompanham (como a prática de depositar junto aos corpos das vítimas uma arma de fogo e trouxinhas de maconha ou papelotes de cocaína – o chamado “kit bandido”; ou simplesmente a prática de apresentar esse “kit” na delegacia como material apreendido durante a operação). Tal recorte traria como uma espécie de orientação de fundo o comprometimento de pensar essa agenda de pesquisa como fonte de situações privilegiadas para encarar determinadas práticas do Estado na linha sugerida por Das e Poole (2004): não nos termos da lei ou da sua transgressão, mas como práticas que se encontram simultaneamente dentro e fora da lei. Para compreender o processo de gestão governamental das mortes dos moradores de favelas, foi elaborado, então, o desenho de uma etnografia pautada pelo interesse em identificar e perseguir analiticamente as imbricações institucionais que marcam a reconstrução cotidiana do “Estado” através das relações estabelecidas com suas “margens”. Em função do enquadramento teórico-analítico empreendido nesta tese, é imprescindível dizer que a definição de Estado aqui adotada decorre da renúncia à realização de uma teoria do Estado, sendo acionada a argumentação de que “o Estado não tem essência”; “O Estado não tem em si uma fonte autônoma de poder” (Foucault, 2008b): “O Estado nada mais é que o efeito, o perfil, o recorte móvel de uma perpétua estatização, ou de perpétuas estatizações, de transações incessantes que modificam, que deslocam, que subvertem, que fazem deslizar insidiosamente, pouco importa, as fontes de financiamento, as modalidades de investimento, os centros de decisão, as formas e os tipos de controle, as relações entre as autoridades locais, a autoridade central, etc. Em suma, o Estado não tem entranhas, como se sabe, não só pelo fato de não ter sentimentos, nem bons, nem maus, mas não tem entranhas no sentido de que não tem interior. [...] O 17

Estado não é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas.” (Foucault, 2008b: 106)

É a partir desta definição que Foucault incentiva a interrogação do problema do Estado pelo lado de fora, a investigação deste problema a partir das práticas de governamentalidade (Foucault, 2008b)28. Entendendo que são muitas as práticas de governamentalidade que compõem o que venho chamando de engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas ocorridas durante ações militarizadas, decidi elaborar um desenho de pesquisa a partir do qual a movimentação e os posicionamentos políticos dos familiares de vítimas me indicassem para quais destas práticas de governamentalidade eu deveria voltar minha atenção. Deste modo, tanto levei em consideração críticas expressas em conversas, reuniões, bares, idas e vindas de uma manifestação pra outra, sobre declarações públicas de secretários de segurança, governadores, comandantes da Polícia Militar, dentre outros, quanto organizei uma metodologia de trabalho para estar disponível29 para acompanhá-los em qualquer tipo de encontro com agentes de Estado, entendendo que seriam “esses Estados” o foco inicial da minha reflexão para a partir daí elaborar interpretações possíveis sobre práticas de governamentalidade diretamente conectadas às mortes dos moradores de favelas. Tanto foram identificados segmentos de Estado30 em sua forma mais estanque, inacessíveis aos familiares ou surdos em relação às suas demandas e formas 28

É fundamental destacar que o título desta tese se refere a essas práticas de governamentalidade, nos termos trabalhados por Foucault (2008b) – visto que aciono neste estudo a definição de “governo” enquanto “atividade que consiste em reger a conduta dos homens num quadro e com instrumentos estatais” (Foucault, 2008b). Não se trata, portanto, de fazer referrência a um mandato específico, e sim às formas de governar, que não são determinadas por um único cargo, por um único órgão estatal, mas por uma engrenagem composta por uma infinidade de cargos, funções, atribuições, substituições, procedimentos, requerimentos, ofícios, registros, carimbos, assinaturas, enfim, atos relativos a determinadas competências que por sua vez estão relacionadas a determinados órgãos, institutos, secretarias, núcleos etc, distribuídos em suas respectivas instâncias de governo. 29 Essa disponibilidade diz respeito não apenas a tempo, mas à essa organização de uma rotina de pesquisa que envolvia ter sempre as pilhas do gravador digital recarregadas, uma lista com os principais endereços visitados pelos familiares decorada (bem como as linhas de ônibus e metrô através das quais eu poderia chegar mais rápido a estes locais), caderno de campo sempre à mão, afinal, ainda que muitos desses encontros sejam agendados com antecedência, o trabalho de campo impõe seu próprio ritmo e a agenda desses familiares de vítimas é bastante intensa, incluindo compromissos programados em cima da hora também. 30 Me refiro a segmentos de Estado tendo como referência a análise de Souza Lima (2002) sobre formas administrativas de “gestar e gerir desigualdades”, através da qual o autor nos incentiva a enxergar nuances nos exercícios de poder de “um estado segmentado e conflituoso”.

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antropomorfizadas de estado31, bem como capilaridades mais extremas da gestão (como evidenciam as situações em análise na Parte II desta tese). Assim sendo, não foi feita uma escolha pré-definida de recorte analítico sobre este ou aquele órgão ou instância estatal, o que faz com que o presente estudo apresente discussões que transitam entre um segmento de Estado e outro, assim como o próprio percurso dos familiares de vítimas que tive a possibilidade de acompanhar durante a realização do trabalho de campo32. Dito isto, é possível apresentar uma lista dos principais segmentos de Estado que habitam – de forma desigual – as discussões travadas neste estudo. Ainda que as formas de apresentação dos mesmos em cada capítulo tenha sido pensada de modo a dar conta desse tipo de diferenciação, vale dizer que nesta lista aparecem tanto locais nos quais estive presente, quanto segmentos que correspondem a instâncias outras, cujo acionamento neste estudo se justifica, por exemplo, por conta de tramitações de leis, ou devido às conexões existentes entre as ações dos agentes de Estado desses respectivos segmentos no processo de gestão das mortes dos moradores de favelas. No âmbito estadual, dando início à lista a partir do poder executivo, a referência mais imediata deve ser feita à Secretaria de Estado de Segurança – cujos variados segmentos que habitam a presente discussão se distinguem amplamente. É fundamental indicar apenas que, de batalhões da Polícia Militar ao IML-RJ (alocado no Departamento de Polícia Técnico-Científica da Polícia Civil), tais segmentos são compreendidos neste estudo enquanto parte da engrenagem de gestão das mortes em questão. Ainda no âmbito estadual, destaco a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado do RJ e a Defensoria Pública Geral do Rio de Janeiro (com destaque para o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos)33 e a Assembléia Legislativa do estado do Rio de Janeiro

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Como a frase que Adriana Vianna e eu acionamos em nossa análise (Vianna e Farias, 2011) – a frase havia sido dita por uma mãe de vítima no dia do enterro de outra: “Enquanto o Estado está lá, sentado, comendo e bebendo do bom e do melhor, estamos aqui enterrando mais uma mãe”. Essa e outras formas que remetem ao Estado como entidade simbólica, que remetem à sua dimensão de idéia, como proposto por Abrams (2006), são recorrentes e muitas vezes expressam uma força englobante que ameaça e/ou oprime cotidianamente as populações residentes em favelas. 32 Vale registrar que esta decisão por estruturar a própria forma do texto da tese a partir de movimentações observadas/realizadas em campo junto aos familiares de vítimas se deve especialmente à interlocução com Tássia Mendonça, cuja etnografia (Mendonça, 2014) expressa não só no conteúdo, mas também na forma, os enfrentamentos políticos de seus interlocutores na favela do Batan. 33 Apesar de a Constituição de 1988 determinar a independência das defensorias públicas, em diferentes estados brasileiros tal independência é bastante questionável e, no caso específico do Estado do Rio de

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(com destaque para a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania). Encerrando essa parte da lista com o poder judiciário, cito o Tribunal de Justiça (Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro / Fórum Central – Capital / Tribunal do Júri). No executivo federal, destaco a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (em especial o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) e o Ministério da Justiça; no legislativo federal, a Câmara dos Deputados. Trata-se, contudo, repito, de uma lista de segmentos de Estado variados que são acionados de forma muito distinta nas discussões travadas ao longo deste estudo – e as conexões entre esses segmentos e a gestão das mortes dos moradores de favelas são exploradas também a partir de suas distinções e especificidades, na medida em que os debates vão se desenvolvendo. É necessário registrar, ainda, que a partir de determinados segmentos de Estado são exploradas formas distintas de capilaridades dessa engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas. Como argumentam Das e Poole (2004), estamos diante de um Estado que se reconstrói continuamente nos intervalos do cotidiano – proposta teórico-metodológica central para o desenvolvimento desta pesquisa: no intuito de compreender o processo de gestão das mortes dos moradores de favelas no Rio de Janeiro, priorizei a construção de um trabalho de campo que tornasse possível capturar o que vem acontecendo em alguns desses intervalos do cotidiano através dos quais o Estado se constrói e se reconstrói. Seguindo as formulações que embasam a linha de pesquisa proposta por Das e Poole (2004), esse intervalo sobre o qual estou me referindo é mencionado durante uma das passagens do texto nas quais as autoras se posicionam contra o entendimento do Estado enquanto falho, fraco, ou parcial: sustentam o argumento de que as margens do Estado não são espaços nos quais esse Estado ainda tem que penetrar, mas justamente configuram lugares nos quais o Estado é continuamente construído nos intervalos do cotidiano.

Janeiro, a defensoria é alocada no interior do organograma do próprio governo do Estado enquanto um órgão do Poder Executivo. O mesmo acontece com a Procuradoria Geral.

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Para a reflexão que desenvolvo neste estudo, é fundamental pensar esses intervalos considerando tanto o cotidiano dos familiares de vítimas, quanto o cotidiano de repartições públicas, órgãos governamentais e tipos diversos de segmentos de Estado que estejam relacionados aos casos de execução de moradores de favelas por agentes de Estado – entendo que é através desses cotidianos que se abrem as possibilidades de captura e interpretação dos intervalos nos quais o Estado se constrói e se reconstrói. Sobre materiais de pesquisa e decisões metodológicas

A partir de 2009 foi iniciado o trabalho de campo pautado de forma mais direta pela agenda dos próprios familiares de vítimas, cujo roteiro sugeria uma espécie de peregrinação institucional – composta especialmente por idas à Defensoria Pública do Rio de Janeiro, ao Fórum e à Assembléia Legislativa, dentre outros espaços institucionais que passam a fazer parte dos compromissos cotidianos destes familiares, como exposto acima. A abertura da agenda dos familiares de vítimas se deu através de convites variados (alguns mais formais, outros menos), que tanto partiam dos familiares relacionados ao caso específico que motivou a atividade (uma audiência judicial no Fórum, por exemplo), quanto surgiam via demandas mais gerais por apoio e solidariedade, como acontece com frequência nas ações convocadas pela Rede. Todas essas atividades foram registradas em caderno de campo e parte delas registradas também em áudio – às vezes no gravador que eu levava, às vezes pelo gravador levado pelos próprios familiares (que adquiriram esse hábito para documentar o passo a passo dos seus respectivos casos e, eventualmente, poder acionar declarações de agentes de Estado como recurso de pressão política). Vale destacar que as gravações em áudio de reuniões fechadas se deram a partir de autorizações prévias: as reuniões no NUDEDH foram registradas com a concordância do defensor público responsável pelos casos na época da realização do trabalho de campo. O mesmo aconteceu em atividades mais ampliadas, como as audiências realizadas na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, cuja autorização para observação e registro foram concedidas pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania 21

da casa legislativa. Nesse último caso, pude contar ainda com o apoio fundamental de integrantes da equipe que me concediam a estrutura da pauta, o material compilado pela própria equipe para ser discutido na audiência, bem como os registros taquigráficos produzidos durante as atividades, em geral acompanhados dos encaminhamentos tirados34. Além das trocas de registros de áudio, diversas foram as trocas – políticas, intelectuais e afetivas – que pude realizar com os familiares de vítimas com os quais estabeleci as interlocuções mais fundamentais desta pesquisa. Para não perder o foco, no entanto, dou continuidade à descrição do intercâmbio de materiais e tarefas que marcaram este trabalho de campo. Através destes familiares, tive acesso ao processo judicial (inteiro ou parcial) dos casos que acompanhei de forma mais detida, visto que os mesmos solicitaram ao defensor público que acompanhava os casos a autorização para que eu tirasse cópia de toda a documentação. O mesmo posso dizer a respeito dos arquivos dos casos elaborados pelos familiares, contendo fotografias, recortes de jornal e outros documentos (que haviam sido incluídos ou não nos respectivos processos judiciais), como abaixo-assinados que circularam entre os moradores da favela onde a vítima morava e foi executada, exigindo respostas das autoridades públicas a respeito daquela morte; cartas e solicitações escritas à mão pela mãe da vítima ou outros familiares, dentre outros. Junto ao material já referido, utilizo também meus arquivos relativos ao acompanhamento das atividades do Movimento Posso me identificar? e da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência (entre 2004 e final de 2008). Trata-se de fotografias, materiais de campanhas e de divulgação de manifestações, recortes de jornal, notas de campo e entrevistas. Considero pertinente registrar o fato de ter feito a opção por não realizar nenhuma entrevista durante o trabalho de campo realizado a partir de 2009: tal decisão se deve ao fato de concentrar a observação nos encontros entre familiares e agentes de Estado, explorando essas situações de pesquisa enquanto fonte principal de informação. A partir dos encontros, ao invés de agendar entrevistas com os interlocutores, priorizei um percurso que ainda não havia experimentado: dar continuidade à investigação através dos documentos – em especial os documentos 34

Deixo registrados meus agradecimentos à equipe da CDDHC/Alerj, em especial à Marielle Franco, por todo apoio e pela interlocução valiosa para a realização desta pesquisa.

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utilizados ou mencionados durante os encontros em questão, entendendo que nesse “governo de mortes”, os papéis são imprescindíveis35. Essas decisões estão diretamente conectadas com o entendimento de que essa pesquisa foi realizada junto aos familiares, mantendo o foco nos segmentos de Estado e nas situações através era possível compreender mais algum elemento da relação Estado-margens. A captura, portanto, de determinadas práticas de governamentalidade (Foucault, 2008b) não poderia ser viabilizada através de entrevista (fosse com os familiares de vítimas, fosse com agentes de Estado); e sim a partir da observação dos encontros entre familiares de vítimas e agentes de Estado e encontros registrados em “papéis” (entre agentess de Estado e as próprias vítimas ou entre agentes de Estado e os familiares das vítimas, também). Articulo às decisões metodológicas já anunciadas o fato de não ter escolhido um caso de violência institucional específico (para produzir um estudo de caso) ou um número X de casos, para perseguir seus respectivos desdobramentos políticos. Os casos vão sendo lembrados e acionados nas discussões ao longo da tese em função das respectivas práticas de governamentalidade em foco. De toda forma, entendendo a importância de organizar minimamente as informações relativas aos casos mencionados/trabalhados (ainda que de formas desiguais) nesta tese, elaborei o anexo “Casos Emblemáticos de Violência Institucional (2003 – 2014)”, contendo 26 casos – em sua maioria execuções ou chacinas. Finalmente em relação aos materiais analisados nesta tese, deixo registrado que todo o material relacionado à Resolução produzida pelo CDDPH que recomenda o fim da utilização dos registros “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” em todas as unidades federativas do Brasil (assunto abordado no segundo capítulo desta tese), bem como a descrição da reunião de aprovação da resolução só foram possíveis 35

Ainda que o enquadramento teórico-analítico desta pesquisa seja diretamente orientado pelos estudos de Michel Foucault, a atenção dada aqui a especificidades dos processos de produção de sujeitos e populações e de formação de Estado quando se trata de investigações envolvendo documentos de rotina de instituições públicas (como o IML-RJ) é resultado da leitura dos trabalhos de Letícia Ferreira, em especial Ferreira (2009, 2011, 2013). Tal aspecto é desenvolvido no capítulo 4 desta tese, mas deixo registrado que, seguindo a linha analítica adotada por Ferreira, entendo que os “documentos podem ser encarados como artefatos que exercem mais do que a função meramente referencial de registrar ou representar graficamente algo que existiria no mundo à sua revelia. [...]Funcionam, em suma, não como artefatos estéreis e autocontidos, e sim como objetos materiais do direito, da administração e da governança.”

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em função da minha atual inserção profissional, enquanto pesquisadora da Justiça Global.

Organização da tese

Esta tese está dividida em duas partes. Na primeira, registro e exploro declarações públicas e reuniões oficiais cujo assunto central eram as mortes dos moradores de favelas ocorridas durante ações militarizadas de agentes de Estado. No primeiro capítulo discuto formas públicas de pautar essas mortes, atenta ao que se diz e ao que não se diz sobre as mesmas. Realizo essa discussão tomando como referência as estratégias elaboradas pelos familiares de vítimas, coletivos e organizações políticas para denunciar as mortes dos moradores de favelas elaboradas por outros. No capítulo 2, abordo debates, reuniões, posicionamentos e encaminhamentos governamentais a respeito dessas mortes. Mais especificamente, analiso situações nas quais o registro do “auto de resistência” é transformado em alvo de críticas e encaminhamentos mais concretos por parte da própria institucionalidade governamental. A segunda parte da tese é construída a partir da exploração de caminhos mais capilares das relações estado-margens, através dos quais entramos em contato com práticas de governamentalidade (Foucault, 2008b) menos visíveis na composição da engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas. No capítulo 3, analiso uma configuração possível da relação Estado-família a partir do encontro entre familiares de e um defensor público, explorando como tal interlocução é capaz de produzir atualizações do exercício do poder de Estado. No capítulo 4, reconstruo um trecho do percurso documental de um caso de execução sumária, tomando como contraponto narrativo a troca de tiros e as composições políticas articuladas a essa versão, para depois refletir sobre as potencialidades do laudo cadavérico enquanto plataforma de registro oficial. As considerações finais da tese são apresentadas no quinto e último capítulo. Como recurso para a descrição de diferentes situações analisadas ao longo deste estudo, tomei a decisão de construir Cenas. Todas as cenas que compõem a tese foram redigidas por mim, mas nem todas tiveram como primeiro registro meus cadernos de campo: como a Cena 1, na qual descrevo cenas de um documentário, há apenas mais 24

uma cena que foi montada a partir de outro tipo de registro (uma peça do inquérito de um dos casos analisados na tese). Busquei manter ao longo da tese uma espécie de padrão narrativo para as cenas e estas duas que não foram produzidas a partir de situações nas quais eu mesma estava presente receberam uma anotação sobre a origem das informações – em rodapé ou no corpo do texto.

Uma consideração inicial

Uma vez me perguntaram qual era a diferença entre a pesquisa que realizei para escrever a dissertação e a pesquisa que eu faria quando iniciasse o doutorado. Formulei uma resposta a partir das diferenças entre um trabalho de campo que priorizava manifestações, ocupação do espaço público etc, e um trabalho de campo que acompanharia a agenda dos familiares de vítimas nas suas peregrinações por dentro das engrenagens governamentais. Na época, essa era a diferença fundamental. Hoje, terminada a escrita da tese, entendo que há algo muito mais determinante nesse processo. Sempre pensei que meu envolvimento enquanto pesquisadora colocava as pesquisas que eu realizava naquele conjunto de pesquisas nas quais a proximidade com o “objeto” estudado é a marca do estudo. Talvez o desconforto com o termo “objeto” não tivesse apenas a ver com o teor assimétrico e a passividade que o termo carrega, mas também com o próprio fato da inadequação metodológica do termo, ainda que eu insistisse na realização da “pesquisa com” ao invés da “pesquisa sobre” determinado coletivo, suas práticas etc. O movimento social, a Rede contra Violência, ou as integrantes e os integrantes deste coletivo passaram batido pelo lugar de um “outro” que uma etnografia possibilita compreender. Agora entendo que enquanto eu fazia pesquisa com aqueles com quem eu me identificava política e afetivamente, eu estava mesmo era aprendendo o que de fato parecia estranho pra mim, o que de jeito nenhum eu conseguia entender e o que, portanto, deveria pesquisar. Durante todo o tempo que passei fazendo trabalho de campo com a Rede contra Violência, passando por todas as favelas que passei junto com as integrantes e os integrantes deste coletivo, eu estava aprendendo a recortar aquilo que um dia viria a ser meu “objeto” de estudo. Meu “outro” nunca foi a favela, meu “outro” sempre foi o Estado. 25

Parte I

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Capítulo 1. Execuções e chacinas em pauta Governo federal e estadual castiga no carro O povo tá com medo, olha só Não dá pra ficar de pilantragem Lá vem o caveirão, no bombardeio kamikaze No jogo de totó, polícia com bandido Um tiro na criança, já morreu mais um fudido Criança de rico crescendo com sorriso Aqui na favela tá na profissão perigo Mayday, mayday, mayday, capa de jornal Um preto favelado meteu bala em geral, sobrou pra nós Us Neguin q Não C Kala e Família Kponne, Lágrima de Sangue

Dentre um vasto conjunto de noções e ideias que atravessaram os debates relacionados às favelas cariocas durante a década de 2000, aquelas mais diretamente implicadas com a pauta da “visibilidade” foram reeditadas com força total. Neste período, a produção de “imagens” e “representações” das favelas na cidade passou a contar com novas propostas de ação – cujo motor, na maior parte dos casos, era o comprometimento em mostrar “uma favela diferente” (fosse daquela que aparecia na chamada grande mídia, fosse daquela que habitava o imaginário dos moradores “do asfalto”, ou das duas combinadas). Na esteira dessa produção, a comunicação virtual (através da criação de sites, homepages e posteriormente blogs sobre favelas) foi acompanhada pelo surgimento de diferentes iniciativas (implementadas e/ou coordenadas tanto por moradores dessas localidades, quanto por agentes externos) dedicadas à elaboração e divulgação de registros visuais de favelas, como, por exemplo, a agência “Olhares do Morro” (criada em 2002, na favela Santa Marta) ou a “Escola de Fotógrafos Populares” (criada em 2004, no conjunto de favelas da Maré, no âmbito do projeto “Imagens do Povo”), que se desdobrou em outras iniciativas na mesma localidade, como a “Escola Popular de Comunicação Crítica – ESPOCC” (criada em 2006) e o coletivo “Favela em Foco” (criado em 2009)36.

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Como define Gama (2006), “Olhares do Morro” é uma “agência de imagens de favelas” cujo objetivo principal seria “capacitar jovens para formar uma rede de correspondentes capaz de nutrir um acervo de

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Nesta mesma década, cresce uma outra vertente desta produção de “imagens de favela” a partir de trânsitos e interesses distintos: aquelas imagens que compõem o circuito internacional da favela enquanto trademark, “como um signo a que estão associados significados ambivalentes que a alocam, a um só tempo, como território violento e local de autenticidades preservadas”, seguindo as formulações de FreireMedeiros (2007). Refiro-me aqui, portanto, não só ao crescimento da prática do turismo em favelas cariocas37, mas a ações, atividades e empreendimentos que, por sua diversificação ou fluidez, permitem múltiplos suportes a essas imagens e ampliam as possibilidades de acionamento de “favela” enquanto prefixo atraente (como produções cinematográficas, instalações, ou mesmo bares e restaurantes inspirados nas favelas brasileiras) – peças centrais neste enquadramento sociológico, difundido por FreireMedeiros, da favela enquanto fenômeno de circulação e consumo em nível global38. Dialogando direta e indiretamente com todas essas vertentes de produção de “imagens de favela”, teve início (também a partir dos anos 2000) um processo de reatualização dos formatos de protesto dos movimentos sociais engajados na luta contra violência de Estado praticada em favelas e periferias do Rio de Janeiro. Tanto a fotografias passíveis de serem comercializadas”. Sobre o trabalho desta agência e suas (auto) representações, ver os trabalhos de Fabiene Gama (especialmente 2006 e 2009). Já a agência inserida no projeto “Imagens do Povo” (da ONG “Observatório de Favelas”) é apresentada no trabalho de Carminati (2009) como “uma agência fotográfica especializada em temáticas sociais abordadas por aqueles que, em tese, compõem a questão social: os favelados”. Sobre a ESPOCC, consultar http://www.espocc.org.br e sobre o “Favela em Foco”, consultar http://favelaemfoco.wordpress.com. Vale dizer, ainda, que antes da institucionalização enquanto “Escola de Fotógrafos Populares”, o incentivo à utilização da fotografia enquanto recurso comunicacional no conjunto de favelas da Maré já vinha sendo impresso através das “Oficinas de Imagem e Comunicação” organizadas pelo CEASM (Centro de Estudo e Ações Solidárias da Maré), projeto contíguo à criação do jornal local “O Cidadão”, distribuído gratuitamente desde 2002 nas dezesseis favelas que integram a Maré. Sobre “O Cidadão”, consultar Souza (2011) e Martins (2011). Também data do início da década (mais especificamente do ano 2000), a criação do portal “Viva Favela” – uma iniciativa da ONG Viva Rio, marcado pelo trabalho dos fotógrafos “correspondentes” (moradores de diferentes favelas do Rio). 37 Somente as visitas dos turistas já engrossam consideravelmente a produção e circulação de “imagens de favela” mundo afora, como revela o estudo de Menezes (2007), no qual foram analisados 50 fotologs produzidos por turistas estrangeiros, onde eram exibidas mais de 700 fotografias registradas em suas visitas à favela da Rocinha. 38

Um bom exemplo dessa multiplicidade de suportes é o “Morrinho”: iniciativa que “desde os anos 1990 vem se constituindo em torno de uma enorme maquete de tijolos na qual aspectos do cotidiano das favelas são encenados com pecinhas de Lego. Recentemente reconhecido como Ponto de Cultura, o Morrinho se desdobra em quatro iniciativas complementares: TV Morrinho (que já produziu peças audiovisuais para clientes como Nickelodeon e Coca-Cola); Turismo no Morrinho (visitas guiadas à maquete); Morrinho Social (braço responsável pelo desenvolvimento de atividades culturais na favela) e Morrinho Exposição (reprodução da maquete em exposições internacionais e grandes feiras de arte).” (Freire-Medeiros e Rocha, 2011).

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valorização do poder de comunicação das imagens, quanto a intencionalidade da amplificação das reivindicações para além das fronteiras nacionais pautaram diferentes estratégias de visibilidade – compreendendo neste conjunto a criação de sites na internet, a produção de documentários, a organização de oficinas e debates sobre “imagem e violência”, bem como o investimento em formas de ocupação do espaço público que combinassem técnicas e idiomas tradicionais da cena política protagonizada por movimentos sociais (latino-americanos, especialmente) com novas tecnologias de protesto. Neste capítulo, exploro algumas dessas estratégias, entendendo que através delas seja possível demarcar o quadro político a partir do qual o presente estudo foi desenvolvido. Dou início a esta reflexão acionando plataformas de informação ligadas direta ou indiretamente às ações políticas do Movimento Posso me identificar? e da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência, para depois dedicar atenção a formas de pautar as mortes dos moradores de favelas elaboradas por outros coletivos e organizações políticas. Todas as estratégias selecionadas para esta discussão correspondem a produções visuais ou audiovisuais – compreendidas aqui enquanto tentativas de produção de visibilidade das mortes de moradores de favelas provocadas por agentes de Estado.

1.1 Traduzindo violência de Estado pra quem é brasileiro e pra quem não é

Em meio a faixas, bandeiras, camisetas e demais objetos utilizados como suporte para a exposição pública de reivindicações, denúncias e propostas políticas deste coletivo protagonizado pelos familiares de vítimas, uma das confecções mais simples adquiriu destaque: um cartaz no formato pirulito, cuja haste havia sido produzida com um pedaço fino de madeira, sobre o qual era acoplado um pedaço retangular de papelão que trazia em cada lado de sua superfície uma folha branca de papel A3 colada, com dizeres impressos em tinta preta. De um lado de cada cartaz, os dizeres estavam em português; do outro, em inglês.

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A primeira vez que vi o cartaz bilíngue foi durante uma manifestação pública em abril de 2004 – que marcava um ano da “Chacina do Borel”, referida anteriormente. Nos cartazes bilíngues, era possível ler frases como: “Moro onde os meios de comunicação só chegam para contar os mortos” e “Moro no Brasil: o país com a segunda pior concentração de renda do mundo!”.

Um ano depois, em abril de 2005, o cartaz bilíngue apareceu estampado na primeira página da Folha de São Paulo. A fotografia havia sido realizada durante uma passeata coorganizada pela Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência e o MST-RJ e exibia uma menina negra que trazia na mão direita o cartaz. No registro escolhido pelo jornal, o lado do cartaz que está à mostra não é o que foi escrito em português: a frase que chamava a atenção do leitor naquele dia era “I have been a victim of violence!!! Who will be the next? YOU??? We hope not.”. Abaixo da fotografia, a legenda: “Globalizados. Menina exibe cartaz, em inglês, contra violência; 1.200 semterra e favelados do Rio protestaram na língua para atingir “a opinião pública internacional””.

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Não cabe aqui desenvolver uma análise sobre impacto/recepção de uma matéria jornalística para o debate em questão, mas sim reconhecer o potencial do cartaz bilíngue enquanto instrumento de luta, enquanto estratégia de visibilidade eficaz diante das dificuldades enfrentadas pelos movimentos sociais para pautarem suas reivindicações e bandeiras no que se convencionou chamar de grande mídia. Foi uma fotografia da mesma menina, na mesma passeata, ainda com o cartaz bilíngue em punho, que estampou a capa da revista Carta Capital no mês seguinte – cuja matéria principal explicitava no título a necessidade de algum posicionamento político em meio ao debate: “Por que a polícia mata”, frase sem ponto de interrogação, aparecia seguida do sub-título “sem controle, repressão ao crime arrasta o País a uma espiral de violência”.

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A capa de revista aparece, então, neste processo, como um ícone que cumpre aqui uma dupla função – tanto sintetiza algum sucesso, ainda que limitado, do esforço por visibilizar e pautar essas mortes dos moradores de favelas na cidade, como evidencia o potencial de comunicação do cartaz bilíngue produzido em 2004 para a manifestação que marcava um ano da Chacina do Borel. Levando em conta as condições de possibilidade da enunciação dessas mortes no espaço público enquanto mortes ilegítimas, esta intenção de comunicar guarda estreitas ligações com sentimentos como indignação, dor, revolta, saudade, enfim – combustíveis não menos importantes neste campo político. Pensando especialmente neste episódio que ficou conhecido como Chacina do Borel, o equilíbrio entre as emoções e o cálculo para organizar da melhor forma as manifestações públicas contra violência policial em favelas contribuiu para que fossem construídos caminhos bemsucedidos de comunicação e de visibilização das mortes em questão. Também é fundamental destacar que, para além das especificidades do caso do Borel, consolidava-se na esfera de luta em defesa dos Direitos Humanos a prática de denúncia de violações às organizações internacionais – ação desempenhada tanto para esse quanto para outros casos de violência institucional pela Justiça Global, mas que, neste caso, resultou nas visitas (ainda em 2003) da Secretária Geral da Anistia

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Internacional, Irene Khan, e de Asma Jahangir, relatora da Organização das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais ao morro do Borel. Durante sua visita, uma das frases marcantes proferidas por Asma Jahangir nas entrevistas que concedeu aos jornalistas interessados pelo caso foi “Nenhuma sociedade civilizada deu à polícia o direito de julgar e matar”. Esta frase foi escrita à mão com hidrocor preto em uma cartolina verde e exibida na mesma manifestação na qual foi registrada a fotografia que se tornou capa da Folha de São Paulo e da Carta Capital. Estratégias diferentes para comunicar a ilegitimidade das mortes de uma mesma população: os moradores de favelas. A oportunidade de acompanhar a produção das estratégias de visibilidade do Movimento Posso me identificar? e da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência torna possível alocar em um mesmo conjunto um cartaz feito a mão e um documentário – visto que importa menos a tecnologia envolvida na confecção destes instrumentos de luta e mais a intenção de comunicar que alimenta sua produção. Enquanto o cartaz, utilizado em manifestações no Brasil39, foi projetado para emitir sua mensagem para além das fronteiras nacionais através do acionamento da língua inglesa, o documentário Entre Muros e Favelas40 foi editado em duas versões: uma para ser exibida no Brasil e outra para ser exibida na Europa. Como anunciado na introdução da tese, foi planejado um circuito europeu articulado junto ao Comitê Suiço de Apoio aos Direitos Humanos nas Favelas do Rio de Janeiro41. Através deste circuito (cujo período mais intenso de atividades corresponde ao ano de 2005), a exibição do documentário era organizada junto com um debate sobre violência policial em favelas, ocasião em que eram também solicitadas doações – a verba era enviada ao Rio de Janeiro, para ser utilizada para a confecção de faixas e camisetas

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Além das manifestações já mencionadas, realizadas no Rio de Janeiro, o cartaz bilíngue também foi utilizado na marcha de abertura do Fórum Social Mundial, em 2005, na cidade de Poro Alegre. 40 Entre muros e favelas, direção de Susanne Dzeik, Kirsten Wagenschein e Márcio Jerônimo, BrasilAlemanha, 2005, 60 min, cor. 41 O Comitê Suiço de Apoio aos Direitos Humanos nas Favelas do Rio de Janeiro foi articulado por Marta Dahyle, mãe de Carlos Magno, uma das vítimas fatais da Chacina do Borel, que residia na Suíça na época dos crimes.

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do movimento e também para cobrir as despesas relativas a passagem e alimentação de integrantes da Rede contra Violência durante atividades da militância. Entre Muros e Favelas conta as histórias de cinco episódios de violência institucional em favelas envolvendo execuções de moradores: a execução de Marcio da Rocha Maia (ocorrida em 1995 na Favela do Salgueiro); a Chacina do Borel (ocorrida em 16/04/2003, resultando na morte de 5 pessoas); a Chacina do Caju (ocorrida em 06/01/2004, resultando na morte de 5 pessoas); a execução de L.E. Caldeira (ocorrida em fevereiro de 2004 na Favela da Rocinha) e a execução de Jeferson Ricardo (ocorrida em 13/04/2004, em Manguinhos). Tomando como referência, portanto, a execução mais antiga desta lista, é possível notar que o ano da morte de Marcio da Rocha Maia corresponde ao ano em que foi instituída no estado do Rio de Janeiro a gratificação por bravura (decreto em novembro de 1995, período em que Nilton Cerqueira ocupava o cargo de Secretário de Segurança, durante o governo Marcello Alencar)42 – tal premiação ficou conhecida como gratificação faroeste, em função da orientação seguida pelo policial em serviço: atirar primeiro e conferir depois. Essa foi uma das medidas emblemáticas das políticas de Segurança Pública implementadas durante a década de 1990 – década das chacinas de Acari, Candelária e Vigário Geral – período a partir do qual Leite (2000) formula a noção de metáfora da guerra, definida por uma conexão entre a consolidação da representação da cidade em guerra e o desenvolvimento de uma ambigüidade em relação aos direitos civis e humanos de favelados, por presumi-los incompatíveis com a segurança pública. Os ecos políticos dessa metáfora ainda atravesariam os anos 2000, consolidando ações governamentais cada vez mais letais nas favelas do Rio de Janeiro. Dois meses antes da incursão que resultou na Chacina do Borel, o então Secretário de Segurança Pública, Josias Quintal, evidencia através de declaração pública que a percepção da cidade em guerra era acionada enquanto justificativa para o confronto como opção

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“No Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Segurança Pública aplicou entre os anos de 1995 e 1998 um programa de “premiações por bravura”, concedidas preferencialmente a policiais envolvidos em ocorrências com resultado de morte de suspeitos. Essas premiações incrementavam a remuneração do agente em 50%, 75% e até 150% sobre o salário original” (Cano, 2003b).

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plausível (se não, primeira) de atuação da polícia militar: Nosso bloco está na rua, e se tiver que ter conflito armado, que tenha. Se alguém tiver que morrer por isso, que morra. Nós vamos partir pra dentro43. A respeito da chacina em questão, o mesmo secretário declarou que quando há enfrentamento, ocorrem mortes. Mas a polícia foi correta. Vamos apurar se houve inocentes entre os mortos, embora aceditemos que todos eram marginais44. No mês seguinte à chacina do Borel, Anthony Garotinho (sucessor de Josias Quintal no cargo de secretário havia apenas 15 dias), comemorou a morte de mais de 100 pessoas (“supostos bandidos”) durante ações policiais em favelas45. Tal declaração do secretário foi lembrada por Dalva, mãe de Thiago, uma das quatro vítimas fatais do Borel, em um dos trechos da sua entrevista para o documentário Entre Muros e Favelas: O Garotinho recebeu a gente no gabinete dele. Prometeu que ía ajudar as favelas com esse negócio de incursão policial, disse que estava afastando os maus policiais... e naquela época mesmo ele comemorou 100 mortes de bandidos. E nesses 100, tavam incluídos os 4 inocentes do Borel.

Durante a década de 2000, portanto, a histórica associação entre pobreza e criminalidade46 foi reelaborada enquanto justificativa para o endurecimento de ações e decisões no campo da segurança pública no Rio de Janeiro. Vale registrar que, como a criminalização das vítimas é parte da criminalização de toda a população residente em favelas, simples tentativas de descriminalização também podem ser entendidas como atos criminosos: no dia do enterro de uma das vítimas da Chacina do Borel alguns moradores foram levados para a delegacia porque estavam colocando uma faixa na passarela que dá acesso ao morro. A faixa, na qual estava escrito “Foram assassinados quatro inocentes”, havia sido confeccionada para ser levada para o sepultamento. Ainda

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Declaração citada no relatório Rio de Janeiro: Candelária e Vigário Geral, 10 anos depois, elaborado pela Anistia Internacional em 2003. 44 Idem. 45 O Globo, 11/05/2003. Fonte: Relatório da Sociedade Civil para o Relator Especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais. Rio De Janeiro: 2007. 46 O debate sobre a associação entre pobreza e criminalidade marca diferentes análises sobre a construção da favela como “o outro da cidade” – construção que, através de angulações e referenciais empíricos variados, fundamenta diferentes trabalhos sobre as favelas do Rio de Janeiro, dentre os quais destaco os de Valladares (1991, 2000 e 2005), Machado da Silva (2002, 2005 e 2008), Leite (2000) e Leeds e Leeds (1978).

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que o ato de pendurar uma faixa em algum lugar dificilmente pudesse ser confundido com uma ação violenta, os moradores do Borel que fizeram isto foram levados para a delegacia pela manhã e só foram soltos às oito horas da noite47. Contextualizando o período a partir de referenciais institucionais, relembro ainda que menos de um ano após a chacina, Anthony Garotinho (também enquanto Secretário de Segurança Pública), determinou que os delegados titulares das delegacias distritais passassem a enquadrar por “crime de associação ao tráfico” todas as pessoas que antes eram autuadas por “crime de depredação do patrimônio privado”48 – enquadramento sob o qual costumava-se “alocar” moradores de favelas que participassem de algum tipo de manifestação pública compreendida como “arruaça” pelas forças policiais. “Arruaça” foi a mesma palavra utilizada por um dos policiais acusados pelas mortes ocorridas nesse episódio do Borel, durante seu depoimento no Tribunal do Júri, no dia do seu julgamento. Segundo seu depoimento, no dia 16 de abril de 2003 foi feita uma denúncia anônima no 6o Batalhão da Polícia Militar, comunicando que vários traficantes do Borel estavam se reunindo pra roubar carros e tocar fogo em ônibus. Então, para evitar a ocorrência desses atos, conhecidos dentro da instituição como “arruaças”, os policiais que estavam de plantão nesse batalhão decidiram realizar uma incursão no morro. Assim se justificou a operação que resultou na chacina. Estamos, então, diante de um quadro de sobreposições de criminalização: a potencialidade de crime que é utilizada como justificativa para a incursão que provoca a chacina é a mesma potencialidade depositada na ação dos moradores que quiseram pendurar uma faixa na passarela e foram presos; essa é a mesma potencialidade que reúne as vítimas da chacina, seus familiares e os demais moradores da favela sob uma nebulosa de suspeitas49.

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Informação fornecida por Dalva Correia, mãe de Tiago Correia da Costa, em conversa não gravada, durante a etnografia que realizei em 2004. 48 Conforme explicação técnica apresentada pelo Centro de Justiça Global (2004), casos de queimas de ônibus ou interrupção de avenidas e túneis, por exemplo, eram enquadrados como “associação ao tráfico” através do artigo 14 da lei 6368/76: “Art.14. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos 12 ou 13 desta Lei: Pena-Reclusão de três a dez anos, e pagamento de cinqüenta a trezentos e sessenta dias-multa”. 49 Como argumentam Birman e Leite (2004), as mães de vítimas se vêm diante de (e tendo que lidar com) duas modalidades distintas de violência: a violência física, que interrompe inesperadamente a vida de

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Foi enxergando as vítimas e suas famílias dessa forma que um agente da Polícia Militar que acompanhou a remoção dos corpos das vítimas da Chacina do Caju (também explorada no roteiro de Entre Muros e Favelas) foi capaz de dizer: Menos um porco pra gente prender50. Não se tratava de uma remoção de corpos qualquer: as vítimas da Chacina do Caju haviam sido jogadas num lamaçal próximo ao local do crime e os familiares que foram informados a tempo, permaneceram nesse local até que a retirada dos corpos fosse feita. Logo, estavam presentes quando seus filhos e irmãos, já mortos, foram chamados de porcos. Uma cena de Entre Muros e Favelas mostra uma das manifestações organizadas pelos familiares das vítimas da Chacina do Caju, ao lado desse local onde os corpos foram encontrados: enquanto eram feitos discursos contra a violência policial e homenagens aos mortos, passa um carro identificado pelos manifestantes como um dos veículos utilizados pela polícia secreta e uma das câmeras que estava sendo usada pelos documentaristas captura, em zoom in, a imagem dos policiais dentro do veículo, que passava devagar, com as janelas abertas. Na edição do documentário, essa imagem é anunciada por uma manifestante (olha lá, tão tirando foto, tão tirando foto!) e exibida em câmera lenta, quando fica evidente o registro da manifestação pelos policiais, à paisana, com uma câmera na mão. A manifestação não foi repreimida, mas foi vigiada à distância. O documentário mostra como o mesmo procedimento ocorreu durante a manifestação realizada em 2004, marcando um ano da Chacina do Borel, já mencionada no início desta seção. Ao chegarem na frente do Palácio das Laranjeiras, destino da caminhada que havia sido iniciada no Largo do Machado, os manifestantes se posicionaram com suas faixas e seus cartazes, para ouvirem os discursos que continuavam a ser proferidos de cima do carro de som. O encerramento do ato só aconteceria após a entrega do documento O Movimento Posso me identificar? dirige-se aos poderes públicos à governadora Rosinha. Enquanto aguardavam as negociações

seus filhos; e a violência moral, configurada na criminalização das vítimas, na destituição de sua dignidade como pessoas e como cidadãos. 50

Este relato foi produzido pela Rede contra Violência e está disponível no site do coletivo, através do endereço < http://www.redecontraviolencia.org/Casos/2004/210.html>.

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para a entrada de um grupo de familiares de vítimas daquela e de outras chacinas, os manifestantes eram filmados por um agente de Estado, de uma das janelas do Palácio. Ao seu lado, um segurança vestido de terno observava o protesto.

Figura 4: Screenshot 1 – Entre Muros e Favelas

Até a data daquela manifestação, diversas outras execuções haviam ocorrido nas favelas do Rio de Janeiro, dentre elas os casos narrados no documentário Entre Muros e Favelas. Na manifestação não se falava só das mortes do Borel, mas de todas essas outras: Será que o poder público só vai funcionar pra nós como repressão? Nós estamos pedindo pro poder público ter outras maneiras de ocupar as nossas comunidades, não só com repressão policial. Queria dizer que esse movimento “Posso me identificar?”, ele nasce nas comunidades, são pessoas de dentro da comunidade que não agüentam mais ficar calados, vendo seus filhos serem assassinados. Se o país não tem pena de morte, porque que toda comunidade favelada está condenada à morte e à exclusão?51

Na edição do documentário, alguns discursos proferidos naquela manifestação aparecem quase na íntegra. Enquanto o carro de som se dirigia ao palácio, foram realizadas imagens de cima dele, momento no qual Isabel, moradora de Manguinhos

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Discurso proferido por uma moradora do Borel no início da manifestação, que não está incluído no documentário. Registro em áudio, realizado por mim durante a manifestação.

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bastante presente durante as articulações do Movimento Posso me identificar?, usa seu tempo de fala para articular a simbologia militar à repressão nas favelas: O símbolo do BOPE é uma caveira, que representa a morte. No símbolo da PM tem a cana e o café, que nos condenam à escravidão. Se somos escravos, então vamos assumir e conquistar nossa liberdade. Sua imagem ao microfone é substituída pela imagem da faixa do movimento abrindo a caminhada rumo à sede do governo do Estado, mas sua voz foi mantida, em off, até a finalização do recado.

Figura 5: Screenshot 2 – Entre Muros e Favelas

O discurso de Isabel é traduzido na legenda da versão do documentário preparada para o circuito europeu de exibições. Os diretores do Entre Muros e Favelas decidiram fazer essa segunda versão após perceberem que, nos primeiros debates realizados fora do Brasil, estava sendo difícil discutir as execuções ocorridas nas favelas sem fazer uma longa introdução sobre racismo no Brasil. Foram incluídas cenas de um homem negro regando os pés de pessoas brancas em troca de dinheiro numa praia carioca, mesma praia na qual mulheres negras aparecem fazendo massagem em homens brancos. Os cortes da edição privilegiam imagens que mostram em primeiro e segundo plano pessoas negras que trabalham na praia vendendo mate, óculos e picolé.

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Na sequência, são intercaladas imagens de agentes de segurança – pública e privada – que fazem plantão em lojas no centro do Rio, com trechos de uma entrevista com vera Malaguti, realizada para essa nova versão do documentário:

A polícia foi fundada no Brasil, como o sistema penal, dirigida aos escravos. Pra manter os escravos sob controle, pra manter a propriedade branca em ordem, quer dizer, é um tipo de ordem no Brasil – e eu acho que não houve nunca uma ruptura disso – uma ordem branca e proprietária.

Após uma cena que mostra agentes da guarda municipal vestindo coletes à prova de balas, ombreiras protetoras e capacetes reprimindo duramente um camelô, é incluído um trecho da entrevista com Baiano, outro morador de Manguinhos, contando que em alguns supermercados, se entra um negro, sempre tem um segurança atrás, se entra uma pessoa branca, nunca tem segurança. Essa entrevista, que já fazia parte da primeira versão do documentário, antecipa uma nova inclusão na edição de um episódio de repressão violenta a dois homens que acabaram sendo presos. Ficamos sem saber o motivo da prisão, porque a filmagem é interrompida pelo segurança do estabelecimento, mas fica evidente a ação conjunta entre este e o agente de segurança pública acionado52.

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Trata-se de uma cena na qual as ações de agentes de segurança pública e privada são atravessadas por racismo institucional, nos termos trabalhados por Leite (2012): “no Brasil, negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas. Tratase de discriminação racial praticada pelo Estado ao atuar de forma diferenciada em relação a esses segmentos populacionais, introduzindo em nossas cidades e em nossa sociedade, pela via das políticas públicas, “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”, a faxina étnica.”

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Figura 6: Screenshot 3 – Entre Muros e Favelas

O homem negro foi levado dentro de um camburão, que estava acompanhado por mais uma viatura da PM. O policial que dirigia essa outra viatura retira sua arma da cintura e a coloca no banco do carro, antes de manobrar para sair da vaga e seguir o camburão. Sirenes ligadas, os carros partem pela pista do meio da avenida, a sequência se encerra. Os diretores acumularam material suficiente pros debates pós exibições fora do Brasil – se o tratamento dado a um homem negro, na frente das câmeras, no centro da cidade, durante o dia, é aquele, a execução de um homem negro na favela deixa de ser algo incompreensível. O policial que acompanhou a remoção dos corpos no Caju, se estivesse trabalhando naquela lanchonete no centro da cidade, não poderia comemorar menos um porco pra prender. A nova edição da versão de Entre Muros e Favelas dava conta, assim, do recado de Isabel pra dentro e pra fora das favelas: Se somos escravos, então vamos assumir e conquistar nossa liberdade.

1.2 Cartões postais e adesivos contra um veículo de guerra

Na medida em que a metáfora da guerra (Leite, 2000) se fortalece, os equipamentos – também de guerra – que foram sendo adquiridos para dar sustentação às políticas de segurança pública implementadas no Rio de Janeiro produzem cada vez 41

mais mortes em favelas. O grande ícone desse processo é o caveirão, veículo blindado adquirido durante o governo de Anthony Garotinho, em 2002, para ser utilizado pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar (BOPE) em operações nas favelas53. Em julho de 2005 ocorreu um dos casos considerados emblemáticos pelas organizações de defesa dos Direitos Humanos atentas à utilização do veículo em operações militares realizadas nas favelas do Rio. Era dia de festa junina e na quadra de esportes da Vila do Pinheiro, uma das favelas da Maré, acontecia a quarilha. Enquanto uma parte das crianças dançava, a outra brincava no parque de diversões mais próximo. Foi justamente naquela direção do parque que foram efetuados disparos de fuzil. Já era noite quando o caveirão entrou na favela e foi de dentro dele que partiram os disparos. Os moradores presentes na festa correram, dentre os quais muitas crianças, que ficaram machucadas por conta da movimentação tumultuada na hora que ouviram o som dos tiros. Os disparos atingiram Carlos Henrique da Silva, um menino de 11 anos, e seu pai, Carlos Alberto. O relato produzido pela Rede contra violência expressa de forma concisa o desdobramento da situação: Carlos Henrique estava sentado no banco de trás do carro que foi atingido pelos tiros de fuzil disparados pelos policiais. Carlos Alberto, ainda com o projétil alojado na cabeça, segurou o filho no colo, retirou-o do carro e o exibiu para os policiais, dizendo: “Olha só o que vocês fizeram, vocês mataram meu filho”. Testemunhas do episódio contam que um dos 53

A definição de caveirão elaborada pela Anistia Internacional para a publicação intitulada “Vim buscar a sua alma”: o caveirão e o policiamento no Rio de Janeiro, lançada em 2006, junto com a campanha abordada a seguir, traz dados importantes para a discussão em pauta: O caveirão é um carro blindado adaptado para ser um veículo militar. A palavra caveirão refere-se ao emblema do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), que aparece com destaque na lateral do veículo. Entre as modificações feitas nos caminhões blindados originais estão o acréscimo de uma torre de tiro, capaz de girar em 360 graus, e fileiras de posições de tiro em cada lado do caminhão. O caveirão tem capacidade para até 12 policiais com armas pesadas. Construído para resistir às armas de alta potência e aos explosivos, o caveirão tem duas camadas de blindagem, assim como uma grade de aço para proteger as janelas quando sustenta fogo pesado. Os pneus são revestidos com uma substância glutinosa que impede que sejam furados. As quatro portas travam automaticamente e não podem ser abertas pelo lado de fora – dois alçapões de escape, um na torre e outro no piso, podem ser usados em emergências. Embora pese cerca de 8 toneladas, o caveirão pode alcançar velocidades de até 120km/h. [...] Alto-falantes montados na parte externa do veículo anunciam repetidamente a chegada do caveirão. As expressões usadas variam desde a frase educada: “Senhores moradores, estamos aqui para defender a comunidade. Por favor, não saiam. É perigoso”; a alarmista: “Crianças, saiam da rua, vai haver tiroteio”; até a intimidação descarada: “Se você deve, eu vou pegar a sua alma”. Quando o caveirão se aproxima de alguém na rua, a polícia grita pelo megafone: “Ei, você aí! Você é suspeito. Ande bem devagar, levante a blusa, vire... agora pode ir...”. A Anistia Internacional também recebeu relatos de que a polícia xinga e insulta os moradores, especialmente as mulheres.

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policiais desceu do carro armado com um fuzil e, ao ver o menino morto, voltou para o veículo dizendo “Vamos embora que a gente fez merda”.54

No ano seguinte da morte de Carlos Henrique, a Anistia Internacional, articulada junto à Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência, a Justiça Global e o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis deram início a uma campanha contra o uso do caveirão nas operações militares55. A campanha articulava debates e outras atividades públicas à coleta de assinaturas em um abaixo-assinado planejado para circular amplamente, além da produção de dois tipos de suportes imagéticos de fácil distribuição: foram confeccionados cartões postais e adesivos, no intuito de garantir ampla divulgação do posicionamento contrário ao uso do blindado. O inícia da coleta das assinaturas se deu em março de 2006, durante um ato público na Cinelândia e a primeira leva dos cartões saiu da gráfica diretamente endereçada à Exma. Governadora Sra. Rosângela Rosinha Garotinho de Oliveira, trazendo no verso a denúncia da morte de Carlos Henrique na Vila do Pinheiro e solicitando o fim da utilização do veículo. Na frente do cartão, a imagem de dois agentes do BOPE com seus uniformes pretos, segurando seus fuzis, ao lado do caveirão, condensava os elementos da política de segurança militarizada56 contra a qual se posicionavam os familiares das vítimas de violência institucional em favelas articulados em torno da Rede contra Violência e as demais organizações reunidas na campanha. Seguem abaixo as imagens de frente e verso do cartão.

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Relato produzido pela Rede contra Violência, disponível no site do coletivo, através do endereço < http://www.redecontraviolencia.org/Casos/2005/207.html>. 55 Para maiores detalhes da articulação e desdobramentos desta campanha, consultar Magalhães (2007) e Ramos (2010). 56 Na época, uma declaração do então comandante do BOPE foi bastante divulgada por condensar em uma frase curta o entendimento institucional sobre o equipamento: Agiremos como na guerra convencional, onde o tanque vai na frente, e a infantaria cerca o inimigo pelos lados. (Anistia Internacional, 2006).

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Figura 7: Postal 1 Frente – Campanha contra o Caveirão

Figura 8: Postal 1 Verso – Campanha contra o Caveirão

Os adesivos produzidos para a divulgação da campanha possuíam dois formatos distintos: um era circular, trazia o símbolo do BOPE (a caveira com uma faca cravada no centro, sobre duas pistolas), sobreposto pelo sinal de proibido e ao seu redor, o endereço da lista de e-mails da campanha, para a qual poderiam ser enviadas assinaturas; o outro era retangular, trazia ao centro a imagem desenhada em preto e branco do próprio caveirão, enquadrada acima e abaixo pelo texto CAVEIRÃO DIGA NÃO!, contendo abaixo da moldura o endereço virtual criado para a campanha.

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Figura 9: Adesivos 1 e 2 – Campanha contra o Caveirão

De acordo com a análise de Magalhães (2007), apesar de a entrega das assinaturas não ter tido o impacto desejado (especialmente por não ter sido atendida a reivindicação da suspensão da utilização do blindado pela PM)57, o coletivo de organizadores da campanha avaliou positivamente aqueles primeiros meses de atividade, por terem conseguido pautar os debates relativos às eleições daquele ano. Tratava-se das eleições para o governo estadual e os cinco principais candidatos – Sérgio Cabral (PMDB), Denise Frossard (PPS), Marcelo Crivella (PRB), Eduardo Paes (PSDB) e Vladimir Palmeira (PT) – se posicionaram contra a utilização do caveirão (Magalhães, 2007).

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Foi realizada uma manifestação para que o abaixo-assinado fosse entregue à governadora Rosinha Garotinho. Os manifestantes se concentraram no Largo do Machado e se dirigiram até o palácio das Laranjeiras, fazendo discursos, levando faixas e cartazes e distribuindo o cartão postal da campanha para as pessoas que encontravam pelo caminho. Me lembro de que, na época, considerei aquela a mais difícil das atividades de abordagem de pessoas na rua (envolvendo panfletagem) da qual eu já tinha participado. Enquanto eu tentava explicar o motivo da manifestação e os objetivos da campanha, algumas pessoas até escutavam, no entanto, ao verem no cartão a imagem do caveirão, recusavam recebê-lo. Naquele período, avaliei que não só a imagem do caveirão era mal recepcionada naquele suporte imagético, como o próprio assunto também o era. Adicionei a essa avaliação o fato de a caminhada até o palácio não ter sido tranquila: a polícia agiu com truculência, especialmente em relação aos manifestantes que se posicionaram à frente, abrindo passagem pela Rua das Laranjeiras e pela Pinheiro Machado. Vale dizer ainda que, de acordo com a pesquisa realizada por Magalhães (2007), foram coletadas por volta de 7 mil assinaturas até o dia da entrega ao governo – número considerado inexpressivo pelos organizadores da campanha.

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A declaração de Sergio Cabral, em de novembro de 2006, merece destaque: É um trauma para as comunidades. Não dá para fazer Segurança Pública com 'caveirão'58. Foi também no início de novembro que os coletivos articulados em torno do primeiro momento da campanha se reuniram para avaliar a possibilidade de sua reedição, aproveitando justamente a abertura da pauta para o assunto durante as campanhas eleitorais. Naquele momento, foi feita uma aposta na declaração do governador eleito para elaborar a segunda versão do cartão postal da campanha contra o caveirão. Assim como o outro, o verso do cartão já vinha endereçado ao Palácio Guanabara, trocando agora o destinatário. Ao invés do resumo do episódio da morte de Carlos Henrique na Maré, o novo cartão trazia entre aspas três declarações de Sergio Cabral, se posicionando contrariamente à utilização do veículo durante operações em favelas. Na frente, outra fotografia, mas os mesmos elementos de composição da cena militarizada dessas operações: o agente do BOPE com fuzil e o caveirão, em alguma favela do Rio de Janeiro.

Figura 10: Postal 2 Frente – Campanha contra o Caveirão

58

“Sérgio Cabral diz que vai aposentar caveirões”, Jornal O Dia, 15 de novembro de 2006, disponível em: .

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Figura 11: Postal 2 Verso – Campanha contra o Caveirão

No entanto, apesar das declarações de campanha, os investimentos daquela gestão em equipamentos atingiriam marcas expressivas, sendo que o veículo blindado representaria os valores mais altos da lista. Como observa Ramos (2010), ainda no final de 2006, Mario Sergio Duarte (na época, superintendente de Planejamento Operacional da Secretaria de Estado de Segurança) viajou à África do Sul para visitar uma fábrica de blindados e seis meses depois a secretaria anunciou a intenção de adquirir um modelo. Foram avaliados também blindados israelenses e russos (utilizados, respectivamente, em Gaza e durante ações militares contra terroristas chechenos)59. 1.3 Charge, stencil e outdoor: detenções e censura nos anos 2000 O acionamento da guerra enquanto metáfora, como analisado por Leite (2000), continuava pautando as políticas de segurança pública e no primeiro ano do governo Cabral 1.330 autos de resistências foram registrados, segundo dados divulgados pelo próprio ISP. A marca resume em números o que significou para os moradores de favelas o ano de 2007 – ano de jogos panamericanos. Antecedendo o período dos jogos, uma megaoperação militar na Vila Cruzeiro provocou, em apenas um dia, 19 mortes de moradores: 550 agentes da Polícia Militar, 700 da Polícia Civil e 150 da Força de 59

“Dentro do Caveirão”. Revista Piauí, Rio de Janeiro, abril de 2008.

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Segurança Nacional60 atuaram juntos no episódio que ficou conhecido como Chacina do Alemão ou Chacina do Pan61. Além dos 19 mortos, naquele 27 de junho outros 44 moradores ficaram feridos – mas a soma total de vítimas, contando desde o início da ocupação militar em 02 de maio, corresponde a 43 pessoas mortas e 81 pessoas feridas62, sendo superado todos os números de moradores de favelas vitimados em chacinas no estado do Rio de Janeiro63. Diante deste número e dos perigos anunciados com a continuidade da megaoperação, a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ solicitou que um perito independente realizasse um novo relatório a partir dos laudos do Instituto Médico Legal – RJ, relativos às dezenove vítimas fatais da operação64. A repercussão do novo relatório – que ia de encontro à versão do confronto difundida pelo governador e outros representantes do poder público – produziu a exoneração do advogado João Tancredo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ65.

60

“Secretário nega excessos da polícia no Complexo do Alemão”. Carta Maior, 29 de junho de 2007. Disponível em < http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Secretario-nega-excessosda-policia-em-operacoes-no-Complexo-do-Alemao/5/13631>. 61 De acordo com o Manifesto pela apuração das violações de direitos humanos cometidas na operação Complexo do Alemão, que circulou em formato de abaixo-assinado tanto pelos militantes dos movimentos sociais quanto pelo circuito das ONGs e dos operadores de direito que atuam na área dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, “a operação contou com a participação de 1.350 agentes policiais, a utilização de 1.080 fuzis, 180.000 balas e teve duração de cerca de oito horas. Após o término da operação, o Estado divulgou a apreensão de 14 armas, 50 explosivos e munição de 2.000 balas, supostamente em poder de traficantes”. 62 Dados apresentados no Manifesto público contra mega-operação no Alemão, assinado por diversos coletivos e organizações que atuam no campo da defesa dos direitos humanos no Rio de Janeiro. Disponível em: . 63 Antes da Chacina do Alemão, o episódio que ficou conhecido como Chacina da Baixada totalizava o maior número de vítimas durante ações da PMERJ: 29 pessoas foram assassinadas por policiais militares nos municípios de Nova Iguaçu e Queimados. Para uma análise do caso, consultar Guariento (2009) e Landim e Guariento (2010). Para um estudo sobre as articulações políticas no campo dos movimentos sociais a partir da Chacina da Baixada e seus desdobramentos no campo da segurança pública, ver Landim (2013) e Landim e Siqueira (2013). 64

“Preparado pelo médico-legista e perito judicial Odoroilton Larocca Quinto, o relatório, feito com base nos laudos do IML-RJ, aponta que, pelo ângulo dos disparos, de cima para baixo, algumas vítimas estavam sentadas ou ajoelhadas, o que indica que teriam sido rendidas pelos autores dos tiros.” Fonte: “Laudo da OAB aponta mortes sem confronto”, matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo, em 12/07/2007. Disponível em: . 65 Durante entrevista que realizei com João Tancredo para o projeto de pesquisa “Direitos Humanos e vida cotidiana: pluralidade de lógicas e violência urbana”, coordenado por Jussara Freire, as explicações sobre os antecedentes da exoneração apareceram articuladas à dificuldade institucional que o advogado encontrou para a divulgação do relatório independente: “Contratamos um médico particular que começou a examinar os laudos do IML e, chegou a uma conclusão muito simples, ele viu o laudo dos corpos: tiro assim, de rajada de metralhadora, pelas costas, então, pelo entendimento, isso significa que

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Interpretada e divulgada pelos colegas do campo jurídico e demais companheiros de militância como uma ação que representou “o cerceamento e a neutralização das atividades de um órgão que tem como pauta a fiscalização e monitoramento das políticas governamentais em face dos limites internacionalmente consagrados de direitos humanos”66, a exoneração de João Tancredo funcionou como estopim para a fundação, ainda em 2007, do Instituto dos Defensores de Direitos Humanos (DDH) – organização não governamental que passou a ser presidida por este advogado, em acordo com o conselho deliberativo que passou a ser integrado espontaneamente por aqueles que faziam parte da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ antes da exoneração. A ideia seria dar prosseguimento às práticas e orientações políticas cerceadas no interior da Ordem dos Advogados. Além do perito independente acionado pela Comissão da OAB-RJ – causando a exoneração do presidente, nunca é exagerado relembrar –, os laudos das 19 vítimas fatais da operação do dia 27 de junho também foram avaliados em nova perícia, desta vez encomendada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República67. Segundo o estudo realizado por Souza e Pedrinha (2009), os acionamentos das perícias independentes correspondiam ao enfrentamento direto da tentativa do governo a vítima parada ou correndo ele atira, os garotos eram: um garoto de 12 anos, um de 17 anos, sadios, [...] muitos tiros, o ângulo de entrada de 45, o tiro de entrada era na nuca e saía pelo abdômen, estava no laudo, significa que eles foram vítimas de execução, essa é a conclusão, eu apresentei isso pra Ordem e aí, me disseram que esse tipo de legislação não é uma coisa adequada porque não era a nossa função, não era muito a nossa função, eu falei: “ Eu não sei qual é a nossa função não, a nossa função, pra mim, é receber as denúncias e encaminhar as denúncias.”” 66 Trecho do documento que anuncia a denúncia oficial da exoneração de João Tancredo à Representante da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Defensores de Direitos Humanos, Hina Jilani e a Unidade de Defensores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Organização dos Estados Americanos. A denúncia foi assinada por: Justiça Global; Campanha Contra o Caveirão; Organização de Direitos Humanos Projeto Legal; Observatório de Favelas; Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência; Mandato do Deputado Estadual Marcelo Freixo; Coordenação Regional de Estudantes de Direitos do Rio de Janeiro; Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos; Raízes em Movimento; Movimento Nacional de Luta pela Moradia e Assembléia Popular-RJ; Fórum de Meio Ambiente e Qualidade de Vida dos Trabalhadores; Intersindical; Associação Cons. Tutelares Municipais do Rio de Janeiro; CEA São Domingos Sávio; Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis (CCDH); MNLM; Círculos Bolivarianos Leonel Brizola; SINTUPERJ; Associação dos Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro; MST; Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola; Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares - RENAP/RJ; Movimento Direito Para Quem. 67 A perícia independente foi apresentadano relatório oficial da SDH enquanto cooperação técnica a órgãos do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro nas investigações sobre eventuais excessos cometidos na morte de civis, durante operação policial-militar no denominado Complexo do Alemão.

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estadual de ocultar informações sobre as execuções sumárias, visto que os peritos independetes contratados pela SDH chegaram às seguintes conclusões sobre o trabalho da polícia técnica do estado após a chacina: 

não houve perícia do local, apesar de fotos publicadas em jornais apresentarem a presença de populares e jornalistas;



todos os corpos chegaram despidos no Instituto Médico Legal;



não foram feitas radiografias nos corpos;



não foram coletados estojos (cápsulas das balas) no local;



não forma coletadas amostras de sangue das vítimas;



entre 14 vítimas havia um total de 25 projéteis na região posterior;



entre seis vítimas havia um total de 8 perfurações nos crânios e nas faces;



cinco vítimas sofreram disparos à queima roupa;



houve uma média de 3,8 disparos por vítima;



duas execuções comprovadas pela trajetória das balas em vítimas que se encontravam em posição decúbito dorsal, além de suspeitas de execuções em outros casos68.

Diante das mortes na Vila Cruzeiro e da possibilidade de novas intervenções estatais em favelas por conta dos jogos panamericanos, coletivos, movimentos sociais, partidos e organizações posicionadas contra a violência institucional no Rio de Janeiro organizaram um ato unificado no dia 13 de julho, dia da abertura dos jogos: a convocação anunciava uma concentração em frente à sede da prefeitura a partir das 11h. No cartaz, abaixo da chamada geral “Todos ao ato nacional dia 13 de julho”, foi impresso o texto que condensava o momento político atravessado “Bilhões para o Pan! Para os trabalhadores tiros, remoções e retirada de direitos”. Além da lista com

68

Sobre este ponto, vale trazer o registro original apresentado pela perícia independente no Relatório da Visita de Cooperação Técnica da SDH, que tive acesso a partir da circulação do documento entre militantes e pesquisadores que, na época, estavam articulados na construção de uma agenda comum contra violações daquele tipo: “Pelo menos nos Laudos N° RJ/SN/0/04094/07 e N° RJ/SN/0/04097/07, das vítimas José da Silva Farias Júnior e Emerson Goulart, respectivamente, foram encontradas evidências de morte por execução sumária e arbitrária. Em ambos os casos, o primeiro disparo foi letal, no crânio, de trás para a frente e o segundo, de frente para trás, numa das vítimas na face e na outra no tórax; em ambos os casos, com o corpo em decúbito dorsal; Nestes dois casos, ainda, verifica-se a impossibilidade de defesa da vítima, uma vez que o disparo letal foi dado de trás para a frente”.

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posicionamentos/demandas69 que unificaram o ato, o cartaz trazia ainda uma charge que havia se transformado no ícone da luta contra a violência de estado naquele período, por colocar lado a lado o caveirão e o cauê (mascote dos jogos) armado com um fuzil, vestido com a camiseta com a marca oficial dos jogos panamericanos.

Figura 12: Charge Cauê armado e Caveirão (Latuff, 2006)

A charge, elaborada pelo cartunista Latuff ainda em 2006, havia sido utilizada por diferentes coletivos para pautar os investimentos realizados na área da segurança pública em função dos jogos panamericanos naquele ano de 2007 e as consequências da utilização dos equipamentos bélicos durante as operações nas favelas do Rio. Não só jornais da mídia alternativa local divulgavam a imagem, como foram produzidas camisetas e faixas utilizando a charge inteira, ou apenas a imagem do mascote segurando o fuzil, que no meio da militância, acabou sendo chamado pelo apelido de Caô70, ao invés de Cauê (nome atribuído ao mascote durante a campanha oficial dos jogos).

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O ato se posicionava “contra a violência policial e a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais; contra a reforma da previdência e as reformas que retiram direitos; contra a política econômica do governo Lula; pela reforma agrária sob o controle dos trabalhadores; pelo passe livre para idosos, deficientes e estudantes; pela unificação das greves, lutas e mobilizações na cidade e no campo”. 70 Caô é um termo popular que se refere, de maneira geral, a algo (uma situação, pessoa, ação) inconsistente, cujo discurso esteja atravessado por expectativas/promessas/previsões que não se sustentam. Assim, um caô pode estar anunciado no momento em que é falado ou mesmo ser identificado a posteriori. De modo que se alguém não tem reputação, este é cheio de caô, fica de caôzada. Se o caô é usado para falar de uma situação ou uma ação em específico ele é usado de outra forma, como em isso é o maior caô! Usos diversos do caô na cultura popular podem ser observados em músicas, tais quais: Fala Mal de Mim (Mc Beyonce); Candidato Caô Caô (Bezerra da Silva); Caô Caô (Grupo Pixote).

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Figura 13: Detalhe (Caô e caveirão) – faixa da Rede contra Violência (Fotografia: Maurício Campos)

Durante o ato do dia 13 de julho, a faixa com a charge foi exibida durante todo trajeto da atividade (foi realizada uma caminhada da sede da prefeitura ao Maracanã71) e os manifestantes vestiram a camiseta com o desenho estampado, seguida dos dizeres Jogos Panamericanos / Rio de Janeiro 2007 / Sol e Lucros para os ricos / Violência contra os pobres. No dia 20 do mesmo mês, o militante da Rede responsável pela confecção das camisetas e da faixa foi abordado por policiais da Delegacia de Repressão aos Crimes de Propriedade Imaterial (DRCPIM) ao chegar no edifício onde se localizava a sala (sede) do coletivo: foi autuado em flagrante por violação de direito autoral (Artigo 184 do Código Penal). A sala da rede contra Violência foi vasculhada e além do integrante que havia sido abordado na portaria, outros dois membros do coletivo que estavam na sede foram levados até a DRCPIM e dois tiveram que prestar depoimento (tendo estes sido 71

Na prefeitura, os manifestantes racharam o ato. Uma parte manteve a atividade na Av. Presidente Vargas e depois dispersou, a outra, na qual eu me encontrava, caminhou na direção do maracanã. No trajeto, uma das palavras de ordem era: “Pra gente rica, o pan é esporte / pra favelado é porrada e morte”. Nos limites desta tese não será possível explorar as aproximações entre aquele período e este que vivemos de forma mais intensa a partir de junho de 2013 no Rio de Janeiro pré megaeventos. No entanto, cabe o registro de que em 2007 não tínhamos a certeza de que, no dia seguinte, a manifestação “seria maior”. Hoje temos.

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autuados por violação de direito autoral). Em torno de 60 camisetas com a charge foram apreendidas naquele dia – parte delas estava na sala da Rede, outras estavam sendo levadas pelo militante detido. Na mesma semana, o cartunista Latuff, autor da charge, recebeu uma intimação para comparecer à DRCPIM prestar esclarecimentos – foi autuado sob o mesmo enquadramento dos militantes da Rede contra Violência e a investigação incluída no mesmo inquérito72. Na noite do dia 22 (ainda na mesma semana), três jovens foram detidos enquanto grafitavam o mascote do Pan segurando o fuzil, utilizando a técnica do stencil (ver imagem abaixo). Desta vez, a acusação foi “dano ao patrimônio” e os jovens ficaram detidos até o dia seguinte.

Figuras 14 e 15: Stencil Caô 1 e 2

Todas as detenções e a intimação de Carlos Latuff foram entendidas pelos militantes da Rede e demais ativistas do mesmo campo de luta como uma ação de criminalização dos protestos realizados naquele período. Dentre as mensagens de apoio

72

Detalhes do ocorrido podem ser lidos no relato produzido pela Rede contra Violência, através do endereço: < http://www.redecontraviolencia.org/Atividades/335.html>.

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recebidas pelo coletivo, destacou-se na época o e-mail enviado por um professor do curso de Direito da PUC-RJ: Fiquei ultrajado com a censura que vocês estão sofrendo. Sou perito judicial, atuando nas áreas de direito autoral e propriedade intelectual. Não existe hipótese nenhuma de interpretar o que vocês fizeram como pirataria de marca ou uso indevido de obra alheia. Do ponto de vista técnico/jurídico, essa acusação é sem fundamento. Coloco-me à disposição para qualquer consultoria que vocês precisarem, nesse sentido. Isto tudo nada mais é do que intimidação policial a serviço dos interesses de alguns poucos que se julgam donos do poder.73

Aquela não seria, no entanto, a única imagem censurada durante o primeiro governo de Sergio Cabral. A Chacina do Alemão se transformou numa espécie de marco da política de segurança pública implementada no estado do Rio de Janeiro naquele período, legitimando o confronto como orientação primeira para as ações militares em favelas. A avaliação de Paulo Vannuchi, então ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, evidencia o acionamento da aceitação da população do Rio de Janeiro enquanto argumento do governo estadual para dar prosseguimento àquela agenda de repressões: Sergio Cabral cometeu um erro em escolher a política de confronto. Ele mandou um recado para mim, dizendo que eu tenho que entender que ele está trabalhando com pesquisa de opinião, e o povo está dando 80% de aprovação a essa política de confronto. Mas eu não quero brigar com ele. Não interessa, sou do governo federal. Agora, chegou uma vez no Complexo do Alemão com mortos, chegou outra vez. Na terceira vez tivemos de entrar com uma perícia independente. [...] Tínhamos fotos também dos cadáveres, um deles chamuscado de pólvora, e isso só existe se o tiro for a dez centímetros. Dois com bala na nuca, trajetória descendente, e eles diziam que era morte em combate. Ora, morte em combate é feito daqui para lá, a pessoa, se ela está correndo e leva um tiro na nuca, ela está fugindo e leva um tiro na altura da cabeça, o que já contraria as recomendações e uso proporcional da força, que manda atirar na perna, atirar nas nádegas, atirar em região não letal. A academia de polícia ensina isso. Agora quando tem uma trajetória de bala na nuca, descendente, aumenta a chance de a pessoa estar rendida, ajoelhada, jogada no chão etc. Se eu quizesse, eu tinha dez minutos de Jornal Nacional com o caso do Complexo do Alemão, mas não fiz nada, telefonei para a OAB, para o Beltrame e disse: “Estamos entregando o laudo independente”. O Beltrame foi para a imprensa dizer que era um absurdo, foi contra mim. Eu liguei pra ele e disse: “Não é assim que se lida. Você tem

73

Fonte: < http://www.redecontraviolencia.org/Atividades/335.html>.

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um laudo, eu tenho outro, vamos fazer um terceiro. Tenho sempre essa arma, que é uma perícia internacional.74

A declaração de Vannuchi, além de chamar atenção para a centralidade da perícia independente nos desdobramentos das investigações dos casos de execução sumária (assunto abordado no quarto capítulo desta tese), indica as divergências entre o poder executivo federal e o poder executivo estadual na condução não só do processo investigativo, como da própria base política que sustentava toda uma agenda da segurança pública no estado do Rio. O ministro se refere tanto à Cabral, quanto à Beltrame enquanto figuras públicas que respondiam ou deveriam responder por aquela chacina. Como Vannuchi avaliou, Sergio Cabral cometeu um erro em escolher a política de confronto, mas quem foi à imprensa se posicionar contrariamente à perícia independente contratada pela SDH foi Beltrame. As ações e declarações do executivo estadual estavam afinadas. Em outubro de 2007, ao divulgar sua análise sobre os transitos dos traficantes de drogas pela cidade, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro declarou que um tiro em Copacabana é uma coisa. Um tiro na [favela da] Coréia, no complexo do Alemão [nas zonas oeste e norte, respectivamente], é outra75. É nesse contexto político que as mães – mulheres/negras/moradoras de favelas – são chamadas de fábricas de marginais” e enquadradas como um problema merecedor de técnicas de governo compatíveis com uma “proposta de tratamento epidemiológico da população favelada”, seguindo a análise de Birman (2008). No mesmo dia da declaração de Beltrame sobre a diferença entre um tiro na Zona Sul e outro nas Zonas Norte ou Oeste da cidade, o governador do estado afirma publicamente que Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá

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Trecho de entrevista de Paulo Vannuchi, à época ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, concedida à Maria Helena Moreira Alves e José Valentin Palacios, em junho de 2008. (Alves, 2013: 313, 314). 75 “Para secretário, tiro em Copacabana ‘é uma coisa’ e, no Alemão, ‘é outra’”, Folha de São Paulo, edição de 24 de outubro de 2007. Disponível em .

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conta. Não tem oferta da rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só.76

Como chamou atenção Birman (2008), trata-se de uma declaração atravessada pela defesa de uma política de eugenia, publicizada num período marcado por megaoperações cujos efeitos irreversíveis para a população residente em favelas era justamente sua redução: como anunciado no início desta seção, naquele ano foram registrados 1.330 autos de resistência – a maior marca anual deste tipo de registro no estado do Rio de Janeiro (sendo que destes, 902 foram registrados na própria capital)77. Naquele ano de 2007, as favelas sofreram grandes ataques por conta das diferentes ocupações e operações militares e também pelas declarações de diferentes figuras do “poder público”, através das quais se consolidou a legitimidade daquela forma de gestão dos territórios favelados e da população que ali reside. Não se falava mais do uso excessivo da força que qualificava as ações dos agentes de Estado nesses territórios enquanto uma falha (nem individual, nem institucional) que não estava prevista e, portanto, passível de punição: em especial após a Chacina do Alemão, legitimava-se o confronto como orientação primeira e as mortes dos 76

A declaração faz parte do trecho de uma entrevista concedida ao G1, em 24/10/2007. Pergunta e resposta são destacadas na íntegra a seguir: G1 – Mas o Brasil não consegue dar conta do mosquito da dengue. Teremos condições de resolver essa questão das drogas? Cabral - O Brasil não dá conta do câncer. Não dá conta dos que necessitam de CTIs. Não dá conta de um monte de coisas. Se for partir para isso... São duas questões que têm a ver com violência: uma é a questão das drogas que é mais internacional. O Brasil deve contribuir. A outra, é um tema que, infelizmente, não se tem coragem de discutir. É o aborto. A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência pública. Quem diz isso não sou eu, são os autores do livro "Freakonomics" (Steven Levitt e Stephen J. Dubner). Eles mostram que a redução da violência nos EUA na década de 90 está intrinsecamente ligada à legalização do aborto em 1975 pela suprema corte americana. Porque uma filha da classe média se quiser interromper a gravidez tem dinheiro e estrutura familiar, todo mundo sabe onde fica. Não sei por que não é fechado. Leva na Barra da Tijuca, não sei onde. Agora, a filha do favelado vai levar para onde, se o Miguel Couto não atende? Se o Rocha Faria não atende? Aí, tenta desesperadamente uma interrupção, o que provoca situação gravíssima. Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só. (Disponível em: < http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00CABRAL+DEFENDE+A%20BORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html>). 77 A relação entre a divulgação de dados oficiais e a ocultação de outras informações sobre as mortes provocadas por agentes de estado é discutida no capítulo 4 desta tese. Ainda assim, vale destacar o número de registros de autos de resistência dos anos que antecederam e sucederam 2007 (segundo dados do ISP): em 2005, foram registrados 1.098 autos de resistência; em 2006, 1.063; em 2008, 1.137 e 2009, 1.048.

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moradores de favelas como consequências inevitáveis. Frases como “os mortos e os feridos geram um desconforto, mas não tem outra maneira”, pronunciada por Luiz Fernando Côrrea (então Secretário Nacional de Segurança Pública)78 e “não se pode fazer omelete sem quebrar os ovos”, pronunciada por Beltrame e outros 79 fazem eco pelas diferentes esferas de poder de Estado, cujo arremate pode ser traduzido via pronunciamento do próprio Presidente da República: Nessa ação de vocês [governo do Estado do Rio] no complexo do Alemão, tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó-de-arroz. A gente tem que enfrentá-los sabendo que muitas vezes eles estão mais preparados do que a polícia, com armas mais sofisticadas. A gente tem que enfrentá-los sabendo que a maioria do povo que trabalha lá é de gente trabalhadora, de bem, que não pode ficar refém de uma minoria.80

A política de confronto se intensificava, portanto, levando diferentes organizações do campo de defesa dos direitos humanos e coletivos políticos (dentre estes a Rede contra Violência) a elaborarem uma agenda de atividades para pautar o posicionamento contra a violência de Estado – que acabou se traduzindo enquanto a própria denominação da articulação: Pela vida, contra o extermínio. Diante da percepção de uma certa legitimação da política de confronto (como ressaltou Vannuchi em seu comentário sobre a política de segurança pública implementada no governo Cabral), uma das propostas desta articulação era construir formas de comunicar àqueles que não residiam em favelas, as ações violentas do Estado nesses territórios. A idéia mais forte e que adquiriu adesão da maioria foi a elaboração de um outdoor, que convocasse para o próximo ato (marcado para 23 de julho, quando seriam completados 15 anos da Chacina da Candelária81) e trouxesse uma imagem de

78

Jornal do Brasil, 29/06/2007. A declaração foi registrada pelo Jornal O Globo (edição de 29/06/2007), no entanto, trata-se de ditado acionado por diferentes autoridades durante atividades relacionadas ao PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, como analisa Trindade (2012). Segundo a autora, o ditado foi utilizado por diversos técnicos e políticos do governo do estado em reuniões com lideranças e moradores de Manguinhos para justificar problemas ocorridos durante a implementação do programa, quando a resposta vinha como outra pergunta por parte dos moradores: “E os ovos somos nós?”. 80 Lula, ao anunciar investimentos de R$ 3,880 bilhões do PAC para o Rio de Janeiro. Folha On line, disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0307200709.htm>. 81 O ato também marcaria os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, ratificando o entrelaçamento das agendas. 79

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rápida comunicação associada a um texto que pudesse condensar episódios emblemáticos daquele processo de extermínio da população residente em favelas. O resultado combinou uma charge do Latuff (exibida abaixo) às frases “Candelária, Vigário Geral, Baixada, Alemão, Acari, Providência... estamos mais seguros?”, “Este ano o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 18 anos sob banhos de sangue?” e “Infeliz é a sociedade que assiste passivamente sua juventude ser exterminada”, reservando espaço para a convocação do ato do dia 23 de julho.

Figura 16: Charge Latuff (2008) / Outdoor

Em função do aniversário do ECA, a primeira colocação dos outdoors ficou sob a responsabilidade do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA) – exposto entre os dias 21 e 24 de julho, o outdoor foi retirado das ruas após críticas do chefe da Casa Civil, Régis Fichtner. O mesmo afirmou em entrevista para a Agência Estado: "Liguei para o presidente do Cedca [Siro Darlan] e ponderei que considerava a imagem de muito mau gosto, que isso não ajudava em nada a causa da

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criança e continha mensagem grave e equivocada sobre a PM”82. Segundo matéria da Carta Maior, o governador Sergio Cabral também teria telefonado para Siro Darlan para se queixar do outdoor83. No mês seguinte, a articulação Pela vida, contra o extermínio decidiu recolocar o outdoor nas ruas, denunciando a censura sofrida. Foi produzida uma nova versão, com uma faixa vermelha por cima da charge, na qual foi escrito “CENSURADO!”, com o apoio do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM-RJ), Justiça Global, Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e Projeto Legal. Recolocados nas ruas no dia 03 de agosto, com contrato para exibição por duas semanas, um dos outdoors (o que havia sido colocado na Av. Presidente Vargas, em frente à Secretaria de Segurança) teve a parte da charge pintada de branco e outro foi totalmente coberto por cal84. Em entrevista ao jornalista Marcelo Salles, Latuff descreve a imagem e se posiciona a respeito da censura: O desenho tem a mãe desesperada, berrando. O filho dela, uma criança, com uniforme de escola, baleada, morta. Ela estava indo ou vindo da escola. Provavelmente, como a imagem é de noite, estava voltando da escola. Mas isso não sensibilizou a maioria das pessoas. A reação a este desenho é didática e serve de alerta. Ninguém se comoveu com o assassinato da criança. As pessoas se incomodaram mais com a descrição do policial. Isso porque as instituições da repressão são sacrossantas, não podem ser maculadas. Independentemente de elas já estarem maculadas, comprometidas.85

Abaixo, imagens da segunda versão do outdoor: antes e depois de ter a charge tampada.

82

Disponível em . 83

“Outdoor censurado por Cabral volta às ruas do Rio”. Agência Carta Maior, 06 de agosto de 2008. Disponível em: . 84

“Outdoor contra violência policial recolocado com crítica à censura sofre ataques”, disponível em . 85 “Cabral censura desenho de Latuff”, Fazendo Media, 26 de julho de 2008. Disponível em: .

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Figuras 17 e 18: Outdoor Censurado – 2008. Fotografia: Marcos D'Paula/Agência Estado

1.4 Da foto por e-mail à capa do Facebook: divulgação das mortes dentro e fora da internet A sequência de arbitrariedades e violações que marcavam os dois primeiros anos do governo Cabral exigia posicionamentos não só da Secretaria Especial de Direitos Humanos, como também da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Entrevistado ainda em julho de 2008, Ricardo Balestreri (Secretário Nacional de Segurança Pública no segundo governo Lula) declarou que o governo federal estava tomando medidas que correspondiam a um posicionamento contrário à ideologia de guerra. A explicação estava diretamente conectada à compra de armamentos para os diferentes estados da federação: Nós no governo federal não vamos mais financiar armas de guerra para os estados. Não vamos mais financiar metralhadoras, submetralhadoras, granadas, nem fuzis, que são armas pesadas de guerra. O que estamos financiando hoje para a polícia é uma carabina ponto 40, que é a indicada para a polícia em situação de confrontos urbanos. Qual é a diferença? A diferença é a seguinte: um tiro de fuzil em uma favela vai atravessar dois, três barracos, matar quem estiver no caminho, e atravessar os corpos. Já com uma carabina ponto 40, o policial em uma situação de confronto incontornável pode usar, está democaticamente autorizado a usar, se ele não tiver outra saída. Mas uma carabina ponto 40, se é utilizada em um

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confronto real, vai parar aí. Ela não transfixa, não passa pela pessoa, podendo atingir inocentes etc. Não passa por paredes etc.86

Na continuidade da entrevista, ao ser perguntado se Cabral estaria aceitando aquele posicionamento, respondeu: Trocamos um pedido de fuzis por 1,5 mil carabinas calibre ponto 40. Não sei se ele vai aceitar e aplicar no Rio ou não. Mas, de parte da Senasp, tanto no Rio como no resto do Brasil, não aceitamos mais pedidos de armas de guerra.87 Os pedidos não seriam mais aceitos – no entanto, naqueles estados que comprassem seus próprios fuzis, o tiro continuaria atravessando dois, três barracos e os corpos de quem estivesse no caminho. Chama atenção o fato de Balestreri dizer “não vamos mais financiar armas de guerra” tanto porque o “mais” evidencia que num passado próximo o financiamento existia, quanto por se tratar da suspensão de um financiamento que demarcava um posicionamento político a respeito dos confrontos armados diferente do posicionamento do Presidente da República: [...] na hora que apresentam as armas dos bandidos, elas são mais modernas que as armas da polícia. E eles entram em um território que eles não conhecem. Foi assim que os Estados Unidos foram derrotados no Vietnã, entraram em um território que não conheciam. Estavam aqueles vietnamitas de um metro e sessenta, magrinhos, em um buraco que mal cabia um tatu. E eles derrotaram os americanos. É importante trabalhar com o lado psicológico também. Você tem um policial que é um ser humano, mal remunerado, mal preparado e que tem tanto medo de morrer quanto o bandido.88

E foi assim, associando bandidos a vietnamitas e vice-versa que Lula, mais uma vez, legitimou a política de confronto nas favelas. O acionamento da metáfora da guerra (Leite, 2000) atravessava, portanto, reflexões, considerações e posicionamentos de agentes e chefes de estado. Ainda que o Secretário Nacional de Segurança Pública do segundo governo do presidente petista afirmasse que não financiariam mais armas de

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Entrevista concedida à Maria Helena Moreira Alves e a José Valentin Palacios, em julho de 2008. (Alves, 2013: 298, 299). 87 Balestreri segue a explicação se posicionando a favor das armas não letais. Nos limites deste trabalho, não há como desenvolver a discussão a respeito da letalidade do armamento dito não letal que vem sendo utilizado tanto pelos policiais que atuam nas Unidades de Polícia Pacificadora, quanto na repressão das manifestações públicas que se amplificaram a partir de junho de 2013. No entanto, vale mencionar o registro da morte de Mateus Oliveira Casé, em Manguinhos, no dia 17 de março de 2013, após ter sido atingido por disparo de arma Taser, utilizada por agentes da UPP local. Esse e os demais casos de mortes de moradores em favelas onde foram instaladas Unidades de Polícia Pacificadora são apresentados adiante. 88 Entrevista concedida à Maria Helena Moreira Alves e a José Valentin Palacios, em julho de 2008. (Alves, 2013: 277).

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guerra para os estados da federação, Lula já havia dito que não seria com pétalas de rosas que os agentes entrariam nas favelas do Rio. Sem pétalas e sem critério para atirar: qualquer morador da favela poderia morrer e essa morte não seria um problema pro Estado. Se em outubro de 2007, Beltrame declarava que "Mesmo morrendo crianças, não há outra alternativa. Esse é o caminho”89, um ano depois, continuava valendo a mesma orientação daquele que se tornaria o Secretário de Segurança Pública que permaneceria por mais tempo no cargo90. Tal declaração tinha ocorrido após uma operação da Polícia Civil nas favelas da Coréia e do Taquaral, em Senador Camará, deixou 12 pessoas mortas e 6 feridas – uma das vítimas fatais foi Jorge Kauã Silva de Lacerda, que tinha 4 anos91. Em dezembro do ano seguinte, outra criança seria morta durante uma intervenção militar em favela. No dia 04 de dezembro de 2008, Matheus Rodrigues foi atingido por um disparo de fuzil na cabeça enquanto saía de casa de manhã para comprar pão, na Baixa do Sapateiro, uma das favelas da Maré, na qual residia. Policiais tentaram alegar que a morte do menino havia ocorrido durante confronto, no entanto, nenhum morador escutou som de troca de tiros. Os vizinhos que ouviram o disparo – único –, saíram de

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“Beltrame: mesmo morrendo crianças, não há alternativa”, matéria publicada no site Terra, no dia 17/10/2007, disponível em < http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1998832-EI5030,00.html>. 90 Ainda que no processo de compreensão da engrenagem governamental que faz a gestão das mortes dos moradores de favelas, ações individuais – de agentes ou chefes de Estado – não sejam enxergados de forma isolada e sim no interior desta engrenagem (ponto explorado no quarto capítulo desta tese), considero pertinente ressaltar que José Mariano Beltrame é o Secretário de Segurança Pública que permaneceu por mais tempo nesta função – de 1º de janeiro de 2007 até hoje, já se somam 7 anos. Nem no período localizado entre 1975 e 1983, nem no período que vai de 1983 até o final de 2006 (o intervalo equivale aos anos nos quais tal secretaria estava extinta), nenhuma outra pessoa ocupou o cargo por tanto tempo. E Lindbergh Farias, pré-candidato do PT ao governo do estado do Rio de Janeiro, divulgou o interesse em manter Beltrame no cargo, mas o mesmo recusou, dizendo que só ficaria no cargo se o candidato apoiado por Cabral – o atual vice-governador, Luiz Fernando Pezão (PMDB) – fosse eleito. (Dados disponíveis em < http://oglobo.globo.com/pais/beltrame-diz-nao-convite-de-lindbergh-paraintegrar-possivel-governo-10133123>. 91

Ainda que a versão da troca de tiros tenha sido sustentada por moradores e familiares de Jorge Kauã (informações disponíveis através da matéria publicada no Estadão, disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,mae-de-menino-assassinado-elogiapolicial,67259,0.htm), a declaração do secretário não se torna razoável. Na operação na favela da Coréia, um policial foi morto. Segundo os laudos do IML, as vítimas foram atingidas na cabeça, no peito e no estômago, “sugerindo que a intenção específica era a de matar” (Justiça Global, MNMMR e OMCT, 2009).

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suas casas e, ao saberem da morte de Matheus, acudiram sua mãe, ao mesmo tempo em que espalhavam a notícia92. A informação da morte do menino chegou rapidamente até Naldinho, fotógrafo e morador da Baixa do Sapateiro também. Sabendo do ocorrido, Naldinho foi até o local da morte, se deparou com os moradores cercando o corpo de Matheus, para que o mesmo não fosse levado e a perícia pudesse ser realizada devidamente93. Ali naquele local, Naldinho faria o registro fotográfico que se transformaria em mais um forte ícone da luta contra a violência de estado nas favelas – o assassinato de Matheus Rodrigues seria considerado o caso mais emblemático já documentado por um fotógrafo do Imagens do Povo (Gama, 2012)94. Entrevisto por Fabiene Gama em sua pesquisa sobre fotodocumentação e participação política, Naldinho narra a especificidade do momento do registro: [...] quando eu soube da morte do Matheus, eu nem sabia quem era o Matheus. Minha mãe chegou e falou: mataram mais uma criança. E eu comecei a escrever: caralho, mais uma criança... [...] O corpo tava lá, aí eles decidiram fechar a Av. Brasil. Tinham alguns fotógrafos lá. [...] Aí eu fiquei. Aí tava o Alessandro Molon lá. Aí tinha a Marielle que estava dando uma ajuda. Aí precisava fazer as fotos e a perícia não tinha fotografo no local. Aí a Marielle falou: ele pode fazer as fotos [apontando para o Naldinho]. Aí eu fui fazer as fotos pra perícia. Tira o tecido, faz as fotos, tal. “Fotografa isso aqui mais próximo”. Aí tem uma bala, tal. Aí quando a tia e o tio da criança e a presidente de uma ONG chamada Uerê tiraram e botaram a criança no chão, aí eu fiz uma foto dela sem o pano, aí a perícia veio e cobriu o corpo. Quando cobriu, ficou só a mão da criança com a moeda. Eu falei: caralho, isso aqui deve ser a foto. Aí fui e fiz umas três ou quatro imagens, e foi. [...] Eu fui pro CEASM de novo. Aí separei as fotos lá, fiz uma edição rápida de algumas imagens e mandei. Mas eu não escrevi absolutamente nada, só

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Este relato da morte de Matheus Rodrigues é produzido a partir do texto elaborado por Gizele Martins e Silvana Sá (O Cidadão/RENAJORP), para a divulgação do episódio. O texto foi publicado por diferentes veículos de comunicação, em especial aqueles desenvolvidos no campo da mídia alternativa, como o site Fazendo Media, através do endereço . Para uma análise da repercussão do caso do assassinato de Matheus na mídia, ver Martins (2011). 93 A relação entre a perícia e a remoção dos corpos pela polícia é discutida no quarto capítulo desta tese. 94 Segue a análise de Gama (2012) sobre a imagem: “A "imagem da moeda", como veio a ser conhecida a imagem que Naldinho fez da mão de Matheus semiaberta tornou-se um símbolo da luta contra a violência policial e garantiu a "veracidade" da história. Matheus não estava segurando uma arma ou um pacote de drogas, mas a unidade do dinheiro brasileiro, que seria usado para comprar pão, parte da cena comum da vida familiar brasileira.”

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falei...Aliás, eu peguei o texto... A Gizele escreveu uma parada, se eu não me engano, e ela me passou isso e eu enviei com o texto dela. Foi isso.95

A circulação da fotografia de Naldinho junto ao texto elaborado pelas jornalistas Gizele Martins e Silvana Sá, no dia da morte, por e-mail e através de diferentes blogs e sites transformou a morte de Matheus no assunto mais comentado no campo da “militância de esquerda” no Rio, se transformou em cartaz na manifestação realizada no dia 10 de dezembro no centro da cidade e cartaz de convocação para outra manifestação realizada no dia 20 de dezembro, na Maré96. Depois virou capa de relatório97 e no ano de 2013, serviu de referência para a arte gráfica produzida para o material de divulgação da atividade que marcava os 5 anos da morte de Matheus98.

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Trecho da entrevista que Naldinho concedeu à Fabiene Gama, em 29 de junho de 2012 (texto editado aqui, em função das prioridades da discussão). Em sua tese, Gama (2012) analisa a participação de Naldinho e Valdean enquanto fotógrafos em episódios nos quais crianças moradoras da Maré foram assassinadas por policiais militares durante incursões à favela. 96 No dia que Matheus foi assassinado, um grupo de moradores da Maré estava em São Paulo, pois lá realizava-se o Tribunal Popular – atividade construída por coletivos e organizações de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia para julgar o estado brasileiro por crimes cometidos nesses três estados. A seção do Rio de Janeiro no Tribunal Popular havia sido organizada pelas pessoas/organizações/coletivos que estavam participando da articulação “Pela vida, contra o extermínio”, já citada anteriormente. A mesma articulação planejava um ato para o dia 10 de dezembro, em função do aniversário de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos – e, com a notícia da morte de Matheus, foi decidido que aquele, que já seria um ato para denunciar as violações de direitos humanos cometidas por agentes de estado nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, fosse pautado de forma prioritária pelo assassinato de Matheus. Além dessa decisão, a articulação “Pela vida, contra o extermínio” se uniu a coletivos e organizações da Maré na organização de uma manifestação para denunciar aquela morte, no dia 20 de dezembro do mesmo ano. 97 Me refiro à publicação A Criminalização da Pobreza – Relatório sobre as Causas Econômicas, Sociais e Culturais da Tortura e de Outras Formas de Violência no Brasil, organizada pela ONG Justiça Global, MNMMR; OMCT (2009). 98 A atividade foi convocada para o dia 07 de dezembro de 2013. Estavam previstas uma manifestação às 14h, na rua onde Matheus morava e foi morto, na Baixa do Sapateiro; uma caminhada pela Maré às 17h e às 18h haveria uma atividade pelo aniversário de 14 anos do jornal mareense O Cidadão (no Timbau).

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Figura 19: Matheus Rodrigues (Baixa do Sapateiro), 2008. Fotografia: Rosinaldo Lourenço.

Figuras 20, 21 e 22: cartaz de convocação do ato do dia 20/12/2008; capa do relatório produzido por Justiça Global, MNMMR e OMCT (2009); cartaz de convocação da atividade dos 5 anos da morte de Matheus, dia 07/12/2013.

No dia da morte de Matheus, o presidente Lula estava participando de uma atividade no Morro do Alemão, para a inauguração de um projeto do governo federal

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chamado Territórios de Paz99. Em seu discurso, Lula lembrou de quando anunciou o PAC junto ao governador do Rio de Janeiro, fazendo uma leitura de como eram vistas as favelas – e seus moradores – na época do anúncio: Quando nós anunciamos o PAC e pedimos ao Governador que nos apresentasse propostas de melhoramento da cidade do Rio de Janeiro naqueles locais que eram tidos como mais inacessíveis, nos locais mais delicados do Rio de Janeiro, e que a gente via na televisão a cada dia: Rocinha, Complexo do Alemão, Manguinhos, Pavão-Pavãozinho, Maré e tantas outras comunidades. Quem não mora no Rio de Janeiro só via essas comunidades, nos jornais ou na televisão, no noticiário policial. A impressão que se tinha é de que não tinha uma fruta boa nesse pé de laranja, de que o pé estava todo podre. Na verdade, em um pé de laranja que tem mais de 200 laranjas, às vezes tem uma podre, e nós precisamos tirá-la sem machucar as outras 199 que estão boas e que vão amadurecer e servir para muita coisa neste país. [...] A polícia estará aqui, porque é necessário ter a polícia mesmo que a gente estivesse em paz. É preciso que tenha policiais para evitar eventuais problemas que tem em toda e qualquer comunidade do mundo. Mas a polícia que vai atuar aqui vai ser uma polícia mais companheira das pessoas que trabalham aqui. Nós não queremos mais aquela polícia que aparece de quando em quando, sem saber tratar quem é bom e quem não é bom, tratando todo mundo como se fosse inimigo.100

Lula não se referiu à morte de Matheus. Mas se referiu a uma laranja podre que deve ser tirada sem machucar as que estão boas – após comparar as favelas a pés de laranja que pareciam estar todos podres. Mas ele anunciava que a polícia seria “mais companheira”, que saberia “tratar quem é bom e quem não é”, ao invés de tratar “todo mundo como se fosse inimigo”. Estando a Maré citada na lista dele ao falar com moraores do Alemão, poderíamos imaginar então duas possibilidades de leitura da morte de Matheus através das lentes do presidente: 1) a polícia que atuaria daquela nova forma ainda não tinha chegado na Maré; 2) a polícia já atuava assim lá e matou Matheus por saber que ele “não era bom”, logo, deveria “tirá-lo” do meio das outras

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Projeto inserido no âmbito do PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), para mais informações, consultar . 100 “Discurso do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de lançamento do programa Território de Paz no Complexo do Alemão”, disponível on line na Biblioteca da Presidência da República, através do endereço: .

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laranjas sem machucá-las. Lembro apenas que Matheus foi morto atingido por um único disparo de fuzil – ninguém mais foi ferido na Baixa do Sapateiro naquele dia. Enquanto agentes da PMERJ matavam crianças na favela como se não houvesse alternativa e aquele fosse o caminho (segundo declaração de Beltrame citada anteriormente), a morte do menino João Roberto, que aos 3 anos foi atingido por policiais enquanto estava dentro do carro de sua mãe, estacionado numa rua na Tijuca, configurou uma espécie de contraponto a partir do qual foi possível para o governo explicitar ainda mais as bases políticas que orientavam as ações junto à população residente em favelas. Uma declaração do Secretário Nacional de Segurança Pública do segundo governo Lula, sobre caso joão Roberto, condensa elementos importantes a respeito da fixação do posicionamento que vinha se legitimando: Sobre o caso que está na imprensa, claro que o governador é um homem correto e o secretário Beltrame também. Eles devem estar muito consternados. A culpa não é nem deles, existe uma cultura que esse caso expressa. Claro, se não fosse um menino branco, de 3 anos, se não fosse uma criança assassinada – se fossem, por exemplo, três jovens, homens, pobres e negros, de alguma comunidade - , ninguém acharia estranho o que aconteceu. Seria registrado como auto de resistencia, ou seja, morte em confronto com a polícia, e as mães passariam o resto da vida tentando provar que seus filhos não eram bandidos, mas sim trabalhadores honestos. Mas como foi um menino branco, de 3 anos, ficou difícil. [...] O caso, um menino branco de classe média, de 3 anos, não deu pra registrar como traficante.101

Cabral considerou a morte de João Roberto um “erro fatal” e, defendendo a expulsão dos dois PMs que efetuaram os disparos, os chamou de “débeis mentais”102. Já sobre a morte de Matheus, na Baixa do Sapateiro... se percorrermos a interpretação de Balestreri, lembrando que Matheus era negro e morador da Baixa do Sapateiro, na Maré, alguma comoção só poderia estar ligada ao fato de ele ser uma criança. No entanto, ainda que não tenha sido possível dizer (ou sustentar, no caso de Matheus) que

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Entrevista concedida à Maria Helena Moreira Alves e a José Valentin Palacios, em julho de 2008. (Alves, 2013: 296). 102

“Cabral avalia como 'erro fatal' ação de PMs na morte de criança”, matéria publicada no G1, em 08/07/2008, disponível através do endreço < http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL640158-5606,00CABRAL+AVALIA+COMO+ERRO+FATAL+ACAO+DE+PMS+NA+MORTE+DE+CRIANCA.html>.

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as vítimas eram bandidos por conta das suas idades, a morte de João Roberto foi considerada um erro, enquanto a de Matheus não. Naquele ano era instalada a primeira Unidade de Polícia Pacificadora, no Santa Marta. Apesar da repressão instaurada nos territórios onde as UPPs “chegaram”, nos dois primeiros anos do projeto do governo do Estado, não foi registrada nenhuma morte de morador provocada por agentes da PMERJ que estivessem atuando nas respectivas unidades. No entanto, a partir de 2011, quando foi registrado um auto de resistência após uma ação de policiais da UPP correspondente à área do PavãoPavãozinho/Cantagalo, foi inaugurada uma lista de mortes de moradores em favelas com UPPs que impede a sustentação da euforia inicial com o projeto. Esta lista será abordada em breve. Antes é preciso lembrar que muitas mortes ocorreram por conta das operações realizadas nas favelas nas quais seriam instaladas as Unidades de Polícia Pacificadora – períodos pré-UPP que não entram na lista inaugurada em 2011 com a morte de André no Pavão-Pavãozinho. É o caso da morte de Hugo Leonardo Silva, executado por policiais militares no dia 17 de abril de 2012 durante a ocupação que antecedeu a instalação da UPP da Rocinha103: tal morte só veio à tona após estourar o escândalo do desaparecimento/morte do pedreiro Amarildo. Nos últimos 5 anos, ainda que tenha sido comemorada (especialmente por parte do governo, mas não só) a queda do

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Uma descrição da morte de Hugo Leonardo está disponível no site da Rede contra Violência, através do endereço: .

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número de registros de mortes decorrentes de ações policiais104, incursões e operações violentas continuaram marcando o cotidiano das favelas e periferias no estado do Rio de Janeiro – incursões essas que tiveram como resultado a morte de moradores, da mesma forma como aconteceu em 2003 no Borel, em 2005 na Baixada, em 2007 no Alemão e em tantas outros territórios marcados por sua condição de margem, no sentido proposto por Das e Poole (2004), anunciado na introdução desta tese. Casos emblemáticos ocorridos em 2009, como a execução de Josenildo dos Santos e mais 5 pessoas no Morro da Coroa105, no Centro, ou a execução de Maxwill dos Santos em Cinco Bocas, Brás de Pina, correspondem a 7 dos 1.048 registros de auto de resistência realizados naquele ano106. A incursão que deixou dois moradores mortos, sendo que um deles estava com o filho no colo (e o menino, de 5 anos, foi atingido na mão), na Nova Holanda, em 2010, nos lembra que ainda há aquelas situações nas quais as mortes provocadas por agentes de estado não são registradas enquanto “auto de resistência” – visto que nesse caso, os policiais produziram o registro de ocorrência alegando terem chegado após a denúncia de um confronto entre facções rivais, tendo então prestado socorro às vítimas (sem precisarem justificar a autoria daquelas mortes).

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É fundamental registrar que foi divulgado recentemente o aumento do número de “mortes em confronto” (classificação utilizada para a divulgação dos dados do levantamento realizado pela Coordenadoria de Inteligência da PM) – em 2012, foram 312 mortes; em 2013, 347. As informações foram divulgadas pelo Jornal EXTRA, em 11/01/2014, através da matéria “Em um ano, confrontos entre PM e bandidos aumentaram 28,8% no estado do Rio”. Disponível em < http://oglobo.globo.com/rio/em-um-ano-confrontos-entre-pm-bandidos-aumentaram-288-no-estadodo-rio-11271419#ixzz2qAUciy7n>. Considero válido observar também que as quedas dos registros de “autos de resistência” a partir da instalação das UPPs, além de virem acompanhadas pelo aumento do número de “desaparecimentos” (a discussão sobre esses registros estatísticos está contemplada no capítulo 4), é importante lembrar que a queda do número de mortes ainda está longe de atingir uma marca que corresponda a um posicionamento político diferente em relação às populações residentes em favelas. Desde 2007, o número de registros de “auto de resistência” caem, mas em 2009, a marca era de 1.048 mortes, em 2010, 854, em 2011, 526, em 2012, 312 e agora com a divulgação relatada acima, em 2013 foram registradas 347 mortes sob a mesma rubrica (dados do ISP). São 3.087 mortes no total, desde 2009 (contando a partir do primeiro ano inteiro com uma UPP instalada) – logo, um número que mesmo se não tivesse deixado de cair, não poderia ser comemorado. Trata-se, para pensarmos em termo de impacto político, de um número de mortes maior do que o número total de mortos na queda das torres gêmeas do World Trade Center em 2001 – episódio alocado entre as grandes tragédias da contemporaneidade (morreram 2.996 pessoas no episódio, incluindo equipes de resgate, sequestradores, pessoas que estavam no Pentágono e demais vítimas fatais fora do próprio WTC, segundo dados disponibilizados em ). 105 Ver tabela sobre os casos de violência institucional mencionados neste capítulo, no anexo 1. 106 O número de registros de auto de resistência corresponde a dados divulgados pelo ISP. Os relatos do caso da Coroa e do caso de Brás de Pina estão disponíveis através dos seguintes endereços: e , respectivamente.

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O desenvolvimento da investigação, no entanto, desmontou essa versão – as duas vítimas fatais daquela incursão (Paulo Cardoso Batalha e Deividson Evangelista Pacheco) foram atingidas por disparos efetuados por policiais militares que participaram da incursão, mas essas mortes não entraram na lista das 854 “mortes em confronto” contabilizadas e divulgadas pelo Instituto de Segurança Pública. Mas, como já anunciado, os processos de como ocultar ou não informações sobre as mortes dos moradores de favelas provocadas por agentes de estado serão discutidos de forma mais detida no capítulo 4. Este primeiro capítulo foi construído no intuito de apresentar parte das estratégias de visibilidade elaboradas entre 2003 e 2013 pelos familiares das vítimas, movimentos sociais e outros coletivos políticos articulados a esses familiares, bem como organizações não-governamentais, para pautar essas mortes dos moradores de favelas enquanto mortes ilegítimas – na produção da contrainformação e da contra-imagem em relação à forma de apresentação pública das mesmas mortes quando alocadas enquanto baixas de guerra por parte dos chefes de Estado. Encerro, portanto, o capítulo, trazendo dois dos 15 casos de mortes em favelas onde foram instaladas UPPs para os quais foram elaboradas estratégias de visibilidade que somaram os alcances das redes sociais com manifestações nas ruas. Atualmente há registros sobre 15 casos de moradores de favelas mortos por policiais em favelas nas quais foram instaladas UPPs. Entre maio e junho de 2013 elaboramos, na Justiça Global, um informe para ser enviado à relatoria de Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais da ONU, relatando os casos que haviam sido publicizados até aquele momento. Abaixo segue a lista com os demais casos, ocorridos/divulgados após o envio do Informe da Justiça Global: 1. André de Lima Cardoso Ferreira (12/06/2011 – Pavão-Pavãozinho); 2. Jackson Lessa dos Santos (07/06/2012 – Morro do Fogueteiro); 3. Thales Pereira Ribeiro D’Adrea (25/06/2012 – Morro do Fogueteiro)107;

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Durante a elaboração do Informe enviado à ONU, pela Justiça Global, observamos que um dos casos de homicídio ocorrido no morro do Fogueteiro durante ação do BOPE naquela favela “explicitava ainda mais as fragilidades deste programa de “pacificação” implementado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. As possibilidades de intervenção de diferentes unidades da PMERJ – seja através do Batalhão de Operações Especiais, o Batalhão de Policiamento de Choque ou batalhões de área – ou de unidades da

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4. Paulo Henrique dos Santos Benedito (20/03/2013 – Cidade de Deus); 5. Mateus Oliveira Casé (17/03/2013 – Vila Turismo/Manguinhos); 6. Aliélson Nogueira (04/04/2013 – Jacarezinho); 7. Diogo de Oliveira Santos (08/06/2013 - Providência); 8. Anderson dos Santos Moura (15/06/2013 – Morro do Querosene); 9. Amarildo Dias de Souza (14/07/2013 – Rocinha); 10. Laércio Hilário da Luz Neto (14/08/2013 – Parque Proletário); 11. Israel de Oliveira Malet (28/08/2013 – Jacarezinho); 12. Paulo Roberto Pinho de Menezes (17/10/2013 – Manguinhos); 13. Thomas Rodrigues Martins (24/10/2013 – Pavão-Pavãozinho); 14. Wellington Sabino Vieira (05/01/2014 – Mangueira); 15. Petrick Costa dos Santos (18/01/2014 – Cantagalo).

Dentre esses casos, destaco agora o de Mateus Oliveira Casé, não só por ter se tornado emblemático na luta contra o extermínio da juventude negra e favelada, mas também por se tratar de uma morte que evidencia o potencial de letalidade inerente à presença militarizada do Estado nas favelas – seja uma incursão do BOPE utilizando caveirão, seja uma ocupação associada ao rótulo da “pacificação” na qual os agentes sejam orientados a utilizar armamento não-letal. Cito o relato do caso contido no Informe que a Justiça Global enviou à ONU, visto que o processo de elaboração do mesmo contou com a consultoria de integrantes do Forum Social de Manguinhos – coletivo que, por estar diretamente conectado às resistências à ocupação militarizada

Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro como a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) nos territórios onde foram instaladas UPPs podem ser alocadas no conjunto de incertezas relativas aos regimentos de governamentalidade produzidos a partir da implementação deste projeto de “pacificação””.

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das favelas, atua dentro e fora de Manguinhos e acompanhou de perto o caso do homicídio de Mateus. Na madrugada do dia 17 de março, policiais da Unidade de Polícia Pacificadora de Manguinhos abordaram o jovem Mateus Oliveira Casé, de 16 anos, nos arredores da Praça Américo Junior, na localidade de Manguinhos conhecida como Vila Turismo. Mateus estava com um grupo de amigos quando uma viatura utilizada pela UPP local parou e um dos policiais que estava dentro da viatura, que segundo testemunhas teria se desentendido com Mateus dias antes do ocorrido, disse “olha quem caiu na minha mão”. Ao ouvir o policial, Mateus correu e foi atingido pelo disparo da arma Taser que estava sendo utilizada por aqueles agentes da UPP local, sendo eletrocutado, caindo e batendo com a cabeça no chão. Os policiais disseram pra uma amiga dele que após duas horas Mateus iria acordar e sairam sem prestar socorro à vítima. Os moradores de Vila Turismo levaram Mateus à UPA (unidade de pronto Atendimento) de Manguinhos, onde veio a falecer. Segundo a versão da Polícia Militar, divulgada através da acessoria de imprensa das Unidades de Polícia Pacificadora, havia sido realizada apenas uma revista de rotina em Mateus. Também consta da nota institucional informação curiosa a respeito da utilização da arma de eletrochoque: “A informação de truculência policial sob o uso do equipamento de choque Taser é improcedente haja vista que a unidade ainda não dispõe deste tipo de equipamento não letal. De acordo com médicos da UPA, o jovem não apresenta nenhuma marca de violência no corpo, consequência do uso deste tipo de equipamento”. O posicionamento público desta unidade da Polícia Militar a respeito da arma Taser revela a ausência de controle não só das ações dos agentes que vem atuando nas UPPs, como do próprio equipamento que vem sendo utilizado por esses policiais em suas rotinas de trabalho nas favelas ocupadas. Ao circularmos por Manguinhos e outras favelas nas quais foram instaladas UPPs, podemos ver alguns policiais portando a pistola Taser, facilmente reconhecida por seu formato e sua cor amarela – características da Taser X26, um tipo específico de “Dispositivo Eletrônico de Controle” cujo atrativo é seu alto “poder de incapacitação” da vítima. Se, como informa a nota institucional, tal unidade de policiamento ainda não “dispõe deste tipo de equipamento não letal”, conclui-se que o mesmo vem sendo adquirido pelos policiais e utilizado de forma rotineira sem que haja nenhuma regulação a respeito. O caso do Mateus Oliveira Casé revela que esta prática extra-legal dos agentes da Polícia Militar que atuam nos territórios de favela e periferia não acontece somente quando se trata de armamento não letal. Durante manifestação dos moradores após a notícia da morte de Mateus, policiais utilizaram pistolas calibre ponto 40, de uso particular, efetuando disparos em direção à população – ação registrada em vídeo por cinegrafista de telejornal carioca. A ação também foi marcada pela utilização de bombas de efeito moral e spray de pimenta, além de agressão física. Ainda durante a manifestação, familiares e vizinhos de Mateus ouviram os policiais gritarem com as mulheres que estavam no local que elas eram faveladas e vagabundas e que era pra elas irem pra

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casa. Foi aberto um Inquérito Policial Militar e três dos policiais envolvidos na ação foram afastados.108

A morte de Mateus foi divulgada via Facebook109 por moradores de Manguinhos e de outras favelas, integrantes de organizações e movimentos sociais, além de amigos e conhecidos de todos esses, já que os compartilhamentos amplificam as informações de forma muito rápida nessa rede social. Dentre os coletivos mais atuantes nessa divulgação, destaco o Fórum Social de Manguinhos110 e o Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro111 – coletivos que têm pautado de forma séria o debate contra a criminalização e o extermínio da juventude negra. Parte dessa agenda de luta foi surpreendida pela morte de Mateus, que, foi sucedida pela morte de outro jovem, também morador de uma favela na qual havia sido instalada uma Unidade de Polícia Pacificadora: no dia 04 de abril de 2013 (menos de um mês depois da morte de Mateus), Alielson Nogueira foi morto por agentes da UPP local durante a repressão de uma manifestação que os moradores do Jacarezinho realizavam por conta das arbitrariedades que vinham sendo cometidas pelos policiais militares alocados naquela unidade. No dia 06 de abril de 2013, o Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro publicou através da sua página no Facebook uma convocação para duas atividades conectadas, mencionando as mortes de mateus e Alielson, como mostra o texto que acompanhou a imagem postada: Som@s jovens, negr@s e favelad@s: Queremos viver! Quem deveria proteger, esta oprimindo e matando as/os jovens. Nas ultimas semanas, foram noticiados os assassinatos de 2 jovens por policiais de UPPs. Além, 108

O relato do caso de Mateus foi produzido pela equipe do programa de Violência Institucional e Segurança Pública da ONG Justiça Global, em diálogo estreito com integrantes do Fórum Social de Manguinhos (que ouviram relatos de testemunhas que estavam com Mateus no momento da abordagem), e também com membros da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, além de informações disponibilizadas em notícias de jornal. O vídeo citado no relato está disponível para visualização através do link: link . 109 “O Facebook é um site e serviço de rede social operado e de propriedade privada da Facebook Inc. criado em 2004 nos EUA por Mark Zuckerberg e colegas de faculdade. Em outubro de 2012 o Facebook tinha 1 bilhão de usuários ativos.” (Lanes, 2013). 110 A página do Fórum Social de Manguinhos no Facebook pode ser visualizada através do endereço < https://www.facebook.com/forumsocialdemanguinhos>. 111 A página do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro no Facebook pode ser visualizada através do endereço < https://pt-br.facebook.com/forumdejuventuderj>.

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de inúmeros casos de violência policial contra @s jovens, negr@s e pobres que ocorrem diariamente. Venha discutir e protestar contra o extermínio da juventude negra moradora de favela. BASTA DE EXTERMÍNIO DA JUVENTUDE NEGRA! Participe!

Figura 23: Material de convocação / Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro. 2013.

No dia 09 do mesmo mês, véspera da primeira atividade convocada pelo FJRJ, outra convocação foi publicada, enfatizando a importância da participação dentro e fora das redes sociais112. Tanto esta quanto a convocação anterior também foram elaboradas de forma a evidenciar que não se trata de qualquer juventude – é a juventude negra e favelada que tem sido atingida pelas políticas de segurança pública implementadas no estado do Rio de Janeiro e, enquanto as divulgações técnicas dessa informação são feitas a partir de gráficos e tabelas, os integrantes do Fórum de Juventudes o faz inserindo seus próprios retratos no material da convocação.

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Para uma análise recente sobre as articulações políticas de jovens moradores de favelas e o uso das novas tecnologias de comunicação no contexto da luta contra a presença repressora do Estado nas Favelas, ver Lanes (2013). A pesquisadora explora o caso do Ocupa às 9 (atividade simultânea ocorrida no Morro do Borel e no Morro do Alemão, em protesto contra o toque de recolher imposto por agentes das Unidades de Polícia Pacificadora instaladas nas respectivas favelas). Consdero o estudo fundamental para pensarmos no uso das novas tecnologias de comunicação no contexto de denúncias de violações cometidas por agentes de estado durante ocupações militarizadas de favelas e periferias urbanas – visto que o registro fotográfico e audiovisual das situações de abordagem agressiva e repressão estatal nas favelas vem sendo realizados com cada vez mais cuidado pelos próprios moradores, seja com equipamentos mais simples – como as câmeras de seus celulares – seja com equipamentos profissionais, adquiridos por quem trabalha no campo da fotografia, do cinema, da comunicação popular, das mídias alternativas em geral.

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Chegou a hora de Ocuparmos a Rua, no caso à Pça da Vila Turismo em Manguinhos a partir das 18h. Vamos mostrar que as Juventudes Negr@s de Favelas lutam por seus Direitos!!! Cheguem Junto!!! Chegou a hora da mobilização através das Redes Sociais se transformar em gente nas ruas!!!

Durante a atividade em Manguinhos, entre um discurso, um rap e um funk, foram confeccionados cartazes para serem levados pra atividade de ocupação da Secretaria de Segurança Pública. A convocação do Fórum de Juventudes funcionou para ambas as atividades – apesar de nenhuma ter contado com um número tão expressivo de participantes, estiveram presentes em Manguinhos e na Central do Brasil moradores de diferentes favelas da cidade, integrantes de coletivos políticos como o Favela Não se Cala e a CAMTRA – Casa da Mulher Trabalhadora, jovens que organizaram o Ocupa Alemão113, representantes de diferentes organizações que atuam no campo de defesa dos direitos humanos, além do próprio Fórum Social de Manguinhos, obviamente. Tais atividades, no entanto, aconteceram antes de junho de 2013. Nos limites desta tese, não há como explorar nem integral, nem parcialmente a complexidade das manifestações, assim como não é possível concentrar a atenção nas formas violentas de repressão das mesmas por parte da Polícia Militar. No entanto, seria negligente da minha parte deixar de registrar, ao menos, alguns episódios, bem como algumas ações e resistências que, no momento mesmo em que acontecem, já fazem parte da reflexão. Me refiro especialmente à Chacina da Maré e ao desaparecimento/assassinato de Amarildo Dias de Souza e às ações de resistência popular relacionadas a ambos os casos. No início da noite de 24 de junho de 2013, agentes do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar, entraram na Nova Holanda, uma das favelas da Maré, com blindados e fuzis, para realizar uma operação que duraria toda a madrugada e uma parte da manhã do dia 25. Também participaram da ação agentes do Batalhão de Policiamento de Choque (BPCHq) e do Batalhão de Ações com Cães (BAC), além de agentes da Força Nacional de Segurança114. Durante a operação um sargento do BOPE foi baleado e morreu. Na manhã do dia 25, foram contados nove moradores mortos por agentes da PMERJ. “A ação criminosa era intensa e o BOPE agiu dentro dos parâmetros

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Para uma análise desta atividade, ver Lanes (2013). As informações foram divulgadas pelo site G1, através do endereço < http://g1.globo.com/rio-dejaneiro/noticia/2013/06/policia-diz-ter-prendido-suspeito-de-matar-agente-do-bope-na-mare-rio.html>. 114

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legais”, afirmou o subcomandante do BOPE que comandou a operação, em entrevista ao RJTV115. A Chacina da Maré, no entanto, não seria o único episódio que marcaria a continuidade da presença violenta do Estado nas favelas do Rio – estejam elas em territórios onde foram instaladas UPPs ou não. No dia 14 de julho, o pedreiro Amarildo Dias de Souza estava limpando peixe na porta de sua casa, na favela da Rocinha, quando foi detido por agentes da Unidade de Polícia Pacificadora local e levado até sua sede. Assim se configurou o caso mais recente – e de maior repercussão em se tratando de um morador de favela – de desaparecimento forçado116 no estado do Rio de Janeiro. Desde a Chacina de Acari117, nenhum caso de desaparecimento de moradores de favelas havia adquirido tanta repercussão nacional e internacional como este. Ao longo das investigações, diversas campanhas e posicionamentos públicos cobrando das autoridades explicações sobre tal desaparecimento e apoiando a família de Amarildo tomaram as redes sociais e as ruas. Amarildo tinha 43 anos, era casado e tinha 6 filhos. Além deles sete, sua sobrinha e sua irmã também se tornaram ícones de uma luta que não se limita ao caso do desaparecimento forçado de Amarildo. A partir deste caso, tem sido tematizada, debatida, ilustrada, musicada e gritada nas ruas a opressão dos moradores de favelas no Rio e no Brasil, a violência institucional que atinge as favelas e os efeitos devastadores da presença militarizada do estado nesses territórios118.

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A entrevista está disponível através do endereço . O subcomandante ainda afirmou que “Qualquer desvio de conduta do policial tem que ser encaminhado às nossas ouvidorias, corregedorias, estamos lá à disposição abertos a receber qualquer queixa e qualquer denúncia. A Polícia Militar vai fazer seu processo investigativo e se teve desvio, se teve problemas, as pessoas serão responsabilizadas. Quanto à truculência, quanto a isso, são visões. Nós agimos dentro de um momento em que estávamos sendo atacados por criminosos. Tanto é que o resultado é que temos ali uma farta quantidade de armamento, de drogas e munição apreendidas, além de carros, veículos, ou seja, os números de apreensões vão falar pela ação que nós tivemos contra nossas patrulhas”. 116 Sobre a categoria “desaparecimento forçado” e casos de moradores de favelas e periferias que se assim se enquadram, ver Araujo (2012). 117 No episódio conhecido como “chacina de Acari”, em julho de 1990, oito jovens e três adultos moradores dessa favela foram assassinados, em um sítio em Magé, por policiais civis e militares. Para os desdobramentos deste episódio e da luta das mães das vítimas por justiça, ver Araújo (2007; 2008; 2012) e também Birman e Leite (2004). 118 Dentre as diferentes manifestações realizadas a partir da notícia do desaparecimento de Amarildo – todas impulsionadas também pela amplificação dos protestos a partir de junho de 2013 em todo o país – destaco a que aconteceu em 22 de agosto (uma articulação entre coletivos do Rio de Janeiro com o

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Nas redes sociais passaram a circular fotografias, enviadas de diferentes lugares do mundo, de pessoas apoiando a luta segurando cartazes com a hashtag119 #cadêoamarildo? – frase que foi traduzida em muitas línguas e também passada a ser conjugada no plural contemplando as diferentes pessoas desaparecidas em contextos políticos atravessados pela violência de estado120. A hashtag também foi utilizada para compor artes gráficas diversas, produzidas tanto para circular na internet, como para ser impressa em papel e exibida durante as manifestações nas ruas. Um exemplo de concisão e intercâmbio entre as redes sociais da internet e as manifestações nas ruas é a arte produzida pelo designer gráfico André Buika121, que acionando a referência á silhueta do rosto de Amarildo, preencheu o correspondente a uma tarja nos olhos com #somostodosamarildo – outra hashtag que tomou as redes a partir do desaparecimento em questão.

Movimento Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta (Bahia), para a organização da Marcha Nacional contra o Genocídio do Povo Negro, que foi realizada na cidade de Salvador e na cidade do rio de Janeiro e que também teve reedições em outras capitais) quando amigos de um dos filhos de Amarildo levaram para o início do ato a gravação de um funk composto por eles sobre o desaparecimento em questão. Todos os familiares de Amarildo que estavam presentes cantavam o funk nos momentos em que o sistema de som da atividade o colocava para intercalar as falas. A música também foi divulgada pelo grupo na internet e pode ser escutada através do endereço . 119 Em seu estudo sobre o uso de novas tecnologias de comunicação por coletivos de jovens moradores de favelas e periferias do Rio de Janeiro, Lanes (2013), aciona a seguinte definição para hashtag: “Hashtags são palavras-chave antecedidas pelo símbolo "#", que designam o assunto o qual está se discutindo em tempo real no Twitter e também foi adicionado ao Facebook e Instagram. As hashtags viram hiperlinks dentro da rede e indexáveis pelos mecanismos de busca. Sendo assim, usuários podem clicar nas hashtags ou buscá-las em mecanismos como o Google para ter acesso a todos que participaram da discussão. As hashtags mais usadas no Twitter ficam agrupadas no menu Trending Topics, encontrado na barra lateral do microblog”. Lanes observa que “o uso de hashtags têm sido incorporado como forma de dar visibilidade pública para assuntos sociais e políticos em contextos de militância”. 120

A hashtag #cadêoamarildo?, no mês seguinte ao desaparecimento, chegou a atingir os trending topics de Rio de Janeiro, São Paulo e Brasil, no Twitter (informação disponível na matéria “Declaração de ministra dos Direitos Humanos sobre caso Amarildo repercute no Twitter”, disponível em ). Os trending topics (TTs), correspondem aos assuntos mais comentados nesta rede social e, nos estudos de mídia, trata-se de ferramenta importante para a medição e avaliação de diferentes estratégias de comunicação e publicidade. Em se tratando de campanhas políticas como #cadêoamarildo?, trata-se de uma ferramenta que possibilidade refletir sobre o engrandecimento da denúncia, nos termos trabalhados por Boltanski (1990). 121 O trabalho do designer pode ser visualizado em sua página do Facebook, através do endereço: .

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Figura 24: #somostodosamarildo/ Design: André Buika – 2013.

Um material contendo a frase Onde estão os Amarildos? traduzida em 27 idiomas foi produzida pela página homônima do Facebook122, sendo divulgada e utilizada enquanto “capa” dos perfis das páginas pessoas da rede social, expressão significativa – em se tratando do ambiente virtual – dos posicionamentos políticos dos usuários. Lembrando que o cartaz bilíngue em formato de pirulito confeccionado em 2003 virou capa de revista e primeira página de jornal em 2005, em 2013 o acionamento de outros idiomas acompanha a extensão do próprio suporte escolhido: uma capa de Facebook.

Figura 25: Capa de Facebook / Página Onde estão os Amarildos? – 2013.

122

O endereço da página no facebook é .

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A pergunta “Cadê o Amarildo?” ainda se espalharia de muitas outras formas naquele ano de 2013 e as pressões por respostas sobre o desaparecimento tiveram seu primeiro retorno em menos de 3 meses. No início de outubro foi concluído o inquérito do caso de desaparecimento forçado de Amarildo e entregue ao Ministério Público pela Delegacia de Homicídios: Amarildo havia sido torturado até a morte dentro de um container da UPP da Rocinha por agentes da unidade; técnicas como choques elétricos e asfixia fizeram parte da sessão de tortura. Dez policiais militares foram indiciados por tortura seguida de morte e ocultação de cadáver123. Ao longo das manifestações amplificadas a partir de junho de 2013, o grito “Ei, polícia, cadê o Amarildo?” foi desdobrado em diferentes suportes imagéticos e pautado em diversas manifestações, mesmo naquelas (poucas) nas quais esse desaparecimento não ocupasse o conjunto de bandeiras prioritárias. Um dos coletivos políticos que se destacou durante as manifestações ocorridas no Rio em 2013 a partir da utilização da técnica da projeção no espaço público como tecnologia de protesto rapidamente elaborou projeções sobre o desaparecimento de Amarildo, fazendo com que os trânsitos entre a postagem das imagens nas redes sociais, a projeção da mesma imagem nas ruas e depois o compartilhamento da fotografia da projeção da imagem nas ruas alimentasse uma espiral dinâmica de formas de pautar as mortes dos moradores de favelas a partir do desaparecimento forçado do pedreiro Amarildo. Dentre os locais escolhidos por este coletivo – denominado Coletivo Projetação124 – para projetar esse tipo de informação, tornou-se ação emblemática durante o Ocupa Cabral125 a projeção de imagens e textos no edifício de esquina da Avenida Delfim Moreira com a Rua Aristides Espínola, no Leblon.

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“Amarildo foi torturado por policiais até a morte, aponta inquérito”, Revista Fórum, edição de 02/10/2013, disponível em < http://revistaforum.com.br/blog/2013/10/esta-noticia-nao-e-de-1968amarildo-foi-torturado-por-policiais-em-unidade-da-upp/>. 124 O endereço da página do coletivo no Facebook é . 125 Ocupação realizada durante as manifestações de 2013, no Leblon, nas esquinas da Avenida Delfim Moreira e da Rua Aristides Espínola, em frente à residência do governador Sergio Cabral. Segundo a apresentação pública do coletivo, disponibilizada em sua página do Facebook, o Ocupa Cabral se define como “um movimento de jovens políticos, supra-partidários e com um objetivo. Ocupar para cobrar e cobramos para mudar. Mudar o rio, não pelas nossas mãos, mas pelos diretos do povo. O direito de ter um RIO melhor”. O endereço da página do Ocupa Cabral no Facebook é < https://ptbr.facebook.com/ocupamoscabral>.

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Figura 26: Somos todos Amarildo / Arte e foto: Coletivo Projetação – 2013.

As projeções do coletivo não tinham como pauta única o desaparecimento de Amarildo, muito pelo contrário – o Projetação se destacou durante as manifestações amplificadas a partir de junho de 2013 tanto pelo potencial criativo da equipe, quanto por conseguir condensar, em frases objetivas, bandeiras e reivindicações de diferentes campos de luta, constribuindo assim para a configuração de uma espécie de estética da agenda unificada em 2013. No entanto, como o foco deste trecho da discussão é o desaparecimento forçado de Amarildo e a elasticidade deste caso enquanto ícone da luta contra a violência de estado nas favelas, destaco a seguir imagens de projeções do coletivo construpidas a partir deste eixo temático.

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Figura 27: Arte e foto: Coletivo Projetação, Rio de Janeiro – julho de 2013.

Figura 28: Arte e foto: Coletivo Projetação, São Paulo – outubro de 2013.

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Figura 29: Arte e foto: Coletivo Projetação, São Paulo – outubro de 2013.

Figura 30: Arte e foto: Coletivo Projetação, São Paulo – outubro de 2013.

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As três últimas imagens correspondem a momentos da participação do Coletivo Projetação na X Bienal de Arquitetura de São Paulo126. Em mensagens objetivas, está condensado o limite do impacto do formato UPP das ocupações militarizadas das favelas do Rio de Janeiro via o desaparecimento forçado de Amarildo, recortes específicos de uma composição política ampla, unificada no grito “Fora Cabral” e na demanda pela desmilitarização. Na última fotografia das projeções exibidas anteriormente, ao lado do “Fora Cabral” é possível ver uma parte da charge do Latuff escolhida em 2008 para a construção do outdoor censurado. A mesma charge foi escolhida para ilustrar uma petição on line pela desmilitarização das polícias no Brasil, elaborada pelo coletivo Mães de Maio (SP)127, em 2012.

Figura 31: Print Screen – Petição online pela desmilitarização das polícias do Brasil.

No contexto das manifestações de 2013, a petição voltou a circular amplamente pelas redes sociais – e como ícone da demanda, novamente estava lá a imagem em primeiro plano da mulher negra, com seu filho negro morto nos braços e ao lado um agente de estado vestido de preto, segurando o fuzil com a mão direita, enquanto em segundo plano aparece de um lado, a favela e do outro lado, o caveirão. Até o fechamento desta tese, a página da petição contava mais de 19 mil assinaturas.

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Para mais informações, ver . A atuação deste coletivo fundado no Estado de São Paulo em 2006 é abordada no capítulo 2 desta tese. 127

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Capítulo 2. Discutindo um enquadramento de morte por dentro do Estado

Licença pra matar, eu tô ligado Dr. Cabral deu ordem pra matar geral Não vou ficar parado A lei agora simplesmente é nos matar Porém sem hesitar A ordem é nos liquidar Us Neguin q Não C Kala e Família Kponne, Lágrima de Sangue

Se, durante a década de 90, é legitimada a metáfora da guerra (Leite, 2000) enquanto motor das políticas de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, na década seguinte tal orientação política seria alimentada, então, por novas tecnologias de repressão e controle – parte delas apresentadas no capítulo anterior através das declarações públicas de diferentes autoridades. As interpretações que acionam a ideia de “confronto” são expressadas através de entrevistas a jornalistas e pesquisadores, em especial quando os respectivos chefes e agentes de estado são questionados sobre episódios nos quais as ações e intervenções governamentais se caractarizam pelo uso excessivo da força nos territórios de favelas e periferias em questão. Entre o ano da Chacina do Borel e o ano da Chacina da Maré – marcos temporais para os 10 anos mapeados no capítulo anterior a partir das estratégias de visibilidade produzidas por familiares, movimentos sociais, organizações e coletivos políticos para pautar as mortes dos moradores de favelas no espaço público – consolidaram-se novas argumentações a favor da política de confronto. No centro desta política, um enquadramento específico para as mortes provocadas por agentes de estado voltou a chamar atenção e a ser questionado128 de forma mais enfática, tanto por movimentos

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No ano de 1997, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) publicou os dados de uma pesquisa acerca da letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Coordenada por Ignacio Cano, atualmente pesquisador do Laboratório de Análises da Violência da UERJ e professor na mesma universidade, a pesquisa havia sido encomendada pela Comissão de Segurança Pública e pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. A demanda foi motivada pelo fato de ter se estabelecido - após uma série de matérias divulgadas pelo Jornal do Brasil (de 7 a 16 de abril de 1996) - uma ligação entre o aumento do número de mortos por “Autos de Resistência” e a gratificação por bravura instituída por decreto em novembro de 1995 (período em que Nilton Cerqueira ocupava o cargo de Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro), período já mencionado no capítulo 1.

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sociais e organizações de defesa de Direitos Humanos, quanto por instâncias governamentais cujas áreas de atuação também se concentram no campo dos Direitos Humanos. Para a elaboração deste capítulo, portanto, são acionadas situações nas quais o registro do “auto de resistência” – já anunciado na introdução e no primeiro capítulo enquanto um enquadramento produzido no interior das engrenagens estatais para as mortes discutidas nesta tese – é transformado em alvo de críticas e encaminhamentos mais concretos por parte da própria institucionalidade governamental. Como demarcações situacionais para a discussão aqui proposta, foram escolhidos dois encontros entre representantes do poder público e da sociedade civil organizados por instâncias do governo estadual e do governo federal: uma das audiências públicas realizadas pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2009, para discutir o registro “auto de resistência” e uma reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), em 2012, para a aprovação da resolução que recomendaria o fim da utilização dos registros “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” em todas as unidades federativas do Brasil. Antes da descrição analítica desses dois encontros, no entanto, realizo uma apresentação do registro de “auto de resistência” situada a partir do enfoque daqueles que tiveram que lidar diretamente com esse registro a partir do dia em que a morte de um parente seu foi justificada em um documento numa delegacia do Rio de Janeiro como tendo sido resultado de um confronto armado, ocorrido em função da resistência da vítima diante da autoridade policial.

2.1 Entendendo o auto de resistência a partir dos familiares de vítimas “Eu, Solange Vieira Gonçalves, mãe da vítima fatal Gustavo Vieira Afonso, executado por PMs do Estado do Rio de Janeiro, venho através desta carta direcionada ao Ministério Público do Rio de Janeiro, mostrar as minhas indignações. [...] tudo o que eu pude fazer para trazer a luz da verdade eu fiz, a verdade do que aconteceu naquela tarde de 22 de novembro de 2003, com aquele menino pobre, negro, favelado e que era um “Zé ninguém” para os policiais. Continuo achando que estou realizando tarefas que uma mãe de vítima não deveria estar realizando, afinal são tarefas que deveriam estar sendo desempenhadas pelas instituições públicas deste país. Não sei 85

quanto tempo ainda vou ter que esperar para que a justiça seja feita, para que os culpados sejam punidos. Os policiais respondem com convicção da impunidade, assumem a responsabilidade da declaração do auto de resistência, mas há muito tempo diferentes instituições que trabalham com a defesa dos Direitos Humanos mostram que o auto de resistência é utilizado para retirar a responsabilidade dos policiais que executam pessoas inocentes em favelas. Eu sei que meu filho foi executado com um tiro no coração. Ele não resistiu a nada e não estava armado para ter acontecido uma resistência armada, que seria a situação que poderia caracterizar o auto de resistência. Eu quero justiça”.129

Solange, integrante da Rede contra Violência desde suas primeiras articulações, redigiu esta carta cinco anos após a execução do seu filho, em meio a outros documentos produzidos por ela para serem entregues aos órgãos que poderiam intervir nos encaminhamentos da investigação do caso e na abertura do processo judicial do mesmo. O documento é acionado por condensar aspectos determinantes das mortes dos moradores de favelas provocadas por agentes de Estado, evidenciando o posicionamento de uma mãe de vítima de violência institucional em relação ao registro do auto de resistência. Na descrição do registro apresentada por Solange, um movimento determinante para as investigações e para o encaminhamento judicial dos casos de execução em favelas é explicado com bastante propriedade: ao mesmo tempo em que assumem a responsabilidade na declaração do auto de resistência, é a partir do mesmo registro que os policiais se protegem da acusação do homicídio. Desde 2004, quando comecei a acompanhar as atividades da Rede contra Violência, as críticas dos familiares de vítimas e demais integrantes do coletivo a respeito do registro do auto de resistência marcavam tanto debates internos, quanto atividades públicas nas quais eram pautadas as bandeiras centrais de sua luta contra a violência de Estado nas favelas. No entanto, considero que a campanha lançada pelo Movimento Mães de Maio (SP)130 certamente é a expressão mais concreta da articulação de forças

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Carta elaborada em agosto de 2008, a mim disponibilizada pela autora. Os nomes da vítima e de sua mãe, bem como a data da execução foram substituídos, por se tratar de documento que não foi incorporado ao processo judicial, nem publicizado por outras vias. 130

Sobre o Movimento Mães de Maio, ver Movimento Mães de Maio (2011; 2012). Para uma abordagem sociológica sobre violência de Estado na periferia de São Paulo na qual os Crimes de Maio são abordados, ver Feltran (2011).

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entre os movimentos sociais e coletivos formados majoritariamente por familiares de vítimas de violência institucional. Divulgada através de um abaixo assinado que veio ao público em fevereiro de 2012, no qual se exigia fim de tais registros, a campanha era apoiada pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos e contava com material gráfico que o Movimento Mães de Maio utilizava nas diferentes manifestações públicas das quais participava. Além do próprio Movimento Mães de Maio (SP), a abertura da lista de assinaturas traz os movimentos Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência (RJ), Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado do Espírito Santo (ES), Campanha Reaja ou será Morto, ou será Morta! (BA), Grupo de Apoio Familiares de Pres@s e Frente AntiPrisional das Brigadas Populares (MG) e Rede Nacional de Familiares e Amig@s de Vítimas do Estado Brasileiro. Na seção a seguir, as palavras de Solange transcritas no início desta seção são reeditadas na voz de outra mãe de vítima de violêcia de Estado. Já não se tratava mais de uma carta, a estratégia desta vez utilizaria também o registro escrito, mas para solicitar a palavra em uma audiêcia pública. Na seção final deste capítulo, a solicitação para falar é substituída por um convite para que uma mãe de vítima realize uma intervenção sobre o registro dos autos de resistência durante uma reunião em Brasília.

2.2 Uma audiência no Rio de Janeiro

Cena 2. [Junho de 2009, Palácio Tiradentes, Praça XV, Rio de Janeiro] Evento agendado com antecedência, sala reservada no Palácio Tiradentes. Da porta estreita de entrada é possível enxergar no fundo da sala um conjunto de cadeiras diferentes das demais: dispostas em linha reta, lado a lado, as três cadeiras ocupam uma espécie de tablado, sendo que a cadeira do meio ocupa um nível mais alto. Esta é a cadeira na qual se senta o presidente da audiência – na ocasião, o deputado Marcelo Freixo. Ao seu lado direito (ainda sobre o tablado), o vice-presidente da audiência, deputado Alessandro Molon. E ao lado esquerdo de Freixo (posição que se tornou motivo de piadas explícitas por parte dos parlamentares), o deputado Flavio Bolsonaro. Nas demais cadeiras, colocadas sobre o chão mesmo, sentam-se todos os que aceitaram o

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convite para aquele evento: tanto os que foram convidados para discorrer sobre o tema da audiência, quanto os outros, que foram convidados para ouvir 131. Para falar sobre o tema da vez – os autos de resistência – estavam presentes o desembargador Sérgio Verani, presidente do Fórum Permanente de Direitos Humanos da EMERJ; a socióloga Patrícia Rivero, do IPEA; a criminalista Roberta Pedrinha, exintegrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB e o sociólogo Ignácio Cano, da UERJ. Todos os quatro, apresentados como representantes da sociedade civil, compuseram o primeiro bloco de explanações da audiência. Em seguida, o presidente da audiência transfere o eixo das explanações para os representantes do poder público: Ninguém aqui tem a pretensão de resolver o problema da segurança pública numa audiência pública na Alerj, mas é um passo fundamental. É um passo fundamental o debate, para que a gente possa daqui tirar encaminhamentos. Não foi por acaso o diálogo com agentes do governo. Nesse sentido, eu quero passar a palavra ao coronel Mario Sergio, que hoje está aqui representando o ISP. Fazendo a justiça – viu, Mario – de que em todos os momentos que essa comissão solicitou a presença do Mario Sergio ou solicitou qualquer informação, foi atendida. E falo isso porque – por mais que o coronel goste de dizer que essa não é mais que a sua obrigação – essa não é uma obrigação cumprida por boa parte do governo, no que diz respeito à casa legislativa, no que diz respeito às presenças ou ao respeito ao legislativo. Então, faço questão absoluta de ser honesto, não é? e dizer que a presença do coronel é freqüente na casa, sempre respondendo a essas demandas.

Atento à anunciação de sua fala, Mario Sergio tanto agradece a gentileza, quanto retoma a questão da importância do diálogo – mas colocado, no entanto, nos moldes de um debate (ou, talvez, de uma disputa):

Excelentíssimo senhor deputado Marcelo Freixo, agradeço as palavras gentis, excelentíssimo deputado Flavio Bolsonaro, é um prazer mais uma vez estar com o senhor aqui nesta casa, senhor deputado Molon, senhoras e senhores presentes... eu vejo aqui vários rostos conhecidos... já há algum tempo venho participando de eventos discutindo as questões da segurança pública do Rio de Janeiro, as interpretações que temos sobre o problema da violência, numa identidade com a segurança pública do Estado. E embora em muitos momentos nos colocando em posições diferentes,

131

A lista de presença do evento foi assinada por vinte e sete ouvintes – visto que nesta lista não entravam as pessoas convidadas para falar, apenas as que foram convidadas para estar lá.

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interpretações diferentes, temos procurado fazer isso com muita lealdade nas nossas posições...é... contrárias.132

A respirada longa, que gera uma pausa antes do pronunciamento da palavra “contrárias”, demarca o início de uma argumentação que, negando inicialmente a disputa, acaba por encaminhar sua construção: Mas eu queria dizer que não exatamente nós vamos estar aqui em posições antagônicas, eu não tenho esta pretensão de iniciar a minha fala em defesa de algo, não é exatamente isso, mas fazer uma análise. Claro que tem aqui uma posição, o pessoal com uma posição aqui quase pessoal, olha com uma profunda identidade o que se faz no Rio de Janeiro, mas eu inicio primeiro com uma concordância: a primeira descrição que me despertou verdadeiramente aqui foi essa afirmação do desembargador Sergio Verani quando ele diz que nós temos que ter uma conversa mais franca, uma conversa muito franca. Nós estamos fazendo isso, exatamente. Nós estamos hoje discutindo um problema existente na cidade do Rio de Janeiro – é lógico que nós temos esta questão pelo Brasil, mas que existe verdadeiramente na nossa cidade: um problema de mortes por conseqüência de confrontos com as forças policiais. Mas, se por um lado eu começo com uma concordância, dizendo que nós temos que discutir isso, por outro eu queria fazer um alerta e esse alerta talvez seja o que vai me colocar numa posição contrária, porque observando algumas expressões e algumas frases que foram ditas aqui, como por exemplo: “ocorre uma limpeza social, uma conspiração social”; “há execuções extrajudiciais”... é... a impressão é de que aquela... a presença das nossas bússolas, das nossas direções ideológicas da idéia, né?, ela tá sempre muito presente. Não obstante, toda a ciência, em que a gente procura atentar os discursos, mas as nossas ideologias e as nossas formas de ver o mundo, que nascem das nossas idiossincrasias, elas vão estar regulando os nossos discursos. Eu queria fazer esse alerta pra isso. O problema dos autos de resistência... eu não posso falar deles sem fazer uma digressão histórica da minha atuação como policial ao longo de quase 30 anos, pra tentar dizer o que eu vi durante todo esse período. Independente de todas as pesquisas, mas... não sem um respeito a elas, eu tenho um respeito a todas as pesquisas, me preocupo muito, a própria pesquisa apresentada pela doutora Patricia, eu assisti ao filme produzido com é... a participação de algumas pessoas que estão presentes aqui nesta sala e com alguns moradores de algumas comunidades [...] eu é... procurei assistir e trazer aquelas informações pro meu mundo. Mas eu preciso falar daquilo que eu vi ao longo de trinta anos. E queria dizer para as senhoras e para os senhores que o quadro hoje, desses últimos vinte anos, é completamente diferente daquele dos primeiros dez anos de profissão, os dez primeiros anos em que eu fui verdadeiramente policial na cidade do Rio de Janeiro. E um fator, que eu considero marcante, fez com que a cidade se transformasse nisso que nós temos hoje, que estamos tentando reverter. Eu considero que a chegada das armas de guerra, no final da década de oitenta, é o que verdadeiramente vem provocando esse quadro 132

Assim como esta marcação, todas as seguintes correspondem a grifos meus.

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de agrestia que acaba promovendo os confrontos da polícia com os criminosos e fomentando todo esse número tão alto de mortes. É... até oitenta, início da década de oitenta, nós tínhamos na mão de criminosos algumas armas mais poderosas, mas nós não tínhamos os fuzis AK-47, os fuzis Hugger, os fuzis de fabricação nacional, como FAL e outras metralhadoras e sub-metralhadoras como nós temos hoje. É essa quantidade enorme que tem, por exemplo, no Complexo do Alemão, estima-se cerca de trezentos fuzis no complexo, que impede que a polícia faça o seu papel policiando essas áreas e não com um aspecto marcadamente invasivo, como se esse, aqueles territórios não pertencessem ao território nacional. É... a doutora [referindo-se à criminalista Roberta Pedrinha] falou aqui sobre a força que foi utilizada para a realização no complexo do Alemão, no ano de 2007. Ora, realmente foi utilizada uma força muito grande porque ao longo de três meses tentouse realizar operações menores e elas foram é... mal sucedidas porque a quantidade de armas, o enfrentamento que foi realizado naquele período, não se permitiu a entrada dos policiais e a realização das operações que a polícia deveria fazer. Essa é verdadeiramente a realidade que nós temos na cidade do Rio de Janeiro. Nós temos, no Rio, alvos que em Minas nós só vamos encontrar nos cinemas, que é a presença das armas de guerra. Por isso o quadro de Minas Gerais é um quadro que nós não precisamos grande esforço pra entender o diferente. Os policiais em Minas Gerais fazem polícia, eles usam seus revólveres porque vão enfrentar criminosos armados de revólveres também. Em Minas Gerais não há esse quadro dicotômico que temos ora o trabalho policial mais marcadamente no asfalto e daqui a pouco vão enfrentar uma força com características de força de guerrilha, com um comportamento marcadamente militar. Ou alguém duvida que os narcotraficantes que se empoderaram nos seus territórios não tenham um comportamento militar quando se defrontam com as autoridades policiais? Têm. Se comportam como pequenos escalões de infantaria: um homem ponta, segurança e retaguarda e principalmente, com uma vontade de guerra. É bem verdade que o ideal é que não houvesse autos de resistência, bem verdade que o ideal era que nós não tivéssemos esses confrontos, que os policiais não fossem caçados nas viaturas, atacados como são atacados nas ruas. Este seria o quadro ideal pro Rio de Janeiro. Ai que saudade que eu tenho quando eu usava um revolver e um par de algemas. Naquele momento eu era polícia, policial. Mas esse quadro foi mudando. [...] Eu não poderia deixar de fazer, de trazer essas considerações, porque autos de resistências não são cômodos. O ideal é que nós não tenhamos resistência por parte do opositor, o ideal da segurança pública é não ser defendido – e hoje nós estamos trabalhando com a idéia de pacificação. [...] Estamos numa nova fase, uma fase de planos de metas da Segurança Pública, o doutor Ignácio Cano citou esse programa de metas da Segurança Pública, numa fase de pacificação, e a expressão parece que está sendo assimilada por todos, e a expectativa, até porque já está acontecendo, é que nós tenhamos números menores de confrontos. E confrontos com armas, senhoras e senhores, infelizmente trazem os resultados que nós conhecemos bem. [...] Mas o ideal é que nós não tenhamos tudo isso, é que 90

nós possamos, consigamos trazer, voltar o Estado a um quadro de tranqüilidade pública e paz social que interessa a todos nós. Eu vou encerrar minha fala por aqui. Claro que estarei pronto para responder todas as perguntas que as senhoras e os senhores desejarem. Essa é uma fala absolutamente pessoal, embora falando pela Secretaria de Segurança Pública, como representante do Secretário nesta manhã e eu estou pronto para responder as perguntas.

Após a exposição do então presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP), a audiência prossegue através das intervenções de Carmem Bessa, Delegada de Polícia da Sub-Chefia da Polícia Civil e Jorge Abreu, Sub-Corregedor da Corregedoria Geral Unificada. Encerradas as explanações de todos os convidados, o deputado Marcelo Freixo inaugura o momento destinado à realização de perguntas para os representantes do poder público. Logo durante a primeira resposta, uma das mães de vítimas do coletivo “Mães da Cinelândia”133 levanta-se, caminha na direção da presidência da audiência e entrega um bilhete para o deputado Alessandro Molon. O deputado – na condição de vice-presidente daquela audiência – lê o bilhete e balança a cabeça fazendo sinal de afirmação. O direito de fala daquela mãe foi, assim, garantido, sendo anunciado pelo deputado Marcelo Freixo, após as intervenções dos deputados integrantes da CDDHC/Alerj. De pé, ao lado da mesa da presidência da audiência, ela toma a palavra; cumprimenta formalmente todos os presentes, realiza uma apresentação de si a partir dos seus anos de militância, deixando evidente sua competência para discutir o tema da audiência a partir de uma argumentação técnica, ao mesmo tempo que anuncia sua recusa: [...] Prefiro falar uma fala doméstica, uma fala de mãe, uma fala de pessoa que vivencia o auto de resistência. O que é o auto de resistência pro familiar de vítima de violência? Eu sei bem, a Márcia sabe bem que dor é. A dor é igual pra todas as mães, mas quando nós perdemos um ente querido, que nós educamos, que nós tratamos com todo amor, nós queremos vê-lo de uma forma absolutamente dentro da sociedade, de repente alguém tira a vida desse ente querido, se ele nem arma estava portando, e eu respondo aí portanto ao caso do meu filho que foi pego no portão e aos centenas de milhares de casos. O que eu acho interessante é que as estatísticas falam de noventa e sete pra cá. Em noventa e cinco, um tal de general Nilton Cerqueira criou a gratificação faroeste. E com isso, o exemplo do auto de resistência se transformou em lugar comum. Nós tivemos, em noventa e cinco, 1.172 mortes, sendo que 250 ou mais, foi o que o jurista colocou, pelo menos 254 mor* pessoas não tinham nenhuma ligação com tráfico, com nada e morreram. Daí pra cá é uma luta incessante, porque quando 133 *

Sobre a atuação deste e de outros coletivos de mães de vítimas de violência policial, ver Leite (2004). O pronunciamento da palavra “mortos” foi interrompido, sendo pronunciada a palavra “pessoas”.

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você chega numa delegacia e tá lá “auto de resistência” ou “oposição à ordem legal com evento de morte”, tira de você todo o direito de provar a dignidade da nossa família. Por quê? Porque a polícia, quando faz o registro de ocorrência, ela faz com quem está. E aí a família, a família do morto tá no hospital tentando salvar a vida do seu filho, do seu ente querido. Então, o quê que coloca na primeira coisa do boletim de ocorrência, é o jeito que o autor identifica as coisas. É que é difícil você transformar aquilo em outra situação. Você desmentir o que um policial falou é muito complicado. Eu moro no asfalto e eu estou há quatorze anos tentando provar a dignidade da minha família. Por quê? Porque os processos e inquéritos, pelo menos de noventa e oito até dois mil e quatro, quando foi pedido o arquivamento do meu filho, foi doze vezes, o inquérito foi doze vezes pra delegacia e voltou pro Ministério Público, que não teve coragem, que está arquivo até hoje, coragem de colocar lá que ele teve que trabalhar. E os policiais, infelizmente, não têm como verificar capsula por capsula. Então nós temos, pasmem pessoas, noventa mil inquéritos nos Deacs134, noventa mil inquéritos nos Deacs sem solução, porque quando o policial tem a coragem de fazer um despacho dizendo que não tem máquina, que não tem como trabalhar... eu gostaria muito que essa comissão fosse aos Deacs pra ver o quê que é isso! O Deac pega todos os inquéritos vindos antes da Delegacia Legal. Então colocou-se debaixo do tapete toda a vida da minha família e de outras famílias, porque nós não temos como, hoje, quatorze anos depois, nós não temos como chamar testemunhas e o Estado continua inerte. São noventa mil inquéritos, só que o policial diz que não tem mesa, não tem cadeira, não tem colegas pra fazerem a investigação e as nossas vidas acabaram. Acabaram porque provar que a minha família é digna é o motivo que eu tenho. E já que o Estado é inerte, ele devia nos proporcionar pelo menos o direito, porque eu criei uma pessoa pro bem, de nós irmos, pelo menos aqueles casos que acabaram, entendeu, termos direito às nossas pensões e isso não acontece. [...] Portanto, o que eu queria deixar claro, é que os senhores tenham uma ação de auto de resistência diferente. Eu tô cansada, eu confesso aos senhores que eu to cansada de ir a várias audiências públicas onde o nosso acesso à fala é, como hoje aconteceu, de uma forma delicada, mas a grande maioria nós não temos direito à fala. Me preocupa muito a lógica dos dados estatísticos porque eles são desumanos. Eles não transferem as necessidades das pessoas que estão em números ali. Eu costumo dizer nos meus tabefes que, no dia primeiro de novembro de noventa e cinco, o meu filho virou um número. Meu filho foi um número no registro de ocorrência, meu filho foi um número no atestado de óbito, meu filho foi número no inquérito e foi um número no processo. E continua sendo um número de uma sepultura. Que nada faz. É a certeza que nós tenhamos condições de transformar em pranto, achei muito boas as palavras do deputado: é um homicídio, gente. Auto de resistência, como é que eu vou provar? Como é que essas mães de favela que têm os seus filhos mortos, muitos trabalhadores, têm agido? O que a gente precisa saber de auto de resistência é como é que essas pessoas estão conseguindo ter a sua dignidade preservada. Mais importante do que qualquer tese, do que qualquer papel, do que qualquer dado estatístico é a preservação da 134

Delegacias de Acervo Cartorário.

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dignidade humana. A gente precisa que o auto de resistência seja modificado para que outras mães, que já não tenham mais esperança, possam provar que elas são dignas como a Letícia135, como eu e como todas as outras [neste momento, chorando muito] que vão ter esse direito. Nós vamos ter esse direito. Obrigada.

Após essa intervenção, então, ocorre a seção de perguntas direcionadas aos representantes do poder público convidados para a atividade. Apesar de todas as perguntas serem pertinentes, apenas parte delas obtem retorno. Em relação à pergunta sobre a megaoperação realizada no Complexo do Alemão, o coronel Mario Sergio constrói sua resposta através da argumentação de que naquela ocasião o Rio de Janeiro e a polícia estavam sofrendo ataques do Comando Vermelho (e que, segundo as investigações da polícia, as ordens para os ataques partiam do Complexo do Alemão); em relação à pergunta sobre a existência de algum plano de redução da letalidade elaborado pela PMERJ, o coronel fala sobre as expectativas acerca da polícia de proximidade que estava sendo implantada. Cumprindo os protocolos de encerramento daquele tipo de encontro, o deputado Marcelo Freixo pronuncia as palavras finais, chamando atenção para o fato de aquela ser uma audiência construída com o objetivo de “superar o debate entre o que é o legal e o que é a prática” – descompasso que o deputado explicita ao afirmar que os “autos de resistência” não eram considerados “homicídios” nem pela polícia, nem pelo MP, nem pelo Judiciário, transformando-se, portanto, em “instrumento de impunidade e de acobertamento das execuções sumárias”.

Destaco, nesta seção, a fala que inaugura a série de considerações do segundo conjunto apresentado acima: o dos representantes do poder público. Mario Sergio Duarte, representando o Secretário de Estado de Segurança, Senhor José Mariano Beltrame, tem sua fala anunciada pelo deputado Marcelo Freixo após quatro intervenções que criticaram duramente a política de segurança pública vigente no estado do Rio de Janeiro. Vale destacar, inclusive, que o desembargador Sergio Verani, ao dizer que não se pode haver “extermínio nem práticas autoritárias de violações à Constituição e ao Código de Processo Penal e ao Código Penal”, chegou a definir os

135

A referência à Letícia (nome fictício) se deve ao fato de o os policiais acusados de terem executado seu filho terem sido condenados.

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“autos de resistência” como um “escândalo democrático”, como anunciado na introdução desta tese. Diante da tensão que caracterizava o momento, o presidente da audiência realiza a transferência do eixo das explanações dos representantes da sociedade civil para os do poder público com certa cautela: diz que o debate é “um passo fundamental”; pedagogicamente, justifica a importância do “diálogo com agentes do governo” e, cumprindo a tarefa que lhe foi atribuída na condição de presidente, ‘faz as honras da casa’ elogiando a solicitude do coronel. Gostaria de destacar, primeiro, que o coronel deixa claro que sua concordância em relação às falas anteriores existe apenas em relação à necessidade da discussão franca sobre o tema (“eu queria dizer que não exatamente nós vamos estar aqui em posições antagônicas”). Para além desta “concordância”, o que se observa na fala é a explicitação de divergências – processo que se inicia a partir da definição do posicionamento do outro (o “pessoal com uma posição aqui quase pessoal”). Demonstrando total habilidade para conduzir sua argumentação, o ex-comandante do BOPE aciona um ponto específico do discurso do desembargador Verani para estabelecer a conexão entre o que ele próprio apresentou como concordância e o que eu identifico como uma das discordâncias mais significativas para o embate em pauta: a definição de “autos de resistência” como “mortes por conseqüência de confrontos com as forças policiais”. A seqüência é composta por três frases apenas: a que ele replica a necessidade da conversa franca; a seguinte, na qual ele afirma com veemência que essa conversa é o que está acontecendo naquele momento; e a última, quando pela primeira vez Mario Sergio atinge o núcleo duro da discussão proposta pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Somente após imprimir sua maneira de definir o ‘problema-tema’ da audiência como se aquela definição fosse algo dado, o represente do Secretário de Estado de Segurança torna explícita a possibilidade de uma “posição contrária” (nos termos dele) – e o faz encaminhando a divergência para um campo delicado, abrindo espaço em sua fala para um tópico sobre tensões entre ideologias e produções científicas. A partir deste conjunto de considerações, Mario Sergio, apesar de levar em conta diferentes posicionamentos (e suas orientações “ideológicas”) delineia uma disputa na 94

qual é possível identificar ‘a verdade’ – ‘A’, artigo definido feminino singular. E esta única verdade é revelada através de um relato que, ironicamente, se vale de recursos semelhantes àqueles que caracterizam a “autoridade etnográfica” (CLIFFORD, 2002) – marca de uma vertente considerável das produções no campo das ciências sociais: “Independente de todas as pesquisas, mas... não sem um respeito a elas, eu tenho um respeito a todas as pesquisas [...] Mas eu preciso falar daquilo que eu vi ao longo de trinta anos”. Considero relevante destacar o acionamento do termo “agrestia” nesta etapa do discurso. Chamo atenção para duas definições da palavra, a primeira para sua utilização como substantivo e a segunda para sua utilização no sentido figurado: 1. Caráter ou estado do que é agreste; agrestidade; 2. Rudeza, rusticidade, agressividade 136. Mesmo compreendendo que o coronel tenha se valido de uma conotação do termo, um desdobramento da sua primeira definição pode enriquecer a leitura da frase: a palavra agreste,

dentre

diferentes

possibilidades,

pode

significar

“áspero,

inculto,

indelicado”137. Embaralhando as diferentes definições e remontando a expressão pronunciada pelo então presidente do Instituto de Segurança Pública, surgiriam, por exemplo, expressões como: ‘quadro de agressividade’; ‘quadro de caráter inculto’; ‘quadro de rudeza’. Sem me descolar do campo semântico já demarcado, me permito uma última experimentação nesta ‘fase lúdica’ da análise: uma única substituição da palavra “quadro” propiciaria o surgimento da expressão ‘retrato da rusticidade’. A imagem emoldurada no “quadro de agrestia” do Comandante Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, corresponderia, então a um ‘retrato da rusticidade’, no qual são ‘enquadrados’ os moradores do Complexo do Alemão, para manter o exemplo trazido no relato. É portanto, nos “territórios” como o Complexo do Alemão, ou seja, nas favelas, que se localizam os elementos que, de acordo com a linha de raciocínio de Mario Sergio, acabam “fomentando todo esse número tão alto de mortes”. Os elementos, lembro, são as “armas de guerra” enumeradas pelo coronel e não os moradores destas localidades. Os moradores das favelas do Rio de Janeiro não são mencionados nos trechos acima transcritos – mas esse fato não garante que eles estejam fora da cena. Mesmo que a expressão “quadro de agrestia” não tenha sido 136 137

Definições disponíveis em http://www.dicionariodoaurelio.com/dicionario.php?P=Agrestia. Definições disponíveis em http://www.dicionariodoaurelio.com/dicionario.php?P=Agreste.

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cunhada a partir de qualquer qualificação pejorativa já atribuída aos moradores de favelas desde a sua identificação como o outro da cidade, não há como negar a presença deles nos “territórios” aos quais se referiu Mario Sergio, afinal, trata-se de seus próprios locais de moradia. Fiz questão de tentar explorar mais detidamente a complexidade deste quadro, pois compreendo que este seja o pano de fundo do embate que marcou a audiência pública em pauta. E é exatamente por dominar a profundidade das questões embutidas nesse pano de fundo, que o coronel Mario Sergio elabora cuidadosamente a justificação apresentada naquele momento. Tal reflexão foi bastante estimulada pelas propostas analíticas que Scott e Lyman (2009 [1968]) desenvolvem acerca de uma determinada característica da fala que “envolve dar e receber” o que os autores chamam de “accounts” – “o ato de dar satisfação”; “a prestação de contas”. Duas definições para “accounts” apresentadas no artigo homônimo merecem destaque: “um account é um dispositivo lingüístico empregado sempre que se sujeita uma ação a uma indagação valorativa” (SCOTT e LYMAN, 2009 [1968]: 140) e “uma afirmação feita por um ator social para explicar um comportamento seu ou de outra pessoa, quer o motivo imediato para a afirmação parta do próprio ator ou de alguém mais” (Idem). Ao definirem diferentes tipos de “accounts”, os autores apontam uma distinção geral entre “desculpas” e “justificativas” (ou “justificações”, como eles acrescentam). Esta distinção revelou-se especialmente significativa para esta fase inicial de ‘tratamento’ deste material empírico, dentre outros motivos, pela seguinte explicação:

Justificativas são accounts em que alguém aceita a responsabilidade pelo ato em questão, mas renega a qualificação pejorativa associada a tal ato. Deste modo, um soldado em combate pode admitir ter matado, embora negue ter realizado um ato imoral, já que aqueles que ele matou eram membros de um grupo inimigo e, conseqüentemente, “mereciam” esse destino. (SCOTT e LYMAN, 2009 [1968]: 141)

Retomo outro ponto esclarecedor da construção de Scott e Lyman (2009 [1968]) a respeito das “justificações”: segundo os autores, tanto as “desculpas” quanto as “justificações” correspondem a “vocabulários socialmente aprovados que neutralizam um ato ou suas conseqüências quando um ou ambos são questionados” (Idem: 147). A 96

diferença mais relevante a ser destacada entre tais “dispositivos lingüísticos” reside no fato de que “justificar um ato é afirmar seu valor positivo em face à alegação do contrário”(Idem). Prosseguindo com esta seqüência explicativa, outro exemplo que pode ser conectado à questão dos “autos de resistência” vem à tona:

As justificações reconhecem um sentido geral em que o ato em questão não é permitido, mas alegam que uma ocasião em particular permite ou mesmo exige tal ato. As leis que regulam o direito de tirar a vida de outros indivíduos são um caso ilustrativo. As jurisprudências americana e inglesa não convergem de modo algum sobre definições ou mesmo sobre a natureza dos atos em questão. Em geral, porém, um homem pode justificar ter tirado a vida de outra pessoa alegando ter agido em legítima defesa, em defesa da vida ou da propriedade de outros, ou em ação contra um inimigo confesso do Estado.” (SCOTT e LYMAN, 2009 [1968]: 147)

Se na citação acima, “as leis que regulam o direito de tirar a vida de outros indivíduos” aparecem como um “caso ilustrativo”, durante a audiência pública que norteou a confecção deste trabalho tais leis ocupam o centro do debate em pauta. É evidente a conexão entre os aspectos levados em conta por Scott e Lyman (2009 [1968]) ao explorarem a noção de “justificações” e as “justificativas” concretas elaboradas pelo coronel Mario Sergio durante sua explanação. A alegação de que uma situação particular exigiu – e exige – a concretização do ato ou da ação que está sendo justificada aparece de formas diferentes no discurso do coronel. Mario Sergio também se refere à intervenção da criminalista Roberta Pedrinha sobre a megaoperação no Complexo do Alemão, respondendo que

“realmente foi utilizada uma força muito grande porque ao longo de três meses tentou-se realizar operações menores e elas foram é... mal sucedidas porque a quantidade de armas, o enfrentamento que foi realizado naquele período, não se permitiu a entrada dos policias e a realização das operações que a polícia deveria fazer”

Em sua fala, a criminalista havia destacado o fato de que a operação realizada no Complexo do Alemão em 2007 resultou na morte de dezenove moradores – duas destas com características flagrantes de execução sumária – além do registro de sessenta e duas pessoas feridas. Mas outro dado a respeito deste caso foi mais enfatizado pela “representante da sociedade civil”: nenhum policial havia sido morto. O caso do 97

Complexo do Alemão, portanto, se configura como um exemplo concreto de um dos pontos chave da exposição do sociólogo Ignácio Cano: segundo suas explicações, quando se estabelece de fato o confronto armado entre policiais e traficantes, é esperado que o número de policiais mortos seja menor (por conta do treinamento, da preparação física etc); no entanto, quando se ultrapassa a marca de dez “opositores” mortos para um policial morto, já está configurado o uso excessivo da força. Apesar de estar ciente destas informações e lidar rotineiramente com esses números, no momento de sua intervenção, o coronel Mario Sergio desloca o eixo da discussão, enfocando elementos que transferem o policial da posição de algoz para a posição de vítima: “eles usam seus revólveres porque vão enfrentar criminosos armados de revólveres também”. A questão da ‘verdade única’ aparece repetidas vezes na fala do coronel. Além da palavra “verdadeiramente”, nota-se ainda a utilização da palavra “realidade”. De fato, se observa o estabelecimento de uma disputa em torno ‘da verdade’: ‘a verdade’ sobre os “autos de resistência” – sobre como se define “autos de resistência” e o que se diz a respeito do assunto. É durante a fala do coronel Mario Sergio, portanto, que aquela audiência pública passa a configurar uma situação de disputa. É claro que em uma audiência pública onde denúncias são apresentadas (ou re-apresentadas, como ocorre no caso em questão) e discutidas, uma parte dos envolvidos nesta situação critica as ações de um outro (indivíduo ou grupo), que por sua vez, se faz presente para ouvir as críticas, para apresentar sua ‘contra-argumentação’, para se defender, enfim: para justificar, de alguma forma, as ações que estão sendo alvo de críticas. Portanto, além das reflexões trazidas por Scott e Lyman (2009 [1968]) acerca das “justificações” e “dispositivos lingüísticos” afins, acredito que as discussões propostas por Boltanski e Thévenot (1999) e Boltanski (2000 [1990]) indiquem caminhos interessantes não só para possíveis desdobramentos da análise das “justificações”, como também para a exploração da compreensão da audiência pública como uma “situação de disputa”138. A noção de “humanidade comum” (Boltanski e Thévenot, 1991) e (Boltanski, 1990), atrelada à noção de “bem-comum”, corresponderia a um princípio superior 138

A questão mais delicada ao trazer como referência os trabalhos de Boltanski e Thévenot é avaliar se é possível pensar em uma ação orientada para o acordo quando se trata de uma situação na qual a concepção de igualdade, de “pertencimento a uma humanidade comum” Boltanski e Thévenot (1999) não está dada – como parece ser o caso da audiência organizada para se discutir “autos de resistência”.

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partilhado por todos. Considerando estas questões, a transposição deste modelo para uma situação como a audiência pública em pauta pode resultar em uma operação arriscada. Enquanto para os membros da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro que organizaram uma audiência para debater os “autos de resistência”, assim como para os representantes da sociedade civil convidados para falar sobre o assunto, o “bem comum” poderia aparecer como objetivo do encontro (caso essa expressão fosse considerada adequada por algum dos participantes); já na fala do coronel, o “bem comum” aparece na mesma seqüência de outras “justificações” para as ações que estão sendo criticadas naquela audiência. Para tornar viável, portanto, um “quadro de tranqüilidade pública e paz social”, seria necessário eliminar o tal “quadro de agrestice” – a qualquer custo. Talvez esse distanciamento entre as noções de “bem-comum”139 dos atores envolvidos naquela audiência pública seja um dos elementos limitadores da disputa em questão. Não quero afirmar que a disputa não exista, apenas chamo atenção para o fato de que a explicitação de posicionamentos divergentes durante a audiência, as críticas apresentadas às ações da polícia e suas respectivas justificações não equivalem a ações orientadas para um acordo que realmente encerre aquela disputa. O acordo é momentâneo e encerra aquela situação específica, mas não a disputa na qual ela se insere. Assim como o uso da norma culta da língua ao se referir ao presidente da audiência pública como “Excelentíssimo senhor deputado Marcelo Freixo”, as justificações apresentadas pelo coronel são protocolares. E seria exatamente esta habilidade para seguir os protocolos sua maior “competência” demonstrada naquela audiência pública. O registro de sua fala se delimita ao que Scott e Lyman apresentam como um “estilo formal” dentre os estilos lingüísticos que enquadram a maneira através da qual um “account” é dado. Sem invalidar a competência do coronel, no entanto, considero pertinente ressaltar o fato de Mario Sergio ter falado mais alto que todos os que o antecederam e

139

Gostaria de ressaltar que ao se referir à “pacificação”, a expressão “ser assimilada” utilizada pelo coronel aparece como sinônimo de sucesso da política de segurança pública. Mas o termo “assimilação” está relacionado à linguagem, à reprodução falada da expressão – e não à experiência concreta da “pacificação”.

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que o sucederam nas explanações durante a audiência. Adiciono a este registro uma anotação do meu caderno de campo: “Mario Sergio fala levantando as sobrancelhas; mão direita quase que o tempo todo agarrada ao microfone”. Tais elementos podem sugerir um certo desconforto em desempenhar aquela ação. As competências são sinalizadas, portanto, através do conteúdo do discurso, mas sua entonação e os componentes visuais da sua condução transparecem uma espécie de esforço para ser escutado. De fato, realizar aquela série de “justificações” – a respeito das atuações da Polícia Militar e a respeito do conjunto de ações que correspondem à implementação e à manutenção da política de segurança pública vigente no Estado do Rio de Janeiro, visto que representa o Secretario de Estado de Segurança – não deve ser uma tarefa muito agradável. Entretanto, esta configuração de uma situação desagradável pode não corresponder exatamente à tarefa de elaborar as justificações, mas sim a uma espécie de descrença no encontro – o que explicaria ainda melhor o comportamento ‘protocolar’ e o “estilo formal” da fala da autoridade. Trago um trecho de outro discurso do coronel Mario Sergio – mas desta vez um discurso escrito e não falado. Trata-se de uma seqüência de frases inscritas no relato elaborado pelo coronel sobre sua participação na audiência pública em questão e publicado dois dias após o evento no seu blog pessoal140: Não é fácil convencer convencidos. Não pretendo isso. Fui àquele local porque era minha missão. Aquelas pessoas que prestigiavam o debate formam um círculo ideológico. Lá estavam representantes do Justiça Global, da Rede Contra Violência, do Tortura Nunca Mais etc. Se é ilusão acreditar que qualquer consideração, mesmo fundamentada na mais pura verdade e assentada em valores universais e absolutos, como o direito de um não agressor à vida, mas em sentido contrário às suas teses, lhes mudará a disposição e o entendimento, não posso, todavia, me furtar de me apresentar na arena das polêmicas dos juízos quando isso me é exigido num contexto de legalidade e legitimidade.

140

Intitulado “Segurança Pública - Idéias e Ações”, o blog é apresentado como “Espaço destinado à exposição de idéias sobre segurança, ordem e paz. São bem-vindos todos os que pretendem contribuir para a exposição da verdade objetiva, participar de debates construtivos do bem comum e concorrer para a tolerância entre entidades propositoras de verdades subjetivas, através do diálogo.” Disponível em: http://marius-sergius.blogspot.com/ Acesso em 28/01/2010.

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O imediato acionamento da condição de “mãe” se alinha ao texto que anunciou a possibilidade daquela fala: “você tem toda a legitimidade como mãe de uma vítima”, havia anunciado o presidente da audiência. E assim é descontruído um problema que estava colocado: o fato de nenhum familiar de vítima de violência policial fazer parte da composição original das falas oficiais naquela audiência141. Como descrevi anteriormente, o conjunto de pessoas presentes na audiência pública poderia ser dividido em dois grupos distintos: aqueles que foram convidados para discorrer sobre o tema da audiência e os outros, que foram convidados para ouvir. Para compreender melhor este tipo de situação, recorro a uma passagem do trabalho de Scott e Lyman (2009 [1968]) na qual são enumeradas ocasiões semelhantes à audiência, nas quais se predomina o “estilo formal” da fala. Segundo os autores, tal “estilo linguístico” é empregado quando o grupo é grande demais para que a co-participação informal seja constante na interação. Em geral, é adequado a ocasiões em que um ator se dirige a uma platéia composta por mais de seis pessoas. Os ouvintes têm que esperar a vez de responder, ou, caso interponham comentários, sabem que protagonizam um evento inapropriado e que a situação precisará ser reestruturada. Orador e platéia estão em papéis ativo e passivo, respectivamente, e, se o grupo é grande o suficiente, podem ser obrigados a falar ou permanecer em silêncio de acordo com códigos de conduta pré-estabelecidos. O estilo formal também pode ser empregado quando aquele que fala e o que ouve possuem status rigidamente definidos. Tais situações ocorrem em organizações burocráticas, entre pessoas de diferentes posições na hierarquia, ou no tribunal, na interação entre juiz e réu. (SCOTT e LYMAN, 2009 [1968]:157)

Para além do fato do discurso dessa mãe de vítima ter sido iniciado nesse registro formal da fala, o que considero pertinente destacar é a expectativa da passividade do ouvinte em situações como a audiência pública – nesse caso específico, uma situação na qual todos poderiam participar ouvindo, como a própria rotulação do evento sugere. Caso tivessem sido seguidos estritamente os tais “códigos de conduta préestabelecidos”, não teria ocorrido tal fala em público aquele dia. Mas, evidentemente, a passividade não é uma característica muito presente na rotina desses familiares de vítimas de violência policial que decidem se posicionar e lutar por justiça.

141

Vale registrar que tal ausência foi admitida como uma falha da organização do evento pelos próprios integrantes da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, nos corredores do Palácio Tiradentes, após a conclusão da audiência.

101

Apesar de ter assinado a lista de presença da audiência como integrante do grupo “Mães da Cinelândia”, o trânsito desta mãe em apoio a outros coletivos e sua cumplicidade com demais familiares de vítimas faz com que seu pertencimento “original” seja eventualmente adicionado a outros: o deputado Marcelo Freixo, por exemplo, atrelou a legitimidade de sua fala ao fato de ela ser mãe de vítima e também à possibilidade de ela estar representando a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência em sua intervenção. De fato, realizou-se naquela audiência uma intervenção em nome dos diferentes coletivos de mães de vítimas existentes na cidade do Rio de Janeiro e um ponto decisivo para esta interpretação é o fato de não ter ocorrido uma denúncia pública sobre a ação deste ou daquele policial envolvido em mortes específicas. O que foi denunciado naquela audiência era a manutenção do registro “auto de resistência” e, consequentemente, todos os obstáculos atrelados a esse registro que teriam que ser enfrentados pelos familiares das vítimas durante os respectivos inquéritos policiais e processos jurídicos. Segundo a explicação de uma “pessoa que vivencia o auto de resistência”, a versão dos policiais registrada no boletim de ocorrência, trazendo “o jeito que o autor identifica as coisas”, se transforma em um enorme obstáculo à realização da denúncia dos familiares da vítima, afinal, “você desmentir o que um policial falou é muito complicado”. A continuidade da denúncia apresentada no Palácio Tiradentes por esta mãe traz uma crítica de conteúdo mais técnico, direcionada às justificativas dos policiais para despacharem inquéritos para as das Delegacias de Acervo Cartorário. Tal crítica se fortalece com a apresentação do número de inquéritos não solucionados que se encontram arquivados nestas delegacias, afinal, noventa mil não é uma quantidade que passe despercebida. O momento da audiência funciona também para a cobrança das pensões que o Estado deveria pagar aos familiares de vítimas cujos casos já estivessem concluídos142.

142

Em alguns dos casos cujos policiais envolvidos foram julgados e condenados (realmente um número pequeno frente ao conjunto de violações cometidas por estes agentes, especialmente em favelas e periferias) é exigido do governo do Estado o comprometimento com o pagamento de pensões. É fundamental registrar que o pagamento das pensões não retira dos familiares o direito de cobrar do Estado uma indenização pecuniária por danos morais e materiais – como ocorreu com a mãe e três irmãs

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Na audiência em questão, foram feitos encaminhamentos para que a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj solicitasse ao Ministério Público informações sobre o acompanhamento de cada caso; encaminhasse as famílias para atendimento no MP, para terem notícias de seus casos e providenciasse cópias dos documentos dos inquéritos que interessarem aos organismos responsáveis pelo acompanhamento de cada caso. Também foi acordado que a equipe se organizaria para fazer visitas sistemáticas às delegacias sempre que houvesse um novo registro de “auto de resistência”.

2.3 Uma reunião em Brasília

Cena 3. [28 de novembro de 2012, Edifício Parque Cidade Corporate, Setor Comercial Sul - B, Quadra 9, Lote C, Brasília] Tratava-se da 214ª reunião ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), cuja pauta principal era a “resolução sobre a abolição do uso de terminologias genéricas como “autos de resistência” e “resistência seguida de morte”. Como procedimento de praxe, a presidente do Conselho, Maria do Rosário, Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos, realiza a abertura da sessão e concede a palavra aos conselheiros para se manifestarem sobre os itens da pauta e para as inscrições para os devidos informes. Durante a apresentação do item da pauta relativo ao “auto de resistência”, Maria do Rosário comenta: “Não podemos ter este tipo de instrumento vigente da forma como temos tido [...] que vem sendo utilizado visando, grande parte das vezes, acobertar uma situação de violência e extermínio”. Durante os informes, a conselheira Ivana Farina Navarrete Pena, representante do Conselho Nacional de Procuradores Gerais do Ministério Público dos Estados e da União, relata a visita de um grupo de trabalho do CDDPH a Belém, Altamira e Anapu,

de Luiz Jorge Barboza Rodrigues, vítima do caso conhecido como “chacina da Baixada Fluminense”, por exemplo. Na sentença desta condenação, o juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública do Rio afirma que “é irrelevante se os policiais estavam ou não no exercício da função pública. Desde que o agente tenha se valido do cargo ou tenha, de qualquer forma, se utilizado das facilidades ou dos meios proporcionados por este para a prática do ato lesivo, responde o Estado pelos atos por ele praticados”. (Disponível em http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=20&id_noticia=7570, acesso em 10/2006).

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para averiguar denúncias de violações de Direitos Humanos na região. Após algumas considerações sobre os casos de violação identificados143, é aberto um espaço para informes sobre o andamento da resolução que o CDDPH vinha elaborando sobre a utilização de armamento não-letal – chamando pela Ministra de armamento menos letal144. Maria do Rosário retoma a pauta prioritária daquela reunião: “Mas Hoje vamos nos dedicar a buscarmos a abolição deste conceito que é resistência seguida de morte”; passa a palavra ao Procurador Federal dos Direitos do Cidadão, Aurélio Rios, relator da Resolução e sugere que o Conselho ouça as quatro organizações da sociedade civil convidadas para a atividade. O procurador Aurélio Rios sugere que seja lido o documento (previamente entregue a cada participante da reunião) contendo as modificações sugeridas pela sociedade civil durante o período em que esteve disponível para consulta pública no site do Conselho145. A primeira organização da sociedade civil convidada a se manifestar diante da resolução foi a Justiça Global (cuja representante, naquela ocasião, era eu mesma), em seguida o Movimento Nacional de Direitos Humanos MNDH (cujo representante, Rildo Marques, sugeriu a construção de uma campanha “Brasil sem extermínio”), a Anistia Internacional, representada por Renata Neder e, finalmente, o Movimento Mães de Maio, representado por Débora Silva. A ministra faz uma longa e honrosa apresentação de Debora Silva, presidente do Movimento Mães de Maio, que já inicia sua fala demonstrando a positividade daquela movimentação do CDDPH em torno do registro: “Nós estamos agraciadas e agradecemos o CDDPH por ter trazido à tona a bandeira das Mães de Maio. […] É bem vinda essa resolução. Essa é uma bandeira que as mães de maio começaram no início de 2012”. Debora aproveita a oportunidade para denunciar a ROTA146, atribuindo a 143

O vice-presidente do CDDPH, Percílio de Souza Neto (do Conselho Federal da OAB) sugeriu que o CDDPH faça um acompanhamento das ações que estão em andamento no estado do Pará, via Procuradoria. Maria do Rosário também sugeriu como encaminhamento a revisão de todas as decisões condenatórias do caso da Irmã Dorothy. 144 Ao final de 2012, o CDDPH discutia a necessidade da suspensão (ou não) do uso de “determinadas armas de baixa letalidade” (segundo documento de circulação interna do CDDPH, disponibilizado às organizações e movimentos sociais com interlocução próxima com a Conselho) – tema ao qual se dedicou bastante atenção durante o ano de 2013 dentro e fora deste Conselho. Nos limites desta tese (e em função do dinamismo das determinações e posicionamentos oficiais sobre essa questão), a discussão acerca do armamento dito não-letal fica restrita apenas ao contexto do policiamento em favelas onde foram instaladas UPPs, mais especificamente ao caso da morte de Mateus, relatado no capítulo 1. 145 Tal consulta pública será abordada após a descrição da cena. 146 A ROTA (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar) corresponde à tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo.

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esta o título de “polícia mais letal de São Paulo” e relatando o episódio no qual perguntou a um juiz se ele não voltava pra casa com dor no coração após mandar arquivar um caso de “auto de resistência”. Após apresentar sua leitura sobre o contexto de violência no estado de São Paulo, Débora refaz sua apresentação, ampliando para além do território paulista o problema em pauta: “Eu tô aqui como representante de todas as mães brasileiras. Que esse Conselho olhe a dor dessas mães. […] Esses meninos foram executados e depois foi registrado o auto de resistência.” Débora encerra sua intervenção destacando a importância do reconhecimento político dos familiares das pessoas assassinadas durante ações violentas do Estado no período pós-ditadura militar – que Débora chama de “familiares de agora”. Após a intervenção de Débora, alguns integrantes do Conselho se posicionam em relação ao registro e à importância da publicação da resolução. Maria Roseli, representante da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros, parabeniza o autor da resolução e se dirige diretamente à Débora para reforçar seu posicionamento, enquanto magistrada, ao lado dos familiares de vítimas em suas demandas ligadas aos institutos de criminalística, enfatizando o número reduzido de profissionais nesses institutos e a demora na produção dos laudos. A representante da AMB informa ainda que as preocupações dos magistrados em relação ao campo de promoção e proteção dos Direitos Humanos estavam começando a se concretizar e que se até aquele momento haviam ocorrido erros, a intenção sempre foi acertar. Após as considerações mais gerais dos conselheiros sobre a resolução, iniciouse o debate relativo ao texto do documento. Termos, expressões, conjunções, preposições – muitas palavras foram questionadas e disputadas na mesa de reuniões retangular, comprida e hi-tech do CDDPH. Acordadas as mofidicações e o conteúdo político do documento, decide-se pela aprovação da resolução sob a condição de que após aquela reunião se mexeria na forma, consolidando a versão final. O outro ponto de pauta previsto para aquele dia (um relato do conselheiro Tarciso Dal Maso, professor de Direito Constitucional, sobre a situação de impunidade no caso Carandiru) é adiada para a próxima reunião ordinária do Conselho, que aconteceria dali a vinte dias.

105

A partir do relato da reunião no CDDPH, trago para a discussão proposta neste capítulo duas etapas distintas, porém interconectadas, deste processo de construção da Resolução Recomendatória a respeito do uso dos assim chamados “autos de resistência ou resistência seguida de morte”: a consulta pública e a discussão entre conselheiros, ministra e demais convidados do CDDPH para a 214ª reunião ordinária (dentre os quais se encontravam os quatro representantes da sociedade civil e também aqueles que estavam presentes em função de suas representações profissionais – como, por exemplo, o representante da Federação Nacional dos Jornalistas do Brasil e o representante da Polícia Federal). Durante o mês de outubro de 2012, houve uma movimentação interna ao campo nacional de defesa dos Direitos Humanos relativa ao incentivo à participação da consulta pública – que não duraria muito tempo (menos de um mês). Diversas organizações nãogovernamentais e especialistas na área foram incentivados pela assessoria da SDH a enviarem suas contribuições. Abaixo, o anúncio da consulta pública publicado no site da SDH – endereço que circulou especialmente via e-mail147, nas trocas entre a própria militância, para que as contribuições fossem enviadas a tempo.

147

O endreço da divulgação da consulta pública que circulou era http://portal.sdh.gov.br/clientes/sedh/sedh/conselho/pessoa_humana/minuta-de-resolucao-cddph/, no entanto, após reformulação do site da SDH, a página não pode mais ser visualizada (motivo pelo qual reproduzi o printscreen realizado na época da consulta).

106

A avaliação da equipe que, na época, integrava o programa de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global foi de que seria importante produzir uma contribuição que enfatizasse aspectos considerados cruciais nos debates entre interlocutores próximos (em especial coletivos de familiares de vítimas, ONGs parceiras e a CDDHC/Alerj). Assim sendo, a ratificação da necessidade da abolição dos termos “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte” nos registros e inquéritos policiais e denúncias penais pautava-se pelas próprias demandas do movimento social, que, acompanhadas de perto por diferentes organizações, foram informadas ao CDDPH em sua consulta pública. O fato de não existir na legislação brasileira o tipo penal “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência” foi articulado à origem da regulamentação desse tipo de registro (ocorrida durante a Ditadura Militar no Brasil, como dito na introdução desta tese), configurando a sugestão da Justiça Global para a inclusão de um parágrafo que não constava da proposta inicial da resolução. Embora esta sugestão não tenha sido acolhida na íntegra, vale destacar que as recomendações relativas à perícia independente e à preservação do local do crime foram incorporadas ao texto da resolução. Considero pertinente trazer para o presente estudo este tipo de construção por compreender que, mesmo dentro das limitações inerentes a uma resolução produzida pelo CDDPH, a incorporação de demandas antigas dos movimentos sociais, em especial os coletivos formados por familiares de vítimas de violência do Estado neste tipo de documento, expressa o reconhecimento das mesmas por parte de um Conselho ligado à Presidência da República – reconhecimento este que, uma vez oficializado neste formato de resolução, pode ser apropriado pelos próprios familiares enquanto instrumento embasador de cobranças e pressões junto aos órgãos do poder executivo de seus respectivos estados, ou mesmo junto à Presidência da República, em situações de ausência de pronunciamentos públicos (ou pronunciamentos inadequados) de quem esteja presidindo o país diante de casos graves de violações provocadas por agentes de Estado. Dito isto, destaco a seguir parte das modificações realizadas a partir das contribuções enviadas pelas diferentes organizações, coletivos e acadêmicos durante a

107

consulta pública148. Enquanto na minuta da resolução lia-se que deveria ser “assegurada perícia técnica especializada imediata em todos os armamentos, veículos e maquinários envolvidos em ação policial com resultado morte, assim como do local onde a ação ocorreu”, o trecho correspondente ao mesmo inciso foi modificado e desdobrado na resolução em dois incisos diferentes do artigo 2º:

II – a perícia técnica especializada será realizada de imediato em todos os armamentos, veículos e maquinários, envolvidos em ação policial com resultado morte ou lesão corporal, assim como no local em que a ação tenha ocorrido, com preservação da cena do crime, das cápsulas e projeteis até que a perícia compareça ao local, conforme o disposto no art. 6.º, incisos I e II; art. 159; art. 160; art. 164 e art. 181, do Código de Processo Penal. III – é vedada a remoção do corpo do local da morte ou de onde tenha sido encontrado sem que antes se proceda ao devido exame pericial da cena, a teor do previsto no art. 6.º, incisos I e II, do Código de Processo Penal.

O outro trecho da minuta que considero relevante o destaque para a modificação é o seguinte: “garantido que nenhum inquérito policial seja arquivado sem que tenha sido anexado o respectivo laudo necroscópico ou cadavérico”, cuja modificação na resolução encontra-se redigida no inciso IV do artigo 2º:

IV – cumpre garantir que nenhum inquérito policial seja sobrestado ou arquivado sem que tenha sido juntado o respectivo laudo necroscópico ou cadavérico subscrito por peritos criminais independentes e imparciais, não subordinados às autoridades investigadas.

Adicionadas às modificações produzidas no documento em questão a partir da consulta pública, temos as modificações produzidas a partir da própria reunião descrita na Cena 3, cujos debates recupero nesta discussão, a partir das anotações que realizei durante a atividade. A primeira alteração significativa discutida pelos conselheiros do CDDPH e convidados presentes naquela reunião diz respeito à substituição da palavra “morte” pela palavra “homicídio”, na terceira consideração (são nove no total) que

148

Gostaria de enfatizar que a pequena seleção de trechos prioriza aspectos diretamente relacionados a argumentos expostos nesta tese (em especial no capítulo 4) e cuja atenção nesta seção está diretamente conectada ao fato de reconhecer este trabalho como mais um documento no qual podem estar registradas parte das demandas prioritárias dos movimentos sociais e coletivos integrados pelos familiares de vítimas de violência institucional.

108

antecede o artigo 1º da resolução. Na versão provisória do documento distribuída aos presentes o texto dizia:

Considerando que não existe, na legislação brasileira, a excludente de “resistência seguida de morte”, também documentada como “auto de resistência”, o registro do evento deve ser morte decorrente de intervenção policial e, no curso da investigação, deve-se verificar se houve de fato alguma resistência que fundamentasse a excludente de ilicitude.

Tratava-se, justamente, da discussão sobre como deveria ser o “novo enquadramento” pra esse tipo de morte, o registro que então substituiria o “auto de resistência” – demanda antiga dos movimentos sociais, das organizações de Direitos Humanos, registro apontado por especialistas do campo jurídico como “um escândalo democrático” e por especialistas em violência urbana como “um limbo legal que invisibiliza o problema”149. Como observamos Sandra Carvalho e eu, mais que uma simples mudança de termos, tratava-se de “oficializar e publicizar, enquanto instância governamental, o reconhecimento de uma prática violadora de direitos que vem sendo atualizada desde a ditadura no cotidiano mesmo do funcionamento estatal”150. Durante o debate, um conselheiro que argumentava pela utilização da tipificação “homicídio” disse: “por trás desses autos de resistência tem havido um extermínio sistemático de pessoas”. Eram muitos profissionais do campo do Direito presentes, há assentos especiais no CDDPH para “Conselheiro Professor de Direito Constitucional” e para “Conselheiro Professor de Direito Penal” e esse ponto da discussão ocupou certo tempo da reunião. Alguns argumentavam que a utilização da tipificação “homicídio” era indevida, visto que já enquadrava o agente que efetuou o disparo como autor de um crime antes que esse crime tivesse sido julgado pelas instâncias competentes. No entanto, como foi destacado na reunião, o que o registro do “auto de resistência” faz é exatamente a mesma coisa – produz a vítima, já morta, enquanto autora de um crime, visto que traz embutido em sua própria possibilidade de oficialização da descrição dos fatos a versão de que a pessoa que morreu estava atirando 149

Como relatei na introdução, tais qualificações referem-se, respectivamente, às intervenções do desembargador Sergio verani e do sociólogo Ignácio Cano durante a audiência descrita na seção anterior deste capítulo. 150 Entrevista que Sandra Carvalho, então diretora adjunta da Justiça Global, e eu concedemos à Fundação Heinrich Böll após a divulgação da publicação da resolução. Disponível em: .

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contra aquele agente de Estado que a matou. A diferença reside apenas no fato de que no registro questionado pela resolução do CDDPH, a autoria do crime recai, em geral, sobre um morador de favela e, a partir da modificação proposta para a resolução, a autoria do crime recairia sobre um agente de Estado. Aqueles que defenderam a segunda opção, argumentaram que em se tratando desse tipo de situação, a utilização da tipificação naquele documento significava uma sugestão interpretativa que, caso devidamente contestada através dos meios legais, em nada poderia prejudicar o agente de Estado que havia efetuado o disparo. Um dos conselheiros (professor de Direito Penal), considerou “excesso de melindre não querer se chamar a morte de homicídio” – ratificando sua posição com a frase “não precisa usar eufemismos para dizer o que é mesmo”. Foi argumentado também que, “para quem maneja a linguagem técnica” a opção por “morte” ficaria “enviesada” e deveria ser substituída, afinal “dizer homicídio não é o mesmo que dizer homicida”. Na redação final, após aprovada pelos conselheiros a utilização da tipificação, o texto fixado foi:

Considerando que não existe, na legislação brasileira, excludente de “resistência seguida de morte”, frequentemente documentada por “auto de resistência”, o registro do evento deve ser como de homicídio decorrente de intervenção policial e, no curso da investigação, deve-se verificar se houve, ou não, resistência que possa fundamentar excludente de antijuridicidade.

Durante praticamente todo o debate, era evidente a preocupação dos conselheiros e da Ministra em não transformar aquela resolução em um documento desrespeitoso aos profissionais das polícias civil e militar das diversas unidades federativas do país. Na quarta consideração do documento, por exemplo, uma alteração de texto foi solicitada para que nenhum tipo de antagonismo fosse demarcado. O texto original dizia: Considerando que apenas quatro Estados da Federação divulgam amplamente o número de mortes decorrentes de atos praticados por policiais civis e militares (Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina) e que, nestes, entre janeiro de 2010 e junho de 2012, houve 3086 mortes em confrontos com policiais, sendo 2986 registradas por meio dos denominados autos de resistência (ou resistência seguida de morte) enquanto 100 foram policiais civis e militares mortos em ação [grifos meus]

110

E após as considerações dos conselheiros, a frase grifada acima foi substituída por “e 100 mortes em ação de policiais civis e militares”. A substituição de “enquanto” –

uma

conjunção

subordinativa,

que

estabelece

uma

relação

de

dependência/subordinação entre duas palavras ou frases, por “e” – uma conjunção aditiva, que une vocábulos ou orações de mesmo valor sintático (ou uma palavra que expressa conexão ou adição), expressa, em detalhe, a atenção relacionada a possíveis incômodos por parte dos agentes de Estado concernidos naquele debate e, mais que isso, expressa o cuidado exigido àquele Conselho quanto à oficialização de posicionamentos políticos daquele tipo – como alertou um conselheiro presente, tal substituição deveria ser feita porque ali não se estava “contrapondo nenhum lado”. Seguindo a mesma linha do debate, outro conselheiro chamou a atenção para a existência de um inciso específico para que fosse assegurada “a devida reparação às vítimas e a familiares das pessoas mortas em decorrência de intervenções policiais”. Apesar desse rigor no tratamento do assunto e na redação do texto definitivo da resolução recomendatória, um representante do Departamento da Polícia Federal que estava presente interrompeu diversas vezes as intervenções dos conselheiros, desrespeitando um protocolo básico diante das formalidades que caracterizam aquele tipo de reunião. Para resumir o conjunto de interrupções produzidas, informo que o representante da Polícia Federal argumentou que a resolução era marcada por uma antítese entre o posicionamento do CDDPH e o da Polícia Federal e critica o fato de aquela resolução expor tal posicionamento sendo o CDDPH um Conselho da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Tal situação exige uma intervenção mais determinada da Ministra: “O Senhor disse que tem uma antítese e eu aqui represento o governo, então eu quero saber quem o Senhor representa: a Polícia Federal ou o Senhor mesmo?” e recebe como resposta “Vai parecer uma decisão de gabinete, de Brasília”. Neste momento, Débora, representante das Mães e Maio, que estava sentada à frente do representate da Polícia Federal na mesa, balançou a cabeça fazendo sinal de reprovação. O ponto central da argumentação do representante da Polícia Federal girava em torno do fato de ele não aceitar que a modificação do registro do “auto de resistência” pudesse ser sugerida pelo poder executivo federal – de início, ele não se posicionava a respeito dos incisos ou das considerações da resolução: sua presença naquela reunião tinha como objetivo 111

questionar a decisão mesma do CDDPH de publicar uma resolução recomendando o fim dos registros em questão. A situação exigiu jogo de cintura de todos os presentes, mas especialmente da Ministra. Ela insistiu num caminho pedagógico da argumentação: “A resolução tem um caráter simbólico de procurar estabelecer o que é mais adequado a gestores de políticas públicas que atuam na área da segurança preocupados com os Direitos Humanos”, lembrando que o Brasil faz parte de conselhos internacionais e que precisa prestar contas. A Ministra também enfatizava o fato de a resolução não estar “acima da lei” – acusação que também havia sido feita pelo representante da Polícia Federal durante uma das vezes que interrompeu a intervenção de um conselheiro. A Ministra concedeu a palavra a ele por muitas vezes – todas as vezes solicitadas, para ser exata. Entendendo que seu objetivo primeiro não seria atendido, o representante da Polícia Federal decidiu propor alterações ao texto da resolução – alterações a respeito das quais a Ministra disse “são contribuições muito relevantes, eu tô anotando todas”, fazendo questão de explicitar o fato de que ainda que fosse a presidente do Conselho, ela não tinha poder decisório: “Os conselheiros vão se pronunciar. Eu não tenho palavra final aqui”. A resolução foi aprovada por unanimidade no dia 11 de dezembro e publicada no Diário Oficial da União no dia 21 do mesmo mês151.

2.4 Detalhes gramaticais e políticos

Nas reuniões acionadas neste capítulo, intervenções de agentes de Estado que atuam em diferentes polícias centralizaram as discussões. Em ambos os encontros, a pauta dos autos de resistência mobilizava as representações de segmentos específicos de Estado de formas bastante distintas. Tratam-se de atividades organizadas por uma comissão (poder legislativo estadual) e um conselho (poder executivo federal) que acolheram demandas dos movimentos sociais e coletivos integrados por familiares de vítimas de violência institucional, mas cuja atuação está restrita ao discurso, ao debate,

151

A publicação foi anunciada em nota pública da SDH/PR em 08/01/2013. Disponível em: . A forma final da resolução é apresentada no anexo 2.

112

às recomendações por escrito, a poucos encaminhamentos práticos sobre as mortes em questão152. Às disputas por “morte” ou “homicídio” no texto da resolução recomendatória do CDDPH, somaram-se discussões sobre conjunções, eufemismos, vieses e melindres – detalhes ao mesmo tempo gramaticais e políticos nesse debate público sobre um enquadramento que, desde o período ditatorial no Brasil, habita o conjunto de recursos acionáveis dentro da engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas. Após a publicação da referida resolução, os movimentos sociais acompanham atentos uma movimentação mais desafiadora – em se tratando de posicionamentos e decisões no âmbito federal – a respeito do registro do “auto de resistência”: a tramitação do Projeto de Lei 4471/2012153 na Câmara dos Deputados de Brasília. No quarto capítulo desta tese retomo, a partir de outro ângulo, a centralidade dos registros, dos textos e dos papéis de Estado para o funcionamento da engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas ocorridas em ações militarizadas.

152

É fundamental destacar após a publicação da Resolução do CDDPH, mais precisamente em janeiro de 2013, a Polícia Civil do Rio de Janeiro determinou o fim do registro “auto de resistência”. Ainda que haja notícias de que o registro continua sendo realizado, o reconhecimento da inconstitucionalidade do mesmo por parte da PCERJ pode ser considerado uma conquista dos movimentos sociais. A Rede contra Violência produziu inclusive uma nota, fazendo suas considerações a respeito da determinação. A Portaria pode ser lida no anexo 5, junto à nota da Rede. 153

“O Projeto de Lei 4471/2012 tem como objeto a alteração do Código de Processo Penal (artigos 161, 162, 164, 165, 169 e 292) para, a partir de medidas normativas entornadas a garantir a exaustiva apuração de casos de letalidade derivada do emprego da força policial, extirpar de vez do cotidiano policial as figuras da “resistência seguida de morte” e dos “autos de resistência”.” (Nota pública pela célere aprovação do Projeto de Lei 4471/2012, assinada por Ação dos Cristãos Para Abolição da Tortura (ACATBRASIL); Associação dos Servidores do IBGE de São Paulo (SSIBGE/SP); Associação Juízes Para a Democracia (AJD); Associação Pela Reforma Prisional (ARP); Brigadas Populares; Centro de Direitos Humanos e de Educação Popular Campo Limpo (CDHEP); Centro de Direitos Humanos Sapopemba (CDHS); Círculo Palmarino; Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN); Fórum de HIP HOP – SP; Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD); Instituto de Estudos da Religião (ISER); Instituto Paulista da Juventude; Instituto Práxis de Direitos Humanos; Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC); Justiça Global; Levante Popular da Juventude; Mães de Maio; Movimento Negro Unificado (MNU); Núcleo de Consciência Negra na USP; Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo; Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo; Pastoral Carcerária – CNBB; Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo – CNBB Sul I; Pastoral da Juventude da Arquidiocese de São Paulo; Pastoral da Juventude do Regional Sul 1 – CNBB; Rede Extremo Sul; Rede 2 de Outubro; Setorial Nacional de Negras e Negros da Central de Movimentos Populares do Brasil (CMP); Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo.).

113

Parte II

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Advertência

Os capítulos que compõem esta segunda parte da tese adicionam ao debate análises desenvolvidas a partir de encontros relacionados a dois casos específicos de violência institucional em favelas que, embora não estejam mais em fase de inquérito policial, ainda não se encontram em etapas avançadas dos respectivos processos judiciais. A documentação relativa aos processos em questão, a mim disponibilizada pelos familiares das vítimas fatais, é tão fundamental para a elaboração das análises que compõem os capítulos 3 e 4 quanto os encontros já mencionados – e tanto os encontros quanto os documentos relativos a esses dois casos de violência institucional recebem um tratamento diferente nesta segunda parte da tese. Tal diferença está atrelada, de forma considerável, à alteração ou ocultação de informações em ambos os capítulos da Parte II: os nomes das favelas foram substituídos por nomes fictícios, assim como os nomes das vítimas fatais e de seus respectivos familiares; as datas (mês e ano, especificamente) dos episódios também sofreram modificações; as profissões das vítimas fatais foram substituídas; o número dos batalhões nos quais estavam lotados os policiais militares que participaram das operações em questão foi ocultado das descrições, bem como os nomes dos agentes indiciados; por fim, foram substituídos também os nomes dos profissionais ligados a outros órgãos estatais envolvidos com os processos judiciais de cada caso. Como pessoas, papéis e situações conectados a ambos os casos habitam tanto o capítulo 3, quanto o capítulo 4, avaliei que esta segunda parte da tese poderia conter uma espécie de introdução, que apresentasse de forma resumida154 esses dois casos de violência institucional – daí a redação desta advertência. Antes das referidas apresentações, no entanto, gostaria de dizer ainda que desidentificar os casos não é apenas um recurso para evitar interferferências indesejadas nos processos judiciais em questão, mas é também uma forma de reforçar um dos argumentos sustentados ao longo deste estudo: não existe nenhuma favela no Estado do Rio de Janeiro – tendo sido 154

Apresento aqui descrições mais resumidas tendo em vista que ao longo dos capítulos que se seguem, passagens e informações mais detalhadas relativas a cada caso vão sendo adicionadas ao texto na medida em que se desenvolve a análise.

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instalada em seu território uma Unidade de Polícia Pacificadora ou não – na qual o direito à vida da população local seja respeitado e garantido. Ainda que as favelas sejam muito diferentes entre si, ainda que a presença do Estado em cada uma delas também se dê de diversas maneiras, há algo na relação do Estado com as favelas que não muda: a possibilidade de governar as mortes de seus moradores. Vale lembrar que esta parte da tese é construída a partir da exploração de caminhos mais capilares das relações estado-margens, conforme explicitado na introdução deste estudo, através dos quais entramos em contato com práticas de governamentalidade (Foucault, 2008b) menos visíveis na composição da engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas. Assim sendo, importa menos em quais favelas se deram os episódios de violência e mais as engrenagens estatais articuladas em torno desses episódios; importa menos – sempre pensando nesta etapa específica da análise – quem foi o morador que morreu e mais as pequenas movimentações de agentes de Estado capazes de interferir na qualificação daquela morte enquanto uma execução sumária. Dito isto, vamos aos casos da Parte II.

Morro do Russo, zona sul do Rio de Janeiro – junho de 2008 Durante uma incursão da Polícia Militar realizada no fim da tarde de um dia de semana no Morro do Russo, alguns dos agentes que participavam da operação se esconderam em um dos becos da favela e ali permaneceram. Ao sairem do esconderijo, os policiais, encapuzados, atiraram e mataram Fernando Sabino de Figueiredo, Jonathan Freitas Murtinho, Pedro Henrique de Almeida Lopes, Rodrigo Firmino da Silva e Hugo Venâncio de Souza no momento em que Emanuel se dirigia para um bar próximo do local onde havia sido preparada a emboscada. Outros moradores que se encontravam nas proximidades viram quando Emanuel Cardoso da Conceição foi abordado. Contam que ele chegou a levantar os braços, dizendo que estava voltando do trabalho, pedindo para mostrar os documentos, mas os policiais o levaram ao chão e atiraram na sua cabeça. Alguns moradores que não viram as execuções, mas que estavam próximas do local e também prestaram depoimento na delegacia encarregada do inquérito, 116

afirmaram que ouviram um “rajadão”155, depois vários tiros bem alternados, e depois outro “rajadão” – e todos os depoentes explicaram que aquele não era o mesmo som que ouvem quando acontece troca de tiros no morro. Os familiares de Emanuel acompanharam a investigação desde o início, entraram em contato com a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e com a Rede de Comunidades

e

Movimentos

contra

Violência,

para

a

continuidade

dos

encaminhamentos. Quatro policiais militares foram denunciados pelo Ministério Público, acusados pelo homicídio156 de Emanuel e, aproximadamente um ano após sua morte, foi marcada a primeira audiência de instrução e julgamento do caso, dando o seguimento esperado pela família ao processo judicial, que passou a correr na 2ª Vara Criminal da Comarca da Capital157. O processo relativo à execução de Emanuel vinha sendo acompanhado pelo NUDEDH, o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e, durante o período de realização do trabalho de campo para esta tese, o profissional deste núcleo responsável pelo caso era o defensor público Frederico Chagas, também chamado de Dr. Frederico, ou apenas de Chagas, pelos familiares de vítimas. Dentre os familiares de Emanuel mais atentos ao processo judicial, dois de seus irmãos – João Luiz e Mário –, e também sua irmã Alexandra, mostraram-se mais dispostos a acompanhar de perto os devidos encaminhamentos. Foi através deles e dela que se aproximaram do caso outros profissionais capazes de somar forças aos encaminhamentos relativos ao processo, como Dr. Saul, um perito legista aposentado da Polícia Civil que, em função

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Expressão reproduzida do “Termo de declaração” produzido pela Delegacia de Polícia responsável pelo inquérito e enviado em cópia ao NUDEDH, sendo incorporada ao processo do caso. Como anunciado na introdução desta tese, tive acesso a este e outros documentos trazidos para a análise especialmente nesta segunda parte da tese através da autorização da família de Emanuel, que solicitou ao defensor público responsável pelo caso o empréstimo das pastas do processo para que eu pudesse fazer uma cópia. A todos eles deixo registrado, mais uma vez, um agradecimento sincero por sua interlocução e pela confiança depositada no meu trabalho. 156 Os quatro policiais militares foram acusados por homicídio qualificado. Na capa do processo do caso, registra-se o artigo do Código Penal referente ao crime, que copio aqui adicionando as respectivas definições entre parênteses: Art. 121 (“Matar alguém”), parágrafo 2º (“Se o homicídio é cometido”), incisos I (“mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe”) e IV (“à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido”). A ação empreendida é caracterizada, então, como uma penal de competência do Júri. 157 Até o momento de conclusão desta tese, o processo ainda se encontrava nas etapas de audiências de instrução e julgamento.

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de uma atuação enquanto pesquisador do seu próprio ofício, realizou um parecer técnico a partir da documentação relativa à execução de Emanuel.

Parque Andrade, zona norte do Rio de Janeiro – dezembro de 2010 Era sexta-feira à tarde. Numa rua do Parque Andrade, pouco antes de chegar na Av. Brasil, policiais militares do BPM da região entraram numa casa e se esconderam na laje – configurando a preparação de uma tática conhecida como Cavalo de Tróia, assim definida quando parte de um grupamento de policiais não retorna ao batalhão, preparando uma emboscada (um “ataque surpresa”) na favela onde a operação havia sido realizada. Assim foi feito aquele dia no Parque Andrade e, de cima da laje onde ficaram escondidos, os policiais miraram na direção de uma padaria e atiraram. Os disparos atingiram seis moradores. Dois morreram: Roger, um pintor de parede de 39 anos, e Vicente, que tinha 18 anos e era estudante. Dentre os sobreviventes da operação, Adriano, um rapaz de 22 anos que trabalhava como caixa na padaria, foi atingido na cabeça, ficando com sequelas graves. Sua esposa, Carolina, se juntou à Pricila, viúva de Roger, para levar a investigação do caso à frente. Foram atendidas pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj e de lá encaminhadas para a Defensoria Pública e para o Ministério Público. As testemunhas prestaram seus depoimentos na Delegacia de Homicídios da Barra, policiais da Divisão de Homicídios apreenderam as armas dos agentes da PMERJ, para que fosse realizado o exame de confronto balístico no Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) e uma perícia foi realizada no local. Passados 15 meses da operação no Parque Andrade, foi realizada a primeira audiência de instrução e julgamento dos policiais militares acusados de envolvimento com os crimes associados àquele episódio, tendo sido quatro, do número total de policiais indiciados, acusados por homicídio qualificado. O processo judicial do caso também corre na 2ª Vara Criminal da Comarca da Capital158.

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Até o momento de conclusão desta tese, o processo ainda se encontrava nas etapas de audiências de instrução e julgamento.

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Capítulo 3. Imbricação “Estado-família”: capilaridades extremas da gestão

Sei que o perigo é do meu lado Chegando do trabalho, cansado Sei que posso ser baleado A Era de Cabral está de volta Segurança reforçada Us Neguin q Não C Kala e Família Kponne, Lágrima de Sangue

No intuito de compreender a engrenagem da gestão das mortes dos moradores de favelas a partir da identificação e da análise de práticas de governamentalidade (Foucault, 2008b), enfoco neste capítulo desdobramentos políticos de um encontro entre familiares de Emanuel, vítima da Chacina do Morro do Russo (apresentada na Advertência que abre esta segunda parte da tese) e o defensor público Frederico Chagas. Antes da descrição do encontro, no entanto, gostaria de registrar que o enquadramento das movimentações “de família” e “de Estado” aqui empreendido é pautado pelas considerações de Foucault (2008a) sobre a família enquanto referencial no processo de configuração de uma nova “arte de governar”. A partir dessa linha interpretativa a família é localizada enquanto um elemento no interior da população – localização fundamental para compreendermos as novas possibilidades de arranjos governamentais que surgem a partir de então, afinal trata-se da família como segmento da população e como instrumento privilegiado para se pensar e compreender e, no limite, governar a população. Segundo Foucault (2008a), o desbloqueio da arte de governar pela população está diretamente conectado com a eliminação do modelo da família – no entanto, é fundamental compreender que a eliminação do modelo não corresponde à eliminação do elemento “família” dos arranjos políticos: a “família” apenas vai mudando de lugar. Assim é possível acompanhar o deslocamento de “família” no interior do próprio desenvolvimento da “economia política” – ícone da passagem de um regime dominado

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pelas estruturas da soberania para um regime dominado pelas técnicas do governo159. Como chama atenção Foucault, ao produzir o verbete “economia política” para a Enciplopédia, Rousseau aciona “família” ao registrar a origem da palavra “economia”: “o sábio governo da casa para o bem comum da família”. O desenvolvimento do argumento foucaultiano conta com a articulação entre a meticulosidade da gestão familiar pela figura do pai e o acionamento desta meticulosidade para a gestão governamental de populações. Na situação analisada neste capítulo a partir do encontro entre a família de Emanuel e o defensor público, é possível identificar uma atualização do acionamento da família para rearranjos de gestão – no entanto, tal acionamento é realizado em mão dupla, tornando evidentes as habilidades dos familiares de vítimas para se moverem por entre a malha administrativa governamental, como discuto a partir da cena a seguir.

Cena 4. [Final de fevereiro de 2011, cerca de uma hora após o adiamento do julgamento de um dos casos acompanhados pela Rede contra Violência.] Estávamos saindo do Fórum do Rio de Janeiro, a caminho do prédio anexo da Defensoria Pública, onde se localizava a sala do NUDEDH, para que os familiares pudessem conversar com o defensor público sobre o adiamento do julgamento e pensar possíveis encaminhamentos a partir disso. No grupo, havia familiares de três casos diferentes e eu, somando 6 pessoas no total. Uma das familiares recebeu um telefonema sobre a detenção arbitrária de uma moradora do Complexo do Alemão por “desacato à autoridade”160 e se despediu do grupo para agir em relação àquela nova demanda. Nos dirigimos então à sala do defensor Cléia, mãe de Otávio, executado por policiais em 2001, Alexandra, Mário e João Luiz, irmã e irmãos de Emanuel, vítima fatal da Chacina do Russo e eu. Como o motivo do adiamento tinha sido explicado no próprio

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“A constitução de um saber de governo é absolutamente indissóciável da constituição de um saber de todos os processos que giram em torno da população no sentido lato, o que se chama precisamente “economia”. [...] é apreendendo essa rede contínua e múltipla de relações entre a população, o território e a riqueza que se constituirá uma ciência chamada “economia política” e, ao mesmo tempo, um tipo de intervenção característica do governo, que vai ser a intervenção no campo da economia e da população” (Foucault, 2008: 140). 160 Artigo 331 do Código Penal Brasileiro: “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”.

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Fórum – a existência de uma infiltração no plenário do Tribunal do Júri no qual aconteceria o julgamento161 – os familiares aproveitaram a oportunidade do encontro com o defensor para pensar nos próximos passos não só daquele, como de outros casos. No meio da conversa, o defensor começou a contar um episódio de violência policial ocorrido no Parque Andrade. Aí pegou um pedaço de papel, onde estavam anotados um nome e um telefone e entregou na mão de João Luiz, dizendo que gostaria que ele entrasse em contato com a família de um dos sobreviventes daquela incursão policial, pois os familiares deste sobrevivente e também os familiares de uma das vítimas fatais estavam com dificuldades para dar andamento ao caso, que ainda estava em fase de inquérito policial. A realização daquele pedido concretizou algo extremamente importante para a análise que venho desenvolvendo: esses encontros que eu observei durante o trabalho de campo não podem ser lidos numa chave de mão única do tipo “familiares de um morador de favela que foi executado por policiais buscando a orientação de um defensor público que atua no campo dos Direitos Humanos”. O que se configurou ali naquele dia, de maneira informal, foi um acordo de cooperação entre o defensor e o irmão da vítima – situação que se desdobra em variações da imbricação “Estado-família” que exploro neste capítulo162.

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Os adiamentos de audiências de instrução e julgamento relativos aos casos de homicídio praticados por agentes de Estado nas favelas do Rio de Janeiro têm sido constantes. Cada adiamento significa um momento bastante difícil pra toda a militância, mas em especial para os familiares mais diretamente envolvidos com os respectivos casos. Embora momentos assim tenham preenchido o cotidiano do trabalho de campo que realizei, não os aciono diretamente enquanto objeto de análise. Para uma abordagem politicamente comprometida com os coletivos dos familiares de vítimas sobre esses adiamentos, consultar Vianna (2011). 162 Este capítulo é construído a partir de uma análise preliminar do material aqui explorado, apresentada na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, no Grupo de Trabalho “Famílias e ações estatais de gestão: práticas, moralidades e estratégias”, coordenado pelas professoras Adriana Vianna e Maria Gabriela Lugones. Através das propostas de embaralhar os campos semânticos morais de “família” e de “estado” e de estourar alocações prévias de “família” enquanto um signo em si de valor moral e de valor afetivo e de “estado” enquanto a burocracia administrativa, a força ou o poder coercitivo, o GT privilegiou o debate de trabalhos realizados em contextos de gestões particulares de violências de diferentes ordens. Muitas das interlocuções ali estabelecidas estão refletidas direta ou indiretamente nesta tese, mas gostaria de fazer um agradecimento especial à professora Maria Gabriela Lugones, debatedora da sessão na qual apresentei minha comunicação, pelos comentários e críticas extremamente valiosos para o desenvolvimento da análise aqui impressa. Agradeço também ao professor John Comerford pela sugestão certeira para redação da passagem do trabalho de campo apresentada aqui enquanto Cena 5.

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Entendendo que tal acordo e seus desdobramentos oferecem elementos chave para pensar diferentes ângulos desta pauta de investigação, elaborei uma divisão de seções para este capítulo orientada a partir de três perguntas: Que tipo de interlocução “Estado-família” é essa? Como tal interlocução produz atualizações do exercício do poder de Estado? Como se configuram as legitimidades “de Estado” e “de família” no desenho destas atualizações? 3.1 Que tipo de interlocução “Estado-família” é essa? Em todas as reuniões entre os familiares de Emanuel e este defensor que tive a oportunidade de acompanhar, foi possível perceber que João Luiz, um dos irmãos de Emanuel, havia criado um vínculo mais estreito com o defensor, que o colocava em diferentes momentos das conversas não só como seu interlocutor principal, mas como uma espécie de parceiro naquela empreitada. Não à toa foi justamente a João Luiz que Frederico Chagas, durante este encontro no início de 2011, confiou esta tarefa que não estava ligada ao caso de Emanuel. Nesta seção do texto dedicada à tarefa de pensar sobre que tipo de interlocução “Estado-família” é essa, considero importante compreender o quê, nesta situação, é configurado e lido enquanto “Estado” e enquanto “família”. Embora esta discussão alimente e atravesse praticamente todo este capítulo, e, portanto, os distintos pólos continuem recebendo os holofotes que merecem, gostaria de explicitar – realizando brevemente um exercício de abstração – algo que está dito, mas não com as mesmas palavras, nas linhas e entrelinhas deste estudo. Pensando em escalas e variações tanto para “família”, quanto para “Estado”, seria possível, a partir da Cena 4, condensar numa primeira escala “a família” na figura de João Luiz e “o Estado” na figura de Frederico. Irmão e defensor cumprem papéis específicos e interagem se reconhecendo mutuamente enquanto “família” e “Estado”. Num outro plano, estamos aqui diante de três irmãos que, juntos, representam a família de Emanuel em uma reunião realizada em uma das salas de um núcleo específico da Defensoria Pública do Rio de Janeiro – aqui, então, “família” ganha corpo na família de

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Emanuel e “Estado” aparece como o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUDEDH). Entendendo que a ida desta família de Emanuel ao NUDEDH se dá em um contexto de criminalização de todo e qualquer morador de favela, não há como não estabelecer uma conexão direta entre o percurso desta família em sua busca por justiça com o esforço que marca o cotidiano dos moradores de favelas (as cariocas, pelo menos, mas nada impede que alarguemos o raciocínio para as demais favelas e periferias de outras cidades brasileiras) em realizar o que Machado da Silva e Leite (2008) chamam de “limpeza moral”. Diante deste quadro, a ida da família de Emanuel ao NUDEDH, para além de instituir a possibilidade do acesso de toda a comunidade do Russo àquele segmento de Estado (e aqui me refiro à Defensoria Pública Geral, e não só a um de seus núcleos temáticos), corresponde a um esforço pela descriminalização da própria vítima já morta que está atrelado a este movimento cotidiano que busca a restituição da dignidade não só do morto, mas da sua família e, por extensão, da sua comunidade e das populações faveladas em geral163. Aqui nesta sequência, teríamos uma espécie de extensão da família de Emanuel para a comunidade do Russo, entendendo comunidade aqui não a partir da lógica de “valorização do eufemismo” (Birman, 2008) – como se comunidade fosse um substituto moralmente mais adequado, possível de ser acionado sem, no entanto, não afrontar o estigma, como bem ressalta Birman –, mas no que talvez seja um sentido mais romântico de comunidade, aquele que privilegia a existência de laços estreitos de afeto, companheirismo e fraternidade entre os moradores; ou seja, aquele sentido de comunidade empregado pelos próprios moradores de favelas que enfatizam que seu local de moradia possui uma “densidade afetiva própria” (Birman, 2008: 110). Os laços de afeto, companheirismo e fraternidade que mencionei anteriormente são enaltecidos pelos próprios moradores hoje em dia em situações muito específicas (daí eu assumir o caráter romântico) que só encontram correspondência concreta (ao 163

Esta chave de leitura se alimenta diretamente do enquadramento que Adriana Vianna e eu construímos para trabalhar esta extensão da criminalização/descriminalização do morto em conexão direta com a figura da “mãe de vítima” – que, em diferentes situações, aparecem e se expressam enquanto “sujeitos da díade mãe-filho” (Vianna e Farias, 2011).

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menos a partir da base empírica com a qual trabalho) em situações passageiras, expressões ou gírias que indiquem essas relações afetivas entre os moradores de uma determinada favela com os outros moradores e com a própria localidade onde residem. Dizer que dá pra confiar em fulano porque fulano é “sangue bom” e mora lá no “morrão” ou justificar a impossibilidade de corte de uma relação cordial com um morador que passou a desempenhar alguma função numa “boca de fumo” local porque este morador “é cria da comunidade” e jogou bola com seu filho são exemplos que poderiam ser usados para pensar esta dimensão de fratria/fraternidade/irmandade, também presente na correlação entre “favela” e “comunidade”, e que conectaria num mesmo campo “família”, “comunidade” e “favela”. Todo este circuito supõe, na outra ponta, o correspondente do “Estado” nos respectivos arranjos – o que me obriga a retomar o fio condutor do exercício de abstração do ponto de onde interrompi a sequência agrupada dos polos “família” e “Estado” para pensar as possibilidades de extensão da “família de Emanuel” até chegar na “favela” genérica. Retomo daqui, então, a partir do polo que ficou suspenso, para, em seguida, recuperar a leitura pela conexão dos polos agrupados. É importante dizer que o NUDEDH se propõe a desempenhar uma tarefa que, sob o olhar de muitos profissionais que atuam na Defensoria Pública Geral, corresponde ao inverso do que seria a missão do defensor público, visto que os integrantes deste núcleo participam dos processos atuando como assistentes de acusação dos policiais164. Seguindo a leitura analítica que teria como objetivo esclarecer sobre que “Estado” se está falando, esta forma de atuação dos profissionais do NUDEDH nos coloca diante de um órgão do “Estado” cujas subdivisões internas se chocam – o que é exemplar para pensarmos nas múltiplas agências que compõem essa engrenagem estatal que se supõe

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Esta espécie de incompatibilidade da atuação dos profissionais do NUDEDH com o conjunto geral dos defensores da Defensoria do Rio me foi relatada pelo próprio Frederico Rosa e pode ser melhor compreendida a partir da seguinte explicação: “Essa atuação às vezes é vista como inadequada à função de defensores públicos, porque os leva a acusar o réu ao invés de defendê-lo. A explicação dos profissionais deste Núcleo é que, enquanto defensores públicos posicionados contra violações de direitos fundamentais, é a defesa ao direito à vida o que define sua atuação como assistente de acusação” (Vianna e Farias, 2011).

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soberana e rearticula cotidianamente saberes específicos ao se relacionar com suas “margens” a fim de renovar e perpetuar tal soberania. Reagrupo, portanto, os polos “família” e “Estado” nesta esfera analítica, puxando como um bloco a extensão “família de Emanuel”-“comunidade do Russo”-“favela” e o colocando diante deste “Estado” que – “segmentado e conflituoso”, como nos chama atenção Souza Lima (2002) – atua em defesa da vida e da dignidade dos moradores de favela (via os profissionais do NUDEDH) após esta mesma vida ter sido interrompida através da ação de agentes de outra instância estatal (no caso, a Polícia Militar)165; agentes que serão denunciados pelo Ministério Público e que poderão acionar para se defender da acusação pelo crime de homicídio o serviço gratuito oferecido pela mesma Defensoria Pública na qual está alocado o NUDEDH. Vale ressaltar que este exercício de abstração também é construído a partir da compreensão de que as relações estabelecidas entre os familiares de Emanuel e o NUDEDH evidenciam formas elaboradas pelos próprios familiares de vítimas para acionarem as especificidades dos diferentes segmentos de Estado: o Estado, na situação em análise, não é acionado em abstrado, é acionado a partir de suas unidades administrativas, é acionado via profissionais que atuam nessas unidades, identificados enquanto aliados. Como analisa Vianna (2013a), ao Estado em sua dimensão totalizante, como unidade de evocação, como Estado-ideia (Abrams, 2006), se contrapõe à competência dos familiares em transitarem por entre os diferentes segmentos de Estado, em dominarem os códigos administrativos que marcam essa dimensão rotineira e institucional do Estado nos termos trabalhados por Souza Lima (2002). Para que o esforço pelo agrupamento das correspondências entre os polos “família” e “Estado” não fique perdido nas sequências e arranjos espalhados pelos parágrafos anteriores, decidi organizá-los em um quadro que sintetiza o percurso do exercício de abstração: como parti da relação entre um dos irmãos da vítima Emanuel e o defensor Frederico Chagas e fui afastando o zoom até parar na dupla “margens” e “soberania”.

165

Na realização deste exercício de abstração algumas das conexões mais complexas entre diferentes órgãos governamentais e a gestão das mortes dos moradores de favelas estão de certa forma suspendidas para não interromper o ritmo da montagem sequencial que preenche esta seção.

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Margens

Soberania

Favela

Estado

Morro do Russo / “Comunidade” do

Defensoria Pública

Russo Família de Emanuel

NUDEDH

João Luiz

Frederico

“Família”

“Estado”

Feito isto, retorno agora ao plano “pé no chão”, com pessoas de carne e osso, suas ações e histórias, para pensar nas atualizações do exercício do poder de estado que podem ser elaboradas a partir de um dos encontros entre esse “Estado” e essa “família”. 3.2 Como tal interlocução produz atualizações do exercício do poder de Estado? Após o pedido do defensor, não demorou muito para que João Luiz entrasse em contato com Carolina, esposa de Adriano, sobrevivente da incursão policial que em dezembro de 2010 provocou a morte de Roger, um pintor de parede de 39 anos, e Vicente, que tinha 18 anos e era estudante. Como apresentado na Advertência, tal incursão foi realizada no Parque Andrade por policiais militares e além das duas vítimas fatais, deixou feridos outros três moradores. Adriano tinha 22 anos na época da incursão. Por conta dos disparos que o atingiram, possui sequelas de locomoção e fala. A partir da demanda do defensor Frederico Chagas, então, João Luiz marcou com a esposa de Adriano uma visita à casa deles. Fui convidada por João Luiz para acompanhá-los nesta atividade, que aconteceu no dia 05 de março de 2011, um sábado de carnaval166. Cena 5. [Avenida Brasil, por volta das 15h.] Encontro Alexandra, João Luiz, Mário e Raquel e entramos na Parque Andrade, em direção à casa de Carolina e Adriano. Somos recebidos na porta da casa pelas filhas de Carolina. Do lado de dentro, na sala, Adriano nos esperava sentado na cadeira de rodas. Em poucos minutos,

166

Levando em conta que dificilmente tal visita aconteceria neste mesmo dia se tivesse que ser realizada por uma equipe de profissionais de algum órgão governamental, a divulgação do “detalhe” da data reforça o que, em uma primeira leitura, pode ser entendido como um caráter “extraoficial” da situação. Este aspecto é retomado ao final desta seção.

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Carolina também aparece e a conversa começa muito rapidamente, sem apresentações, com Alexandra contando que buscou na internet algumas matérias de jornal sobre o caso, para se inteirar da situação antes de fazer a visita, mas que estava ali para ouvir a família. Pergunta se eles receberam algum tipo de apoio emocional, alguma orientação. Carolina conta que estava sendo acompanhada pelo pessoal do Marcelo Freixo167, que já tinha ido prestar depoimento na Delegacia de Homicídios, na Barra, onde informaram que seria necessário que Adriano e um primo dele, que também testemunhou os crimes, fizessem o reconhecimento dos policiais que atuaram na operação. Em menos de cinco minutos de conversa, se arma o seguinte diálogo: Alexandra: Você tem algum documento? Porque vocês foram na delegacia e formalizaram uma denúncia, não é isso? Carolina: Tenho a cópia do... João Luiz: Do RO? Do BO? Carolina: Isso, do RO. Alexandra: Ah, eu queria, pra anotar o número. Carolina [para uma das filhas]: Pega a pasta que tem aí com os documentos dele. João Luiz: Traz os documentos todos que você tem aí, que até hoje vocês oficialmente fizeram. Carolina: A gente tá sempre em cima, junto do pessoal do Marcelo, perguntando... Raquel: Mas se vocês também não reconhecerem [os policiais] não adianta, não tem como... Alexandra: Muita calma nessa hora. Ela tem o número registro de ocorrência, fez a queixa. A gente precisa agora saber em que pé tá essa queixa. Raquel: Não tá em pé nenhum, porque não pode ter virado nada sem o reconhecimento.

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Carolina aqui se refere aos integrantes da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj.

127

Alexandra: Beleza, mas agora a gente precisa saber como eles vão fazer esse reconhecimento sem expor as pessoas. Isso a gente tem que bater em cima. Vamos procurar saber como a gente vai fazer esse reconhecimento e continuar efetivando essas denúncias sem expor as pessoas. Carolina: Ele [o policial da Delegacia de Homicídios] até falou que o doutor Frederico poderia ir junto com a gente. Mas tá sendo muito difícil falar com ele. Raquel: Frederico Chagas? A gente faz uma comissão e vamos juntos. João Luiz: quinta-feira agora a gente vai estar com ele lá na Defensoria Pública. Se você tivesse com um tempinho e se pudesse ir lá com a gente seria até uma, às duas horas da tarde, entendeu, a gente lá faria esse debate com ele, pra você formalizar, oficializar essa denúncia, entendeu.

Depois os integrantes da Rede tranquilizam Carolina, dizendo q a Delegacia de Homicídios da Barra é diferente, investiga quieta, é mais séria – impressão que a esposa do sobrevivente confirma com a informação de que o policial responsável pela investigação foi buscá-la em casa para ir à Barra prestar seu depoimento e depois a deixou no hospital onde Adriano realizava um atendimento. Ainda se discute mais um tempo sobre a questão do reconhecimento dos policiais, se seria possível acessar as placas das viaturas utilizadas e/ou os registros dos GPS das mesmas, para que a autoria do crime fosse definida e os policiais pudessem, então, ser indiciados. Passado todo este momento bastante importante da conversa, Mário, que até então estava mais calado, inicia a apresentação do grupo: Mário: Quem indicou a gente pra vir aqui foi até o Dr. Frederico Chagas... João Luiz: ... foi o Dr. Frederico Chagas que pediu pra gente dar um apoio pra vocês... Mário: ...porque o caso de vocês tava parado... João Luiz: ...nós somos parentes também, de vítima, né, tivemos um irmão assassinado também... Mário: ....e a gente sempre se mobiliza, porque a Rede trabalha assim, a gente se mobiliza, todo mundo, porque somos a Rede contra Violência, Rede de Comunidades contra Violência...

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A apresentação é interrompida por um telefonema para Carolina. Era Pricila, viúva de uma das vítimas da mesma operação policial – que, ao informar que poderia ir ao nosso encontro, já recebeu de Carolina a orientação para levar toda a documentação que possuísse sobre o caso. Os integrantes da Rede começam a olhar a documentação sobre Adriano reunida na pasta e a conversa vai se desenrolando ora sobre o que estava registrado na papelada, ora sobre o trabalho de Carolina e as alterações inevitáveis no cotidiano do casal após a operação policial. Nesta altura da conversa João Luiz avisa que ele estava realizando uma gravação em áudio para que eu produzisse um relato do caso pro site da Rede e pergunta pra Carolina se ele teria a permissão dela para fotografar as lesões de Adriano. Carolina não só autoriza como pergunta se temos o e-mail do Frederico Chagas para enviar as fotos pra ele, porque ela tinha ficado de enviar mas não anotou o e-mail. Alexandra pede uma foto de Adriano antes de ser atingido, diz que é pra incluir no relatório, com uma foto dele agora: pra fazer um antes e depois. Carolina diz que, no computador, guarda fotos dele no hospital, aí Alexandra passa o e-mail dela, para Carolina enviar as fotos depois. Perguntam se ela já entregou essas fotos tiradas no hospital pro Frederico Chagas e ela diz que sim. João Luiz começa, então, a fazer os seus registros. As fotos são feitas com câmera digital, levada pelo próprio João Luiz, que nos solicita: façam algumas perguntas pra ele porque eu vou tentar fazer um framezinho pequeneninho assim, de como ele está conseguindo falar hoje. Nessa hora, a partir das perguntas – a maioria delas feitas por Lu – é reconstruído mais uma vez o momento dos disparos: Você viu mais alguém sendo baleado nesse dia? Perguntou João Luiz. Aí Adriano diz que viu o primo sendo baleado e que o primo foi baleado antes dele. Neste momento, João Luiz aproveita pra fazer um resumo do caso – via depoimentos gravados, em registro áudiovisual. Depois prossegue com os registros fotográficos. Na conversa, Carolina diz que o caso havia sido mencionado em um programa de televisão (da Record) e os integrantes da Rede anotam, para procurar depois o programa e inserir no relatório. Carolina diz q salvou um arquivo do G1. Raquel lê toda a notícia em voz alta e vai fazendo intervenções, com suas opiniões sobre o caso, durante a leitura. Após cerca de uma hora, Pricila chega à casa de Carolina. Logo após se apresentar, diz que é muito difícil ir até lá, porque a cada vez que vai ao Parque Andrade, ela tem que reviver tudo de novo. A contrapartida da apresentação desta vez fica a cargo de Alexandra: Nós 129

também estamos no mesmo barco. Eu sei que é doído, mas se a gente não começar a unir forças sabe lá Deus de onde, tentar correr atrás, a gente não consegue... A integrante da Rede, então, resume como atua o coletivo e relembra à Patrícia o propósito daquela visita, que já tinha sido explicado por telefone. O mesmo procedimento em relação à documentação é realizado: João Luiz pede à Patrícia para ver o laudo cadavérico, a certidão de óbito e o BAM – Boletim de Atendimento Médico. Pricila não encontra o laudo, mas diz que tem, que já viu. Alexandra explica que se ela não achar, ela pode pedir no IML, porque ela como esposa, tem o direito. O convite para ir ao encontro do Dr. Frederico na quinta-feira também é feito à Pricila. Pricila tinha muitas dúvidas sobre os compromissos dela caso o processo judicial fosse iniciado. Diz que como esposa do falecido, quer justiça, quer que o caso vá pra frente, mas não quer botar a cara. Fala-se muito, a partir de então, sobre aspectos positivos da atuação junto ao movimento social, especialmente junto a outros familiares. No adiantado da conversa, foram relembrados outros casos de pessoas que foram assassinadas durante incursões policiais naquela mesma favela e são refeitos os cálculos relacionados à possibilidade de testemunhas mais próximas prestarem seu depoimento. Carolina e Pricila expressam, então, a demanda para que algum dos integrantes da Rede pudesse intervir em relação a uma testemunha muito importante que estava com receio de contar o que viu. Fica decidido que um dos familiares de Emanuel tentaria, portanto, conversar com essa testemunha para explicar sobre a importância do depoimento. Alexandra, Mário e Raquel saem na companhia de Carolina para procurar alguma lan house que estivesse aberta onde as cópias dos documentos pudessem ser feitas. João Luiz e eu esperamos na casa, com Adriano e Patrícia, até que os outros retornassem, para irmos juntos embora168.

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O relato desta cena foi produzido a partir das anotações no meu caderno de campo, mas tive o privilégio de poder utilizar também o registro em áudio realizado por João Luiz, como mencionado na introdução desta tese. Tal gravação, bem como os registros fotográficos e audiovisuais feitos durante aquela visita me foram entregues pelos familiares de Emanuel na semana seguinte – dádivas do trabalho de campo, em relação às quais todo tipo de gratidão e retribuição sempre me parece insuficiente. Também considero importante dizer que muitas passagens da conversa que não foram incorporadas à cena são acionadas ao longo do capítulo, na medida que a discussão assim demanda.

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Destacando, de início, algo evidente: trata-se de um trabalho de equipe, cujas competências169 de cada integrante se complementam na medida em que variam em relação aos graus de objetividade, expertise e eloquência de cada um. As maneiras de cuidar do caso e daqueles que de alguma forma estão a ele relacionados também são diferentes e, por esse mesmo motivo, juntas proporcionam um bom “resultado” – termo que pode remeter a um campo semântico do universo empresarial e que aqui é empregado justamente para demarcar as ações daqueles familiares de vítimas enquanto equipe formada por um grupo de pessoas que acumularam saberes específicos para agir em determinadas situações e que estavam ali aquele dia a pedido de um profissional do campo jurídico cuja atuação se dá em um órgão governamental, logo, um agente de Estado. Esse enquadramento da visita é determinante para a análise que desenvolvo, especialmente porque tive mais oportunidades para acompanhar integrantes da Rede realizando visitas daquele mesmo tipo a partir de demandas de outros moradores de favelas ou a partir de demandas políticas internas do coletivo, do que a partir da demanda de um agente de Estado. A afirmação que faço agora ficará mais compreensível ao final desta seção, mas considero pertinente registrar desde já que não é meu objetivo realizar uma crítica desta visita, e sim destrinchá-la enquanto situação

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O termo “competência” é acionado aqui no sentido proposto por Boltanski (2000) ao analisar a construção de denúncias públicas a partir de um conjunto de 275 cartas enviadas ao periódico Le Monde nos anos de 1979, 1980 e 1981 – investigação pautada pelo objetivo de “construir um sistema de regras que permitam determinar em que casos a atitude que consiste em protestar e dar voz publicamente tem possibilidades de ser reconhecida como válida, ainda que seja combatida, e em que casos a ignora ou desqualifica” (Boltanski, 2000: 243). Vale registrar que, reconhecendo as diferenças de background teórico-metodológico existentes entre esta tese e trabalhos produzidos a partir de perspectivas características de uma “sociologia pragmatista” ou de uma “sociologia das operações críticas”, considero as influências decorrentes desse campo de estudo enriquecedoras para a presente análise no que diz respeito a fragmentos do material empírico nos quais as ações dos familiares de vítimas podem ser compreendidas nesse horizonte de construção de uma denúncia pública. O percurso destes familiares exige uma certa aceleração no desenvolvimento de competências específicas tanto para a atualização dos repertórios de ação e mobilização – que correspondem ao que Boltanski (2000) chama de “fabricação do político”, quanto para intervenções públicas de tipos variados. A visita trazida na cena 5, embora ocorra numa residência – ambiente, a priori, da ordem do “privado” – está alocada em um contexto de consolidação de movimentações políticas sequenciais e abrangentes que interferem diretamente na “elaboração de problemas públicos” nos termos propostos por Freire (2005; 2007; 2008; 2010). Ainda sobre a utilização do termo “competência”, registro, por fim, que a conexão entre a descrição analítica desenvolvida nesta seção e uma perspectiva que valoriza os posicionamentos críticos dos atores sociais também se dá em função do questionamento de Boltanski sobre o “corte epistemológico entre competência científica e competência comum” (Dosse, 2003).

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em análise por acreditar que em sua especificidade habita um potencial de expansão para um ângulo importante da gestão governamental das mortes dos moradores de favelas. Dito isto, retornemos às competências dos familiares e demais fatores determinantes para os rumos da visita: listei anteriormente os elementos que variam; indico então que há também o invariável. Um componente da lista que não varia é o comprometimento político de cada familiar de vítima integrante desta Rede no momento em que realiza esse tipo de visita. Entendo que a combinação entre o laço de sangue com uma vítima fatal de violência institucional e esse comprometimento político com a causa configura uma determinada inscrição social que autoriza esses familiares a agirem livre e confortavelmente em relação a outros casos com os quais se deparam ao longo da sua caminhada. Não há entraves, por exemplo, para se solicitar os documentos antes de se apresentar. A própria apresentação, aliás, quando acontece, deixa ainda mais evidente que mesmo tendo se encontrado pela primeira vez aquele dia, aqueles familiares não precisam se conhecer – eles apenas se reconhecem170. As perguntas feitas sobre o caso e sobre como está sendo a nova rotina171 das famílias de Carolina ou de Pricila trazem informações adicionais, se for levado em conta que o fator central da transformação das rotinas é o mesmo em todos os casos: um episódio de violência institucional que provocou a morte de um membro da família (ou quase provocou, como na situação de Adriano). Durante a conversa, as semelhanças e diferenças de um caso pro outro são escutadas, comentadas e assim vai se concretizando a costura política daquele encontro: entre as trocas de relatos de dor e 170

Este aspecto da apresentação é discutido na seção seguinte. Utilizo o termo “rotina” no sentido trabalhado por Machado da Silva e Leite (2008) ao refletirem sobre possibilidades de contrução de uma “ordem rotineira estável” em contextos marcados por ações violentas de traficantes e também de agentes do Estado, como no caso das favelas do Rio de Janeiro. Os autores acionam elementos dos debates acerca da “modernização reflexiva” das sociedades contemporâneas, como a noção de “risco calculado” (Beck, 1997) e o conceito de “segurança ontológica” (Giddens, 1991; 2003) – com a devida ressalva para o fato de que “não se pode presumir a confiança dos moradores de favelas nas instituições estatais encarregadas da proteção aos cidadãos” – para a elaboração de um quadro interpretativo capaz de explicar como é possível “continuar”, como é possível “prosseguir” face a situações extraordinárias, ou, como os moradores de favelas conseguem “ajustar suas condutas às situações de violência, perigo e insegurança” (2008: 76). De acordo com esta linha analítica, o conjunto de aparelhos de controle social, “depositários da capacidade de impor regras generalizadas de conduta”, não são capazes de prover “garantias externas” a esse conjunto de cidadãos, os quais encontram, portanto, em sua própria experiência prática, as respostas para a administração de suas rotinas (Machado da Silva e Leite, 2008: 75). 171

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sofrimento, os familiares que já passaram por aquela experiência há mais tempo indicam as melhores estratégias para driblar burocracias, atrasos, ameaças, preconceitos e demais obstáculos que marcam o caminho a ser percorrido pelo caso e pelos familiares a ele conectados. Trata-se de um encontro no qual é possível compartilhar “os extremos do próprio perigo” (Vianna, 2013a) e fazer cálculos juntos, planejar os próximos passos, sempre mantendo a preocupação com a exposição: Vamos procurar saber como a gente vai fazer esse reconhecimento e continuar efetivando essas denúncias sem expor as pessoas. Os debates sobre como deveria ser realizado o reconhecimento dos policiais foram longos naquela tarde, mas independente da divergência de opiniões dos visitantes sobre o formato ideal para tal procedimento, a tarefa era encarada na primeira pessoa do plural, como no comentário de Alexandra destacado acima e em outros que surgiram no mesmo trecho da conversa. E assim como o reconhecimento dos policiais envolvidos na operação na Parque Andrade é transformada em um compromisso de todos os familiares presentes naquele encontro, também o é a organização da documentação do caso para ser entregue ao defensor. Os integrantes da Rede não ensinam a Carolina ou Patrícia o que elas deveriam fazer e vão embora: discutem ali, enquanto organizam juntos a papelada, sentados ao lado delas. Mesmo durante a realização dos registros audiovisuais, que João Luiz poderia optar por desempenhar isoladamente, o mesmo solicita ajuda dos demais presentes, dando continuidade à execução coletiva das tarefas mais objetivas que caracterizaram a visita. O desempenho do trabalho em equipe é marcado pela variedade de campos de saber acionados: domina-se modo de funcionamento de delegacia especializada, tecnologia de GPS, enquadramento de vídeo e fotografia, dialetos policial e jurídico, artigos do Código de Processo Penal, técnicas de perícia forense, procedimentos hospitalares, calibres de armas de fogo. Múltiplos saberes acumulados ao longo do tempo, especialmente um tempo cujo marco inicial data do dia da morte de um parente próximo – e essa especificidade diz respeito à forma de conduzir tarefas que

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praticamente qualquer pessoa poderia desempenhar; diz respeito à marca impressa pelos familiares ao executarem tais tarefas. Em diferentes momentos da visita foi mencionado um relatório, no qual as informações acerca do caso da Parque Andrade seriam reunidas. Para além da documentação, o material produzido naquela tarde para ser utilizado na produção do relatório era composto basicamente pelos registros realizados por João Luiz: fotografias, vídeo e gravação do áudio da conversa. Esse tipo de material poderia ser produzido e organizado por uma equipe do NUDEDH, uma equipe da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, uma equipe de profissionais que atuem em uma organização não-governamental de Direitos Humanos, ou uma equipe de pesquisadores que estivesse fazendo um trabalho acadêmico, como era o meu caso, na época da visita. No entanto, poder desempenhar uma mesma tarefa não significa desempenhar aquela tarefa da mesma forma: nenhuma dessas outras equipes hipotéticas combinaria com aquela naturalidade todas as preocupações e cuidados com o tom objetivo necessário aos encaminhamentos previstos; nem poderia falar tão de igual pra igual com aquelas famílias; nem ficaria tão à vontade durante aquela visita, pois não se sentiria tão “em casa”. Afinal, não se trata apenas de ter ou não ter experiência com esse tipo de situação, não se trata apenas de dominar ou não dominar os procedimentos necessários ao bom encaminhamento do caso, mas sim de estar em uma situação como esta sendo ou não familiar de uma vítima de violência institucional. Foi sabendo das potencialidades desta condição que Frederico Chagas solicitou aos familiares de Emanuel que realizassem aquela visita. Entretanto, faria mais sentido se o pedido tivesse relação com um caso que estivesse totalmente parado, com os familiares das vítimas desestimulados, como já ocorrera em outras visitas realizadas por integrantes da Rede contra Violência. Neste caso em especial da Parque Andrade, é preciso ressaltar que definitivamente não se tratava de um caso antigo que estivesse parado, nem muito menos de um caso cujos familiares das vítimas precisassem de orientação. Desde essa primeira conversa com Carolina, no dia da visita, não havia como negar que, para além de se tratar de uma mulher extremamente ágil e atenta em relação 134

às movimentações do inquérito policial, não era uma familiar de vítima que se encontrava totalmente desamparada, se considerarmos o horizonte mais comum de possibilidades de acionamento quando um episódio de violência institucional como esse ocorre: Carolina estava em contato com a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, possuindo números de telefone celular de mais de um integrante da Comissão, sendo um deles advogado (portanto, apto inclusive para o acompanhamento à delegacia, quando fosse necessário); sabia, através de informações do policial civil responsável pela investigação do caso na Delegacia de Homicídios que a Comissão da Alerj estava pressionando para que o caso fosse investigado com destreza; e contava também com uma assessoria jurídica de um advogado do seu local de trabalho, porque – o que é na verdade raríssimo de ocorrer em situações desse tipo – também contou, na fase inicial do inquérito, com o apoio do seu patrão para realizar as atividades necessárias ao encaminhamento do caso172. Ressalva 1 Gostaria de destacar que, para além daquela interlocução com os familiares de Emanuel – que à época da visita se dava há mais de um ano –, lembro que a relação desse defensor com boa parte desses “familiares de vítimas” se inicia no mesmo momento da organização da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência. Como apresentado na introdução desta tese, o caso do Borel marca uma determinada rearticulação de forças políticas que se posicionavam contra a violência de Estado no Rio de Janeiro, em especial aquela que tinha como alvo as favelas, e é neste contexto que surge o Movimento Posso me identificar? e posteriormente a Rede de

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Em diferentes casos acompanhados ao longo desta pesquisa, os familiares que passaram a se dedicar ao acompanhamento mais próximo dos casos, por conta da intensidade da agenda que se impõe nessas situações, foram demitidos de seus empregos, acabaram pedindo demissão ou passaram a trabalhar em expedientes menores, dependendo do tipo de ofício que exercem/exerciam. Um fator também determinante para essas transformações nas rotinas de trabalho dos familiares é seu estado psíquico, visto que muitos vivenciam as etapas iniciais do luto em depressão ou com dificuldades outras para seguir com sua rotina. Para uma leitura das variadas composições dos relatos sobre dores, doenças e ônus domésticos nesses contextos, ver Vianna (2011; 2012). Recentemente foi divulgado um registro em vídeo, intitulado “Mães – Efeitos psicológicos da violência policial nas famílias”, realizado por Clara Ianni junto às mães das vítimas dos “Crimes de Maio de 2006” (São Roger), e está disponível no youtube, através do link http://www.youtube.com/watch?v=BJfHNadtHPA&feature=em-uploademail.

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Comunidades e Movimentos contra Violência – e o caso do Borel foi justamente o primeiro caso trabalhado no NUDEDH, sob os cuidados do defensor Frederico Chagas. Desde então, esse defensor acompanhou diversos casos encaminhados ao NUDEDH através da Rede e teve muitas oportunidades para conhecer de perto o tipo de trabalho realizado pelos seus militantes. Por esse motivo, ao endereçar o pedido que desencadeou a visita relatada na Cena 5 àqueles familiares, Frederico Chagas já sabia o que esperar do futuro encontro, sabia que potencialidades habitavam aquele grupo reunido em volta de sua mesa de trabalho. No dia da visita, enquanto uma parte do grupo saiu com Carolina para tirar xerox dos documentos, Patrícia – que ainda não estava presente no momento em que Mário apresentou o grupo e o trabalho da Rede – recebeu a seguinte informação de João Luiz: “Dr. Frederico Chagas pediu pra gente dar esse empurrão, pra tentar ajudar”. Uma vez que aquele caso já estava estruturado enquanto um caso, uma vez que todas as instâncias competentes já haviam sido acionadas, como destaquei anteriormente, não era o caso em si que precisava de um “empurrão”. O que precisava ser movimentado, então, não era exatamente o caso e o movimento que enxerguei assemelha-se mais à força de puxar ou de atrair, do que de empurrar: a família de Emanuel agiu como um imã, que enquanto mais perto do NUDEDH, trazia as famílias da Parque Andrade nesta direção e, enquanto mais perto da Parque Andrade, deslocava o NUDEDH para lá. Tal movimento, numa escala, permitiu que o defensor se aproximasse do caso da Parque Andrade e dos familiares a ele conectados; em outra escala, atribuiu-se elasticidade ao NUDEDH, que se estendeu até a favela da Parque Andrade, através de uma imbricação deste núcleo governamental com os familiares de Emanuel, que se configura equanto uma imbricação “Estado-família”. A força do campo magnético que propiciou esse tipo de aproximação de ambos os pólos – “Estado”, enquanto NUDEDH e “família”, enquanto “famílias da Parque Andrade” – decorre da possibilidade de a família de Emanuel, naquela situação, se apropriar da autorização conferida pelo defensor, de falar em seu nome, de falar em nome do Estado. A imbricação “Estadofamília” é, portanto, um arranjo que rapidamente pode ser feito e desfeito, dependendo sempre da situação, mas um arranjo que, uma vez aceito pela família, configura uma imbricação muito podeChagas, visto que acumula potencialidades de “família” e de 136

“Estado”, se movendo em mão-dupla e provocando movimentações de outros sujeitos e composições coletivas também em mão-dupla, demarcando o movimento das “margens” indicado por Das e Poole (2004): se movendo tanto dentro quanto fora do Estado173. Seguindo sugestão de Maria Gabriela Lugones para “tentar captar a profundidade corporal e afetiva que tem essa intersecção entre agentes estatais e sujeitos em configurações familiares” (Lugones, 2012b), me inspiro aqui na ideia de copresença, no sentido proposto por Lugones (2012a), ao trabalhar a “densidade das dinâmicas” que observou nos Juizados Prevencionais de Menores, na cidade de Córdoba (Argentina). Com foco nos exercícios de poder administrativo-judicial circunscritos a esses juizados, Lugones argumenta que as dinâmicas observadas são marcadas por “fricções [que] produzem constantes reacomodações nas correlações de forças” (2012a)174. Esta linha interpretativa desenhada por Lugones, sugere que estamos diante de diferentes possibilidades de leitura sobre a interseção, priorizando, no entanto, uma ideia retorcida a partir da quebra do verbo interceder – inter+ceder – visto que assim compreendemos dinâmicas nas quais autoridades estão sendo cedidas: o Estado, de uma certa forma, para poder estender seu domínio, cede uma parte da sua intervenção e as famílias cedem uma parte da sua autoridade para também poderem acessar mobilidades sócio-políticas (Lugones, 2012b). Trata-se, portanto, de reconhecer que o 173

Inspirado pela leitura dos artigos que compõem a coletânea Anthropology in the Margins of the State (2004), Talal Asad (2004) formulou uma questão bastante provocativa: quando a relação entre o estado e a população governada é compreendida como uma maneira através da qual o estado incorpora soberania independentemente da sua população, ele passa a estar autorizado a manter certos espaços e populações como margens através das suas práticas administrativas. Inversamente, uma compreensão do estado como aquele para o qual tal poder é delegado, em vez de alienado dos seus sujeitos, permitiria a esse mesmo estado ser visto como margem do corpo cidadão. A recepção da provocação por Das e Poole aparece como conclusão do capítulo da coletânea que elas assinam juntas: o ponto de Asad é apresentado como aquele que evidencia que é a forma de pensar soberania que pode mudar a posição relativa do centro e da periferia; “as margens se movem, então, tanto dentro quanto fora do Estado” – movimento que, segundo as autoras, é o que faz das margens tão centrais para a compreensão do estado (Das e Poole, 2004: 30). 174 Em sua reflexão, Lugones (2012a) ressalta que a densidade à qual se refere tanto se expressa enquanto copresença de profissionais que atuam nos Juizados e aqueles que estão ali na condição de “administrados” (aqueles a quem são direcionadas “técnicas de menorização”, que, seguindo o argumento da autora, “menorizam — ainda que parcialmente — também maiores de idade na sua condição de responsáveis civis por um menor”); quanto deve ser compreendida como “densidade emocional, inseparável do tipo de situações que são geridas”.

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Estado precisa das famílias para fazer sua gestão: a Defensoria pública, na situação em análise, precisa dos familiares de Emanuel para governar o que está desmadrado, nos termos de Lugones. Se diz desmadrado de uma cria que é, por algum motivo qualquer, separada de sua mãe; mas também se diz desmadrado de um rio que perde seu curso – definições que abrem pistas para compreender o movimento que essas famílias realizam por dentro da engrenagem estatal, agindo junto a um órgão específico diante de uma situação que, na ausência daqueles familiares, estaria desmadrada, estaria desgovernada, como sugere Lugones (2012b). Ressalva 2 Outra ressalva se faz necessária. Gostaria de chamar atenção para o fato de integrantes da Rede contra Violência realizarem esse tipo de visita relatado na Cena 5 como parte de suas ações prioritárias (especialmente a partir do segundo ano de atuação do coletivo), tendo organizado inclusive duas de suas comissões internas para atuarem nestas situações: a Comissão de Apoio aos Familiares e a Comissão Jurídica, que trabalhavam (enquanto organizadas sob tais rubricas) sempre em conjunto. Não questiono a legitimidade desta ação enquanto estratégia política do coletivo. E o caminho percorrido após a realização dessas visitas também tinha como um dos seus destinos o NUDEDH e, especialmente, a sala do Frederico Chagas, visto que por muito tempo foi ele quem atendeu esse tipo de demanda naquele Núcleo da Defensoria. Um dos motivos que me levaram a iniciar a presente ressalva está ligado, então, ao fato de que a atuação do movimento social não só foi compreendida como eficaz, como foi acionada por um dos profissionais que atuava neste órgão governamental específico – e cujo comprometimento com os casos e a causa daqueles familiares sempre foi reconhecido e divulgado no interior do campo da própria militância. Enfim, considero importante dizer que não elaboro, através da presente reflexão, uma crítica sobre a atuação do defensor nesta situação, muito menos sobre a atuação dos integrantes da Rede. Estou lendo a situação, que é o que me cabe neste momento, enquanto uma pesquisadora pautada pela proposta de investigar ações desse Estado “encravado em práticas, linguagens e lugares” considerados às margens do Estado

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nacional – perspectiva já apresentada e discutida em outros trechos desta tese, que marca uma antropologia realizada “nas margens do Estado” (Das e Poole, 2004). A decisão de dedicar parte da atenção a esta situação específica (e a partir daqui chegamos ao segundo motivo da ressalva) é pautada pelo entendimento de que a gestão dessas mortes dos moradores de favelas não se faz apenas por dentro das polícias Civil e Militar ou demais segmentos governamentais centralizados sob o guarda-chuva da Secretaria de Estado de Segurança – tal gestão se faz através do trabalho cotidiano de profissionais alocados nos mais variados órgãos e instâncias de Estado, incluindo nessa vasta lista não só a Defensoria Pública, como também o Ministério Público. Retomando algo já registrado anteriormente para dar prosseguimento à reflexão, lembro que um defensor público alocado no NUDEDH, atua como assistente de acusação do promotor do caso – fazendo uso de suas competências profissionais para defender o direito à vida diante daqueles que o teriam violado. Gostaria, então, de usar um espaço deste estudo para fazer uma breve reflexão sobre uma situação específica desta atuação conjunta do Ministério Público com a Defensoria Pública (nas suas versões de assistência de acusação e de defesa): o momento do julgamento de um policial militar que está sendo acusado pelo homicídio de um morador de favela. Considero importante destacar que, se por um lado o julgamento pode corresponder a vitórias parciais para a luta desses familiares de vítimas, por outro pode significar frustrações implacáveis – não só porque o acusado pode ser absolvido, mas também – e principalmente – porque não é inerente à condenação a certeza de que “a justiça foi feita”. Lembro aqui de duas situações. Um episódio que presenciei durante o trabalho de campo, no qual após o resultado da sentença (condenatória), a mãe da vítima ficou indignada. Na leitura da situação realizada por Vianna (2013b), a pena imposta ao policial correspondeu a um “presente envenenado” do Estado àquela mãe: “Oito anos? É isso que ele pega por tirar a vida do meu filho? Oito anos? Presa estou eu, que vou ficar a vida toda sem meu filho, presa estou eu!” (Vianna, 2013b). A interpretação da autora, construída a partir dos ensinamentos de Mauss (2003), considera uma dimensão de “envenenado” enquanto “insuficiente na proporção da dor incalculável” e outra 139

dimensão, relativa ao “congelamento que revelava desse sujeito moral e do sofrimento que se construiu sempre na perspectiva da luta que cessará com a última sentença” (Vianna, 2013b)175. A outra lembrança que aciono para argumentar que nem sempre a condenação corresponde à certeza de que “a justiça foi feita” é uma passagem do vídeo Mães – Efeitos psicológicos da violência policial nas famílias176, na qual a mãe de uma das vítimas fatais dos Crimes de Maio fala dessa ausência de conexão direta entre o que pode ser uma retratação do Estado e a pena a ser cumprida pelo policial condenado, diante da irreversibilidade da morte do filho: “Não é ninguém na cadeia, é que o Estado reconheça o erro. A cadeia não ajuda ninguém. Que eles reconheçam... a retratação do Estado. Porque meu filho não vai voltar. Eu vou falar um absurdo aqui: se eles não mataram meu filho, me coloquem ele na minha frente, me tragam ele de volta.” Ao acionar essas duas lembranças, dou continuidade à linha de raciocínio que me levou a dedicar esse espaço à ressalva (ainda) em desenvolvimento: a condenação de um policial que efetuou um disparo que atingiu e matou um morador de favela não é garantia de "missão cumprida" ou de que a "justiça foi feita", num plano mais localizado do caso, nem é sinônimo do fim do extermínio da juventude negra, num plano mais geral da causa. Os mortos já estão mortos, não voltam mais. A condenação de um policial possui múltiplos significados e portanto, múltiplas possibilidades de interpretação, mas na análise que aqui desenvolvo, privilegio a leitura desta condenação como mais um elemento da gestão dessas mortes, afinal, o julgamento individual e a condenação – também individual – desse policial é um tipo de resposta viável para o Estado diante de um episódio de violência institucional desse porte. O Estado é obrigado a responder – e responde (ainda que de forma insatisfatória e ainda que não responda para todos que merecem alguma resposta) – pelas violações cometidas por seus agentes

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Na continuidade da reflexão, Vianna (2013b) ressalta um ponto fundamental para a linha argumentativa que sigo na segunda pare desta ressalva: “parece-me significativa a imagem da pessoa que ficará presa toda a vida, mesmo que sem sentença legal. Presa à dor, presa à dissolução de si vinda com a morte do filho, mas presa também a esse novo desaparecimento: o da figura que se constrói subjetiva, moral e politicamente na busca pela justiça.” 176 Ver nota 17.

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no âmbito do funcionamento da própria engrenagem estatal. Ou, dito de forma mais direta e coloquial, o Estado não pode matar pessoas e “deixar por isso mesmo”. Estamos em 2013, o estado do Rio de Janeiro é uma unidade federativa do Brasil, que é uma República Federativa Presidencialista que possui uma Constituição (na qual se assegura a “inviolabilidade do direito à vida”177). O Brasil é Estado-Membro da Organização dos Estados Americanos (OEA), estando portando submetido a julgamento no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos pelas violações que por ventura cometer178; é também País-Membro (e fundador) da Organização das Nações Unidas (ONU), tendo ratificado em 1951 a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio179, e tendo, ainda, iniciado em novembro de 2012, um mandato de três anos no Conselho de Direitos Humanos da ONU180. Enfim, o elemento que gostaria de trazer à discussão a partir desta conhecida lista de circunscrições políticas é a existência de uma lista tão ou mais longa de sanções e punições. Retornemos, então, à esfera local e particularizante do tribunal competente para julgar os crimes dolosos contra a vida em todas as unidades ferativas do território nacional – o Tribunal do Júri181. No Rio de Janeiro, atualmente localizado no 9º andar da 177

Art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. 178 Em abril de 1948, a OEA aprovou a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, em Bogotá, Colômbia – considerado pelos organismos internacionais de Direitos Humanos como o primeiro documento internacional de Direitos Humanos de caráter geral. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) foi criada em 1959, reunindo-se pela primeira vez em 1960, configurando um dos órgãos do Sistema Interamericano responsáveis pela promoção e pela proteção dos direitos humanos. Para uma análise dos dos dez anos da adesão do Brasil à Convenção Americana, ver Viegas (2004). 179 Disponível para consulta através do link . 180 O Conselho de Direitos Humanos da ONU substitui a Comissão de Direitos Humanos, configurada neste formato desde 1946. Para uma análise do campo político interno da ONU e dos fatores determinantes para a criação do Conselho de Direitos Humanos, consultar Viegas (2011). Para uma abordagem objetiva sobre os seis primeiros anos de atuação deste Conselho, consultar Viegas (2013). A divulgação da notícia do novo mandato do Brasil no Conselho em questão está disponível no site brasileiro da ONU, através do link . 181

O Tribunal do Júri é reconhecido constitucionalmente através do Artigo 5º, Inciso XXXVIII – “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”

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denominada Lâmina Central do Tribunal de Justiça, é nos plenários desses tribunais, cuja forma “aquário”182 atual foi inaugurada em meados de 2012, que ocorrem as audiências de instrução e julgamento dos agentes de Estado acusados pelo homicídio dos moradores de favelas mortos durante incursões e operações da Polícia Militar. É nesse cenário que se enfrentam, quando as audiências não são adiadas, o defensor público que atua enquanto assistente de acusação junto à promotoria e o outro, que atua na defesa do agente de Estado que efetuou o disparo que atingiu um morador de favela, provocando sua morte. Quando o júri popular decide pela condenação, é ali que ela é anunciada. Entendendo que o trabalho realizado pelos profissionais do NUDEDH é fundamental para a argumentação do defensor público que atua, naquele julgamento, enquanto assistente de acusação, encaminho a finalização desta ressalva ratificando a conexão que venho construindo ao longo desta reflexão: a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (incluindo o NUDEDH) não pode ser pensada como um órgão externo à engrenagem governamental que faz a gestão das mortes dos moradores de favelas, visto que sua atuação é imprescindível para a realização dos julgamentos dos policiais acusados de terem cometido os crimes em questão. E o julgamento de um policial não é apenas mais uma peça dessa engrenagem – é um dispositivo político formulado no interior do campo do direito penal através do qual se assentam as condições de possibilidade de uma nova execução de um morador de favela por um agente de Estado. As mortes são administradas no interior da própria lei, como acontece há séculos em diferentes configurações de Estado, e não era minha intenção alocar o julgamento, a Defensoria Pública ou o Ministério Público na engrenagem governamental que faz a gestão das mortes dos moradores de favelas como se assim estivesse formulando um dado novo. Ao invés disso, pretendia demarcar enquadramentos analíticos justapostos a um posicionamento político inerente ao debate travado neste capítulo. Construir a reflexão a partir do pedido de um defensor público a familiares de uma vítima fatal de violência institucional foi o caminho encontrado para abordar 182

O espaço reservado para a platéia das salas de audiência do Tribunal do Júri atuais fica cercado por vidro e em andar acima do espaço no qual são dispostas acusação, defesa, réu(s), juiz e demais profissionais envolvidos na atividade.

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pontos delicados das especificidades da gestão dessas mortes, em especial no que diz respeito à imbricação “Estado-família” para a qual chamei atenção. E foi compartilhando do entendimento de Lugones (2012b) de que “não é pela via das atribuições funcionais que estão cristalizadas em organogramas que vamos acessar como o exercício do poder estatal vem se dando” que priorizei o foco na interlocução construída entre um defensor público que atuava como assistente de acusação em julgamentos de policiais acusados pelo homicídio de moradores de favelas e as famílias das vítimas. A configuração anunciada enquanto imbricação “Estado-família” poderia ser lida como uma atualização realizada pelo próprio Estado do “encapsulamento” ao qual Machado da Silva (2002) se refere ao trabalhar a ideia de “controle negociado” das demandas dos movimentos associativos dos moradores de favelas por parte de programas governamentais estruturados a partir de uma agenda marcada por enunciados de “participação democrática”. No entanto, o material empírico trabalhado nesta tese exige uma releitura desta abordagem, uma vez que os moradores de favela em questão (esses familiares de víitimas) ao invés de se deixarem encapsular, fazem uso de todo e qualquer tipo de brecha, produzindo fendas no que seria a demarcação limítrofe das engrenagens governamentais e se apropriando do que for necessário para resistir, para seguir sua luta. Na situação em análise, afirmar que a família está imbricada com o Estado e não encapsulada por ele é entender essas famílias também enquanto unidades administrativas, no sentido trabalhado por Vianna (2002) e Lugones (2012a), ou seja, as enxergando em conexão com formas de gestão de populações, com formas de gestão de territórios – e não apenas como locus privilegiado para se pensar afetos, obrigações morais, consanguinidade e relações de parentesco. Todos esses elementos se conectam e analisá-los em sua complexidade é parte da tarefa da próxima seção. 3.3 Como se configuram as legitimidades “de Estado” e “de família” nesse desenho das atualizações do exercício do poder estatal? Retornando à Cena 4 e à forma como o defensor público realizou o pedido aos familiares de Emanuel, relembro que o mesmo se deu verbalmente, acompanhado de um pedaço de papel no qual estavam anotados à mão o nome e o telefone de Carolina, 143

esposa de Adriano. Não foi necessário produzir um ofício, em papel timbrado com a logomarca do NUDEDH ou da Defensoria Pública, nem um carimbo que garantisse a institucionalidade da visita, nem mesmo um e-mail que pudesse ser impresso para comprovar qualquer coisa. No momento do pedido, a oficialidade está em quem passa o papel escrito à mão. No momento da visita, tal oficialidade é acoplada à condição de familiares de vítima dos visitantes. Na sequência da interlocução que acompanhei, a legitimidade “de família” é acionada para o Estado, pelo o Estado, e para a família que recebe a visita; por outro lado, é considerado importante pela família de Emanuel dizer que foi o defensor público quem passou o telefone – aqui as legitimidades “de estado” e “de família” se encontram. No entanto, não há como negar que ao chegar àquela casa na Parque Andrade, a condução assertiva da conversa decorre do peso de os visitantes em questão serem familiares de um homem que morreu nas condições que o Adriano poderia ter morrido. Essa inscrição social constitui aquele grupo de pessoas de tal forma que não é necessário priorizar o momento de dizê-la ou lembrá-la no momento inicial do roteiro da visita: como destaquei na Cena 5, após terem solicitado a documentação do caso à Carolina e após terem discutido detidamente a questão do reconhecimento dos policiais, um dos familiares de Emanuel iniciou uma apresentação do grupo, passando como primeira informação dessa apresentação que o Dr. Frederico Chagas havia feito uma indicação para que eles fossem até lá. A indicação do defensor inaugura a apresentação porque este é o fator adicional daquela situação – é o que não está dado de antemão. A condição de familiares de vítima preenche de significado as ações daquela visita, bem como toda a movimentação política recente daquelas três pessoas e é devido a essa centralidade que tal condição quase não precisa ser pronunciada: é inserida entre a referência ao pedido do defensor público e a apresentação do coletivo político do qual aqueles familiares fazem parte. Recuperando o curto trecho da conversa que segue a frase inicial da apresentação, explicita-se essa arrumação das informações: João Luiz: “foi o Dr. Frederico Chagas que pediu pra gente dar um apoio pra vocês...”. 144

MÁRIO: ...porque o caso de vocês tava parado... MAC: ...nós somos parentes também, de vítima, né, tivemos um irmão assassinado também... MÁRIO: ....e a gente sempre se mobiliza, porque a Rede trabalha assim, a gente se mobiliza, todo mundo, porque somos a Rede contra Violência, Rede de Comunidades contra Violência...

A dispensa de um comunicado mais alongado dessa relação de parentesco com uma vítima fatal de violência institucional também está conectada aos vários pequenos gestos de cuidado que dominam o ambiente da visita – dito de outro modo, naquele encontro entre familiares de vítimas de operações policiais distintas, essa condição praticamente dispensa anúncios por ser englobante e seu englobamento não se imprime apenas de forma subjetiva, como pode ser captado através de ações concretas. Em geral tais ações são tão sutis quanto o fato de Alexandra ter produzido sua primeira intervenção na conversa perguntando se a família de Adriano tinha recebido algum apoio emocional, alguma orientação – nesta ordem. Mas também podem aparecer a partir de demandas específicas dos familiares do caso mais recente, como o momento no qual a viúva de Roger contou que foi ao Batalhão da Polícia Militar mais próximo da favela prestar um depoimento após ter recebido uma carta na qual ela era intimada a fazê-lo. Ao receberem essa informação, os familiares de Emanuel prontamente disseram que ela não deveria ter ido, contam que receberam a mesma intimação, que trata-se de uma forma de intimidar os familiares das vítimas de operações desse tipo e que em outro momento do inquérito (ou mesmo quando virasse processo judicial) se Patrícia fosse cobrada por qualquer coisa que tenha dito no depoimento que prestou no Batalhão, poderia/deveria solicitar a anulação daquelas falas porque estava sob pressão e muito vulnerável. Orientações desse tipo não dizem apenas das expertises acumuladas pelos familiares do caso mais antigo, porque seria diferente se as mesmas informações viessem através de uma pessoa que não tivesse recebido a mesma intimação, ou ainda alguém que tivesse recebido uma intimação de um batalhão porque passou pelo local do crime, testemunhou algo, sem no entanto ter nenhuma relação de parentesco com nenhuma das vítimas. Há também momentos nos quais nenhuma sutileza torna-se 145

sinônimo de total cuidado “de familiar para familiar” – quando Patrícia contou que recebeu ligações de pessoas oferecendo-lhe ajuda após a morte do marido, Alexandra nem respirou: “mas tem que ter cuidado... quem são essas pessoas? Porque nós estamos no mesmo barco”. Estar no mesmo barco resume infinitas conexões existentes entre aquelas pessoas pelo fato de todas elas serem familiares de vítimas de violência institucional. Mas gostaria de destacar uma passagem da conversa que aconteceu naquela tarde capaz de expressar aspectos bem peculiares dessa inscrição social: enquanto Carolina e Pricila contavam como estava sendo a rotina das respectivas famílias após a operação policial, a viúva de Roger disse que no mesmo dia em que o marido foi morto ela se mudou da casa onde morava com ele e com seu filho na Parque Andrade e foi para a casa de parentes em outra favela longe dali. Disse que ter que ir à Parque Andrade é “ter que reviver tudo de novo”. Os familiares de Emanuel ali presentes sabem exatamente o que é “ter que reviver tudo de novo” porque experimentam essa sensação cotidianamente e não precisaram dizer que sabiam do que Patrícia estava falando para ela sentir que seu relato ecoava de uma forma especial por entre aquele grupo de familiares. Esse elemento inerente à condição de familiar de vítima é problematizado por absolutamente todos os familiares que integram a Rede contra Violência e em algumas etapas obrigatórias dos respectivos inquéritos e processos a agudez da dor sentida ao “reviver tudo de novo” é muito evidente, como, por exemplo, nas edições e reedições de depoimentos. O mesmo pode ser dito de entrevistas ou dos relatos em atos e manifestações públicas, ainda que microfones ou megafones amplifiquem outros ângulos daquele mesmo “ter que reviver”183.

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Embora não se faça presente na situação em análise, por conta das relações de parentesco em questão, considero fundamental mencionar aqui o fato de que o que se revive não é apenas o episódio da morte ou seu anúncio, visto que quando se trata especificamente de mães de vítimas, muitas delas relatam, particularmente ou em público, que revivem o momento do parto, por exemplo. Como analisa Vianna (2013a): “Os corpos maternos reinventados nesse processo, através das fotografias, tatuagens com os nomes dos filhos, doenças e sonhos aparecem como linguagem não apenas da perda insuportável, mas também dos processos de reinscrição de si no mundo e do próprio mundo como algo que agora precisa ganhar novo sentido e que passa a ser lido e descrito em outros termos. Como disse uma mãe no

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Da mesma forma, então, que o que é Estado vai se dando em processo, como analisado anteriormente, os contornos do que é “família” e de como as potencialidades e legitimidades dessa inscrição se evidenciam de formas variadas de situação para situação. O que importa registrar nesta seção é que por mais potente que possa ser a imbricação “Estado-família”, sua configuração não anula as especificidades de um ou outro polo, muito pelo contrário: quanto mais demarcadas as potências de “Estado” e de “família”, mais se fortalece tal imbricação. Na situação escolhida para a elaboração deste capítulo, a pluralidade de competências dos familiares de vítimas foi o que formou a base de sustentação da combinação entre as legitimidades “de Estado” e “de família”. As especificidades da interlocução entre esses familiares são insubstituíveis. Como explorado na seção anterior, não há formação profissional, não há especialização que garanta que uma situação desse tipo vai ser conduzida da mesma forma por uma pessoa que não possua essa inscrição social e política: os familiares de casos mais antigos conseguem estabelecer um vínculo de confiança com familiares de casos mais recentes pelo fato de terem passado por situação semelhante; conseguem administrar os afetos nesses encontros de forma que a dor que sentem seja comunicada aos seus interlocutores enquanto um fio que os conecta – logo, não trazendo mais sofrimento para aquela família que foram visitar, mas, ao contrário, oferecendo-se como um canal através do qual se escoa parte daquele sofrimento. Os encontros dos familiares de casos mais antigos com familiares de casos mais recentes funcionam como catalisadores capazes de transformar as dores de ambas as famílias em combustível para suas buscas incessantes por justiça e para suas lutas cotidianas por dignidade. O trecho de uma fala mais longa de um dos irmãos do Emanuel na conversa condensa as marcações mais pungentes dessa inscrição enquanto familiar de vítima e com este discurso proferido na sala de uma casa da favela Parque Andrade encerro esta etapa da discussão: A melhor forma de a gente enfrentar um inimigo é partir pra luta, é enfrentar de frente a situação. Porque eles conhecem a nossa fisionomia, sabem onde a gente mora e tudo. Mas se a gente decide enfrentá-los, eles ato público que antecedeu a primeira audiência sobre a morte de seu filho, “o dia de hoje é como se eu estivesse em trabalho de parto””.

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não sabem o que a justiça pode estar preparando pra eles. Somos várias famílias, vocês não são as únicas que estão nessa luta. E a intenção da gente é modificar essa situação, entendeu, essa covardia com pessoas que moram em comunidade não pode acontecer. Ele chega de lá da Av. Brasil, bota um fuzil aqui pra dentro e atira a esmo não sabe nem se tem criança na rua, isso acontece em qualquer lugar, aí diz “ah, tava trocando tiro”... vê se eles fazem isso no Leblon, na Barra da Tijuca... não fazem isso. Então a gente tá aí tentando somar, no dia que for fazer um movimento maior, um movimento grande, puxar faixa, bandeira, aí sim, vocês vão tá dentro da programação, vão tá ciente junto com a gente, se quiserem colaborar, é mais uma mão ali pra dar um apoio, pra puxar a bandeira, entendeu?! Quanto mais pessoas somar, menos isso vai acontecer, porque eu tenho certeza que você não vai querer que isso aconteça com mais ninguém. Isso é doloroso à beça pra você, isso pesa a vida, então outras pessoas não tem mais que morrer. O seu filho lá à diante pode ver essa história mudada. Pode ser que a gente tenha que lutar, lutar, lutar, mas a gente tá vendo as coisas mudarem.

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Capítulo 4. Registros de morte em atos e papéis: obscuridades oficiais

Com a ponta da caneta a guerra é geral A porra do governo traz a Força Nacional Copacabana, Ipanema e Leblon Nem precisarão, pra ver como é que é bom Complexo do Alemão, reflexo do pesadelo A faixa de Gaza do meu Rio de Janeiro Corre e se esconde que o tiro te atinge A bala come solta, nosso mundo não é pinto Você diz: "sou trabalhador", não adianta Desenrola, leva tapa, sai com a cara de anta Us Neguin q Não C Kala e Família Kponne, Lágrima de Sangue

Estamos diante de um Estado que se reconstrói continuamente nos intervalos do cotidiano – ensinamento de Das e Poole (2004) que, conforme explicitei na introdução desta tese, é acionado enquanto proposta teórico-metodológica central para o desenvolvimento desta pesquisa: no intuito de compreender o processo de gestão das mortes dos moradores de favelas no Rio de Janeiro, priorizei a construção de uma etnografia que tornasse possível capturar o que vem acontecendo em alguns desses intervalos do cotidiano através dos quais o Estado se constrói e se reconstrói. No capítulo anterior, um convite da família de Emanuel me permitiu refletir sobre uma determinada angulação dessa gestão a partir do acompanhamento de uma visita ao Parque Andrade – uma visita marcada no período do feriado de carnaval, num dia em que as pessoas que precisavam estar presentes naquele encontro não estariam trabalhando, enfim, uma visita que, com todas aquelas marcas que a caracterizam, pode ser entendida como uma atividade realizada num desses intervalos do cotidiano que busquei identificar durante o trabalho de campo. Como a perseguição desses intervalos tanto se deu via encontros com pessoas, quanto via encontros com os papéis (e através dos papéis), no presente capítulo trago para a discussão trajetórias documentais (Ferreira, 2009) que são compostas por (e às vezes também compõem) intervalos do cotidiano. Diferentemente da visita, que pode 149

ela mesma ser considerada um intervalo único, as situações, os momentos, os instantes e os documentos explorados a seguir dizem respeito a um conjunto muito heterogêneo de intervalos do cotidiano através dos quais o Estado se constrói e se reconstrói. Entendendo o momento da efetuação do disparo da arma de fogo que atinge o morador de favela como marco inicial para se produzir um recorte analítico do processo de gestão dessas mortes que incluísse também papéis e registros oficiais, elegi o laudo cadavérico como documento a partir do qual são acionadas outras movimentações (burocráticas ou não) que compõem o inquérito policial e o processo judicial de um caso de homicídio ocorrido durante uma intervenção militar na favela. Construo essa análise tomando como referência a execução de Emanuel, que conforme explicado na Advertência, foi morto durante incursão da Polícia Militar no Morro do Russo, em 2008. Assim sendo, as situações e a documentações acionadas neste capítulo se referem a encontros e papéis que constituem este caso específico. Vamos a eles. Cena 6. [Outubro de 2010, 2º andar do prédio da Defensoria Pública Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro.] Alexandra, irmã de Emanuel, foi me buscar no corredor. Eu tinha chegado alguns minutos atrasada pra uma reunião que os familiares de Emanuel marcaram com antecedência com Frederico Chagas, com o objetivo de apresentar ao defensor um perito legista aposentado da Polícia Civil que havia concordado em realizar um novo estudo – com estatuto de parecer técnico-científico – sobre o homicídio em questão. Como o defensor ainda não tinha podido atendê-los, Alexandra e João Luiz aguardavam numa espécie de sala de recepção do NUDEDH, junto com Dr. Saul, o perito legista. João Luiz me apresentou a ele (como “uma companheira que tá junto com a gente nessa luta”) e em pouco tempo, a secretária do NUDEDH informou que poderíamos entrar, que Dr. Frederico Chagas já poderia nos receber. Mal entramos na sala e o defensor perguntou: Temos uma audiência, né?! Chagas referia-se à próxima audiência do caso, que estava marcada para dezembro. Familiares, defensor e perito conversaram bastante sobre essa próxima audiência e sobre a possibilidade da utilização do parecer técnico-científico no desenrolar do processo. Defensor e familiares aproveitaram o encontro para tirar dúvidas com o perito a respeito de alguns detalhes da documentação produzida pelo Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto no dia seguinte da morte de Emanuel. Chagas 150

perguntou: Pelo laudo, o tiro teria sido disparado a curta distância, vê se não é isso Dr. Saul? O perito respondeu afirmativamente, mas fez questão de anunciar uma série de críticas à forma como o laudo cadavérico havia sido preenchido. Pegou a cópia das folhas do processo do caso nas quais encontrava-se o laudo de Emanuel, e realizou uma leitura em voz alta de um trecho da descrição da necropsia: INSPEÇÃO EXTERNA: Cadáver de um homem de cor parda, que mede cerca de 166 cm de altura, em rigidez muscular generalizada com livores violáceos nas regiões posteriores do corpo; é de compleição física boa, bom estado de nutrição e cerca de 42 anos de idade; cabelos pretos, curtos e anelados; olhos com córneas transparentes, íris castanhas, escleróticas esbranquiçadas; barba e bigode por fazer; dentes naturais em regular estado de conservação; genitália externa masculina normal; apresenta ferimento de bordos regulares e invertidos, com características de entrada de projétil de arma de fogo (PAF), localizado na região occipital, assinalado no esquema 2 pela letra E; apresenta ferimento de bordos irregulares e evertidos, sangrantes, com características de saída de PAF. Localizado em região fronto-parietal, assinalado no esquema 1 pela letra S; apresenta orla de tatuagem no membro superior esquerdo, acometendo parte do braço e toda a extensão ao antebraço nas faces Antero-lateral posterior, assinalados nos esquemas 1 e 2 pela letra T; os demais segmentos corporais estão normais.

Uma das marcas encontradas no corpo de Emanuel, registrada nesta parte da necropsia como orla de tatuagem, tomou um bom tempo da conversa entre familiares, perito e defensor. Respondendo à pergunta feita anteriormente por Frederico Chagas, Dr. Saul explicou que essa marca, cujo termo correto seria zona de tatuagem, “é necessariamente produzida a tiro de curta distância”, ratificando a afirmação através de uma espécie de demonstração sobre como, a partir de um tiro que atingiu a cabeça, foi possível a formação da zona de tatuagem no braço da vítima. Dr. Saul solicitou que João Luiz se posicionasse de joelhos no chão, com as duas mãos na cabeça, como se estivesse rendido – posição na qual provavelmente encontrava-se Emanuel, no momento em que foi atingido, como argumentava o perito. A explicação técnica teve sequência a partir da simulação da posição na qual se encontrava o fuzil de onde se efetuou o disparo que atingiu Emanuel naquele episódio do Morro do Russo: Dr. Saul demonstrou como a extremidade final do cano deveria estar próxima à parte de trás da cabeça, lembrando que os fuzis utilizados pelos policiais militares possuem eventos laterais, através dos quais, no momento do disparo, são expelidos grânulos da pólvora que, em contato com a superfície da pele, produzem a marca 151

caracterizada como zona de tatuagem. Daí a dedução de que Emanuel deveria estar com as mãos na cabeça (provavelmente algemado, seguindo a interpretação do perito), pois esta é a posição sugerida pela presença da zona de tatuagem no braço esquerdo da vítima. Após essa espécie de “reconstituição da cena do crime” ali na sala do defensor Chagas, João Luiz deixou a posição de joelhos na qual permaneceu durante toda a explicação, sentou-se novamente na cadeira que ocupava em volta da mesa e a conversa seguiu. Ao final do encontro, perito, defensor e familiares já haviam chegado a um acordo quanto à anexação do parecer técnico-científico ao processo, assim que o mesmo fosse concluído por Dr. Saul. Gostaria de iniciar esta etapa do debate trazendo para a reflexão o mesmo destaque que teve durante o encontro entre os familiares, o perito e o defensor essa marca específica encontrada no corpo de Emanuel: registrada na descrição acima como orla de tatuagem (mas tratada como zona de tatuagem nos estudos sobre traumatologia médico-legal), tal marca “é produzida pelos grânulos de pólvora, queimada ou não que, partindo com o projétil, percutem o contorno do orifício de entrada e se incrustam mais ou menos profundamente na região atingida.” (Fávero, 1991)184. No caso de Emanuel, a zona de tatuagem aparece assinalada nos esquemas que compõem o laudo cadavérico através da anotação da letra “T”, realizada à mão e facilmente identificada na figura abaixo185:

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Há variação nas definições da zona de tatuagem em relação à presença de pólvora combusta. Alguns especialistas mencionam apenas o efeito produzido pela incrustação de grânulos de pólvora incombusta, como é o caso do perito legista que acompanha o caso do Morro do Russo aqui abordado. Tal forma de definição assemelha-se à de Greco (2013), para quem a zona de tatuagem decorre da “incrustação de grânulos e fragmentos de pólvora não combusta pelo disparo na região atingida, não sendo removível”. Já de acordo com o estudo de Eisele e Campos (2003), a zona de tatuagem “é composta por partículas de carvão (pólvora combusta) e de grânulos de pólvora incombusta, dispersas em torno do orifício de entrada, de bordas deprimidas, cujo diâmetro cresce progressivamente até perder-se a energia cinética de cada corpúsculo, assim como a aceleração de que está animado.” 185 O esquema teve algumas informações cobertas por mim através de editor de imagem (com marcação em preto), como: nome completo da vítima; nome completo, matrícula e registro do CRM do perito que realizou o exame; bem como uma anotação contendo o número da delegacia que anexos 3 e 4.

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Figura 32 – Laudo cadavérico, Face anterior – Emanuel. .

Como anunciado na Cena 6, trata-se de uma marca fundamental por permitir ao

especialista estimar a distância entre atirador e vítima e também a distância entre o cano da arma e a vítima. O ponto a ser destacado, então, é que a importância atribuída a essa marca durante a reunião na Defensoria Pública está diretamente conectada aos encaminhamentos do caso que ela tem o poder de determinar. A justificativa do NUDEDH, por exemplo, para solicitar ao delegado responsável pelas investigações que fossem colhidos depoimentos de todos os policiais militares que participaram da operação foi também a presença da zona de tatuagem no esquema de lesões do laudo de Emanuel: Conforme consta do Laudo de Exame de Necropsia IMLRJ[inscrição], a vítima foi atingida mortalmente por PAF na região occipital, apresentando “ORLA DE TATUAGEM” no membro superior esquerdo, evidenciando disparo à curtíssima distância, o que descaracteriza, de pronto, qualquer possibilidade de confronto entre policiais e supostos traficantes, alegação esta comuníssima por parte das forças policiais quando o objetivo é camuflar execuções.186

A anotação “T”, ao indicar a localização da zona de tatuagem, demarca a posição na qual se encontrava a vítima no momento em que foi atingida, encaminhando a investigação do homicídio de Emanuel para uma direção diferente daquela sugerida

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Requerimento enviado pelo NUDEDH à DP na qual seguiam as investigações sobre o caso. Sobre a documentação utilizada nesta análise, ver nota 156 da seção “Advertência”.

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pelo registro de ocorrência realizado na delegacia da região pelos policiais que participaram da incursão em pauta. No entanto, a crítica do perito independente convocado pela família de Emanuel, enfatizou que a anotação desacompanhada de um correto preenchimento do laudo, ao invés de revelar dados importantes a respeito daquela morte, os estaria ocultando. Daí a proposta de realizar o aprecer técnicocientífico. A possibilidade da assessoria técnica da perícia independente para uma releitura do laudo cadavérico não foi comemorada somente pelos familiares. O defensor público, desde aquele primeiro encontro, enxergou no perito legista um aliado nos esforços para os encaminhamentos do caso – valorizando a realização do parecer técnico-científico, Frederico Chagas declarou: “Eles tão dizendo que o cara é traficante, pô, vamos mostrar que não é. É importantíssimo.”. Na seção a seguir, então, reconstruo um trecho do percurso documental do caso, tomando como contraponto narrativo a troca de tiros e as composições políticas articuladas a essa versão, para depois (seção 4.2) dar continuidade à reflexão sobre as potencialidades do laudo cadavérico enquanto plataforma de registro oficial 187.

4.1 Disputa de versões sobre as mortes na ação penal O processo é lento, o barato é louco e o bagulho é sério. Mr. Catra, Vacilão

Neste caso do Morro do Russo, assim como na grande maioria dos casos de execuções sumárias de moradores de favelas cometidas por policiais militares, o registro

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As primeiras reflexões sobre o laudo cadavérico enquanto um documento chave para entender a engrenagem que governa as mortes dos moradores de favelas foram apresentadas durante o colóquio Dispositivos urbanos e tramas dos viventes: ordens e resistências, realizado no PPCIS/Uerj, em 2011 e registradas em artigo que irá compor a publicação homônima que se desdobrou do colóquio. Deixo registrados meus sinceros agradecimentos às professoras Patrícia Birman, Carly Machado, Márcia Leite e Sandra Carneiro não só pelo convite para a participação naquele espaço de interlocução, mas especialmente pelas críticas e sugestões feitas ao meu trabalho, as quais busquei trazer para o debate proposto por esta tese, em especial neste capítulo.

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de ocorrência traz a versão da troca de tiros entre traficantes e policiais. Segue a dinâmica do fato, segundo um dos policiais que participaram da operação: Segundo o comunicante [patente e nome] informa que hoje por volta de 18:30h cumprindo determinação superior juntamente com seus colegas de farda do batalhão fizeram incursão no morro do Russo com vistas a reprimir o tráfico local, sendo os mesmos recebidos a tiros por traficantes do local. Que na localidade conhecida como [nome] após serem recebidos com disparos de arma de fogo revidaram a justa agressão, ocasião em que alvejaram seis indivíduos, sendo quatro identificados e que após prestarem socorro os mesmos vieram a falecer. Que no local foram apreendidas armas de fogo, além de material entorpecente. 188

Configura-se, assim, o já referido registro do auto de resistência, que neste – como também em muitos outros casos semelhantes – vem acompanhado da informação de que os policiais presentes na operação prestaram socorro à vítima, levando-a para o hospital municipal mais próximo, local onde ela, então, teria falecido. A versão da troca de tiros preenchida no RO aparece em outros documentos relativos ao inquérito policial, que posteriormente seria acionado, no decorrer do processo judicial. No relatório final do inquérito, o confronto é justificado porque os policiais, na iminência de serem alvejados por tantos disparos, não tiveram outro modo de agir, a não ser fazer uso das armas de fogo que traziam consigo, em legítima defesa e como forma de fazer cessar a resistência oposta pelos infratores189. Tal versão da troca de tiros, no entanto, além de não encontrar eco nos depoimentos das pessoas que moram no Morro do Russo e que estavam próximas ao local da execução, como já citado na Advertência que antecede este capítulo, também é negada na denúncia190 apresentada pelo Ministério Público, através do Promotor de 188

Trecho do registro de ocorrência do caso, peça do inquérito policial incluída no processo judicial em questão. Sobre a documentação aqui utilizada, ver nota 156 da seção “Advertência”. Sobre os procedimentos administrativos relacionados a um inquérito policial, ver Misse et al (2010) e Misse (2011). Especificamente sobre o inquérito policial instaurado a partir do registro de auto de resistência, ver Misse et al (2013). 189 Trecho do relatório de inquérito final. Sobre a documentação aqui utilizada, ver nota 156 da seção “Advertência”. 190 “O processo penal, tanto nos crimes como nas contravenções, inicia-se pelo recebimento da denúncia, com a descrição dos fatos, a imputação da autoria, a classificação do crime e o rol de testemunhas (art. 41 do CPP). Iniciada a ação, não pode o Ministério Público dela desistir (art. 42 do CPP)”. (Führer e Führer, 2009).

155

Justiça responsável pelo caso, ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri da Comarca da Capital, no intuito de iniciar o processo: No dia 4 de junho de 2008, por volta de 17 horas e 30 minutos, no Morro do Russo, bairro do Atalaia, no local em que se situa o Bar do Sergio, os denunciados, com vontade livre e consciente de matar, efetuaram disparos de arma de fogo contra Emanuel Castilho da Silva, Fernando Sabino de Figueiredo, Jonathan Freitas Murtinho, Pedro Henrique de Almeida Lopes, Rodrigo Firmino da Silva, Hugo Venâncio de Souza, causando nas vítimas as lesões corporais descritas nos autos de exame cadavérico de fls. 268, 243, 237, 251, 264 e 259, respectivamente. Tais ferimentos, por sua natureza e sede, em sua grande maioria na cabeça e pelas costas, foram a causa das mortes das vítimas. Os denunciados, todos policiais militares em serviço – segundo alegaram por determinação superior – realizavam incursão no citado morro, tendo em dado momento detido as vítimas e as levado para o local em que decidiram consumar os homicídios. As provas orais e testemunhais colhidas ao longo da investigação rechaçaram a tese de legítima defesa lançada pelos policiais em seus depoimentos por ocasião da apresentação da ocorrência em sede policial, tendo se demonstrado que agiram com violência imoderada e desnecessária, sem que tenham comprovado haver sofrido qualquer ataque. Ainda buscando dar aparência de licitude aos atos violentos que cometeram e sob o pretexto de prestar socorro às vítimas, os denunciados transportaram os cadáveres para o Hospital Municipal [mais próximo], não obstante a evidente letalidade dos ferimentos que haviam provocado, demonstrada com abundância nos esquemas de lesões que ilustram os autos de exames cadavéricos. Agiram os denunciados por motivo torpe, eis que se vingaram das vítimas indiscriminadamente sob o falacioso fundamento de que seriam traficantes, o que ainda que verdadeiro jamais os autorizaria a praticar o “justiçamento sumário” que perpetraram. Do mesmo modo, a descrição minuciosa dos ferimentos suportados pelas vítimas demonstra que os denunciados agiram de forma a não lhes permitir qualquer chance de defesa e nem mesmo a tentativa de fuga ou rendição. A participação de cada um dos denunciados no conjunto de homicídios, ainda que, em relação a alguma das seis vítimas tenha consistido numa atitude corporal inerte, redundou em força moral cooperativa, pela certeza da solidariedade entre todos, tendo eles mantido odiodo pacto de silêncio da verdade ao longo de toda a investigação.

156

Estão assim os denunciados incursos nas penas do artigo 121, §2º, incisos I e IV (6 vezes), na forma do artigo 69, todos do Código Penal191. Isto posto, requer a V.EX.a. que, recebendo a presente, determine a citação dos acusados para responderem à imputação ora deduzida, esperando vêla, ao final, julgada procedente com a prolação de sentença de pronúncia, levando os réus a julgamento pelo Tribunal do Júri desta Comarca.192

No primeiro parágrafo do texto assinado pelo promotor, já são mencionados os exames cadavéricos como fonte central da informação a ser denunciada. É através daqueles registros que se sabe quais foram as lesões corporais, quais foram os ferimentos que, seguindo a denúncia, foram a causa das mortes das vítimas. O documento produzido no MP também informa que as vítimas estavam detidas, reforçando a leitura dos fatos realizada por Dr. Saul, que, como descrito na Cena 6, se apoiou na localização da zona de tatuagem anotada no laudo cadavérico de Emanuel para deduzir que o mesmo poderia estar algemado, com as mãos na cabeça, no momento em que foi atingido. Ao se referir ao transporte dos cadáveres para o hospital – ação interpretada como tentativa de dar aparência de licitude aos atos violentos cometidos –, o MP menciona a evidente letalidade dos ferimentos. Mais uma vez os exames cadavéricos são acionados enquanto fonte documental central, sendo feita referência direta ao conteúdo imagético desta documentação, pois são destacados os esquemas de lesões que ilustram os autos – para cujo potencial comunicativo dedico espaço na discussão proposta neste capítulo em outras seções. Quanto à remoção dos corpos, há que se destacar que trata-se de uma prática frequente em casos de execuções e chacinas em favelas, motivo pelo qual uma das demandas dos movimentos sociais e organizações que trabalham junto aos familiares de vítimas de violência institucional no Rio de Janeiro é que se cumpra a determinação

191

Ver nota 157 na Advertência. Neste trecho da denúncia produzida pelo Ministério Público, além das modificações já anunciadas na Advertência, foram modificados também o nome do bairro onde se localiza a favela em questão, o nome do bar próximo ao local dos crimes e os números das folhas do processo relativas às cópias dos laudos cadavéricos das vítimas fatais da operação. Sobre a documentação utilizada nesta análise, ver nota 156 da seção “Advertência”. 192

157

da Portaria no 553 da PCERJ193. O Artigo 1o desta portaria, que trata das diretrizes básicas a serem seguidas pela Autoridade Policial em caso de ocorrência que lhe seja apresentada como ensejadora da lavratura do denominado “Auto de Resistência”, traz no inciso I a seguinte diretriz: acionamento imediato de equipe de apoio policial, para fins de isolamento e preservação do local, acaso ainda não tenha sido providenciado, determinando que não seja alterado o estado e a conservação das coisas. A aparência de licitude à qual se refere o MP também pode ser lida por outro ângulo: mesmo que as pessoas atingidas pelos disparos das armas de fogo portadas pelos policiais em operação não estivessem mortas, seu transporte não poderia ser realizado nas viaturas utilizadas por esses agentes neste tipo de atividade. Segundo Resolução no 116/97 do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, dentre os seis tipos de ambulância autorizados a realizar o transporte médico, o veículo destinado ao atendimento de socorro seria a ambulância de resgate, que deve conter não apenas equipamentos necessários à manutenção da vida e equipamentos de salvamento, como também deve ser tripulada por médico, motorista e técnico de enfermagem194. Durante os trajetos das favelas para os hospitais públicos mais próximos, os veículos utilizados são as viaturas da PMERJ e os profissionais presentes são os próprios policiais que atiraram nas vítimas. Esta prática de desfazer o local do crime é mais uma peça na construção da versão da troca de tiros, que ao longo do desenvolvimento da denúncia, vai sendo contestada. Essa desconstrução também se vale dos depoimentos orais das testemunhas do caso, qualificados como provas orais e testemunhais nesta denúncia. No intuito de trazer à reflexão o devido peso deste tipo de prova, trago o trecho de um morador do Morro do Russo que viu e ouviu parte da ação dos policiais naquele dia em que Emanuel foi executado: [...] escutou o barulho de muita água descendo pela rua e que viu essa água suja de sangue; conta que ouviu um policial gritando de forma debochada e rindo “Tá morrendo afogado? Morre, morre afogado desgraçado!”. Conta 193

Ver anexo 6. Tal resolução determina ainda que o motorista e o técnico de enfermagem devem ser treinados em curso técnico de emergência médica de nível básico e devem ter conhecimentos específicos de resgate. Portaria disponível no site do CREMERJ, através do endereço http://old.cremerj.org.br/skel.php?page=legislacao/resultados.php . 194

158

que soube depois que o cano foi estourado por um tiro dos policiais e que eles mesmos fecharam o registro da CEDAE. Observou que os policiais estavam muito eufóricos, rindo muito e que tinham a fala meio “embolada” e que gritavam “sob nova direção! Não tem mais arrego!”. Conta que nesse momento não viu quantos policiais estavam ali, mas que eles não deixavam ninguém subir nem descer o beco; conta ainda que pela janela da sua casa viu uma arma (fuzil 762 cromado) no chão do beco; que também ouvia vozes dos policiais conversando em tom alto e que depois disso houve um grande silêncio; por fim, conta que quando já estava escurecendo, viu policiais fardados da PM – talvez uns 6 ou 7 – recolherem os corpos.195

Para além da atitude dos agentes em relação às vítimas e ao tratamento dado àquelas mortes, que discuto a seguir, gostaria de chamar atenção para a descrição da cena que antecede o recolhimento dos corpos – visto que torna evidente o fato de aqueles moradores estarem mortos, não cabendo, portanto, qualquer tentativa de socorro, conforme mencionado anteriormente. Qualifica-se, no texto da denúncia, também a violência que caracterizou a ação dos policiais: violência imoderada e desnecessária – exercida em contexto no qual os policiais não teriam ao quê reagir, visto que não comprovaram haver sofrido qualquer ataque. Ainda que na denúncia aqui transcrita tenham sido utilizadas expressões como vontade livre e consciente de matar para caracterizar o momento de efetuação dos disparos, é fundamental ressaltar que esses disparos partiram de fuzis adquiridos pela corporação através de investimentos governamentais na área da segurança pública196. A partir desta colocação, não estou querendo retirar as qualificações de imoderada e desnecessária atribuídas pelo MP à ação violenta dos agentes de Estado que participaram da operação no Morro do Russo aqui discutida – a referência aos investimentos no armamento da corporação PMERJ tem o objetivo de demarcar as 195

Trecho final de um dos depoimentos que constam do processo do caso em questão. Sobre a documentação utilizada nesta análise, ver nota 156 da seção “Advertência”. 196 Como destacam Misse et al. (2013: 15), “o governo do Estado do Rio de Janeiro adotou, a partir de meados dos anos 90, a estratégia de investir, cada vez mais, em recursos materiais e humanos principalmente para a polícia militar, através da aquisição de armas de alto potencial letal, como os fuzis .762, da contratação de membros para a corporação e da expansão considerável de sua frota de viaturas, incluindo veículos blindados, apelidados de “caveirões”. Também houve investimento na capacitação dos policiais para atuar em contextos de “guerrilha urbana”, aumentando-se o efetivo do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e do Batalhão de Policiamento de Choque (BPCHq), além de se criarem Grupamentos de Ação Tática (GAT) nos batalhões convencionais. Todo este aparato de guerra foi empregado em operações de incursão cada vez mais freqüentes em favelas com o objetivo de fazer frente ao poder local dos traficantes.”

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condições de possibilidade daquele disparo, visto que no debate aqui proposto ele é compreendido enquanto produto e produtor dessa lógica militarizada que caracteriza as políticas de segurança pública que vêm sendo implementadas no Estado do Rio de Janeiro, especialmente a partir da década de 90. Retomando brevemente um ponto já abordado no primeiro capítulo desta tese, vale lembrar aqui que foi na década de 90 que se consolidou a legitimidade do enfrentamento militarizado à favela e seus moradores, por serem estes entendidos por diferentes setores da sociedade residente no Rio de Janeiro como o foco irradiador da violência urbana que assolava a cidade (Leite, 2000; Machado da Silva, 2002; Machado da Silva, Leite e Fridman, 2005). Assim se pautaram políticas de segurança pública para todo o Estado – marcadas pela diferença entre a atuação das polícias no “asfalto” e na favela. Configurava-se um contexto político pautado pela “metáfora da guerra”, noção através da qual Leite (2000) explora os diferentes ângulos da aceitação de uma divisão do Rio de Janeiro em dois pólos social e geograficamente demarcados: Presumindo que se vivia de fato uma guerra que opunha morro e asfalto, favelados e cidadãos, bandidos e policiais, os partidários desta perspectiva aceitavam a violência policial em territórios dos e contra os grupos estigmatizados e assistiam passivos ao envolvimento de policiais militares em várias chacinas. (Leite, 2000: 75).

Dentre as diferentes frentes de ampliação desse quadro político a partir dos anos 2000, aciono mais uma vez um ícone desses investimentos para uma segurança pública mais militarizada: o caveirão, veículo blindado adquirido para ser utilizado pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar (BOPE) em operações nas favelas. Como explorado no capítulo 1, a intensificação das operações militares em favelas com a utilização do caveirão fez com que se iniciasse em 2006 uma campanha contra o uso do veículo. Segundo Ramos (2010), o ano seguinte (2007), pode ser considerado um marco do que ele chama de política Caveirão. Tratando o veículo enquanto aparelho de caça e o alocando no centro da política de segurança pública que promoveu naquele ano a chacina do Alemão, Ramos (2010) relembra duas declarações importantes para a discussão aqui travada. A primeira que destaco foi proferida por José Mariano Beltrame, desde então Secretário de Segurança

160

Pública do Estado do Rio de Janeiro, sobre a marca de 19 pessoas mortas na megaoperação realizada na Vila Cruzeiro: o remédio para trazer a paz, muitas vezes, passa por alguma ação que traz sangue197. As 19 pessoas mortas não configuram o único número impressionante a respeito daquela operação: essas 19 pessoas mortas foram atingidas por um total de 78 tiros, dos quais 32 foram disparados pelas costas das vítimas, como registrado nos laudos cadavéricos examinados por perito legista independente a pedido da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ198. Adiciono ao debate, então, a declaração de um policial civil sobre o fato de os agentes terem chegado a determinados pontos do Complexo do Alemão considerados inacessíveis escoltados por caveirões e, portanto, em posição que facilitou a execução do ataque que tinham planejado: Foi igual a dar tiro em pato no parque de diversões199. Enquanto no Alemão foi igual a dar tiro em pato, no Morro do Russo o morador já atingido gravemente teve que engolir a água que lavava o sangue do seu próprio corpo, ouvindo o policial dizer: morre, morre afogado desgraçado, como relatou uma das testemunhas do caso, no trecho destacado anteriormente. A declaração do secretário e a declaração do policial da ponta podem ser lidas como exemplos do entrelaçamento entre o posicionamento institucional a respeito das mortes dos moradores de favelas e o que o MP denominou vontade livre e consciente de matar. Não há como (e esse não é um objetivo deste estudo) negar a implicação do policial que efetua o disparo fatal na engrenagem governamental que faz a gestão dessas mortes – a insistência dessa argumentação é para que não se deixe de enxergar a engrenagem. Afinal, há trechos da documentação do processo judicial que abrem espaço para uma leitura das execuções como ações orientadas especificamente pelo campo afetivo/pessoal, como a passagem da denúncia que traz a compreensão de que os policiais denunciados agiram por motivo torpe, que se vingaram das vítimas

197

Jornal O Globo, edição de 29 de junho de 2007, p. 14. Relatório da Sociedade Civil para o Relator Especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais. Rio De Janeiro: 2007. 198

199

“Secretário nega excessos da polícia no Complexo do Alemão”. Carta Maior, 29 de junho de 2007. Disponível em < http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Secretario-nega-excessosda-policia-em-operacoes-no-Complexo-do-Alemao/5/13631>.

161

indiscriminadamente. Ainda que sentimentos de vingança e revanchismo habitem dimensões de ordem pessoal, há processos de institucionalização da vingança que não podem ser ofuscados neste debate – institucionalização declarada, inclusive, por quadros da PMERJ que atuaram na ponta enquanto agentes de segurança pública. Em entrevista realizada durante as filmagens do documentário Notícias de uma guerra particular200, em 1997, com Rodrigo Pimentel (à época capitão do BOPE), essa institucionalização da vingança aparece no mesmo discurso que defende a interpretação de que acontece uma guerra nos morros do Rio. Após Pimentel dizer que se ele estivesse nas Forças Armadas talvez não tivesse a oportunidade de participar de uma ação real, ele é surpreendido pela pergunta: você sente falta de ter participado de uma guerra? Transcrevo abaixo a resposta, seguida de outros trechos da entrevista que merecem espaço no debate aqui travado: Eu estou participando de uma guerra, acontece que eu tô voltando pra casa todo dia. É a única diferença. Nossa guerra é diariamente nesses morros do Rio. Esse mês no Batalhão de Operações Especiais nós tivemos quatro policiais feridos a bala. Só esse mês. Então eu tenho consciência de que eu estou participando de uma guerra. [...] De seis meses pra cá, eu poderia dizer que 100% das nossas missões foram em favelas, com exceção de uma ocorrência num estabelecimento prisional, com refém. [...] Quando mata? Quando mata a sensação é só de dever cumprido, né. Dizer que cheguei em casa e não dormi, eu vou estar mentindo. Mas logicamente sem sadismo, é porque houve a necessidade. O BOPE é uma unidade consagrada até por não matar muito na polícia. A maioria das nossas grandes prisões, o bandido nem baleado estava. O BOPE prendeu o Escadinha, o BOPE prendeu o Meio Quilo, o BOPE prendeu o Marcinho VP e nenhum deles o BOPE matou. [...] Nenhum deles nem baleado foi. E eles estavam armados. Com exceção do Marcinho VP que tava desarmado, os outros estavam armados atirando contra a equipe. [...] Durante 17 anos de vida da unidade, nós tivemos 4 policiais mortos, feridos à bala em confronto. [...] É uma guerra sem fim. Por mais que toda noite você vá lá... Durante duas semanas o BOPE quase toda noite matava um traficante ali [aponta para o Morro da Mineira]. Apreendia uma pistola, matava um traficante, apreendia um fuzil, matava um traficante. [...] A nossa guerra já se tornou particular, é uma guerra de polícia com traficante. A sociedade tá alheia a isso tudo. [...] A polícia vive essa guerra particular, onde você mata um traficante, o traficante fica com ódio da polícia. Aí eles matam um policial, você fica com

200

Utilizo aqui trechos da entrevista completa realizada com Rodrigo Pimentel, então capitão do BOPE, durante as filmagens do documentário Notícias de uma guerra particular (1999), dirigido por João Moreira Salles e Katia Lund. Disponibilizada nos extras do DVD do filme, a entrevista completa (dividida em duas partes) também pode ser acessada através dos links: e . Acesso em: 20/08/2013.

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ódio do traficante, essa coisa vai nesse nível, é uma guerra quase que particular já. [...] A política é de combate.

Esse agente de Estado, à época capitão do BOPE, se refere, portanto, ao sentimento de ódio que um policial pode ter de um traficante na mesma entrevista em que diz que matar é cumprir um dever. Se a guerra à qual se refere o capitão é particular, é de polícia com traficante, se o policial sente ódio do traficante, se essa guerra é gerida por uma política de combate na qual matar é cumprir seu dever, estamos diante de um quadro no qual essa mesma vingança, que pode habitar cada policial que sentiu ódio, é uma vingança que está institucionalizada. Considerando ainda a leitura do MP sobre o fato de os policiais denunciados pela ação no Morro do Russo terem matado aqueles seis moradores por vingança sob o falacioso fundamento de que seriam traficantes, gostaria de chamar atenção para a perenidade desse sentimento de vingança. Nessa operação do Morro do Russo nenhum policial foi morto, sequer ferido – caso contrário, tais informações constariam dos autos do processo em diferentes documentos examinados ao longo deste estudo. Assim sendo, a possibilidade de vingança dos policiais denunciados estaria então relacionada à suposta morte de um policial ocorrida em momento anterior àquele. Dando continuidade a esta linha de raciocínio, aciono novamente a entrevista do capitão da tropa de elite para recuperar dois trechos, não necessariamente na ordem em que aparecem: 1) a justificativa de que se trata de uma guerra porque em 17 anos de vida da unidade, 4 policiais foram mortos, feridos à bala em confronto; 2) o fato de o BOPE ter realizado incursões diárias durante duas semanas no Morro da Mineira, período no qual, segundo o capitão, quase todas as noites um traficante foi morto por um policial. Considerando que quase todas as noites, em uma conta por baixo, poderia corresponder a uma morte a cada dois dias, em duas semanas o total de mortes de moradores de favelas (visto que não se sabe – e, no limite, não importa – se eram traficantes ou não) equivaleria a 7 mortes em duas semanas de operação militar. O que nos é apresentado em números, então, em menos de 20 minutos de entrevista, é o seguinte quadro: nos 17 primeiros anos de atuação do BOPE nas favelas do Rio de Janeiro, 4 policiais foram mortos por traficantes locais, enquanto em duas semanas de operação do BOPE no Morro da Mineira, 7 moradores foram mortos por 163

policiais201. Quando me referi à perenidade do sentimento de vingança, pensava em assimetrias como essa e, finalizando essa minha brevíssima incursão no campo da análise (quase) quantitativa, faço questão de utilizar como unidade de medida a locução adverbial de tempo que o capitão usou em sua entrevista: quase toda noite. Afinal, não é preciso trazer aqui o número de moradores de favelas mortos por agentes do BOPE durante os 17 primeiros anos de atuação deste batalhão para entendermos que os tais 4 policiais mortos no mesmo período foram e ainda são vingados quase toda noite em operações policiais – realizadas pelo BOPE ou outras unidades da PMERJ – nas favelas do Rio de Janeiro. A vingança à qual se refere o MP na denúncia é produzida institucionalmente; a vontade livre e consciente de matar, mencionada no mesmo documento, também é institucional – cada disparo efetuado por um policial durante uma operação na favela está atravessado pelo Estado202. Retorno à entrevista de Pimentel uma última vez nesta seção, para refletir sobre o posicionamento firme do MP a respeito de os policiais denunciados não estarem autorizados a matarem aqueles seis moradores do Morro do Russo, ainda que os mesmos fossem traficantes. O termo utilizado pelo MP para qualificar as ações letais dos agentes foi justiçamento sumário. Relembro, então, a afirmação do capitão do BOPE de que quando um agente da sua unidade mata é por necessidade. Em seguida, o entrevistado apresenta uma lista de bandidos cariocas conhecidos que foram presos sem serem baleados, fazendo questão de dizer que eles estivam armados e atirando contra a equipe. O que o entrevistado não explicou foi sob quais argumentos, portanto, se sustenta a necessidade de matar. Pelas pistas oferecidas por ele mesmo, é possível

201

Ainda que a exibição de tais números não tenha o objetivo de subsidiar estatísticas, considero importante lembrar aqui o modelo utilizado por Ignacio Cano (apresentado por ele na audiência pública sobre registros de autos de resistência realizada na Alerj, como discutido no capítulo 2 desta tese): quando se estabelece de fato o confronto armado entre policiais e traficantes, é esperado que o número de policiais mortos seja menor (por conta do treinamento, da preparação física etc); no entanto, quando se ultrapassa a marca de dez “opositores” mortos para um policial morto, já está configurado o uso excessivo da força. 202 Esta leitura compartilha do posicionamento explicitado na análise de Leite (2012), que argumenta que as execuções dos moradores de favelas devem ser compreendidas “não como produto de "desvios de conduta" ou "excessos" praticados por agentes das instituições estatais, ou por "maus policiais", mas como resultantes dos dispositivos de gestão das favelas e de suas populações que estão inscritos nas próprias concepções e práticas estatais na sociedade brasileira”.

164

entender que essa necessidade estaria atrelada ao cumprimento do dever (já que matar traz a sensação de dever cumprido) – esse seria, então, outra possibilidade de caminho interpretativo para a leitura das mortes em questão como produtos de uma orientação institucional, cumprida pelo profissional da ponta que tem a necessidade de realizar bem sua missão. Como propaga uma das músicas de treinamento do BOPE mais difundidas, a missão da tropa de elite é entrar pela favela e deixar corpos no chão. Dito isto, retorno ao enquadramento demarcado no texto assinado pelo promotor de justiça ao ressaltar que os denunciados – todos policiais militares em serviço – segundo alegaram por determinação superior – realizavam incursão no citado morro. Aqui, na própria denúncia em discussão, a corporação está presente enquanto determinação superior e a institucionalidade da ação é ratificada pela redação de duas palavras: em serviço. Após a identificação e descrição de todos os atos condenatórios, o texto condensa em um único parágrafo essas duas dimensões – a individual e a corporativa – mencionando o fato de que a participação de cada um dos denunciados no conjunto de homicídios, ainda que, em relação a alguma das seis vítimas tenha consistido numa atitude corporal inerte, redundou em força moral cooperativa. Tal afirmativa se vale do fato de que havia certeza da solidariedade entre todos, tendo eles mantido odiodo pacto de silêncio da verdade ao longo de toda a investigação. Conforme se encaminha para o encerramento, no entanto, a denúncia torna a focalizar especificamente os policiais que participaram na incursão no Morro do Russo. Em seis linhas de texto, três denominações são utilizadas para se referir a esses agentes: os denunciados (incursos nas penas do artigo 121203); os acusados (para responderem à imputação deduzida) e os réus (que serão julgados pelo Tribunal do Júri). Na sequência desse texto, que corresponde à apresentação do fato delituoso, o documento é encerrado com um requerimento da oitiva, realizado em apenas uma frase seguida da lista nominal das oito testemunhas ouvidas naquela fase do inquérito. Assinada por um promotor de justiça – que explicita que o documento é produzido no uso de suas atribuições legais –, essa denúncia chega ao Fórum para ser entregue às mãos do juiz em três folhas de papel timbrado do MP. A chegada ao destino

203

Ver nota 156 na Advertência.

165

é protocolada com um carimbo na primeira das folhas da denúncia, o qual traz acima do nome do juiz e do espaço para preenchimento da data, dois itens informativos: 1) D.R.A., que corresponde a “distribua-se, registre-se, autue-se”, e 2) Decisão de recebimento da denúncia em separado. Neste outro documento, então, nomeado decisão, o juiz afirma que a denúncia oferecida pelo MP preenche os pressupostos legais para o seu recebimento, afirmação ratificada pela listagem dos seguintes componentes: exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação dos acusados, a classificação do crime e rol de testemunhas. A decisão é curta e cifrada (não só por citar artigos do Código de Processo Penal, mas especialmente pela composição lexical que marca o campo jurídico), mas ainda assim se faz evidente o status que ocupa no desenvolvimento do caso o resultado dos exames realizados no IML: Há justa causa para a deflagração da ação penal, consubstanciada na materialidade delitiva, que se encontra positivada pelos Autos de Exames Cadavéricos anexados às fls. 268/269, 243/244, 237/238, 251/252, 264/265 e 259/260 e nos indícios de autoria, que exsurgem do teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas [nomes das testemunhas ouvidas na oitiva].

Este trecho da decisão do juiz ao aceitar a denúncia do MP não deixa dúvidas quanto à centralidade do laudo cadavérico para a condução do caso: a apresentação da documentação produzida no IML juntamente com os depoimentos das testemunhas ratifica não apenas o peso do laudo enquanto prova, mas a equivalência entre inscrições que marcam no corpo sua própria morte e relatos orais que trazem informações fundamentais para a investigação. Um mês após a divulgação da decisão, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro envia ao juiz o posicionamento da defesa escrita prelinar, criticando a generalização da autoria descrita na denúncia apresenta pelo MP e solicitando a rejeição da mesma por parte do juiz: [...] Emérito Julgador, assim ante ao exposto, espera a defesa a rejeição da inicial, dada a inépcia, como a própria generalidade das narrativas envolvendo os policiais militares que eventualmente estiveram em atividade de segurança pública.

166

Ausência de justa causa se faz a todos os olhos!!! A presunção do atuar dos réus na forma da peça acusatória se faz pelos locais das lesões. Ora, como admitir a conjectura para exercício acionário, quando a norma processual federal requer indícios de autoria como exigido?

Assim, então, a defesa dos policiais mobiliza o resultado dos exames cadavéricos para dizer que a partir deles não é possível sustentar aquela denúncia. Ainda que o ponto da crítica resida na ausência de provas que permitam determinar a autoria dos crimes de forma individual, importa o fato de que a reação aos locais das lesões enquanto prova tenha sido precedida por uma expressão que se refere ao órgão da visão. Se a ausência de justa causa se faz a todos os olhos, qualquer um que estivesse interessado no caso enxergaria aquela ausência de prova anunciada pela defesa, mais ainda um especialista. Certamente foi a busca pela argumentação especializada que orientou a elaboração de uma nova listagem de testemunhas a serem ouvidas: das sete pessoas escolhidas, solicitou-se um perito em armamento do Instituto de Criminalística Carlos Éboli e também um perito legista. A defesa requisitou ainda que fosse incorporada aos autos publicação jornalística da atividade ilícita em comunidades cariocas, dentre as quais o Morro do Russo – requisição que expõe um dos caminhos utilizados pelos operadores do direito que atuam na defesa de policiais acusados durante a elaboração da inversão operada nas audiências de instrução e, em especial, no dia do julgamento dos policiais em casos como esse. Tal inversão, como trabalhamos Adriana Vianna e eu a respeito do julgamento de policiais militares envolvidos em um caso semelhante ao do Morro do Russo, acontece da seguinte forma: o réu deixa de ser o alvo das acusações daquele julgamento, pois estas são direcionadas pela defesa para as vítimas da chacina [...], fazendo com que o promotor e o assistente de acusação tivessem que se esforçar para defender as próprias vítimas. Nesse sentido, a equipe responsável pela acusação dos policiais é obrigada a usar a maior parte do tempo das audiências de instrução e julgamento “limpando moralmente”204 as vítimas e, por extensão, seus familiares. A inversão completa do quadro, portanto, faz com que durante o

204

Para a análise em questão, foi acionada a ideia de “limpeza moral” elaborada por Machado da Silva e Leite (2008) durante investigação sobre estratégias de enfrentamento de estigmas e de distanciamento moral dos moradores de favelas em relação aos traficantes que atuam nessas localidades.

167

julgamento de um processo deste tipo, a defesa acuse e a acusação defenda. (Vianna e Farias, 2011: 100)

Para fortalecer ainda mais essa linha argumentativa, a defesa solicitou ainda que o Batalhão da Polícia Militar responsável pela operação no Morro do Russo enviasse cópia do IPM (Inquérito Polícial Militar). Ao me referir ao fortalecimento da linha argumentativa, estou informada pelo Relatório de Inquérito Final – documento que fornece muitos dados que sustentam a versão da troca de tiros relatada pelos policiais ao preencherem o Registro de Ocorrência, conforme explicitei no início desta seção do capítulo. Oito dias após o posicionamento da defesa dos policiais denunciados, a promotoria se manifestou mais uma vez, encaminhando ao juiz documento de resposta à defesa inicial: verifica-se que em nenhum momento foi levantada alguma questão relevante que possa conduzir à extinção do feito de forma prematura. O promotor que assinava tal resposta já não era o mesmo que assinou a denúncia, mas tal substituição não alterou o posicionamento do MP sobre o caso do Morro do Russo. Consta do documento, inclusive, crítica severa à defesa apresentada, qualificando como impossível o pedido da defesa e como inadequada a via escolhida para propor o trancamento da ação penal em questão. Finalmente o vai e vem de papéis relativos ao início do processo se encerra com a divulgação da última decisão do juiz, dois dias após a resposta da promotoria à defesa dos acusados. É ratificada a primeira decisão, são repetidos os motivos pelos quais deveria ser instaurada a ação penal e designa-se o dia da primeira audiência do caso – para dali a três meses.

4.2 Releitura dos fatos com a lente da perícia independente

Em meio às disputas descritas na seção anterior, registrei a centralidade dos exames cadavéricos para a condução do caso do Morro do Russo a partir dos textos de outros documentos mobilizados na composição do processo. Agora, dedico atenção 168

especial ao laudo cadavérico enquanto plataforma de registros oficiais – elaboro uma descrição analítica a partir do que foi dito pelo perito legista durante a reunião no NUDEDH (relatada na Cena 6), adicionando à reflexão o conteúdo do parecer técnicocientífico por ele produzido. Cabe explicar que este parecer começou a ser produzido quando o processo já estava em andamento, mas como é permitido que ambas as partes apresentem documentos em qualquer fase do processo205, após as negociações entre os familiares de Emanuel, Dr. Saul e Frederico Chagas206 (parte delas relatada na Cena 6), decidiu-se pela juntada do estudo ao processo. Como antecipei na introdução do capítulo, todos os presentes na reunião dedicaram atenção especial a uma anotação nos esquemas do laudo cadavérico de Emanuel, a tal zona de tatuagem. Sua existência no corpo da vítima e, mais especificamente, seu adequado registro no laudo cadavérico somado às informações acerca da entrada e da saída do projétil, são informações capazes de comprovar que o tiro fatal foi dado pelas costas e à curta distância. Informações que, segundo o perito legista convocado pelos familiares, deveriam aparecer articuladas na continuidade do preenchimento do laudo cadavérico no momento da perícia no IML, através da seção do laudo reservada para as respostas aos quesitos, constituída de cinco perguntas, que reproduzo aqui com as respectivas respostas preenchidas no documento relativo à vítima Emanuel: Houve morte?

205

“Salvo os casos expressos em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer fase do processo (art. 231 do CPP). Não é permitida a exibição ou leitura de documento no plenário do Júri sem a ciência antecipada da parte contrária (art. 479). Documento é qualquer objeto que contenha marca ou sinal, como superfícies escritas, papéis, cartas, fotografias, filmes, gravações sonoras etc. As cartas particulares, interceptadas ou obtidas por meios criminosos, não serão admitidas em juízo (art. 233 do CPP). O mesmo ocorre com as fitas magnéticas e a escuta telefônica. Não é permitida a apreensão do documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito (Art. 243, § 2o , do CPP). São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da CF).” (Führer e Führer, 2009). 206

Nesta seção me refiro a Frederico Chagas também como “o defensor”. Gostaria de lembrar que tatase de um dos defensores que atua enquanto assistente de acusação do caso, não podendo ser confundido, portanto, com o defensor público que atua na defesa dos policiais acusados. Na tentativa de evitar qualquer mal entendido nesse sentido, busquei utilizar na redação deste capítulo o termo “defesa” para me referir à defesa dos réus, sem apresentá-la através do profissional que a desempenha.

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SIM. Qual foi a causa da morte? FERIMENTO TRANSFIXIANTE DE CRÂNIO COM LESÃO DE ENCÉFALO. 3) Qual foi o instrumento ou meio que produziu a morte? AÇÃO PÉRFURO-CONTUNDENTE. 4) Foi produzido por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel (resposta especificada)? SEM ELEMENTOS PARA RESPONDER POR DESCONHECER A DINÂMICA DO FATO. 5) Outras considerações objetivas relacionadas aos vestígios produzidos pela morte, a critério do Senhor Perito Legista. SEM OUTRAS ALTERAÇÕES. (sic)

Segundo as explicações de Dr. Saul para os familiares e o defensor, apesar da referência à zona de tatuagem na descrição da necropsia e a indicação da marca no esquema que compõe o laudo cadavérico, a forma como os cinco quesitos foram respondidos prejudicam de forma concreta a investigação do caso207, como fica explícito através do trecho do parecer técnico-científico produzido posteriormente. A crítica deste profissional ao trabalho realizado no IML Afrânio Peixoto acompanha a ideia de que há situações em que o perito não vê e o que vê não descreve (recuperando uma passagem da explicação durante a reunião no NUDEDH). O posicionamento do perito convocado pelos familiares de Emanuel poderia ser resumido com outra frase que anotei no meu caderno de campo – o problema do laudo é que é um somatório de incompetências – no entanto, vale complementar a argumentação com a versão formal (e técnica) da crítica: Quando o perito legista não encontra sinais cadavéricos que expressem o emprego de “veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura ou outro meio insidioso ou cruel”, resta absolutamente errôneo prejudicar o QUARTO QUESITO, sob a alegação de “PREJUDICADO”, ou “SEM ELEMENTOS DE CONVICÇÃO PARA RESPONDER”, ou “SEM ELEMENTOS POR DESCONHECER 207

Vale ressaltar que, nesta situação, prejudicar a investigação do caso não é uma frase neutra, mas posicionada, e que indica uma acusação de mau uso da “verdade técnica”.

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A DINÂMICA DO EVENTO”, ou mesmo, como se pode ler no Laudo de Exame Cadavérico em comento, “SEM ELEMENTOS PARA RESPONDER POR DESCONHECER A DINÂMICA DO FATO”. Ora, se o perito quer ter informações sobre a dinâmica do evento, ele poderá solicitar ao delegado de polícia que preside o inquérito policial, ou mesmo ao INSTITUTO DE CRIMINALÍSTICA CARLOS ÉBOLI, informações sobre a Perícia de Local de Crime. E, ainda, quando o cadáver provém de unidade hospitalar, solicitar informações hospitalares, sobre o atendimento prestado, ou, no caso de morte no ingresso da unidade hospitalar, o que foi evidenciado pelos médicos. E, como vimos, o perito legista independe de informações adicionais, de Local de Crime, para afirmar ou negar se houve emprego de “VENENO, FOGO, EXPLOSIVO, ASFIXIA OU TORTURA OU OUTRO MEIO INSIDIOSO OU CRUEL”. [...] Em suma, “PREJUDICAR” a resposta ao QUARTO QUESITO é pura tergiversação capaz de deixar pairarem dúvidas inaceitáveis sobre os fatos, que obrigatoriamente têm de ser determinados por meio de um Exame Cadavérico corretamente realizado, o que trará prejuízos para o processo penal. Respondê-lo corretamente é dever de ofício do perito legista. (sic)208

Neste parecer técnico-científico, o foco da crítica do perito legista acionado pelos familiares de Emanuel não se prende à maneira de responder o quarto quesito – ao contrário, se espalham pelas páginas do estudo apontamentos sobre cuidados que não foram tomados e que, da mesma forma que ocorre com a resposta ao quarto quesito, acabam deixando “dúvidas inaceitáveis sobre os fatos”. Desta lista, destaco mais dois exemplos: 1) a ausência de uma mensuração completa das duas feridas por PAF (projétil de arma de fogo) – mensurações imprescindíveis para a estimativa do calibre do projétil (para conferir se o calibre coincidia ou não com os calibres das armas utilizadas pelos policiais durante a “operação”) e que, vale ressaltar, deveriam acontecer através da utilização de instrumentos de medição específicos, como o paquímetro digital ou mesmo uma régua milimetrada; 2) a ausência de descrição da forma da ferida de entrada do projétil – que, segundo o estudo, poderia esclarecer a trajetória do projétil, dado que poderia ser utilizado para inferir em que posições estavam atirador e vítima. Justapondo-se, portanto, à porção “visível” do preenchimento do laudo, percebe-se que há uma série de perguntas a serem respondidas pelo perito que não estão impressas no documento (da forma como estão os cinco quesitos citados 208

Trecho do laudo de exame de necropsia de Emanuel, produzido no Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, no dia seguinte de sua morte. Sobre a documentação aqui utilizada, ver nota 156 da seção “Advertência”.

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anteriormente). Se somássemos as perguntas não impressas (e não respondidas) às perguntas impressas com respostas incompletas, poderíamos compor uma lista considerável de ausências neste laudo cadavérico – ausências que correspondem a informações que não foram registradas no devido documento pelo profissional capaz de fazê-lo, ou seja, informações invisíveis aos olhos dos não especialistas. Este tipo de produção do laudo cadavérico pode ser entendido, então, como um procedimento orientado por uma espécie de negativo da revelação, não porque esconde informações, mas porque revela a força de um indizível burocrático, porque explicita a intimidade do especialista com uma economia de palavras em um documento crucial para o prosseguimento de investigações, para o encaminhamento de acusações, para o tratamento jurídico/legal de violações e crimes de estado. Aqui reside, portanto, o caráter de (i)legibilidade desta documentação, nos termos trabalhados por Das e Poole (2004) em suas reflexões sobre processos de construção e reconstrução do Estado através das suas práticas de escrita – (i)legibilidade que pode ser compreendida, ainda, através da chave interpretativa de que governar é também não fazer, conforme sugerem os trabalhos de Vianna (2002) e Lugones (2009). Seguindo a chave analítica proposta por Das e Poole (2004), o problema da (i)legibilidade da documentação do Estado é encarado como uma das bases de consolidação do controle estatal sobre populações, territórios e vidas – enquadramento que será discutido na seção 4.4 deste capítulo. Os opostos legibilidade/ilegibilidade abrem espaço para possibilidades de interpretação pautadas por contrastes e/ou escalas do visível e do legível, como no caso dos desdobramentos de leitura do laudo a partir da zona de tatuagem aqui discutida. Por se tratar de uma marca no corpo e uma anotação no esquema gráfico que compõe o laudo que podem ser enxergadas por leigos (e inclusive compreendidas, se devidamente explicadas), a zona de tatuagem pode sugerir a garantia da legibilidade deste documento para além da esfera da perícia estatal. Uma simples anotação “T”, feita à mão pelo perito de plantão no IML, no dia seguinte da morte de Emanuel, carrega consigo uma determinada versão dos fatos e o devido preenchimento desta informação na documentação em questão orienta, correlaciona ou confronta diversas outras informações a respeito da morte deste 172

morador de favela – tanto informações que habitam ou deveriam habitar o mesmo laudo cadavérico, quanto informações produzidas via outros registros e situações no decorrer das investigações, como discutido na seção 4.1 deste capítulo. É possível explorar nesta documentação de estado uma informação visual (mesmo que o conteúdo imagético e seu potencial comunicativo sejam radicalmente distintos de fotografias e outros suportes trabalhados no capítulo 1). Mas é também indiscutível o fato de que não peritos (ou seja, leigos, como eu) possam enxergar a anotação “T” no laudo. O ponto a ser destacado a partir desta leitura é que o fato de não peritos enxergarem (e até entenderem) a anotação “T” não faz do laudo cadavérico um documento completamente “legível”. Aqui, entra em debate a questão das especializações, afinal, mesmo que muitos possam enxergar a anotação referente à zona de tatuagem, não são todos que podem realizar esta anotação no documento e não são todos que, dentro do tribunal do júri, podem construir argumentações a partir desta anotação durante o julgamento do policial que efetuou o disparo. Neste pequeno (mas determinante) trajeto burocrático, estão conectados saberes de áreas distintas que se entrecruzam na engrenagem estatal que se supõe soberana e rearticula cotidianamente estes saberes específicos a fim de renovar e perpetuar tal soberania. No caso em questão, o domínio do campo da medicina legal tanto possibilitou o esclarecimento de informações, quanto sua omissão – e o controle dessas informações passou por especialistas que trabalham produzindo registros oficiais. Provavelmente foi considerando o peso desta oficialidade que Dr. Saul, enquanto perito legista independente, explicitou seu julgamento nas páginas do parecer técnico-científico elaborado para o caso do Morro do Russo: A Ciência Forense prescinde de peritos legistas que, propositalmente escudados da evasiva resposta ao QUARTO QUESITO – “SEM ELEMENTOS PARA RESPONDER POR DESCONHECER A DINÂMICA DO FATO” –, lavam suas mãos (mãos claramente irresponsáveis), como se PILATOS pós-modernos fossem, diante de fatos científicos, de suma importância para a Justiça; e mais que para esta, para a própria sociedade, ao final de tudo. [...] O povo, pelo geral, atribui a impunidade à Justiça; mas nesse caso, em particular, a

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impunidade fora referendada por exame cadavérico mal feito, desidioso, incompleto, falho, omisso e incompetente.209

Apesar do enfoque dado à perícia na discussão aqui travada e de uma possível interpretação da escolha da citação acima como aglutinadora de posicionamentos políticos afins, considero fundamental enfatizar que este estudo é produzido a partir da compreensão de que no percurso deste caso de execução de Emanuel (e dos demais casos de violações cometidos por agentes do Estado nas favelas e periferias do Rio de Janeiro) há múltiplas esferas e agências de estado intercaladas. Não se trata de arrastar para cima de determinado perito legista ou para o IML-RJ holofotes (ou acusações) que recaem com maior frequência sobre ações individuais de policiais ou sobre a instituição da Polícia Militar como um todo, ou sobre o sistema de Justiça em curso. Em relação a este ponto da discussão, gostaria de ressaltar que não é desconsiderado aqui o fato de o Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto fazer parte da estrutura da Policia Civil do Estado do Rio de Janeiro, alocado especificamente no Departamento de Polícia Técnico-Científica da instituição. No entanto, não seria analiticamente coerente deslocar o foco de acusação de uma polícia para a outra, visto que no presente estudo as polícias são compreendidas enquanto integrantes da engrenagem que faz a gestão das mortes dos moradores de favelas. Como indiquei na introdução deste capítulo, foi a importância dada ao laudo cadavérico na conversa entre os familiares de Emanuel, o perito legista e o defensor público responsável pelo caso no Núcleo de Direitos Humanos na Defensoria Pública que orientou a escolha de trazer para a análise essa discussão. Dentre as situações vivenciadas durante o trabalho de campo, aquele foi um dos encontros mais instigantes, especialmente por anunciar um conjunto de informações sobre as mortes dos moradores de favelas ao qual eu ainda não tinha tido acesso. Esse conjunto estava sob os domínios de um campo de saber que, embora tão fundamental para a compreensão da gestão dessas mortes, até aquele dia não tinha se

209

Trecho do parecer técnico-científico produzido por Dr. Saul para ser anexado ao processo do caso do Morro do Russo. Sobre a documentação aqui utilizada, ver nota 156 da seção “Advertência”.

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apresentado enquanto possibilidade, enquanto via de acesso a outras fontes de investigação. Não me refiro apenas ao parecer técnico-científico produzido por Dr. Saul, mas ao próprio laudo cadavérico – documento insólito que não fazia parte da lista de papéis oficiais sobre os quais eu planejava me debruçar. Mas as reflexões de Dr. Saul sobre o laudo e o entusiasmo dos familiares com a possibilidade da assistência de uma perícia independente, que contaria inclusive com a produção de um parecer especial sobre a morte de Emanuel se apresentaram quase como uma intimação do campo pra pesquisadora. Se estava me propondo a identificar e perseguir analiticamente as imbricações institucionais que marcam a reconstrução cotidiana do Estado através das relações estabelecidas com suas margens, não seria coerente deixar de lado a explicação sobre a formação da zona de tatuagem no braço esquerdo de Emanuel, ou ignorar o fato de que laudos cadavéricos são preenchidos de forma inadequada. Afinal, se a forma de responder aos cinco quesitos do laudo pode prejudicar concretamente a investigação do caso, a produção deste documento não pode ter seu lugar diminuído na engrenagem de gestão dessas mortes. Seguindo as pistas oferecidas por Ferreira (2009) em seu estudo sobre o processo de identificação dos corpos nãoidentificados no IML-RJ, entendo que assim como “cada identificação de um nãoidentificado confere vigor a um modo específico de gerir estes corpos e suas mortes” (Ferreira, 2009: 34), o mesmo pode ser dito para cada zona de tatuagem inadequadamente anotada, ou para cada quarto quesito respondido de forma evasiva. A análise aqui empreendida sugere que não só o momento de preenchimento do laudo cadavérico pode ser entendido como mais um intervalo do cotidiano no qual o Estado se reconstrói, como a própria forma de preenchimento produz intervalos nas respectivas fichas – espaços deixados em branco e informações deliberadamente ocultadas, que fazem parte do cotidiano burocrático através do qual o Estado se constrói e se reconstrói. Esses micro intervalos do cotidiano são produzidos no interior desse intervalo correspondente ao momento de preenchimento do laudo. A leitura do preenchimento do laudo cadavérico enquanto um intervalo do cotidiano anuncia um intervalo ainda 175

mais englobante, visto que o próprio ambiente no qual se realiza a necropsia pode ser considerado um intervalo, um espaço obscuro, praticamente intransitável, deliberadamente protegido e genuinamente evitado. A discussão teria percorrido, então, micro intervalos espaciais e do oculto (do espaço em branco e da informação não registrada), um intervalo temporal (do momento do preenchimento) e um intervalo espacial englobante (a sala onde se realiza o exame de necropsia) – todos aqui compreendidos como intervalos do cotidiano nos quais o Estado, nessa relação com sua margem, se faz Estado. Somam-se a esses os intervalos discutidos na seção anterior: podem ser lidos como intervalos de tempo englobantes o período que separa o término do inquérito policial do início da ação penal, o momento de apresentação da denúncia pelo MP e a primeira audiência, bem como os períodos de espera entre uma audiência e outra210. Em relação a este intervalo que separa uma audiência da outra, vale mencionar um documento que integra o processo do caso do Morro do Russo, intitulado Atos da Serventia, através do qual um escrivão alocado no Cartório da 2ª Vara Criminal comunica ao Juiz da respectiva vara que o dia da próxima audiência do caso teria que ser remarcado visto que um Ato Executivo determinava que naquele mesmo dia não haveria expediente forense. No mesmo dia o juiz recebeu os Atos da Serventia e produziu um Despacho: I – Tendo em vista a certidão cartorária de fls. [número], remarco a continuação da audiência de instrução para o dia [data], às 13:30 horas, nos termos do art. 411 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela nova Lei no 11.689/08. II – Renovem-se as diligências, observando-se o despacho de fls. [número]. III – Dê-se ciência ao MP e à Defesa.211

É necessário informar que esse adiamento significou a adição de um período de 3 meses entre uma audiência e outra. Cada dia, então, sem expediente forense, pode

210

Sobre dimensões subjetivas desses períodos pré-audiências e outras temporalidades que marcam as trajetórias dos familiares de vítimas de violência institucional, consultar Vianna (2011). 211 Trecho do Despacho assinado pelo Juz Titular da Vara em questão, documento também incluído no processo do Morro do Russo. Sobre a documentação utilizada nesta análise, ver nota 156 da seção “Advertência”.

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corresponder a um aumento muito significativo nesses intervalos englobantes entre audiências – período de tempo que precisa ser considerado ao se refletir sobre a engrenagem governamental de gestão das mortes dos moradores de favelas. Ainda que sejam bem-vindos os descaminhos de leitura proporcionados pelo acionamento da formulação de Das e Poole (2004) a respeito dos intervalos do cotidiano enquanto um recurso metodológico e analítico, gostaria de dar continuidade à discussão através de um movimento de reapropriação do ponto de onde partem as autoras para elaborar tal formulação. Como exponho na introdução desta tese, ao argumentarem que as margens do Estado configuram lugares nos quais esse Estado é continuamente construído nos intervalos do cotidiano, Das e Poole (2004) estão se posicionando contra o entendimento das margens enquanto espaços nos quais esse Estado ainda tem que penetrar. Na análise desenvolvida nesta tese, são explorados formatos específicos da relação Estado-favelas que evidenciam a capilaridade dos poderes de Estado. E apesar da obviedade inerente ao próprio fato, considero imprescindível dedicar um espaço deste estudo para refletir sobre a relação do Estado com a favela a partir do próprio corpo do favelado executado – sem referenciar a discussão diretamente ao exame de necropsia, como nesta seção. Já foi registrado que a perícia independente, através de suas explicações em reunião e do parecer técnico-científico que produziu, informou que, além da perfuração provocada pelo tiro de fuzil, o corpo da vítima também foi marcado por grânulos de pólvora incombusta que incrustaram-se na epiderme e atingiram a derme, funcionando como pequeninos projéteis, nas palavras utilizadas pelo próprio perito legista em seu estudo. No parecer há inclusive trechos explicativos sobre a penetração do projétil na cavidade craniana, sendo acionado, portanto, o mesmo verbo escolhido por Das e Poole em sua argumentação sobre a presença do Estado junto a suas margens. Na seção seguinte, então, exploro as demarcações políticas que acompanham as marcações físicas desses corpos marginais.

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4.3 Zona de tatuagem: um carimbo do Estado no corpo do favelado A operação foi pouco dolorosa e extremamente rápida: colocaram-nos numa fila e, um por um, conforme a ordem alfabética dos nossos nomes, passamos por um hábil funcionário, munido de uma espécie de punção com uma agulha minúscula. Ao que parece, esta é a verdadeira iniciação: só “mostrando o número” recebe-se o pão e a sopa. Necessitamos de vários dias e muitos socos e bofetadas, até criarmos o hábito de mostrar prontamente o número, de modo a não atrapalhar as cotidianas operações de distribuição de víveres; necessitamos de semanas e meses para acostumarmo-nos ao som do número em alemão. E durante muitos dias, quando o hábito da vida em liberdade me levava a olhar a hora no relógio, no pulso aparecia-me, ironicamente, meu novo nome, esse número tatuado em marcas azuladas sob a pele. Primo Levi, É isto um homem?

Dentre as marcas produzidas por instituições estatais nas peles de populações sobre as quais eram/são exercidos controles variados, o número tatuado no braço esquerdo dos judeus ao chegarem nos campos de concentração nazistas integra o conjunto de versões contemporâneas mais aterrorizantes desta prática. Formatos variados de inscrições produzidas contra a vontade daqueles cuja pele estava sendo marcada atravessam a história da humanidade e oferecem pistas importantes para reflexões sobre processos de identificação, classificação e separação de populações em diferentes contextos políticos envolvendo julgamentos morais, criminalização e extermínio. Na Grécia Antiga, pessoas criminalizadas e escravizadas eram marcadas através de uma inscrição na pele conhecida como stigmata212 – prática que depois foi transmitida pelos gregos aos romanos, que a desenvolveram enquanto mecanismo de controle do Estado (Gustafson, 2000). O potencial de visibilidade da tatuagem na Roma Antiga é explorado no estudo de Gustafson (2000) através da identificação de três tipos

212

Em seu estudo sobre estigma e tatuagem na antiguidade greco-romana, Christopher Jones (2000) explica que a inscrição stigma(ta) foi difundida de forma equivalente ao branding (técnica de escarificação, caracterizada pela realização de desenhos através de queimaduras na pele), ao invés de ser relacionada ao conceito atual de tatuagem, que seria o mais adequado de acordo com o historiador. Jones (2000) argumenta que nem gregos nem romanos utilizavam a técnica branding em humanos e que tal prática, muito utilizada em animais, não estava relacionada à palavra stigma, mas era identificada através de palavras cujo significado se aproximava de queimadura, selo ou carimbo.

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de penal tattoos213: 1) a inscrição do nome do crime no corpo da pessoa considerada criminosa; 2) a inscrição do nome do imperador que liderava o governo sob o qual o crime foi cometido e 3) a inscrição do nome da punição sofrida pela pessoa condenada. Ainda que as legislações brasileiras e a lista de circunscrições políticas mencionadas nos capítulos 2 e 3 materializem conjuntos normativos que demarquem o afastamento entre os estilos penais (Foucault, 1987) característicos do antigo Estado romano e do atual Estado brasileiro, acredito que o presente debate possa se alimentar das possibilidades interpretativas que se apresentam a partir da reflexão de Gustafson (2000) sobre as tatuagens de punição. No centro deste debate, reside a tríplice aliança entre a lei, a escrita e o corpo sobre a qual nos fala Clastres (2003), em seus escritos sobre tortura nas sociedades ditas primitivas. A reflexão se tece em função da relação de interdependência entre a dureza da lei e a escrita: sendo dura, a lei é ao mesmo tempo escrita. A escrita existe em função da lei, a lei habita a escrita; e conhecer uma é não poder mais desconhecer a outra (2003: 195). Clastres faz menção às colônias penais da Moldávia, onde essa dureza da lei sobre a qual ele se refere encontrava o próprio corpo do culpado-vítima como meio para se enunciar – há relatos de prisioneiros soviéticos que foram tatuados na face e na testa com os textos: os comunistas sugam o sangue do povo, ou Comunistas = Carrascos, ou ainda escravos de Kruchtchev. O ponto enfatizado a partir da dureza da lei é que há uma diferença crucial entre as marcações realizadas nos rituais de iniciação analisados por Clastres e esse tipo de marcação sobre os corpos presos em colônias penais: o autor argumenta que enquanto a primeira demarca pertencimento ao expressar uma lei que a sociedade dita a seus membros, a segunda corresponde a uma lei separada, distante, despótica, que – garantida pela escrita – seria a lei do Estado, cujo objetivo da inscrição seria divulgar que o prisioneiro está inteiramente fora da lei e quem o diz é o seu corpo escrito. As inscrições feitas nos corpos durante os rituais de iniciação corresponderiam, sob essa perspectiva, a uma conjuração a essa lei separada, que institui e garante desigualdade. Nas sociedades contra o Estado que habitam a obra de Clastres, a marca 213

No desenrolar desta reflexão, o termo aparece, em tradução livre, como tatuagens de punição.

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é igual sobre todos os corpos e enuncia Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso. E contendo tal enunciado, essa lei não-separada só poderia ser inscrita no próprio corpo, este espaço não-separado. (Clastres, 2003: 204). Ao trazer para a discussão aqui implementada as reflexões de Gustafson (2000) sobre as tatuagens de punição e a tríplice aliança entre a lei, a escrita e o corpo explorada por Clastres (2003), não pretendo produzir aproximações entre marcações realizadas para serem exibidas de forma exemplar e uma inscrição num corpo já morto, que após a passagem pelo IML, será enterrado (e que mesmo que seja necessária e autorizada a sua exumação, poucos serão aqueles que vão gravar em suas retinas tal imagem). Aciono tais referências, distantes no tempo e no espaço, para pensar sobre os enquadramentos políticos atribuídos a essas populações cujos corpos eram/são marcados por forças de Estado214. Os três exemplos trazidos de marcações produzidas pelo Estado contra a vontade de quem estava sendo marcado (na ordem em que aparecem no texto: os judeus nos campos de concentração nazistas, os escravos e criminosos na Roma Antiga e os prisioneiros soviéticos na colônia penal na Moldávia), dizem respeito a populações cuja existência estava sendo condenada, populações cujos corpos foram contados como peças (Levi, 1988), populações escravizadas, populações consideradas fora da lei, populações que em função de alguma regra inventada enquanto poder de Estado, estavam sendo punidas – e a inscrição na pele fazia parte desta punição ou fazia parte de determinada economia do castigo, nos termos de Foucault (1987). Analisando diferentes tipos de marcas corporais, Le Breton (2004) enfatiza o potencial de determinadas práticas em relação ao isolamento de pessoas – para o autor, determinadas inscrições no corpo são capazes de projetar a pessoa para um limbo social entre a vida e a morte, conferindo-lhe uma existência sob o olhar permanente dos outros 214

Não está sendo abordada neste debate a relação entre a criminalização de pessoas e as tatuagens que elas mesmas decidiram realizar em seus corpos. No entanto, cabe registrar que, apesar de o estudo de Lombroso (2013 [1876]) parecer datado, ainda há abordagens e posicionamentos que sugerem que a perspectiva lombrosiana vai se reeditando no interior de engrenagens dos processos de criminalização de populações. Um exemplo brasileiro recente é a cartilha Tatuagens: Desvendando Segredos, idealizada por um tenente da Polícia Militar e publicada pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia em 2012, cujo objetivo é facilitar “a atuação do policial dentro do reconhecimento visual ainda pouco explorado durante as operações de patrulhamento”. A cartilha está disponível para download através do endereço .

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(Le Breton, 2004: 31)215. Importa ressaltar, ainda, o fato de se tratarem de marcações definitivas sobre esses corpos – independente da técnica predominante (se utilizaram agulha, ferro em brasa216, ou outro artefato), tratam-se de marcas impressas por forças estatais que modificaram aqueles corpos, tendo os mesmos assim permanecido até suas mortes. Nesses casos, no entanto, as marcas não estavam diretamente relacionadas às mortes daquelas pessoas. Há outros casos em que estão. Tendo como combustível de criação os acontecimentos da 1ª Guerra Mundial, surge uma ficção literária sobre a construção e utilização de uma máquina estatal que tatuava no corpo do condenado o texto da sua sentença até que as perfurações o levassem à morte. Escrita por Kafka, a ficção Na colônia penal (1919) mostra uma máquina tatuadora enquanto aparelho judiciário, cuja operação ficava nas mãos de um único agente de Estado: aqui na colônia, eu exerço a função de juiz. O princípio segundo o qual eu sentencio é de que a culpabilidade nunca deixa dúvidas. Não há, como em outros lugares, vários juízes nem tribunais de instância superior217. A máquina havia sido construída por um comandante que era ao mesmo tempo soldado, juiz, técnico, químico e desenhista. Equipada com um rastelo em forma de

215

Sobre os limites contemporâneos para esse tipo de marcação de identificação/controle/isolamento de corpos, Le Breton (2004) cita uma proposta elaborada por políticos de extrema direita (não localiza onde, mas são extrema direita), para que pessoas infectadas pelo vírus HIV fossem marcadas na fronte com um sinal identificador. 216 Dentre as diferentes marcações produzidas através desta técnica, destaco não só a estigmata, já citada, como também as marcações produzidas pela Coroa Portuguesa em seus escravos (sec. XV): com ferro quente produzia-se uma marca vermelha no ombro ou no peito do escravo, o identificando como propriedade do Rei de Portugal (Thomas, 1997). Thomas (1997) também informa que a mesma marcação a ferro em brasa era produzida no peito direito de escravos da Royal Africa Company, enquanto a South Sea Company utilizava ouro ou prata em brasa para produzir uma marca relativa aos portos do Império espanhol para onde os escravos estavam sendo enviados (Cartagena, Caracas ou Veracruz, por exemplo). Há ainda aquelas marcações que predominaram na França do sec. XIV: “O ferrete é uma marca realizada com ferro em brasa no ombro do condenado, a flor de lis e as letras GAL assinalam a passagem pelas galerias reais conduzindo a um reconhecimento imediato daquele que se acha dever ser rejeitado publicamente pela sociedade. Os ladrões são punidos com uma flor de lis com um V. As prostitutas são igualmente marcadas. [...] O código negro, que rege as relações com os escravos nas colônias, impõe desde 1685 uma flor de lis na pele dos fugitivos e toda uma série de mutilações em caso de recidiva.” (Le Breton, 2004: 32). 217 Considerando a necessidade de trazer para o corpo do texto trechos da ficção correspondentes às falas do operador da máquina, fiz a opção de citar os diálogos entre o oficial e o visitante da colônia publicados na versão em quadrinhos de Na colônia penal (edição da Companhia das Letras, 2011), por serem mais curtos e, assim, afetarem menos a sequência da argumentação desta seção do capítulo.

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corpo humano, trazia dois tipos de agulhas: as longas, para escrever a sentença e as curtas, para escoar o sangue e manter a inscrição sempre legível. O oficial assegura que os termos da sentença nada têm de severos, afinal escrevem com o rastelo no corpo do condenado o mandamento que ele infrigiu. Ao rastelo caberia a execução propriamente dita da sentença. A explicação do funcionamento da máquina é feita com naturalidade: uma vez deitado o homem, o rastelo desce até encontrar o corpo. Vibrando, o rastelo penetra suas pontas no corpo, que, por sua vez, vibra com a cama. [...] o rastelo começa a escrever. Uma vez que a inscrição faz sua passagem, o corpo é delicadamente girado a fim de permitir uma nova inscrição. O algodão especialmente concebido estanca o sangramento, permitindo uma segunda administração, dessa vez mais profunda. Assim ele inscreve sempre mais profundamente, durante doze horas. Nas seis primeiras horas, o condenado vive quase normalmente. Apenas sofre. Depois de duas horas, retiramos o tampão que está em sua boca, já que ele não tem mais forças pra gritar. Nesta gamela, colocamos arroz cozido quente. O condenado pode pegar quanto quiser com a língua. Pela sexta hora ele não sente mais qualquer prazer em comer. Então eu me aproximo dele e observo o fenômeno. O homem não diz mais nada, e o entendimento o domina pouco a pouco. Começa ao redor dos olhos e depois, lentamente, se espalha. O homem começa a compreender a inscrição, levanta o pescoço como se a escutasse. Ele compreende através das feridas. É bastante complexo. São necessárias mais seis horas para chegar ao fim. Mas então o rastelo o transpassa de cima pra baixo e o joga na fossa, onde ele termina banhado em seu próprio sangue. E a justiça está feita.218

Como complemento do trabalho daquele aparelho judiciário, a audiência: Para que todos possam assistir à execução da sentença, o rastelo é de vidro. [...] Todos podem ver a inscrição sendo feita no corpo. O oficial explica, ainda, que o condenado da história não dominava a sentença, não sabia que tinha sido condenado e não lhe deram oportunidade de se defender. Para o oficial, seria inútil anunciar-lhe a sentença, visto que ele deve conhecê-la a contragosto. Na colônia penal foi lida por Clastres (2003) como um anúncio da mais contemporânea das realidades – para ele, o delírio kafkiano que marca a novela foi uma espécie de antecipação (2003: 196). Compartilhando do mesmo entendimento, encaminho a discussão aqui proposta tomando como referência o aparelho judiciário da

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Citações equivalentes às páginas 18; 23 e 24 da versão em quadrinhos. Sobre a publicação, ver nota anterior.

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ficção para refletir sobre a produção da zona de tatuagem nos corpos dos moradores de favelas. Ciente dos riscos inerentes a esse tipo de recurso analítico, identifiquei quatro elementos significativos da ficção kafkiana que, isolados das especificidades da novela, são apresentados enquanto base das correspondências possíveis entre o que se passava na colônia penal fictícia e o que acontece nas favelas do Rio de Janeiro: 1. Uma máquina estatal que mata uma pessoa produzindo uma tatuagem no seu corpo; 2. Um agente de Estado que opera essa máquina enquanto um dever a ser cumprido; 3. Uma pessoa que está sendo condenada por algo que desconhece e a quem, portanto, não foi dado o direito de se defender; e 4. Um período de tempo que separa a vida e a morte daquela pessoa sendo controlado pelo Estado. Seguindo, então, a ordem de enumeração dos quatro elementos acima, destaco algumas considerações. Sobre a máquina e a tatuagem produzida, vale registrar que no caso dos homicídios em favelas, ainda que a zona de tatuagem não seja a causa da morte, ela só é produzida a tiros de curta distância, que, segundo Cano (2003a) são o sinal mais evidente de execução sumária – e, por esse motivo, não é negligente afirmar que a máquina mata produzindo aquela marca no corpo da pessoa (apenas não se trata da mesma relação de causalidade que se passa com a máquina da colônia penal). Sobre a máquina propriamente dita, no caso o fuzil, há que se considerar o fato de ser utilizado pelos agentes da PMERJ o armamento conhecido como de fuzil de assalto, cujo modelo originário é o fuzil StG 44 (Sturmgewehr 44) produzido pela Alemanha nazista, ainda durante a Segunda Guerra Mundial (Cashner, 2013)219. Atualmente a PMERJ apresenta como armamento permanente da corporação o fuzil COLT M4 e o fuzil FZ–M964 cal .762220 – calibre que segundo o parecer técnico-científico produzido por Dr. Saul deixa zona de tatuagem aparente quando o tiro é realizado até 1,5m, logo, à curta distância221.

219

O fuzil StG 44 é considerado o primeiro fuzil de assalto e a partir dele outros modelos de fuzil utilizados em operações militares foram desenvolvidos. 220 Fonte: Site Oficial da PMERJ, seção “armas e veículos”, através do endereço . 221 Um fuzil calibre .762 como o que é usado pelos agentes da PMERJ tem alcance efetivo de 800m, podendo alcançar até 3.800m. Trata-se de um armamento de alta precisão e longo alcance.

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Sobre a devoção do agente de Estado ao operar a máquina, relembro a declaração do capitão do BOPE na entrevista citada na seção 4.1 deste capítulo: matar traz a sensação de dever cumprido. E antecipando uma emenda do segundo elemento enumerado com o terceiro, vale retomar uma frase do oficial da colônia penal: aqui na colônia, eu exerço a função de juiz. O mesmo acúmulo indevido de funções também é atribuído aos policiais militares que executam moradores de favelas e condenado pelo Ministério Público, que, como descrito na seção 4.1, qualificou as execuções no Morro do Russo como justiçamento sumário. No enquadramento dos organismos internacionais de Direitos Humanos, trata-se de uma execução extrajudicial222. Tal justiçamento arbitrário é denunciado por outro caminho pelos próprios familiares das vítimas: durante o trabalho de campo, ouvi um encadeamento que se repetiu muitas vezes, em diferentes discursos públicos e também nos lamentos mais privados, quando se referiam ao fato da vítima não ter ligação com o crime. O encadeamento mais recorrente pode ser condensado na fala de uma das mães de vítimas do coletivo junto ao qual realizei a pesquisa: meu filho não era bandido e, mesmo se fosse, não poderia ter sido morto, teria que ter sido julgado e preso223. Nesse sentido afirmei que o segundo elemento podia ser emendado no terceiro: o condenado da colônia penal escrita por Kafka não sabia que tinha sido condenado, logo, não podia nem se defender. Se as execuções nas favelas correspondem, como qualificou o MP, a justiçamentos sumários, aí está embutida uma condenação que não procede – não só pelos mecanismos extralegais de julgamento, mas também pela ausência de conhecimento da acusação pelos próprios condenados. Como discutido na introdução desta tese, tanto os moradores da favela, como o território, na sua dimensão espacial e política, são alvos de ataques e condenações diversas desde o seu surgimento na cidade e a concretização desses ataques se faz via operações militares. Trata-se de um processo de julgamentos morais e criminalização 222

Vide a relatoria especial da ONU para execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais (http://www.ohchr.org/en/issues/executions/pages/srexecutionsindex.aspx) para a qual as organizações brasileiras que atuam no campo da defesa dos Direitos Humanos enviam as denúncias das violações cometidas por agentes de Estado. 223 Posicionamentos desse tipo também se referem à ausência da pena de morte na legislação brasileira, como explicita o final do discurso da moradora do Borel, citado no primeiro capítulo deste trabalho: Se o país não tem pena de morte, porque que toda comunidade favelada está condenada à morte e à exclusão?.

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de uma população, que transforma ações arbitrárias em legítimas – efeitos contemporâneos do misto de moralidade e trabalho que marcava o ofício do reformador geral da polícia nos primórdios da instituição sobre os quais reflete Foucault (2008). Sofrendo essa opressão há mais de um século, essa população que mora nas favelas do Rio de Janeiro, ao contrário do condenado da colônia penal, sabe exatamente quais são as condenações que recaem sobre ela – e as enfrenta cotidianamente. Mas considerei válida a aproximação justamente porque o desconhecimento do personagem da ficção a respeito de sua própria condenação corresponde à negação do seu direito de se defender, o direito de dizer quem é, da mesma forma que foi negada ao taxista morto na chacina do Borel a possibilidade de mostrar seus documentos, de se identificar. Um policial que atira na nuca de um morador de favela e relata durante o preenchimento do registro de ocorrência que estava em troca de tiros e atirou para se defender não age de forma muito diferente do oficial da ficção kafkiana que diz que os termos da sentença não são severos porque o o rastelo escreve no corpo do condenado o mandamento que ele mesmo infrigiu. Ambos agem por motivo torpe, para usar os termos do MP: se na colônia penal a sentença é conhecida a contragosto, nas favelas esse gosto pode estar encapsulado por alguma vingança, como foi discutido na primeira seção deste capítulo. Completo o trabalho do aparelho judiciário, a própria máquina se encarrega de jogar o corpo na fossa. Dediquei um trecho específico da seção 4.1 sobre a ilegalidade da remoção dos corpos realizada pelos policiais ao final das operações militares nas favelas. Interessa agora mencionar a diferença da duração do trabalho das duas máquinas em questão. Enquanto a máquina que tatua a sentença no corpo do condenado leva 12 horas para findar sua tarefa, o fuzil produz a zona de tatuagem no corpo do morador de favela durante o instante mesmo do disparo. Pá: missão cumprida. No entanto, como anunciado na enumeração dos elementos escolhidos para orientar esse exercício analítico, importa menos a duração (se 12 horas ou um instante), e mais o fato de o período de tempo que separa a vida e a morte das vítimas ser 185

controlado por poderes de Estado: 12 horas ou um instante de exibição da forma crua de exercício do biopoder, nos termos de Foucault (1999). Mas, como venho discutindo ao longo da tese, não é só de biopoder que se retroalimenta a engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas. Dando sequência à análise dessa engrenagem a partir das pistas deixadas por Foucault, faz-se imprescindível enxergar também os exercícios de poder de Estado através da polícia enquanto modernidade administrativa (Foucault, 2008). Articulo, portanto, ao ato da execução sumária aqui discutida o preenchimento do laudo cadavérico da vítima, no intuito de refletir sobre as imbricações entre o ofício do agente da polícia militar e do agente da polícia civil enquanto potencialidades para a administração da população residente em favelas via controle, classificação e identificação de suas mortes. A partir deste recorte analítico, a zona de tatuagem é trabalhada também enquanto registro burocrático indexador dessa população, sendo consideradas as especificidades do processo de oficialização desse registro. Tal processo de oficialização da zona de tatuagem enquanto registro de Estado é produzido por pelo menos dois agentes: 1) um policial militar (ou, eventualmente um policial civil) que tenha efetuado o disparo e 2) o perito legista do IML (agente da polícia civil) para o qual o corpo da vítima tenha sido levado. O primeiro agente produz a marca diretamente no corpo do favelado ainda vivo, o segundo reproduz a marca na silhueta de corpo padronizada que integra a ficha correspondente ao laudo cadavérico, a partir do exame de necrópsia do corpo do favelado. Os dois agentes têm acesso àquele corpo durante um período de tempo que, independente do número de horas que se passem, engloba a demarcação da fronteira entre a vida e a morte, como destacado anteriormente. Considerando essas etapas do processo de oficialização da zona de tatuagem, é possível identificar uma dupla marcação governamental: trata-se de uma lesão produzida no corpo do favelado ao ser executado que vira registro através de uma anotação num papel timbrado de IML. As duas formas da mesma inscrição são “feitas à mão” pelos agentes de estado já mencionados, sendo que um utiliza como instrumento de marcação o fuzil e outro, a caneta. Enxergo em ambas as ações componentes de reedição da rotina desencantada do funcionário que carimba documentos enquanto 186

cumprimento de seu dever, mas que assim o faz exercendo o poder decisório atribuído a todo funcionário público que na repartição onde trabalha é responsável por preencher, carimbar e assinar papéis – poder que, como destaca Ferreira (2009; 2011; 2013), está revestido de autoridade. Ao abordar especificamente a trajetória burocrática de corpos não-identificados no IML-RJ, Ferreira (2009) explica que “carimbos e assinaturas não remetem às pessoas que os conduziram e registraram, mas são investidos de validade por sua simples anotação, por funcionários oficiais, em folhas de papel igualmente oficiais” (Ferreira, 2009: 33). Pautando o debate sobre o anonimato dos funcionários de quadros administrativos a partir das formulações de Herzfeld (1992), a antropóloga torna evidente a assimetria inerente aos processos de classificação de corpos como nãoidentificados: funcionários nomeados para ocuparem cargos em repartições públicas agem sob a proteção do anonimato possível dos atos burocráticos enquanto nomeiam como não-identificados corpos que tiveram vida e morte anônimas. A linha de argumentação desenvolvida neste capítulo se alimenta desse ensinamento trazido pelas reflexões de Ferreira (2009) sobre como a desimportância atribuída à documentação de populações específicas corresponde também a uma desimportância sobre os corpos aos quais essa documentação está relacionada224. Os laudos cadavéricos dos corpos daquelas pessoas que foram/são executadas nas favelas também são produto de uma gestão burocrática específica, dessa administração pública atravessada pelo que Foucault (1999) denominou mecanismos mudos de um racismo de Estado. Estamos diante de uma racionalidade de Estado engendrada em processos de controle de populações nos quais o ato de matar moradores de favela é sinônimo de cumprimento de dever – logo, trata-se de uma ação que pode ser realizada de forma análoga ao ato de preencher ou carimbar papéis. A produção da zona de tatuagem durante a execução de um morador de favela por um agente de Estado expressa uma marcação sistemática dessa população, tanto quanto o registro da mesma marca 224

É através desse mesmo modo de fazer administração pública que se dá a produção social da indiferença, nos termos de Herzfeld (1992) trabalhados por Ferreira (2009).

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durante o preenchimento do laudo cadavérico – trata-se de uma anotação que aloca aqueles corpos em uma determinada seção das estatísticas oficiais: a zona de tatuagem é uma marca de morte. Essa marca tanto pode ser revelada via registros oficiais através de um preenchimento do laudo cadavérico como o que foi produzido no IML-RJ a partir do exame do corpo de Emanuel, quanto pode ser traduzida, também via registros oficiais, em estatísticas sobre letalidade da ação policial no estado do Rio de Janeiro e divulgadas em relatórios de balaços semestrais e anuais do Instituto de Segurança Pública. Mas em qualquer uma das duas formas de registro dessa morte, quem controla e gerencia tais informações é o Estado, como discuto a seguir.

4.4 Ortopedias discursivas para informações estatais

Desde as perguntas que compoem a seção quesitos na ficha do laudo, até os enquadramentos nos grandes conjuntos de saldos anuais do ISP, há uma seleção das informações que serão divulgadas e as que serão ocultadas, há um formato específico para as que serão reveladas o serem, tal qual a polícia dos enunciados e o controle das enunciações sobre os quais escreveu Foucault (1988) – visto que não se trata da produção de uma regulação estatal sobre o que se diz e o que não se diz sobre essas mortes, mas sim da produção de determinações sobre diferentes maneiras de não dizer – como são distribuídos os que podem e os que não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros (1988: 34). Quando durante as investigações, as pressões dos familiares, com a assessoria do NUDEDH, resultam em pedido oficial ao IMLAMP para que o profissional que tivesse realizado a necropsia de Emanuel respondesse detalhadamente duas perguntas específicas sobre aquela morte, as perguntas não deixam de ser respondidas. Não é negada, de forma oficial, nenhuma resposta. Ao invés disso é enviado ofício em papel timbrado da Secretaria de Segurança, com todas as sub-divisões internas relativas ao órgão responsável pela necropsia em cabeçalho (Secretaria de Segurança / Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro / Departamento de Polícia Técnico-Científica / Instituto 188

Médico Legal Afrânio Peixoto), com duas respostas assinadas pelo perito que realizou o exame no corpo de Emanuel no dia em que o mesmo chegou àquele IML. Destaco, então, dois trechos que evidenciam construções discursivas equivalentes a maneiras de não dizer sobre as quais alertou Foucault (1988), como mencionei acima. O primeiro trecho resume-se a apenas uma frase na qual a perícia afirma que baseado apenas nas características do ferimento de entrada podemos dizer que o mesmo é sugestivo de disparo à distância – ainda que o parecer técnico-científico não tivesse refutado este tipo de afirmação, qualquer leitura atenta entenderia, ao menos, que a utilização da expresão sugestivo de disparo corresponde a uma maneira de responder sem dizer nada. O segundo trecho corresponde ao início da resposta à pergunta sobre a origem dos ferimentos no braço esquerdo de Emanuel e se teriam relação com o ferimento por PAF: Em primeiro lugar, não há ferimentos no membro superior esquerdo e sim uma zona de tatuagem conforme descrito no laudo, que caracteriza disparo efetuado à curta distância. Com relação a se os sinais descritos, ferimento no crânio e zona de tatuagem do membro superior, terem sido produzidos por disparo único, depende de vários fatores. Portanto, seria leviano da parte dos peritos fazerem tal afirmação.

Tal forma de responder, além de estar totalmente condicionada ao fato de quem é autorizado ou não a falar sobre aquela morte, exibe recursos variados equivalentes a maneiras de não dizer – no último trecho transcrito, dizer que uma informação com o grau de complexidade que caracteriza ferimentos provocados por disparo de arma de fogo depende de vários fatores é dizer algo que os leigos já sabem. Justamente por depender de vários fatores – fatores os quais o especialista da área domina – é que a pergunta se dirige a este profissional e não a outro. O especialista nega e afirma obviedades e continua sem fornecer as informações que foram oficialmente solicitadas. Vale lembrar que esta cirulação de informações se dá no interior de instâncias governamentais, logo, trata-se da operação de uma ortopedia discursiva (Foucault, 1988) por dentro da própria engrenagem de gestão dessas mortes.

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Mas tal ortopedia também se faz na produção das informações a serem publicizadas, através do tratamento das mortes enquanto estatísticas estatais. Ainda que sejam predominantemente apresentadas como dado inquestionável, porque formuladas a partir de ciências exatas, as estatísticas sobre mortes também podem estar permeadas de obscuridade. Não porque a estatística foi mal calculada, mas porque tal cálculo já é produzido de forma a ressaltar determinados números em detrimento de outros, a valorizar arranjos quantitativos que alocam num mesmo conjunto informações que deveriam aparecer separadas umas das outras. É o que acontece, por exemplo, com os homicídios que são registrados como mortes violentas com causa indeterminada por diferentes estados da federação: segundo pesquisa recente do IPEA, realizada com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), a taxa de homicídios no Brasil é 18,3% superior aos números presentes nos registros oficiais – percentual que indica que oito mil e seiscentos homicídios por ano no Brasil são classificados erroneamente como “mortes violentas com causa indeterminada” (Cerqueira, 2013)225. Tal pesquisa do IPEA, apresentada como Mapa dos homicídios ocultos traz no próprio título a noção de uma informação não disponibilizada, apagada dos registros oficiais. Em pesquisa anterior realizada especificamente a partir de dados sobre homicídios no município do Rio de Janeiro, o IPEA havia divulgado que os bairros onde ocorre a maior parte desses crimes correspondem às regiões nas quais estão localizadas aproximadamente 60% das favelas da cidade (Rivero e Imanishi, 2009). A mesma pesquisa revelou que o trabalho letal de polícia concentra-se nas mesmas áreas: favelas ou entorno de favelas. Entendo que, pautada pelo trabalho de campo, tive a oportunidade de explorar outras angulações dessas maneiras de não dizer que compõem a engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas. Tive acesso a formas menos “arrumadas” de arranjos e imbricações que compõem tal engrenagem – formas mais “borradas” talvez.

225

Movimento análogo pode ser observado em relação ao tratamento dos dados relativos aos desaparecimentos forçados. Segundo Araujo (2012), entre 1991 e maio deste ano, o Estado do Rio registrou 92 mil casos. No entanto, muitos desses casos registrados como desaparecimento correspondem a homicídios praticados por agentes de estado, em especial aqueles que integram milícias, mas praticados também por traficantes de drogas ilícitas.

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(O borrão aqui é acionado a partir das suas derivações por metonímia: “primeira feição de algo”; “qualquer rascunho que se faz no borrador (‘caderno’)”; ou ainda, sob a rubrica da literatura, como “texto escrito com emendas, ou para emendar e aprimorar”226). Decorre daí também essa investida analítica focada no laudo cadavérico e suas (i)legibilidades – cujo arranjo não seria pensado como mais ou menos borrado simplesmente pela forma como foi conduzido o preenchimento do documento ainda no IML ou pela resposta dada ao quarto quesito, mas pelas circunstâncias do próprio desdobramento encaminhado pelos familiares de Emanuel junto ao perito independente que, ao se propor a produzir um parecer técnico-científico para um caso em andamento, passa a ocupar uma função – temporária – em outra “esfera de estado” que não aquela na qual se acostumou a desempenhar seu trabalho antes de se aposentar. Esse caráter de transitoriedade ao qual me refiro (evidenciado nas palavras do próprio autor do parecer: “[...] este perito legista, ora na função de assistente técnico junto ao Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro [...]”) tem aparecido como uma marca em diferentes situações de pesquisa observadas. Tal transitoriedade tanto se expressa em relação a deslocamentos individuais dos profissionais envolvidos nos casos (como, por exemplo, o afastamento de algum defensor público de uma função ocupada em um dos núcleos da Defensoria cuja atuação é marcada por laços estreitos com movimentos sociais urbanos de luta por moradia – no caso do Núcleo de Terras227, ou movimentos de defesa dos Direitos Humanos – no caso do já referido NUDEDH), quanto em relação a redesenhos institucionais em maior escala. A partir da rubrica da literatura para “borrão” anunciada acima – um “texto escrito com emendas, ou para emendar e aprimorar”, retomo aqui a discussão sobre os registros estatais destacados neste capítulo, o que se pode registrar ou deixar de registrar no laudo cadavérico e, também, o que se fixa enquanto verdade sobre determinada morte nos documentos que circulam durante a composição da ação penal.

226

Definições 2 e 2.1 do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – versão 2009. Para um debate atual e comprometido a respeito das lutas por moradia no Rio de Janeiro, ver Magalhães (2008). 227

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Todos esses registros que são produzidos em meio a essa burocracia estatal ao mesmo tempo que a produzem podem ser compreendidos, também, a partir desta ideia de um escrito que se faz para emendar ou aprimorar. Ao pautar a discussão em torno das burocracias estatais a partir dos registros mencionados acima e, em especial, das possibilidades de preenchimento do laudo cadavérico e suas potencialidades enquanto documento oficial, chamo atenção para as possibilidades de sustentação da versão da troca de tiros via essa ortopedia discursiva das informações sobre as mortes em questão. Como citado na introdução deste capítulo, o confronto é uma alegação esta comuníssima por parte das forças policiais quando o objetivo é camuflar execuções. O verbo camuflar utilizado no documento produzido pelo NUDEDH habita o mesmo campo lexical do verbo ocultar e no mesmo campo político, de acordo com a análise em curso das micro ações governamentais pautadas pela necessidade da criação de maneiras de não dizer, pela produção de informações escorregadias sobre essas mortes, difíceis de agarrar. Trata-se, por outro lado, de tentativas de produção da invisibilidade das mortes de moradores de favelas e a relação desta produção com a gestão governamental das mortes provocadas por agentes de estado em favelas e periferias. Tal recorte se alimenta diretamente da noção de tecnologias movediças trazida por Foucault (2008) ao argumentar a favor do investimento nos estudos sobre governamentalidade. Decantando o movediço na direção de uma suscetibilidade à mudança de posições, poderíamos pensar em tecnologias da inconstância ou da volubilidade previstas na marcação de um quadro de gestão de populações como esse recortado aqui a partir de relações Estado-favelas. Neste capítulo, explorei a forma de preenchimento do laudo cadavérico como ação que se realiza enquanto tecnologia movediça através da qual se produziu determinada verdade sobre a morte de Emanuel. Minha insistência em chamar atenção para a zona de tatuagem enquanto uma marca de morte, sobre a qual essa ortopedia discursiva se opera na produção de estatísticas e demais enquadramentos inerentes à gestão governamental dessas mortes, também está articulada a um posicionamento dos familiares e dos coletivos que os apoiam no enfrentamento à transformação da morte (ou do próprio morto) em número. 192

Logo, a insistência em chamar atenção para a anotação que o perito legista produz, no IML-RJ, demarcando na silhueta do laudo cadavérico a zona de tatuagem, se justifica pela possibilidade de leitura que se abre quando é percorrido o caminho inverso, afinal, anotar na ficha a tatuagem que foi feita no corpo é produzir o próprio corpo morto no papel – é fixar aquele morador de favela em algum enquadramento que cumpre uma função no interior da engrenagem estatal. O movimento inverso corresponderia a desprender politicamente o corpo da silhueta, enxergar naquele corpo seu nome e sua história e imaginar o momento em que aquele corpo – vivo – foi tatuado, pelo Estado, com a pólvora espelida pelos eventos laterais do fuzil. A zona de tatuagem é uma marca de morte, mas sua anotação – tanto no corpo do morador de favela, quanto no laudo cadavérico – tem, para o Estado, o peso de uma estatística, enquanto para a família da vítima e para o conjunto da população residente em favelas, tem o peso de um enterro. Para cada silhueta marcada pela anotação “T” num laudo cadavérico, mais um enterro mobiliza uma favela: pessoas choram, pessoas rezam, pode ser que um ato seja marcado, pode ser que uma avenida seja parada. E quem enxerga naquela silhueta a pessoa que foi morta pelo agente de Estado, elabora outras formas de ler e acionar o laudo cadavérico: esse documento, no enfrentamento conduzido pelos familiares de vítimas contra a violência institucional, é matéria prima para caminhos argumentativos que extrapolam as possibilidades de interferência de uma necropsia, ainda que cuidadosamente realizada. São esses acionamentos outros do laudo cadavérico que pautam a discussão da seção final deste capítulo.

4.5 O documento laudo cadavérico, para além da necropsia

Ao longo deste capítulo, destaquei as potencialidades do documento laudo cadavérico, enfatizando sua produção enquanto plataforma de registro indispensável para a movimentação da engrenagem da gestão governamental das mortes dos moradores de favelas. Conectando informações que habitam linhas e entrelinhas da argumentação aqui empreendida, seria possível condensar em três pontos os atrativos deste documento enquanto objeto relevante no recorte metodológico deste estudo: 193

1) É um documento produzido pelo Estado, em grande volume e padronizado – remetendo-nos ao caráter totalizante da medição/contagem de mortos; para depois ser modificado através da intervenção (via preenchimento) por um agente do Estado (em geral, o médico legista) responsável pelas anotações específicas a respeito de cada corpo perfurado de um morador de favela que chega no IML – remetendo-nos à percepção da documentação de indivíduos enquanto técnica de controle inerente a processos de produção de sujeitos, na linha trabalhada por Ferreira (2009); 2) Trata-se de um documento cujo acesso – em termos de produção de legibilidade – é restrito a alguns profissionais específicos, que neste contexto são também agentes do Estado; 3) Trata-se de um documento que traz impressa uma imagem que também passa a representar as vítimas cujas fotografias são exibidas pelos familiares, especialmente suas mães, durante as manifestações referidas na introdução e no capítulo 1 desta tese, ainda que estas representações se prestem a fins muito diferentes; (me refiro aqui, especialmente, à silhueta dos corpos das vítimas, no caso dos laudos, e, no segundo caso, àqueles registros fotográficos das vítimas ainda vivas, bem arrumadas, que são coladas em cartazes, ou estampadas em camisetas e banners – que Leite (2004) designa como “foto-símbolo”). Embora as três formas de enquadramento tenham sido exploradas ao longo das seções anteriores, gostaria de mencionar ainda um tipo de acionamento deste documento que já foi anunciado, mas que demanda atenção especial. Na Cena 1, que compõe a introdução desta tese, descrevo uma mãe que aponta uma marca assinalada no antebraço esquerdo da figura reproduzida numa das páginas do laudo cadavérico do filho, dizendo: “Aqui. Ele levou um tiro aqui.”. Ela vira a página e mostra outra marca, assinalada na silhueta de um corpo masculino visto de costas, como demonstra a imagem a seguir:

194

Figura 33: Screenshot 4 – Entre Muros e Favelas

Fiz um recorte da imagem da cena que traz a tradução do primeiro trecho da fala desta mãe, que enxerga no laudo informações diferentes da perícia técnica, como, por exemplo, a covardia da ação: “Aqui, o outro tiro que ele levou, que você vai ver que foi covardia, esse entrou, esse ficou. Foi o que matou. Esse tiro das costas aqui foi o que matou ele”. Enquanto mostra o laudo pra câmera durante as filmagens de Entre Muros e Favelas, é a covardia que essa mãe deseja denunciar – e a denúncia é feita através da mesma plataforma de registro utilizada pelo Ministério Público para redigir a denúncia que abre a ação penal. No caso da cena escolhida para a introdução, era o próprio laudo, mais especificamente a página relativa ao esquema de lesões, que aparece enquanto objeto através do qual a denúncia é feita. Mas gostaria de mencionar o acionamento de outras referências, também relacionadas ao contexto da produção dos laudos, mas enfocando o próprio corpo, ao invés da silhueta que caracteriza o esquema de lesões. É o caso da imagem gráfica produzida para a divulgação da Campanha Nacional contra o Extermínio da Juventude Negra228.

228

Realizada entre 2009 e 2010, a campanha estava diretamente articulada às ações da Coordenação do Fórum Nacional de Juventude Negra (FONAJUNE) juntamente com os Fóruns Estaduais de Juventude Negra integrantes do FONAJUNE.

195

Figura 34: Material – Campanha Nacional contra o Extermínio da Juventude Negra

Mas como as silhuetas dos corpos são a referência mais direta aos laudos cadavéricos, em face da silhueta dos esquemas de lesões, trago um último exemplo deste tipo de acionamento para a construção do enfrentamento da violência institucional protagonizado pelos familiares das vítimas. Em uma matéria especial do jornal O Dia sobre a chacina do Borel, sob o título Caso Borel – Plano para uma chacina229, fotografias do rosto das quatro vítimas fatais foram organizadas ao lado de reproduções das silhuetas de seus corpos, indicando através de pontos vermelhos os locais onde tinham sido atingidos pelos disparos dos policiais militares.

229

Jornal O DIA, edição impressa do dia 19 de novembro de 2003.

196

Figura 35: Jornal O Dia – Caso do Borel 1

A página do jornal foi recortada por Dalva, para que a foto do seu filho Thiago, juntamente com a reprodução da silhueta e as informações sobre os disparos, pudesse fazer parte do cartaz que ela preparou para exibir do lado de fora do Fórum em fevereiro de 2005, no dia do julgamento de um dos policiais acusados pelos crimes.

197

Figura 36: Jornal O Dia – Caso do Borel 2

Mais uma vez a zona de tatuagem é destacada como prova de que os disparos foram efetuados à curta distância, mas no texto jornalístico é chamada, de forma bastante apropriada, de “tatuagem” de pólvora. No cartaz produzido por Dalva, a reprodução da silhueta do corpo do filho, com as sinalizações das perfurações dos disparos que provocaram sua morte, foi colocada ao lado de um outro recorte de jornal, que estampava uma fotografia da própria Dalva junto à sua neta, Gabriela, filha de Thiago. Gabriela, que na época da ainda tinha dois, aparece sendo segurada pela avó, ao mesmo tempo que segura a ampliação de uma foto do rosto do pai. No mesmo cartaz, havia recortes de matérias de jornais sobre a manifestação que marcou um ano da chacina do Borel, também referida na introdução e no capítulo 1 desta tese, sendo que uma das matérias exibia a fotografia da faixa do Movimento “Posso me identificar?”, com essa pergunta seguida do texto: os Silvas, os Santos, os Souzas, os Costas, os Oliveiras, os Pereiras, os Nascimentos, os Rodrigues, os Gonçalves. Em busca de DIGNIDADE! A lista da faixa tinha o poder de nomear, portanto, não só as vítimas da chacina do Borel, como as vítimas de várias outras chacinas ocorridas em favelas do Rio de Janeiro.

198

Figura 37: Cartaz – Dalva

Então aqueles sobrenomes nomeiam, também, cada corpo fixado em ficha do IML durante os exames de necropsia realizados após cada uma dessas chacinas. Como anunciei no encerramento da seção anterior, aqueles que sentem essas mortes enxergam nas silhuetas dos esquemas de lesões dos laudos muito mais do que a possibilidade de provar tecnicamente que a vítima foi executada sumariamente. Enxergam naquelas silhuetas a força dos corpos dos moradores de favelas que resistem.

Figura 38: Charge Latuff – 10 Anos Chacina do Borel.

199

Embora configure o objeto que materialize mais fortemente o percentual de aridez do material coletado durante esta pesquisa, dentre toda esta papelada que registra, classifica e regula mortos e vivos, o laudo cadavérico foi escolhido pelos próprios familiares das vítimas enquanto matéria prima para a elaboração de estratégias de visibilidade da luta contra a violência institucional – é um documento que também pode ser mobilizado enquanto instrumento de luta nas ruas. As silhuetas ilustradas por Latuff para o material de convocação para as atividades que marcaram os 10 anos da chacina do Borel se comunicam diretamente tanto com as silhuetas reproduzidas nos laudos cadavéricos (elas mesmas utilizadas por Dalva em seu cartaz), quanto com as silhuetas que circularam de diversas formas por muros e outras superfícies da paisagem urbana argentina, em referência às 30.000230 pessoas desaparecidas e mortas durante a ditadura militar no país.

230

Após o desapareciento de Julio Lopez – testemunha importante dos processos judiciais a respeito dos crimes cometidos durante a ditadura militar na Argentina, a militância local se refere aos mortos e desaparecidos políticos como 30.001, somando aos 30.000 este desaparecimento ocorrido no período pós-ditadura.

200

Figura 39: Siluetazo – Fonte: Brodsky (2005).

Figura 39: Cartaz – Silhuetas – Desaparecidos. Fonte: Indji (2011)

201

As intervenções denominadas siluetazos231 foram acionadas em diferentes momentos, para cobrar respostas, bem como para demarcar uma memória política que reedita no espaço público a resistência daqueles que morreram e as denúncias de uma violência de Estado que não se restringe aos períodos ditatoriais – em nenhum dos países latino-americanos. Os punhos erguidos das silhuetas dos quatro moradores do Borel mortos na chacina em 2003 também nos informam sobre uma resistência que se alimenta da própria lembrança daquela violência de Estado. Ainda que tenham se passado dez anos.

231

Para uma análise desta modalidade de intervenção política, consultar Catela (2001a; 2001b).

202

Considerações finais: do poder sobre a vida e a morte232

Quantos Malcon terão que vir à Terra pra ver pistola, fuzil e granada? Us Neguin q Não C Kala e Família Kponne, Lágrima de Sangue

Cena 7. [durante um “Registro de Ocorrência” numa delegacia de polícia no Rio de Janeiro há três anos atrás.] “Dinâmica do fato”: “Que o declarante é [patente] lotado no [número do batalhão] BPM, prestando serviços no [nome do grupamento] da referida Unidade; Que no dia [de] hoje estava em patrulhamento de rotina quando recebeu um informe, diretamente de moradores da comunidade [nome da favela], a respeito de que, supostamente, estaria ocorrendo uma invasão na comunidade por meliantes vinculados a uma facção rival; que tal informe ocorreu por volta das 17:00 horas; que diante dos informes retornou ao Batalhão visando verificar as informações, no entanto, para tal empreitada seria necessário a utilização do blindado da unidade; que juntamente com sua guarnição retornou ao Batalhão e assumiu o blindado com escopo de verificar os informes recebidos; que ao chegar no Batalhão notou que havia informes a respeito de suposta invasão na comunidade; que juntamente com sua guarnição procedeu em direção ao interior da comunidade [nome da favela], sendo tal incursão realizada, como já dito, com o blindado da Unidade; que a sua guarnição foi recebida a tiros na localidade, sendo, portanto, necessário que alguns disparos fossem efetuados como forma de revide à injusta agressão realizada; que tais disparos foram necessários para que fosse viabilizado o acesso ao interior da comunidade; que conforme o blindado ia progredindo em direção ao interior da comunidade notou a presença de alguns corpos deitados ao longo da via, inclusive diversas pessoas pedindo socorro; que naquela ocasião obteve sucesso em resgatar três elementos supostamente baleados; que também foi arrecadado neste local duas pistolas e um revólver calibre 38, bem como diversos sacos contendo pequenos sacolés com erva

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A decisão por produzir estas considerações sob este enquadramento decorrem da leitura de Morte e Vida favelada (Fridman, 2008).

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seca picada no seu interior, capsulas com um pó branco pulverulento, aparentando ser cocaína e pequenas pedras embaladas em papel alumínio, aparentando ser crack, bem como determinada quantia em espécie; que ao resgatar os corpos e o referido material, a mencionada guarnição procedeu imediatamente ao Hospital [nome do hospital] visando prestar socorro imediato às vítimas resgatadas; que ao sair do local notou uma interrupção no intenso tiroteio ocorrido; que acredita que todos tenham chegado com vida à referida Unidade Hospitalar; que indagado a respeito da existência de alguma espécie de confronto direto com os meliantes, o declarante afirma que os disparos efetuados foram realizados apenas para viabilizar o desembarque do blindado, pois caso tais disparos não fossem realizados, seria inviável a descida da referida viatura; que o declarante afirma não ter sido o autor dos disparos que ocasionaram os ferimentos nos corpos resgatados; que a diligência foi realizada somente para viabilizar o resgate dos feridos, não havendo, portanto, segundo o declarante, nenhum confronto direto com meliantes da localidade; que o declarante afirma que a região onde os corpos foram encontrados é conhecida por Rua [nome da rua]; que o declarante afirma que dois dos corpos estavam no interior de uma loja, e o outro corpo estava em via pública, em frente ao referido estabelecimento; que o declarante possui informações que próximo ao local de encontro dos corpos há uma “boca de fumo”, inclusive, tal suspeita é justificada com a grande apreensão de material arrecadado, material este supostamente entorpecente; que o declarante informa que notou, na região onde os corpos foram resgatados, vestígios de sangue, móveis revirados, veículos tombados, em suma, praticamente uma situação de guerra; que retirou-se da comunidade, após o resgate dos corpos, visando prestar onde recebeu a informação de que deveria proceder até a [número da delegacia] DP, por atuar como núcleo de flagrante, e considerando não ser a ocorrência apresentada como homicídio proveniente de auto de resistência, o fato foi devidamente apresentado a esta Especializada;” Assim, com ponto e vírgula, se encerra este registro de ocorrência. Gostaria de chamar atenção para o fato de o policial declarante ter notado a “presença de alguns corpos deitados ao longo da via” de dentro do caveirão e ter dito que “obteve sucesso em resgatar três elementos supostamente baleados”; que após resgatar os corpos 204

“procedeu” imediatamente para o hospital mais próximo, “visando prestar socorro imediato às vítimas resgatadas”. Neste registro de ocorrência, portanto, a história que se conta é que foram avistados corpos, corpos esses que depois são chamados de vítimas no momento em que se conta que foi prestado socorro. Depois o declarante diz que que “acredita que todos tenham chegado com vida à referida Unidade Hospitalar”. Sobre o confronto, afirma que atirou, mas que atirou para “viabilizar o desembarque do blindado” e que no caso, sim, ele atirou, mas que não foi ele “o autor dos disparos que ocasionaram os ferimentos nos corpos resgatados”. O declarante disse o nome da rua onde “os corpos foram resgatados”, afirmando ainda que “dois dos corpos estavam no interior de uma loja, e o outro corpo estava em via pública”. Neste registro, a palavra vítimas aparece uma vez, enquanto a palavra corpo(s) aparece nove vezes. Tive acesso a esse documento – “Registro de Ocorrência Aditado” – através da esposa de uma das vítimas. Em uma outra seção de preenchimento deste documento, as três vítimas/corpos mencionadas pelo declarante aparecem listadas na mesma página e ao lado dos três nomes completos, aparece em caixa alta “IDENTIFICAÇÃO CIVIL” e em seguida a palavra “Falecido”. Acima dos nomes, é possível ler a palavra “vítima”, seguida de “Homicídio Provocado por Projétil de Arma de Fogo”, assim, iniciando com letra maiúscula todas as palavras. As testemunhas deste caso relataram que não foram os policiais de dentro do caveirão que atiraram, mas que já havia policiais perto da loja e que esses, sim, atiraram, porque a loja fica ao lado de uma “boca de fumo”. Contaram também que quando o caveirão chegou, algumas pessoas feridas haviam sido resgatadas, outras ainda estavam dentro da loja e que três delas foram levadas embora dentro do caveirão e que souberam que o veículo não foi pro hospital, mas sim pro batalhão mais próximo, porque alguns moradores feridos foram levados pro hospital e que muito tempo depois policiais chegaram com os três corpos resgatados no hospital. E que os corpos estavam empilhados dentro do caveirão e foram largados na unidade de saúde. Agora imagine se, dessas três vítimas que foram oficialmente registradas como falecidas por terem sido atingidas por PAF (projétil de arma de fogo), que foram 205

transportadas empilhadas dentro de um caveirão e jogadas na entrada do hospital, alguma estivesse viva. Pois foi isso o que aconteceu. Desses três corpos empilhados, dois estavam mortos, um estava vivo. É Adriano, que me recebeu em sua casa, junto com sua esposa Carolina, num sábado de carnaval, como relatei no capítulo 3 desta tese. A parte dos corpos empilhados dentro do caveirão, foi ele mesmo que, com sua dificuldade de fala, relatou a mim e à família de Emanuel, que havia me convidado para fazer aquela visita. Transcrevo abaixo o trecho da conversa entre Alexandra e Carolina no qual essa informação nos é revelada: Alexandra [para Carolina]: Deixa eu te perguntar uma coisa: o nome dele é Adriano dos Santos Ferreira, não é? Carolina: é. Alexandra [com o RO na mão]: e aí aqui colocaram falecido? Carolina: Quando eu tava lendo, quando eu recebi, eu li tudo e aí eu vi. Aí eu li e falei: ué? Aí levei até o Dr. Frederico e mostrei a ele o que tinha acontecido. Porque na hora da confusão, deram dois meses, e no sábado, na madrugada do sábado, quando eu cheguei em casa depois lá da operação, eu cheguei aqui por volta de umas quatro, cinco horas da manhã, eu tava sentada aqui no sofá com a irmã dele e uma amiga minha, aí o primo dele veio e falou: Carolina, o quê que houve? Tá dizendo no rádio que o Adriano morreu. Aí eu peguei um moto-táxi, corri pro hospital e comecei a me informar, perguntar, médico, enfermeiro, policial e aí uma enfermeira lá de dentro veio, me levou lá, mostrou e falou: não, ele tá bem, tá aqui. Foi algum erro deles lá...

Alexandra continua lendo o registro e Carolina complementa: Carolina: Na verdade, esse... RO, né? Alexandra: “Isso, registro de ocorrência” Carolina: ...então, eles foram na frente e fizeram [...] eles disseram que havia um confronto na comunidade, que eles passaram na hora e vieram recolhendo os cadáveres. [...] Levaram pro batalhão ao invés de levar pro hospital. Levaram primeiro pro batalhão. E nesse meio tempo, duas pessoas foram socorridas por vizinhos e chegaram lá primeiro que eles, então viram a hora que chegaram com eles e viram jogando. Teve uma vizinha que falou: Olha, parecia que eles tavam deixando um troféu lá dentro. Eles jogaram eles. E aí quando ouviram o médico pegando ele – esse aqui tá vivo, vamos socorrer, vamos socorrer – aí diz que um botou a mão na cabeça e falou: cara, fizemos merda. E saíram. Eles não sabiam que ele tava vivo ainda. Ele tava falando pra mim que ía falar, mas não conseguiu. 206

Graças a Deus que não conseguiu, porque se falasse, acabava de matar. [...] Pegaram, jogaram dentro do caveirão, levaram pro batalhão, depois que levaram pro hospital.

Dentre os diversos tipos de violência de Estado que podem ser identificados neste relato, destaco agora uma observação de Carolina sobre o fato de que Adriano contou pra ela que tentou falar e não conseguiu, no que ela emenda “Graças a Deus que não conseguiu, porque se falasse, acabava de matar”. Não conheço o enquadramento que o Estado inventou para este tipo de violência “Acabar de matar” e admito que, chegando ao final da escrita desta tese, estou mais atenta a ele do que ao registro do “auto de resistência” ou a inscrição da “zona de tatuagem”. Nunca tinha me deparado, em dez anos de interlocução com familiares de vítimas, com um caso como esse. O Estado havia matado Adriano no registro de ocorrência, mas não através do disparo da arma de fogo, que o deixou com sequelas, mas que, como observou sua esposa, não “acabou de matar”. Reflito sobre esses moradores de favelas que ficam vivos e sobre os familiares dos que foram executados e que morrem depois, como Dulcinéria, como Marilene, como Vera – todas mães de vítimas de pessoas mortas em chacinas no Rio de Janeiro. Entendo que esta é uma tese que fala de uma forma de governar muitas mortes, não só aquelas provocadas por projétil de arma de fogo – e que a engrenagem governamental de gestão das mortes dos moradores de favelas compõe a engrenagem da gestão de toda a população residente em favelas desta forma. Na epígrafe que abre este trabalho, cito um trecho da música Lágrima de Sangue, dos “Neguin q não C kala” que diz “Bala perdida, tiro aqui tem endereço certo / Segue o recém nascido até o mais idoso”. Que a luta desses e outros neguinhos que ficam vivos e não se calam seja a luta de todas e todos.

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219

ANEXO 1

220

Caso

Vítima(s) Fatal (ais)

Favela

Responsável pela Ação

Data

Chacina do Borel

Carlos Alberto da Silva Ferreira (21 anos), Carlos Magno de Oliveira Nascimento (18 anos), Everson Gonçalves Silote (26 anos) e Thiago da Costa Correia da Silva (19 anos).

Morro do Borel

Chacina do Caju

Júlio César da Silva (16); Wallace Damião Gonçalves (13); Eduardo Moraes de Andrade (17); Flávio Moraes de Andrade (19) e José Manoel da Silva (26). Luiz Eduardo Caldeira da Silva (16 anos)

Parque 4º Batalhão da Alegria / Caju Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).

06/01/2004

Rocinha

14/01/2004

Documentário: “Entre Muros e Favelas”.

Alessandro (15), Bruno da Silva de Souza, Calupe Florindo Ferreira (44),

Municípios de Nova Iguaçu e

30/03/2005

LINK: www.redecontraviolencia.org/Casos/2005/246.h tml

Execução de Luiz Eduardo Caldeira

Chacina na Baixada Fluminense

17/04/2003

Plataforma de Informação

6º Batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro) 15º Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)

Rio de Janeiro: Candelária e Vigário Geral, 10 anos depois. Londres, Amnesty International Publications, 2003. Direitos Humanos no Brasil 2003. Relatório Anual do Centro de Justiça Global. Rio de Janeiro, Justiça Global, 2003. Execuções sumárias no Brasil – 1997/2003. Rio de Janeiro, Justiça Global/Núcleo de Estudos Negros, 2003. Relatório RIO: Violência Policial e Insegurança Pública. Rio de Janeiro, Justiça Global, 2004. Documentário: “Entre Muros e Favelas” + Site da Rede de comunidades e Movimentos contra Violência. Documentário: “Entre Muros e Favelas” + Site da Rede de comunidades e Movimentos contra Violência.

221

Execução de Carlos Henrique da Silva

Douglas Felipe Brasil de Paula (14), Elizabeth Soares de Oliveira (43), Fábio Vasconcelos (27), Felipe Soares Carlos de Oliveira (13), Francisco José da Silva Neto (34), Jailton Vieira da Silva (27), João da Costa Magalhães(52), Jonas de Lima Silva(19), José Gomes de Oliveira (39), Leonardo da Silva Moreira (18), Leonardo Felipe da Silva (15), Luciano(38), Luiz Henrique da Silva (23), Luiz Jorge Barbosa Rodrigues (28), Manoel Domingos Lima Pereira (53), Marcelo Julio Gomes do Nascimento (16), Marcio Joaquim Martins (26), Marco Aurélio Alves(37), Marcos Vinícuis Sipriano de Andrade (15), Renato Azevedo dos Santos (31), Robson Albino e Wagner. Carlos Henrique da Silva (11 anos)

Queimados, na Baixada Fluminense.

Vila do Pinheiro, Maré

4º Batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).

03/07/2005

LINK: www.redecontraviolencia.org/casos/2005/207.h tml

222

Chacina do Alemão

19 pessoas mortas

Complexo do Alemão

Execução de Matheus

Matheus Rodrigues (8 anos)

Chacina da Coroa

Diego Edilson do Carmo (20 anos), Gregory marinho Castilho (20 anos), Josenildo dos Santos (42 anos), Luiz Cesar de Castro Alves (28 anos), Paulo Ricardo Barbosa (22 anos), Rafael Martins (17 anos) Maxwill dos Santos (21 anos)

Baixa do Sapateiro, Maré Morro da Coroa

Execução de Maxwill dos Santos Execuções de Paulo Batalha e Deividson Pacheco Execução de André Ferreira

Paulo Cardoso Batalha, (40 anos), e o estudante Deividson Evangelista Pacheco, (19 anos). André de Lima Cardoso Ferreira, de 19 anos.

Execução de Jackson Lessa

Jackson Lessa dos Santos, de 20 anos.

PMERJ; PCERJ; Força Nacional de Segurança. Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais). 1° Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)

27/06/2007

Favela Cinco Bocas, Brás de Pina Nova Holanda, Maré

16º Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) 22º Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)

24/05/2009

PavãoPavãozinho

UPP que abrange as favelas PavãoPavãozinho, Cantagalo e Vietnã. UPP que abrange as favelas Coroa, Fallet e Fogueteiro

12/06/2011

Video - Nova Democracia: www.youtube.com/watch?v=vWgqp_OJuLw

07/06/2012

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

Morro do Fogueteiro

05/12/2008

02/04/2009

11/06/2010

Relatório do Relator Especial de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias (Documento ONU A/HRC/11/2/Add.2). LINK: www.redecontraviolencia.org/Casos/2008/454.h tml LINK:www.redecontraviolencia.org/Casos/2009/ 470.html

LINK: www.redecontraviolencia.org/Casos/2009/511.h tml LINK: www.redecontraviolencia.org/Casos/2010/806.h tml

223

Execução de Thales Pereira Ribeiro D’Adrea

Thales Pereira Ribeiro D’Adrea (15 anos)

Morro do Fogueteiro

Homicídio de Mateus Oliveira

Mateus Oliveira Casé (16 anos)

Manguinhos

Homicídio de Paulo Henrique dos Santos

Paulo Henrique dos Santos Benedito (de 25 anos)

Cidade de Deus

BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) UPP que abrange Vila Turismo, Parque João Goulart, Parque Carlos Chagas (ou Varginha), Parque Oswaldo Cruz (ou Amorim), CHP2 (ou Vila União), Conjunto Nelson Mandela, Higienópolis, Vila São Pedro e Vitória de Manguinhos (ou Cobal). UPP que abrange Cidade de Deus, Quadras, Apartamentos, Caratê, Beirada do Rio, Jardim Novo Mundo, Rua Davi, Banca da Velha, Coroado, Sítio da Amizade, Moisés, Praça da Bíblia, Pantanal, Santa

25/06/2012

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

17/03/2013 Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

20/03/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

224

Efigênia, Moquiço, Efraim, Vila Nova Cruzada, Vila da Conquista e Jardins do Amanhã. Execução de Alielson Nogueira

Alielson Nogueira (21 anos)

Jacarezinho

Execução de Diogo Santos

Diogo de Oliveira Santos (26 anos)

Providência

Execução de Anderson dos Santos

Anderson dos Santos Moura (29 anos)

Morro do Querosene

UPP que abrange Tancredo Neves, Pica-Pau Amarelo, Vila São João, Xuxa, Marlene, Vila Viúva Claúdio, Marimbá, Jacarezinho, Carlos Drummond de Andrade e Vila Jandira. UPP que abrange Morro da Providência, Vila Mimosa, São Diogo, Moreira Pinto, Conjunto Vila Portuária e Pedra Lisa. UPP que abrange Morro do São Carlos, Querosene, Mineira, Zinco, Azevedo Lima, Clara Nunes e Favela do Rato.

04/04/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

08/06/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

15/06/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

225

Chacina da Maré

9 pessoas mortas

Nova Holanda

Tortura seguida de morte de Amarildo Dias de Souza

Amarildo Dias de Souza (43 anos)

Rocinha

Homicídio de Laércio Neto

Laércio Hilário da Luz Neto (17 anos)

Parque Proletário

BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) UPP que abrange Bairro Barcelos, Largo do Boiadeiro, Vila Verde, Curva do S, Cachopinha, Cachopa, Dioneia Almir, Vila União, Cidade Nova, Rua Um, Rua Dois, Rua Três, Rua Quatro, Portão Vermelho, Vila Laboriaux, Vila Cruzado, 199, Faz Depressa, Vila Vermelha, Capado, Terreirão, Macega, Roupa Suja e Parque da Cidade. UPP que abrange Parque Proletário, Vila Proletária da Penha e Laudelino Freire.

24/06/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

14/07/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

04/08/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

226

Execução de Israel Malet

Israel de Oliveira Malet (23 anos)

Jacarezinho

Execução de Paulo Roberto Menezes

Paulo Roberto Pinho de Menezes (18 anos)

Manguinhos

Execução de Thomas Rodrigues

Thomas Rodrigues Martins (32 anos)

PavãoPavãozinho

UPP que abrange Tancredo Neves, Pica-Pau Amarelo, Vila São João, Xuxa, Marlene, Vila Viúva Claúdio, Marimbá, Jacarezinho, Carlos Drummond de Andrade e Vila Jandira. UPP que abrange Vila Turismo, Parque João Goulart, Parque Carlos Chagas (ou Varginha), Parque Oswaldo Cruz (ou Amorim), CHP2 (ou Vila União), Conjunto Nelson Mandela, Higienópolis, Vila São Pedro e Vitória de Manguinhos (ou Cobal). UPP que abrange as favelas PavãoPavãozinho, Cantagalo e Vietnã.

23/08/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

17/10/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

24/10/2013

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

227

Execução de Wellington Sabino

Wellington Sabino Vieira (20 anos)

Morro da Mangueira

Execução de Petrick Costa dos Santos

Petrick Costa dos Santos (21 anos)

Morro do Cantagalo

UPP que abrange Morro do Telégrafo, Parque Candelária, Vila Miséria, Bartolomeu Gusmão, Marechal Jardim, Buraco Quente, Minhocão e Parque dos Mineiros. UPP que abrange as favelas PavãoPavãozinho, Cantagalo e Vietnã.

04/01/2014

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

18/01/2014

Informações recentes. [Veículos de Massa e Mídia Alternativa.]

228

ANEXO 2

229

RESOLUÇÃO N° 08

DE 21 DE DEZEMBRO DE 2012.

Dispõe

sobre

a

abolição

de

designações genéricas, como “autos de resistência”, “resistência seguida de morte”, em registros policiais, boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crime.

A MINISTRA DE ESTADO CHEFE DA SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, na qualidade de PRESIDENTA DO CONSELHO DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA, no uso das atribuições que lhe são conferidas pela Lei nº 4.319, de 16 de março de 1964, com alterações proporcionadas pelas Leis nº 5.763, de 15 de dezembro de 1971, e nº 10.683, de 28 de maio de 2003, esta última com a redação dada pela Lei nº 12.314, de 19 de agosto de 2010, dando cumprimento à deliberação unânime do Colegiado do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, realizada em sua 214ª reunião ordinária, nas presenças dos senhores Percílio De Sousa Lima Neto, Vice-Presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana; Gláucia Silveira Gauch, Conselheira Representante do Ministério das Relações Exteriores; Carlos Eduardo Cunha Oliveira, Conselheiro Representante do Ministério das Relações Exteriores; Aurélio Virgílio Veiga Rios, Conselheiro Representante do Ministério Público Federal; Tarciso Dal Maso Jardim, Conselheiro Professor de Direito Constitucional; Fernando Santana Rocha, Conselheiro

230

Professor de Direito Penal; Eugênio José Guilherme de Aragão, Conselheiro Professor de Direito Penal; Edgar Flexa Ribeiro, Conselheiro Representante da Associação Brasileira de Educação e Ivana Farina Navarrete Pena, Conselheira “ad hoc” Representante do Conselho Nacional de Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União,

Considerando que os direitos à vida, à liberdade, à segurança e à integridade física e mental são elementares dos sistemas nacional e internacional de proteção de direitos humanos e se situam em posição hierárquica suprema nos catálogos de direitos fundamentais; Considerando que todo caso de homicídio deve receber do Estado a mais cuidadosa e dedicada atenção e que a prova da exclusão de sua antijuridicidade, por legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito, apenas poderá ser verificada após ampla investigação e instrução criminal e no curso de ação penal; Considerando que não existe, na legislação brasileira, excludente de “resistência seguida de morte”, frequentemente documentada por “auto de resistência”, o registro do evento deve ser como de homicídio decorrente de intervenção policial e, no curso da investigação, devese verificar se houve, ou não, resistência que possa fundamentar excludente de antijuridicidade; Considerando que apenas quatro Estados da Federação divulgam amplamente o número de mortes decorrentes de atos praticados por policiais civis e militares (Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina) e que, nestes, entre janeiro de 2010 e junho de 2012, houve 3086 mortes em confrontos com policiais, sendo 2986 registradas por meio dos

231

denominados autos de resistência (ou resistência seguida de morte) e 100 mortes em ação de policiais civis e militares; Considerando que a violência destas mortes atinge vítimas e familiares, assim como cria um ambiente de insegurança e medo para toda a comunidade; Considerando o disposto na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regulamenta o direito fundamental ao acesso à informação e na Lei nº 12.681, 04 de julho de 2012, que institui o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas – SINESP; Considerando que o Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 – PNDH – 3, em sua Diretriz 14, Objetivo Estratégico I, recomenda “o fim do emprego nos registros policiais, boletins de ocorrência policial e inquéritos policiais de expressões genéricas como “autos de resistência”, “resistência seguida de morte” e assemelhadas, em casos que envolvam pessoas mortas por agentes de segurança pública; Considerando o Relatório 141/11, de 31 de outubro de 2011, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos/OEA para o Estado Brasileiro, recomendando a eliminação imediata dos registros de mortes pela polícia por meio de autos de resistência; Considerando o disposto no Relatório do Relator Especial da ONU para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias - Philip Alston -, que no item 21, b, expressa como inaceitável o modo de classificação e registro das mortes causadas por policiais com a designação de “autos de resistência”, impondo-se a investigação imparcial dos assassinatos classificados como “autos de resistência”, recomenda: Art. 1º As autoridades policiais devem deixar de usar em registros policiais,

232

boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crimes designações genéricas como “autos de resistência”, “resistência seguida de morte”, promovendo o registro, com o nome técnico de “lesão corporal decorrente de intervenção policial” ou “homicídio decorrente de intervenção policial”, conforme o caso. Art. 2º Os órgãos e instituições estatais que, no exercício de suas atribuições, se confrontarem com fatos classificados como “lesão corporal decorrente de intervenção policial” ou “homicídio decorrente de intervenção policial” devem observar, em sua atuação, o seguinte: I - os fatos serão noticiados imediatamente a Delegacia de Crimes contra a Pessoa ou a repartição de polícia judiciária, federal ou civil, com atribuição assemelhada, nos termos do art. 144 da Constituição, que deverá:

a) instaurar, inquérito policial para investigação de homicídio ou de lesão corporal;

b) comunicar nos termos da lei, o ocorrido ao Ministério Público. II- a perícia técnica especializada será realizada de imediato em todos os armamentos, veículos e maquinários, envolvidos em ação policial com resultado morte ou lesão corporal, assim como no local em que a ação tenha ocorrido, com preservação da cena do crime, das cápsulas e projeteis até que a perícia compareça ao local, conforme o disposto no art. 6.º, incisos I e II; art. 159; art. 160; art. 164 e art. 181, do Código de Processo Penal;

III

- é vedada a remoção do corpo do local da morte ou de onde tenha sido

encontrado sem que antes se proceda ao devido exame pericial da cena, a teor do previsto no art. 6.º, incisos I e II, do Código de Processo Penal;

IV

- cumpre garantir que nenhum inquérito policial seja sobrestado ou arquivado

233

sem que tenha sido juntado o respectivo laudo necroscópico ou cadavérico subscrito por peritos criminais independentes e imparciais, não subordinados às autoridades investigadas;

V

- todas as testemunhas presenciais serão identificadas e sua inquirição será

realizada com devida proteção, para que possam relatar o ocorrido em segurança e sem temor;

VI

- cumpre garantir, nas investigações e nos processos penais relativos a

homicídios ocorridos em confrontos policiais, que seja observado o disposto na Resolução 1989/65 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC).

VII - o Ministério Público requisitará diligências complementares caso algum dos requisitos constantes dos incisos I a V não tenha sido preenchido;

VIII - no âmbito do Ministério Público, o inquérito policial será distribuído a membro com atribuição de atuar junto ao Tribunal do Júri, salvo quando for hipótese de “lesão corporal decorrente de intervenção policial”;

IX

- as Corregedorias de Polícia determinarão a imediata instauração de processos

administrativos para apurar a regularidade da ação policial de que tenha resultado morte, adotando prioridade em sua tramitação;

X

- sem prejuízo da investigação criminal e do processo administrativo

disciplinar, cumpre à Ouvidoria de Polícia, quando houver, monitorar, registrar, informar, de forma independente e imparcial, possíveis abusos cometidos por agentes de segurança pública em ações de que resultem lesão corporal ou morte;

XI

- os Comandantes das Polícias Militares nos Estados envidarão esforços no

sentido de coibir a realização de investigações pelo Serviço Reservado (P-2) em hipóteses não relacionadas com a prática de infrações penais militares; 234

XII - até que se esclareçam as circunstâncias do fato e as responsabilidades, os policiais envolvidos em ação policial com resultado de morte:

a) serão afastados de imediato dos serviços de policiamento ostensivo ou de missões externas, ordinárias ou especiais; e

b) não participarão de processo de promoção por merecimento ou por bravura. XIII

- cumpre às Secretarias de Segurança Pública ou pastas estaduais

assemelhadas abolir, quando existentes, políticas de promoção funcional que tenham por fundamento o encorajamento de confrontos entre policiais e pessoas supostamente envolvidas em práticas criminosas, bem como absterem-se de promoções fundamentadas em ações de bravura decorrentes da morte dessas pessoas;

XIV

- será divulgado, trimestralmente, no Diário Oficial da unidade federada,

relatório de estatísticas criminais que registre o número de casos de morte ou lesões corporais decorrentes de atos praticados por policiais civis e militares, bem como dados referentes a vítimas, classificadas por gênero, faixa etária, raça e cor;

XV

- será assegurada a inclusão de conteúdos de Direitos Humanos nos concursos

para provimento de cargos e nos cursos de formação de agentes de segurança pública, membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, com enfoque historicamente fundamentado sobre a necessidade de ações e processos assecuratórios de política de segurança baseada na cidadania e nos direitos humanos;

XVI

- serão instaladas câmeras de vídeo e equipamentos de geolocalização (GPS)

em todas as viaturas policiais;

XVII - é vedado o uso, em fardamentos e veiculos oficiais das polícias, de

235

símbolos e expressões com conteúdo intimidatório ou ameaçador, assim como de frases e jargões em músicas ou jingles de treinamento que façam apologia ao crime e à violência;

XVIII - o acompanhamento psicológico constante será assegurado a policiais envolvidos em conflitos com resultado morte e facultado a familiares de vítimas de agentes do Estado;

XIX

- cumpre garantir a devida reparação às vítimas e a familiares das pessoas

mortas em decorrência de intervenções policiais;

XX

- será assegurada reparação a familiares dos policiais mortos em decorrência

de sua atuação profissional legítima;

XXI

- cumpre condicionar o repasse de verbas federais ao cumprimento de metas

públicas de redução de:

a) mortes decorrentes de intervenção policial em situações de alegado confronto;

b) homicídios com suspeitas de ação de grupo de extermínio com a participação de agentes públicos; e

c) desaparecimentos forçados registrados com suspeita de participação de agentes públicos. XXII - cumpre criar unidades de apoio especializadas no âmbito dos Ministérios Públicos para, em casos de homicídios decorrentes de intervenção policial, prestarem devida colaboração ao promotor natural previsto em lei, com conhecimentos e recursos humanos e financeiros necessários para a investigação adequada e o processo penal eficaz.

236

Art. 3º Cumpre ao Ministério Público assegurar, por meio de sua atuação no controle externo da atividade policial, a investigação isenta e imparcial de homicídios decorrentes de ação policial, sem prejuízo de sua própria iniciativa investigatória, quando necessária para instruir a eventual propositura de ação penal, bem como zelar, em conformidade com suas competências, pela tramitação prioritária dos respectivos processos administrativos disciplinares instaurados no âmbito das Corregedorias de Polícia. Art. 4º O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana oficiará os órgãos federais e estaduais com atribuições afetas às recomendações constantes desta Resolução dandolhes ciência de seu inteiro teor. Art. 5º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

MARIA DO ROSÁRIO NUNES Presidenta do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana

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ANEXO 3 e 4

238

239

240

ANEXO 5

241

Nota da Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência:

Fim do registro "auto de resistência" no Rio de Janeiro Após alguns dias depois da decisão do governo de São Paulo, a Polícia Civil do Rio de Janeiro determinou o fim do registro “auto de resistência”, seguindo a resolução da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência. Agora, as mortes provocadas por policiais devem ser registradas como “lesão corporal decorrente de intervenção policial” ou “homicídio decorrente de intervenção social” e deverão seguir a portaria da polícia civil n° 553, de 07 de julho de 2011, que determina, entre outras coisas, a preservação do local do ocorrido e a realização de perícia. A decisão é uma resposta, tardia, a anos de luta e exigência de vários movimentos e organizações de direitos humanos no Rio de Janeiro. Entretanto, entendemos que, embora seja possível considerar um avanço a mudança de nomenclatura, ela é ainda extremamente limitada. Esta alteração apenas se tornará efetiva se as práticas que lhes são subjacentes se alterarem profundamente. É importante lembrar que nenhuma das resoluções ou portarias acima mencionadas são uma novidade legal: primeiro, “auto de resistência” é algo que sequer existe no ordenamento jurídico, embora seja usado como se assim o fosse. De acordo com a legislação, todo homicídio deve ser tratado enquanto tal: como homícidio. E, assim, seguir os trâmites institucionais necessários para sua resolução, iniciando pela investigação (no caso dos autos de resistência iisso não ocorre ou ocorre raramente, como no caso em que as famílias buscam justiça). Em relação à portaria da polícia civil é a mesma coisa: é dever da autoridade pública policial preservar o local do crime e realizar a perícia. A portaria emitida, formulada após o caso do jovem Juan, sequestrado e morto por PMs em 2011 em Nova Iguaçu, é “chover no molhado”. Por isso, reiteramos que, embora seja um importante e necessário avanço, é preciso ficarmos atentos para o fundamental: as práticas de extermínio que perpassam toda a instituição policial. Sem mudar esta realidade, qualquer resolução ou portaria ou tem um alcance muito limitado ou simplesmente não tem efeito algum. Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência Veja a portaria da polícia civil: " ATOS DA CHEFE DE POLÍCIA PORTARIA PCERJ Nº 617 DE 10 DE JANEIRO DE 2013. DISPÕE SOBRE O USO DO TERMO TÉCNICO “LESÃO CORPORAL DECORRENTE DE INTERVENÇÃO POLICIAL” OU “HOMICÍDIO DECORRENTE DE INTERVENÇÃO POLICIAL” NO REGISTRO DE OCORRÊNCIA, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

242

A CHEFE DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições legais, e considerando as diretrizes estabelecidas na Resolução nº 08 de 21 de dezembro da 2012, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que dispõe sobre a abolição de designações genéricas, como “autos de resistência”, “resistência seguida de morte”, em registros policiais, boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crime; R E S O L V E: Art. 1º – A Autoridade Policial deverá zelar pela adoção, no registro de ocorrência, do termo técnico “lesão corporal decorrente de intervenção policial” ou “homicídio decorrente de intervenção policial”, conforme o caso, afastando-se o uso da expressão “auto de resistência”. Art. 2º – Nas hipóteses de “lesão corporal decorrente de intervenção policial” ou de “homicídio decorrente de intervenção policial”, deverão ser adotadas todas as providências elencadas na Portaria PCERJ nº 553, de 07 de julho de 2011. Art. 3° – O Departamento Geral de Tecnologia da Informação e Telecomunicações adotará as medidas necessárias para viabilizar, no que couber, a implementação do presente ato. Art. 4°- Esta Portaria entrará em vigor na data de sua publicação. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2013"

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ANEXO 6

244

PORTARIA PCERJ Nº553 DE 07 DE JULHO DE 2011. - 11/07/2011 PORTARIA PCERJ Nº553 DE 07 DE JULHO DE 2011. ESTABELECE AS DIRETRIZES BÁSICAS A SEREM OBSERVADAS PELAS AUTORIDADES POLICIAIS, NA APRECIAÇÃO DE FATOS APRESENTADOS COMO ENSEJADORES DA LAVRATURA DO DENOMINADO “AUTO DE RESISTÊNCIA”, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

A CHEFE DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições legais, e; CONSIDERANDO: - que a função precípua da Polícia Judiciária consiste no agrupamento dos meios de provas, de forma a demonstrar a existência ou não de um fato, a falsidade ou a veracidade de uma afirmação, de maneira contundente e eficaz, com vistas à garantir a higidez da persecução penal; - que é dever da Autoridade Policial zelar pela boa imagem institucional, por meio da elaboração diligente dos atos de polícia judiciária, garantindo, dentre outros princípios constitucionais, a dignidade da pessoa humana; - e, finalmente, que o êxito de uma investigação policial encontra-se diretamente relacionado à proficiência na execução das diligências levadas a efeito pela Polícia Civil, órgão constitucionalmente competente para o exercício das funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. R E S O L V E: Art. 1º - A Autoridade Policial, ao tomar conhecimento de ocorrência que lhe seja apresentada como ensejadora da lavratura do denominado “Auto de Resistência”, deverá, antes de decidir acerca da capitulação jurídica dos fatos, observar as seguintes diretrizes básicas:

I – acionamento imediato de equipe de apoio policial, para fins de isolamento e preservação do local, acaso ainda não tenha sido providenciado, determinando que não seja alterado o estado e a conservação das coisas;

II – requisitar o concurso da Polícia Técnico-Científica;

III – dirigir-se ao local para o colhimento de todas as provas disponíveis, visando o esclarecimento do fato, bem como de suas circunstâncias, sobretudo a hora exata do evento, de modo a respaldar sua decisão técnica;

IV – proceder às oitivas de todos os policiais envolvidos na ocorrência, observada, rigorosamente, a cautela preconizada no artigo 210 do Código de Processo Penal;

245

V – requisitar, quando necessárias à formação de seu convencimento, as perícias pertinentes, inclusive laudos prévios, quando tecnicamente viáveis;

VI – proceder à oitiva da vítima, quando possível, bem como das testemunhas do fato.

§ 1º - A inobservância de qualquer uma das diligências descritas neste artigo deverá ser devidamente motivada, pela Autoridade Policial, quando da elaboração de seu despacho.

§ 2º - Diante das peculiaridades do caso concreto, poderá a Autoridade Policial determinar a imediata substituição da equipe de apoio policial incumbida da preservação do local.

§ 3º - A Autoridade Policial deverá se dirigir ao hospital para onde tiver sido encaminhado o noticiado “opositor”, para fins de entrevistar-se com médicos responsáveis pelo atendimento e, surgindo dúvidas, requisitar o concurso de polícia técnica-científica a fim de dirimi-las.

§ 4º - Deverá a Autoridade Policial zelar pela efetiva preservação da prova, providenciando a apreensão das armas diretamente envolvidas no contexto fático que ensejou o evento morte/lesão, sem prejuízo de proceder à plena identificação de todas as armas dos policiais envolvidos na ocorrência, objetivando, em ambos os casos, a realização dos exames periciais que se fizerem necessários.

Art. 2º – Em caso de alteração do estado das coisas, deverá a Autoridade Policial adotar as medidas administrativas e/ou penais cabíveis.

Parágrafo único: A alteração do estado das coisas não elide a obrigatoriedade da presença da Autoridade Policial, tampouco o concurso da perícia criminal, sem prejuízo das providências dispostas no caput deste artigo.

Art. 3º – O registro de ocorrência somente será ultimado após a realização de todas as diligências dispostas no art. 1º, de modo a propiciar à Autoridade Policial o maior acervo possível de informações acerca do evento, respaldando a sua decisão em dados concretos, alicerçando-a sob a ótica técnico-científica.

Art. 4º – Ao final das diligências necessárias para a escorreita tipificação e conseqüente enquadramento na legislação processual penal vigente, impõe-se à Autoridade Policial instrumentalizar, de forma motivada, em uma das situações a seguir expostas: 246

I – Inquérito Policial, se persistirem dúvidas não dirimidas pelos elementos de convicção produzidos e que exijam complementação de diligências afiguradas inviáveis na apuração preliminar, ou se configurada a hipótese do artigo 292 do Código de Processo Penal;

II – Auto de Prisão em Flagrante, no caso de haver indícios da prática de crime doloso contra a vida não amparado pela norma do artigo 292 do Código de Processo Penal.

Art. 5º – A Coordenadoria de Recursos Especiais - CORE poderá ser acionada pela Autoridade Policial, se assim entender necessário ao bom andamento dos trabalhos que estiverem sendo desenvolvidos.

Parágrafo Único – O Coordenador da CORE deverá manter, diuturnamente, um quantitativo adequado para o atendimento imediato à previsão disposta no caput deste artigo.

Art. 6º – Deverá ser encaminhada cópia integral dos autos à Corregedoria da Instituição a que estiver subordinado o servidor-apresentante da ocorrência.

Parágrafo Único: Na hipótese de lavratura de auto de prisão em flagrante em face do servidorapresentante da ocorrência, caberá à Autoridade Policial cientificar a chefia imediata do mesmo e/ou a respectiva Corregedoria, garantindo, assim, o acompanhamento dos procedimentos adotados.

Art. 7º – O Departamento-Geral de Polícia Técnico-Científica - DGPTC deverá manter o quantitativo adequado de recursos, humano e material, nos Institutos de Criminalística Carlos Éboli, Médico Legal Afrânio Peixoto e de Identificação Félix Pacheco – ICCE, IMLAP e IIFP, assim como em seus respectivos Postos avançados, visando o atendimento imediato e pleno das demandas fomentadas a partir das regras deste ato.

Parágrafo único: Dentre as providências a serem adotadas pelo DGPTC, mencionadas no caput deste artigo, inserem-se aquelas que visem o incremento com vistas à confecção de eventuais laudos prévios.

Art. 8º – O perito criminal que proceder ao local, em cumprimento à determinação da Autoridade Policial, deverá providenciar a coleta de sangue, com emprego de “suabe”, nas viaturas, vestimentas ou quaisquer outros locais passíveis de depósito deste material, sem prejuízo do recolhimento de vestígios reputados imprescindíveis ao êxito da apuração, como pêlos, cabelos, fibras e outros.

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Art. 9º - Deverá o ICCE priorizar o exame pericial nas armas apreendidas nas ocorrências que envolvam os fatos que constituem o objeto desta portaria, que serão recebidas pela Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos – DFAE, independentemente de agendamento prévio.

Art. 10 – A Chefia de Gabinete deverá promover a ciência imediata do teor desta portaria à Secretaria de Estado de Segurança – SESEG, através de ofício, pugnando pela adoção de igual providência no âmbito da Polícia Militar, com vistas à uniformização dos procedimentos de isolamento e preservação de locais de crime.

Art. 11 - O descumprimento do disposto nesta Portaria importará em transgressão disciplinar na forma do Decreto-Lei nº 218/75.

Art. 12 - Esta Portaria entrará em vigor na data de sua publicação.

MARTHA MESQUITA DA ROCHA CHEFE DA POLÍCIA CIVIL

Fonte : site da ADEPOL (Associaçãodos Delegados de Polícia do Estado do Rio de Janeiro), através do endreço http://adepolrj.com.br/Portal/Noticias.asp?id=9831

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