Governo representativo e democratização: revendo o debate

July 7, 2017 | Autor: Fernando Limongi | Categoria: Democratization, Representation
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Governo representativo e democratização: revendo o debate1 Fernando Limongi

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Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

Fernando Limongi Fernando Limongi é professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Cebrap/CEM/Neci e bolsista do CNPq. É coautor, com Argelina Figueiredo, de Política orçamentária no presidencialismo de coalizão (Rio de Janeiro, Editora FGV/Konrad Adenauer, 2008); Executivo e legislativo na nova ordem constitucional (Rio de Janeiro, Editora FGV/Fapesp 1999); e, com Adam Przeworski, Michael Alvarez e José Antonio Cheibub, de Democracy and Development: Political Institutions and Well-Being in the World, 1950-1990 (New York: Cambridge University Press, 2000).

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Beni Trojbicz

Resumo Este artigo propõe uma releitura do debate sobre a evolução política do país. Partindo das teses que sustentam a inviabilidade ou incompletude da democracia no Brasil, o artigo sugere uma revisão da forma de entender o processo de democratização. Trata-se de revisitar um velho debate cujas origens são traçadas a interpretações clássicas como o de Victor Nunes Leal e Sérgio Buarque de Holanda. Palavras-chave: Democracia. Governo representativo. Direitos civis. Direitos políticos.

Abstract This paper proposes a new reading of the debate on the country’s political evolution. Starting from the theses that support the infeasibility or incompleteness of democracy in Brazil, this paper proposes a review to understand the democratization process, addressing an old debate originated with the classical interpretations of Nunes Leal and Sergio Buarque de Holanda. Keywords: Democracy. Representative government. Civil rights. Political rights.

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Introdução1 A história política do Brasil pede uma revisão. A forma usual de reconstituí-la assume que a história política do país difere radicalmente da trajetória seguida em países como a Inglaterra, França e Estados Unidos. A herança colonial, a ausência de uma ruptura efetiva com o passado, é uma variável chave nas interpretações canônicas sobre a evolução do governo representativo e da democracia no país. Contudo, estudos recentes sobre a evolução política europeia e norte-americana recomendam uma revisão da forma usual de entendermos a evolução política do país. Este é o objetivo deste trabalho.

O governo representativo falseado Em seu clássico Coronelismo, enxada e voto, Victor Nunes Leal define seu objeto de estudo da seguinte forma: “Concebemos o ‘coronelismo’ como o resultado da superposição de formas desenvolvidas de governo representativo a uma estrutura econômica e social inadequada” (LEAL, 1975, p. 20). Mais que inadequação, teríamos uma inviabilidade. O governo representativo não encontraria no Brasil a realidade social sobre a qual se assentava em outros lugares. A descrição realista das práticas eleitorais do país é um dos sustentáculos da análise do autor. No essencial, estas práticas teriam experimentado pouca variação ao longo do primeiro século de vida independente do país. As inúmeras reformas da legislação eleitoral feitas no Império e na Primeira República não teriam tido chances de sucesso. O problema fundamental residiria na ausência de um eleitorado que apresentasse as condições exigidas para o funcionamento de um governo representativo. Não teríamos, de fato, eleitores, pelo menos não os exigidos para um funcionamento efetivo do governo representativo. Sérgio Buarque de Holanda argumenta que Proclamadas com eloquência, e abraçadas aparentemente com sinceridade, as doutrinas revolucionárias foram, assim, condicionadas no Brasil a fatores que não existiam, ou existiram de maneira diferente, em seus lugares de origem. [...] Mas se a derrocada do absolutismo e a afirmação da independência ajudavam a remoção do obstáculo, o certo é que não

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poderiam, somente, suprir algumas lacunas sérias da organização preexistente. [...] A mais notável, entre estas lacunas, era a inexistência de uma numerosa camada social intermediária entre os grandes senhores e a parte ínfima da população livre, que pudesse fazer as vezes de classe média. [...] Como entender, com efeito, um sistema representativo digno desse nome onde faltava o elemento que em toda a parte vinha constituindo o nervo das democracias? (HOLANDA, 1972, p. 80).

O contraste é claramente enunciado nestas duas formulações. Em certas sociedades, observa-se a adequação entre a forma e a realidade, entre o governo representativo e as práticas eleitorais. O Brasil é caracterizado negativamente, pelo que está faltando. A ausência do elemento fundamental sobre o qual se assentaria o governo representativo condiciona a sua adaptação aos trópicos. Adequado na origem, inadequado em sua cópia. A ausência, o que faltaria à sociedade brasileira, a tal camada intermediá­ ria numerosa, é o elemento central da caracterização. O latifúndio, herdado do período colonial, o obstáculo que a independência não remove, gera a atrofia. O eleitor nacional típico, porque dependente do proprietário de terra, não teria vontade autônoma a expressar. Votaria a mando, expressando a vontade de seus superiores. Destituído de eleitores capacitados, o país não poderia senão experimentar uma versão falseada do governo representativo. Em suas versões mais extremadas, estes argumentos sublinham o irrealismo de nossas elites políticas, a falta de percepção destas sobre as condições sociais vigentes no país. A insistência com que as elites nacionais teriam “importado” os modelos políticos da Inglaterra, Estados Unidos e França seria a prova de seu irrealismo. A suposição fundamental deste tipo de visão é a de que em certos países seriam observadas as condições sociais necessárias para o sucesso do governo representativo. Por lá, haveria povo ou classe média, a matéria necessária para o funcionamento adequado do governo representativo. Ausentes estas condições, a cópia redundaria em farsa. As “formas desenvolvidas do governo representativo” não funcionariam porque fora de lugar. Se assim for, isto é, se aceitarmos as premissas desta crítica, a história institucional do Brasil não mereceria estudo. Para entender a evolução institucional do governo representativo, o correto seria estudar o que se passou com o original. Nada de relevante teria tido lugar nestas plagas.

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A experiência do governo representativo no Brasil seria sempre e irremediavelmente marcada pelo atraso, expresso de forma mais clara nas práticas eleitorais viciadas, em que violência e fraude campeariam. Nunes Leal, por exemplo, após revisar a evolução da legislação eleitoral brasileira, conclui: Através de todas essas tentativas, recebidas confiantemente por uns e, com descrença ou pessimismo por outros, o mecanismo representativo continuou a revelar deficiências, por vezes graves. [...] Sempre impressionou aos espíritos mais lúcidos o artificialismo da representação, que era de modo quase invariável maciçamente governista. Entretanto, a subsistência de certos vícios exteriores ou formais, notadamente a insinceridade da verificação de poderes [...] muito concorria para que se atribuíssem os defeitos do nosso regime representativo a fatores de ordem puramente ou predominantemente política. Por esse mesmo motivo, a atenção dos observadores quase sempre se desviava dos fatores econômicos e sociais, mais profundos, que eram e ainda são [1947], os maiores responsáveis pelo governismo e, portanto, pelo falseamento intrínseco da nossa representação (LEAL, 1973, p. 241).

A transformação da legislação eleitoral brasileira, portanto, teria pouco interesse: pura reafirmação do “artificialismo”. As reformas feitas – e não foram poucas – seriam apenas a prova do irrealismo de nossas elites, reafirmando, a cada nova tentativa, a impossibilidade de implantação de mecanismos representativos no país. Consequentemente, o debate institucional nacional seria vazio porque descolado da realidade, por não atacar o problema de fundo, a realidade social por detrás do voto de cabresto. Quando analisada, invariavelmente, a evolução da legislação eleitoral brasileira tende a ser vista como a comprovação do elitismo arraigado das nossas elites, de sua rejeição profunda a qualquer valor democrático, expresso em uma constante negação de medidas que ampliassem a participação popular. A aprovação da Lei Saraiva em 1881 seria a expressão mais acabada deste reacionarismo.2 Como se sabe, esta lei levou a uma drástica redução do direito ao voto, reduzindo-o a praticamente a 1% da população do país.3 Frise-se a data: 1881. As elites brasileiras optaram por uma redução do eleitorado no final do século XIX, no momento em que os países europeus estariam caminhando na direção contrária. Por isto mesmo, quando 98

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analisa a legislação eleitoral do império, José Murilo de Carvalho (1988, p. 140) afirma que “no que se refere à definição da cidadania, a evolução da legislação foi uma involução”.4 O reacionarismo das elites políticas brasileiras não poderia ser maior e mais completo, como mostrariam os debates parlamentares que acompanharam a discussão e a aprovação da Lei Saraiva. Os eleitores pobres acabaram responsabilizados pelo desvirtuamento das práticas representativas. Para moralizar as eleições, esta a conclusão a que teria chegado a elite governante brasileira, seria necessário afastar os pobres das eleições, negar-lhes o direito a voto. Seguindo esta linha de argumentação, a literatura recente tende a afirmar o caráter anômalo do desenvolvimento político brasileiro, sua divergência em relação ao modelo ocidental clássico representado, por exemplo, no conhecido esquema proposto por T. H. Marshall para dar conta da expansão da cidadania na Inglaterra. Neste tipo de análise, a ênfase recai sobre a diferença, sobre a especificidade da experiência nacional cujo resultado último seria uma democracia atrofiada e frágil. Estas análises, em geral, carecem ou não são fundamentadas por um modelo explicativo claro para a emergência do regime democrático. A história política do Brasil continua caracterizada pela negativa, pela ausência, a partir de um contraste a um modelo de desenvolvimento político modelar. A referência é a história política da Inglaterra, França e Estados Unidos sem que estas sejam examinadas a fundo. Nas análises recentes (CARVALHO, 2005; O´DONNEL, 2011; HOLSTON, 2013), o modelo elaborado por T. H. Marshall para dar conta do caso inglês é tomado como o padrão, enquanto o Brasil (ou de forma mais geral, a América Latina) assume o papel do caso desviante. Como afirma José Murilo de Carvalho (2003, p. 11), a sequência identificada por Marshall é tanto histórica quanto lógica. O ponto de partida define os degraus seguintes. Os direitos civis, cujo reconhecimento teria se dado na Inglaterra no século XIX, anunciam os direitos políticos e os sociais. Se todos os membros de uma comunidade política são iguais perante a lei, isto significa que se assume que todos são dotados da capacidade de tomar as decisões, de celebrar contratos, enfim de ser responsáveis pelos seus próprios atos. Reconhecida esta igualdade fundamental, então Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

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é apenas um passo aceitar que estes mesmo indivíduos têm capacidade para participar das decisões políticas. A extensão dos direitos políticos, que viria no século XIX, não seria senão o reconhecimento das consequên­cias do primeiro avanço. Tratar-se-ia de uma decorrência histórica e lógica. O encadeamento entre um e outro seria necessário. A relação entre os direitos políticos e sociais seria da mesma ordem. A relação seria direta. Se o voto é estendido aos mais pobres, então um governo que siga a vontade da maioria deve adotar políticas que visem à promoção da igualdade. No mínimo, os mais pobres devem ser protegidos dos azares do mercado. Se o governo com voto da maioria não o fizer, então esta não é uma democracia efetiva, real. No máximo, pode ser vista como uma democracia incompleta, atrofiada pela herança história: a falta de uma ruptura com o passado no momento de implantação do direito civil. Dada a natureza da relação interna entre as fases da expansão da cidadania, isto é, dado o caráter ao mesmo tempo histórico e lógico da evolução, segue que o ponto de partida é o passo verdadeiramente fundamental, do qual os demais são derivados. O ponto de partida define a trajetória posterior. Como afirma David Held: A cidadania civil constitui um passo significativo no desenvolvimento dos direitos políticos; na medida em que o agente individual foi reconhecido como uma pessoa autônoma – isto é, uma pessoa capaz de refletir e de tomar decisões sobre as condições básicas da vida – foi mais fácil pensar nessa pessoa como, em princípio, sendo capaz de responsabilidade política (HELD, 1995, p. 67 apud O’DONNEL, 2011, p. 55).

Se, de fato, o direito civil anuncia sua transformação no século seguinte, se esta pode ser deduzida daquela, então a democratização do sistema político inglês não precisa ser investigada. Tratar-se-ia de uma mera consequência. Nesta explicação, a verdadeira ruptura é a anterior, a afirmação da cidadania civil, o reconhecimento da autonomia individual, da capacidade de cada um de tomar decisões. Dada esta premissa, o reconhecimento de que todos teriam o direito de participar do processo político é uma consequência direta. O desdobramento ou passagem do civil ao político seria natural e necessário. Houve resistências, é certo, mas estas estavam necessariamente fadadas ao fracasso. Seriam menos relevantes que a marcha inexorável anunciada pela ruptura anterior.

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Assim, neste tipo de análise, por paradoxal que possa parecer, a democratização não é problematizada ou estudada. Democracias emergem naturalmente das revoluções burguesas, da quebra da velha ordem. Sepultado o Antigo Regime, o novo florescerá. Pode demandar tempo, mas a evolução pode ser tomada como certa. Esta, digamos, seria a rota clássica, aquela que na formulação clássica de Barrington Moore Jr. (1966) permite combinar modernização socioeconômica e política, isto é, na qual a modernização culmina na democracia representativa. Nos demais casos históricos analisados por Moore, a ausência de uma ruptura violenta com o passado feudal condiciona o desenvolvimento histórico futuro, impossibilitando o nascimento de governos democráticos. A equação “se revolução burguesa então democracia representativa” permite que Moore desconsidere a democratização das sociedades que examina. Por exemplo, a reconstituição da história política inglesa é abandonada em 1688. Isto é, no interior do modelo explicativo oferecido por Moore, a Revolução Gloriosa seria suficiente para estabelecer toda a trajetória subsequente do país. A primeira reforma estendendo o sufrágio, contudo, só viria a acontecer um século e meio mais tarde, em 1832, após longas e acirradas discussões, quando o direito de voto foi estendido a não mais que 20% da população adulta masculina. Duas outras reformas (1867 e 1884) promoveram novas extensões de tal sorte que o direito do voto havia sido estendido a não mais que 60% da população adulta masculina no final do século XIX. Mulheres – e apenas algo como 40% delas – obtêm o direito de votar ao final da Primeira Guerra Mundial. O sufrágio universal só foi adotado na segunda década do século XX.5 Assim, o período histórico olimpicamente omitido por Moore não é pequeno. Na literatura recente referências a Barrington Moore e a revoluções burguesas são escassas. Abordagens mais recentes tomam a extensão da cidadania como eixo central para a construção das trajetórias divergentes. Marshall passou a ocupar o lugar que pertenceu a Moore. Em lugar da modernização, o processo de longo prazo subjacente e que confere sentido às análises passou a ser a expansão da cidadania. A afirmação do princípio da igualdade, não importa se formal, continua a ser o marco inicial.

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As referências e variáveis mudaram, a estrutura do modelo explicativo não. O esquema é o mesmo. A história da ampliação da cidadania comportaria diferentes rotas, determinadas em última análise pelo momento fundador ou original da instauração da igualdade civil. O fundamental é o grau de ruptura com o Antigo Regime e a afirmação da igualdade formal perante a lei. Onde esta ruptura foi para valer, direitos civis e políticos podem ser encadeados. Nas palavras de O’Donnel (2011, p. 54): Quando em algum momento do século XIX, a maioria dos países do Noroeste adotou democracias não inclusivas, já havia sido atribuído a uma grande parte da população masculina uma série de direitos subjetivos que regulavam boa parte de suas vidas. Mas estes não eram – ainda – os direitos políticos da aposta democrática. Eram direitos civis e subjetivos [...] quando a plena inclusão política começou a ser debatida, nos países do Noroeste, já existia um rico repertório de critérios legalmente elaborados e sancionados para atribuição de agência na esfera privada a um grande número de indivíduos (em sua maioria homens). Certamente, segundo os padrões contemporâneos o alcance destes direitos era muito limitado. Mas também é certo que, devido ao processo de atribuição de direitos subjetivos, preparou-se para tornar extensivos à cidadania política e social.

O modelo explicativo supõe o contraste. Os direitos civis, se acompanhados do reconhecimento da autonomia do agente, incluem a “aposta democrática”. Mas os direitos civis podem ser apenas epidérmicos, casos em que não incluem o reconhecimento pleno dos agentes e, portanto, não carregam consigo os germes de sua transformação, para usar uma linguagem datada. As trajetórias históricas dos países do Noroeste6 e da América Latina são distintas. O que se pretende explicar é a divergência presente, a fragilidade ou falta de efetividade dos regimes democráticos na América Ibérica. Como em Nunes Leal e em Sérgio Buarque de Holanda, a ausência da ruptura histórica atrofia a experiência futura. No caso da versão contemporânea centrada na expansão da desigualdade, a democracia política não gera igualdade social. As ênfases mudam, mas a essência do modelo não. O que é preciso ter claro é que os processos de democratização dos casos bem-sucedidos não são objeto de tratamento sistemático. A evolução política destes países é deduzida do modelo adotado. Marshall, que não dedica mais dos que uns poucos parágrafos à extensão dos direito do voto, seria suficiente para caracterizar a democratização do sistema político inglês. Em 102

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outras palavras, a construção do contraste das diferentes rotas trilhadas é altamente dependente da idealização do que teria sido o processo de democratização da Inglaterra, França e Estados Unidos. A contraposição marca estes modelos explicativos. A afirmação de que o governo representativo não funcionaria adequadamente no Brasil supõe a existência de seu contrário, isto é, do funcionamento adequado desta forma de governo em determinados países. Para retornar a Nunes Leal, o autor nos oferece uma visão realista de como de fato funcionam as eleições no Brasil, como por aqui os princípios do governo representativo são falseados. Como afirma: “A corrupção eleitoral tem sido um dos mais notórios e enraizados flagelos do regime representativo no Brasil” (LEAL, 1975, p. 240). O complemento deste realismo é a idealização da operação do governo representativo alhures. Assume-se, implicitamente, que o que por aqui se busca, “eleições limpas e verazes”, teria sido alcançado onde a grande propriedade foi destruída e uma classe média numerosa se formou. E se as eleições são efetivas, para retornar à versão contemporânea do argumento, a igualdade social deveria ser uma consequência da política. Contudo, cabe perguntar: sabemos se funcionou o governo representativo em que haveria uma adequação entre forma política e realidade social? Podemos afirmar que, na origem, as sociedades inglesas, francesas e norte-americanas eram mais igualitárias que a brasileira (latino-americanas)? Existem de fato duas experiências históricas com as instituições representativas, uma falseada e outra verdadeira?

Governo representativo e desigualdade política Nunes Leal uma vez mais é a referência inicial. Os termos que emprega em sua formulação clássica merecem atenção. A referência é ao governo representativo e não à democracia. O centro de sua análise são as eleições, seu funcionamento, ou melhor, seu desvirtuamento no Brasil em relação ao modelo. A referência é duplamente importante. Primeiro porque define de forma clara o ponto de partida ou origem a partir da qual a reconstituição histórica deve ser empreendida. O ponto de partida é a adoção do governo representativo e não o liberalismo e muito menos a liberal-democracia. Segundo porque coloca as expectativas acerca das práticas eleitorais no centro do debate. A análise das práticas eleitorais Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

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viciadas experimentadas pelo país se ampara em uma contraposição, na expectativa de como elas deveriam funcionar. Mas como afinal deveriam funcionar eleições? Além disto, estas expectativas se referem à realidade ou ao modelo? Cabe considerar a hipótese: não estaríamos construindo uma contraposição entre o real e o idealizado? Afinal, sabemos como evoluiu de fato o governo representativo na Inglaterra, França e Estados Unidos? A omissão de uma análise detida da história destes países, quando não da pura idealização de como esta teria transcorrido, está na base do argumento empregado por Nunes Leal e tantos outros. Como frisou com propriedade Bernard Manin (1997), o sucedâneo dos governos hereditários é o governo representativo. A característica essencial do governo representativo é o fato de que neste a seleção de líderes se dá por meio de eleições.7 Governantes são eleitos. Ainda que hoje associemos eleição à democracia, na filosofia política clássica, o método de seleção de governantes identificado com a democracia é o sorteio e não a eleição. Este método específico, a eleição, como sublinha Manin, sempre foi associado ao governo aristocrático e sua adoção no momento de criação do governo representativo se deu com plena consciência desta associação. As consequências desta associação não devem ser lidas como curiosidades ou provas de ilustração. O caráter aristocrático das eleições era conhecido pelos que propuseram sua adoção. Para dizer de outro modo: seus efeitos não igualitários pesaram na escolha. Quando eleições passaram a ser usadas para selecionar governantes não se esperava que representantes fossem iguais aos representados. Antes o contrário. A expectativa dos criadores desta forma de governo era de que eleições levassem à seleção dos melhores, dos mais capacitados, da elite social e cultural. Caberia a estes governar. Eleições não são igualitárias porque nem todos têm as mesmas chances de serem eleitos e desempenhar funções de governo. Na origem, portanto, temos uma afirmação clara e explícita da desigualdade política. Eleições não foram pensadas com um expediente para contornar a impossibilidade da deliberação direta, para contornar a impossibilidade prática da democracia direta. Os teóricos do governo representativo movem-se, de forma consciente e explícita, na direção contrária à democracia. O governo representativo seria superior à democracia justamente 104

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por recorrer às eleições e, desta forma, garantir que representantes seriam selecionados no interior da elite. O governo representativo era para ser o governo dos melhores. Melhor recorrer a Bernard Manin: O governo representativo foi instituído com amplo conhecimento de que os representantes eleitos seriam e deveriam ser cidadãos distinguidos, socialmente diferentes do que aqueles que os elegiam. Chamarei este de o princípio da distinção (MANIN, 1997, p. 94, tradução nossa).

Em sua origem, portanto, o apelo a eleições não aspirava criar um corpo representativo que espelhasse o corpo social. Eleições deveriam levar aos postos de mandos os mais capacitados, a elite. Basta esta referência para questionar uma parte considerável dos estudos sobre o pensamento político brasileiro no século XIX. O elitismo não é específico ou suficiente para discriminar o pensamento político brasileiro. Os ingleses, franceses e americanos do período eram igualmente elitistas. Neste aspecto, o Brasil não é singular. A superioridade dos eleitos não decorre do voto censitário. A superioridade esperada tem por referência um corpo eleitoral restrito. Representantes devem pertencer a um grupo social superior ao dos seus eleitores. Medidas específicas foram tomadas com este fim. Isto é, não apenas o voto era censitário, como também o acesso aos cargos eletivos era protegido por exigências de propriedade, renda e idade. Dito de outra forma: as exigências legais para ser candidato eram maiores do que as que limitavam o direito ao voto. Assim, necessariamente, por força da lei, os ocupantes de cargos públicos teriam status superior ao de seus eleitores. Afirma-se desta forma de maneira explícita e clara o caráter não igualitário do princípio representativo. Em geral, precauções foram tomadas para garantir que representantes fossem recrutados no interior de um grupo seleto. O ponto merece ser frisado: a distinção fundamental embutida no governo representativo diz respeito menos a quem pode votar do que quem pode exercer o poder. Dito de forma mais direta: é possível compatibilizar o sufrágio universal ao Governo Representativo. Tanto a legislação inglesa quanto a francesa regulavam de forma explícita o acesso aos cargos de governo, enquanto os Estados Unidos, por razões discutidas a seguir, deixou de regular a matéria. Vale, uma vez mais, recorrer a Manin:

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Os limites ao direito de voto nos primórdios do governo representativo são bem conhecidos […]. O que é menos notado e estudado, contudo, é que, independente destas restrições, existiam ainda um número de provisões, arranjos e circunstâncias que asseguravam que os eleitos seriam de um estrato social mais elevado do que o eleitorado. Isto foi obtido de formas diversas na Inglaterra, França e Estados Unidos. De forma geral, se pode dizer que a superioridade social era garantida na Inglaterra por uma mistura entre estatutos legais, normas culturais e fatores práticos enquanto na França puramente com base na lei. O caso dos Estados Unidos é mais complicado, mas também, por isto mesmo, como será visto, mais revelador (MANIN, 1997, p. 95).

O reconhecimento desta desigualdade fundamental é crucial para uma reavaliação das origens e desenvolvimento do governo representativo e, consequentemente, para o surgimento das democracias representativas contemporâneas. O elitismo, ou mais claramente, a negação explícita e direta da ideia da igualdade política está na origem da adoção do governo representativo. O método de seleção de líderes adotado não é igualitário. Não se esperava, portanto, que governantes fossem iguais aos governados. Se o governo representativo funcionar de acordo com suas expectativas, então, os melhores, os mais aptos governam. Se não for assim, se os mais capazes não forem selecionados, então há algo de errado com o processo eleitoral. A corrupção eleitoral, o desvirtuamento do governo representativo, se dá quando outros critérios que não a capacidade para o exercício do poder prevalecem. Mas de onde vêm estas expectativas? Por que se espera que o princípio da distinção opere? Por que o funcionamento regular das eleições leva a seleção dos superiores socialmente? Uma resposta se encontra na passagem transcrita anteriormente: por uma combinação entre leis, normas culturais e fatores práticos. A interação entre estes fatores deve garantir que o governo representativo leve ao governo das elites. Tanto na Inglaterra quanto na França, precauções legais – critérios explícitos de renda e idade – foram tomados para assegurar que apenas os detentores de propriedade poderiam ser os eleitos.8 Na passagem citada, contudo, Manin afirma que o caso norte-americano é mais revelador justamente por dispensar precauções desta natureza. Mais especificamente, os Estados Unidos prescindem da intervenção das leis para assegurar que representantes fossem socialmente superiores aos representados. 106

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A alternativa seguida, contudo, não se deve a uma maior adesão ao credo democrático ou aceitação do princípio da igualdade política. Segundo Manin (1997), ao longo dos debates constitucionais na Filadélfia, os constituintes foram incapazes de encontrar um critério legal que pudesse ser aplicado uniformemente nas 13 ex-colônias. O que seria um critério de exclusão adequado no Sul seria insuficiente no Nordeste. Como diz Manin (1997), a heterogeneidade social, geograficamente delimitada, impediu que os constituintes americanos chegassem a um acordo neste ponto. Ideologicamente, a maioria era favorável a uma restrição censitária tanto do direito ao voto quanto do acesso a cargos públicos. Havia desejo de fazê-lo, mas foi impossível encontrar uma condição que servisse aos propósitos pretendidos. Assim, a regulação da matéria foi deixada aos estados membros. O caso é mais revelador justamente por esta omissão e a confiança obtida de que não seria desnecessário restringir o conjunto de cidadãos que poderiam se candidatar a exercer cargos públicos. Reside aí a importância dos debates entre os federalistas e os antifederalistas. Os antifederalistas acusam os defensores da nova Constituição de favorecer um governo aristocrático. Afirmam que o modelo proposto faria com que a distância social entre representantes e representados seria enorme. Somente os mais ricos seriam os eleitos. Os críticos da Constituição falham, contudo, na identificação do mecanismo que produziria este resultado. De sua parte, os federalistas, defensores da Constituição, apontam para a inexistência de barreiras legais para que representantes e representados sejam iguais. A Constituição não restringia a cidadania política e tampouco regulava quem poderia se candidatar. Não havendo restrição, se os resultados das eleições confirmassem os temores dos antifederalistas, isto se daria pela livre escolha do povo. Como mostra Manin, a posição dos federalistas neste debate decorre da sua confiança no caráter aristocrático das eleições. Restrições legais que discriminassem quem poderia ser eleito não seriam necessárias. Pela sua própria natureza, eleições levariam à diferenciação entre representantes e representados. O mecanismo, pela sua natureza, geraria a distinção. Os federalistas confiavam que os mais ricos e destacados socialmente Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

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levariam vantagem sobre os demais, sobretudo em distritos amplos. Isto é quanto maior o distrito, quanto mais eleitores fossem necessários para eleger um representante, mais relevante a saliência social dos candidatos para sua eleição. A linha de interpretação aberta por Manin, sem exagero algum, revoluciona o entendimento das origens das modernas democracias representativas. Eleição dos líderes políticos é parte de qualquer definição corrente de democracia. Contudo, como argumenta Manin, as marcas da origem não são inteiramente apagadas pelas transformações que levaram à democratização do governo representativo. O componente aristocrático e não igualitário é inerente à eleição, não desaparecendo com a democratização dos sistemas políticos: No interior de governos baseados exclusivamente em eleições nem todos os cidadãos tem as mesmas chance de serem governantes. Os cargos representativos são reservados para pessoas vistas como superiores ou para membros das classes mais altas. Governo representativo pode em certos aspectos se tornar mais popular e democrático. Ainda assim, ele reterá dimensões aristocráticas no sentido de que aqueles que são eleitos não seriam similares a aqueles que os elegem, mesmo quando ninguém é impedido de competir por cargos eletivos (MANIN, 1997, p. 134).

Assim, a contribuição de Manin vai muito além do estudo das origens do governo representativo. A inspiração aristocrática tem consequências para o entendimento das modernas democracias. Muitas das características constitutivas do governo representativo foram mantidas. Algumas destas decorrem da natureza do processo eleitoral, outras das definições do papel dos próprios representantes e seus vínculos com os eleitores, como ausência de mandato imperativo ou recall. Contudo, para os fins deste artigo, estas consequências são menos importantes que a caracterização oferecida para entender a primeira aparição do governo representativo. O fundamental a reter é a consequência do trabalho de Bernard Manin para entender tanto o momento original, para a caracterização da ruptura política operada com o antigo regime, como também para o entendimento do processo de democratização. Mais especificamente, cabe retomar a história política da Inglaterra, França e Estados Unidos com novas lentes. O fim do governo hereditário não é seguido pela afirmação da igualdade política. Antes o contrário.

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O foco da análise do processo de democratização deve ser revisado. Importa menos quem pode votar do que quem pode ser votado. O governo representativo não pode ser interpretado como uma forma de governo protodemocrática,9 da qual teria brotado, por desdobramento interno, como uma evolução, a democracia moderna.10 Na origem, não há uma aposta democrática ou inclusiva. Os Pais Fundadores do governo representativo se movem na direção contrária, reafirmando e sustentando teoricamente a distribuição desigual das possibilidades de exercer o poder. A desigualdade política entre os membros da comunidade não se afirma apenas na restrição ao direito de voto. Ela é mais profunda. Na realidade, a extensão do direito de voto é menos relevante que a distinção quanto a quem pode exercer o poder. Não se trata, por certo, de equiparar todas as experiências históricas. O estudo de Bernard Manin chama atenção para a variação da combinação entre legal provisions, cultural norms, and practical factors para explicar os processos políticos específicos experimentados pela Inglaterra, França e Estados Unidos. O estudo de nossa história institucional sob esta perspectiva revelará, por certo, especificidades. Seja como for, porém, o fato é que a perspectiva interpretativa aberta pelo trabalho de Manin força uma revisão das noções estabelecidas sobre o ponto de partida trilhado pelos países ocidentais. Na origem, em qualquer lado do Atlântico e em qualquer hemisfério, temos uma afirmação explícita da desigualdade política. Tomar os regimes instaurados no século XIX pelo que vieram a se tornar no século XX é incorrer na falácia do determinismo retrospectivo (BENDIX, 1964, p.16). O desenvolvimento que estes regimes vieram a ter não era o esperado. Em muitos aspectos, as modernas democracias se baseiam em princípios e práticas não previstos pelos criadores do governo representativo. Entender o nascimento das modernas democracias, como estas se desenvolveram a partir do governo representativo, ocupa novamente posição de destaque na literatura comparada. Assim, a perspectiva inaugurada por Bernard Manin justifica uma releitura da experiên­cia brasileira com o governo representativo. No princípio, todos eram elitistas. O ponto de partida não é a afirmação da igualdade.

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Governo representativo e democratização O ponto de partida, portanto, é o governo representativo e não as revoluções burguesas e/ou afirmação da cidadania civil. Em lugar de tomar como dada a existência de experiências históricas divergentes, cuja constituição remontaria o momento da queda do Antigo Regime, passamos a ter uma origem comum. Mais que isto, um ponto de partida que não supõe ou contém em embrião a ideia da igualdade entre representantes e representados. A literatura latino-americana sequer cogita colocar a experiência política da região em pé de igualdade com a dos países da região temperada. A agenda de pesquisa sobre a história política da região é voltada para explicar seu desenvolvimento anômalo ou incompleto. No passado recente, a diferença dos resultados históricos era clara e evidente. A região era marcada pela instabilidade política e pelo autoritarismo. No presente, contudo, a divergência de resultados não é mais tão evidente. A cena política da região mudou radicalmente nos últimos tempos. A maioria dos países tem regimes democráticos que já deram provas de sua estabilidade. Ainda assim, persiste a ideia da inferioridade dos regimes políticos da região, cujas democracias seriam marcadas por um déficit de cidadania, cujo passivo teria começado a se acumular logo após a independência. A revisão de perspectiva proposta significa rejeitar a tese de que história política da Inglaterra e do Brasil, ou de forma mais geral, dos países avançados e dos atrasados, devam ser tratadas como duas realidades distintas.11 Posto de forma positiva: os problemas políticos enfrentados por Inglaterra e Brasil são da mesma ordem. Trata-se de implantar o governo representativo. As trajetórias, ao menos no momento de sua implantação, estão sobrepostas. Os problemas institucionais brasileiros não devem ser analisados como problemas enfrentados pela adaptação do governo representativo aos trópicos, a uma realidade social inóspita. A ideia de adaptação ou importação de ideias e instituições precisa ser questionada. Há problemas que são inerentes ao governo representativo e que se manifestam onde quer que ele tenha sido instaurado. Cabe entender a lógica do governo representativo e não a de governos liberais. A diferença é sutil, mas não sem consequências.

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A visão segundo a qual governos liberais precedem governos democráticos e que a diferença essencial entre um e outro é a restrição ao sufrágio que vigoraria no primeiro e não no segundo acaba por minimizar a ruptura entre governo representativo e a democracia contemporânea. Implicitamente, ao fazê-lo, os que adotam esta perspectiva acabam por negligenciar as características próprias do governo representativo identificadas por Manin. Regimes liberais são geralmente caracterizados como democracias em gestação, como se o problema por excelência com que se defrontariam fosse a regulação do direito do sufrágio. Nesta linha de argumentação, em última análise, a divergência entre a experiência política inglesa e a brasileira acaba por se resumir às atitudes das elites diante desse problema, às respostas divergentes que estas teriam dado à pressão pela extensão da igualdade política.12 Enquanto a Inglaterra estendeu o sufrágio, no Brasil o caminho tomado teria sido inverso. Tudo se passa como se somente nos trópicos as elites políticas tivessem explicitamente negado a igualdade política. A referência ao governo representativo altera o foco. Como discutido na seção precedente, as premissas sobre as quais se assenta esta forma de governo são manifestamente antidemocráticas. Os pais fundadores desta forma de governo não eram democratas. Não eram sequer protodemocratas. Eram declaradamente contrários à igualdade política. Vale voltar uma vez mais a Manin: eleição é um método de seleção de líderes não igualitário e sua adoção se deu com plena consciência desta característica. Sabia-se e valorizava-se o fato que nem todos teriam a mesma chance de exercer o poder. O exercício do poder ficaria reservado aos membros da elite. A restrição ao direito do voto, a defesa do voto censitário, não é, portanto, produto de uma inconsistência com o princípio fundamental da igualdade que, assim, seria eliminada naturalmente. Por revolucionária e radical que seja a afirmação da igualdade civil, esta não se estende naturalmente e necessariamente ao campo político. Benjamin Constant, ao fazer a célebre distinção entre a liberdade dos antigos e a dos modernos, estava justamente, como argumenta Rosanvallon (1999, p. 225), estabelecendo uma separação profunda entre a igualdade civil e política. Para os modernos, a segunda não decorreria da primeira. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

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Como afirma Rivera (2000, p. 31), o liberalismo das elites latino-americanas “não era mais contrário à democracia e à participação popular que o liberalismo dos pais da moderna república liberal”. Os regimes criados na Inglaterra, Estados Unidos e França não apenas se assentavam sobre sociedades altamente desiguais do ponto de vista social, como também supunham que esta mesma desigualdade guiasse a distribuição dos cargos de poder. Os regimes criados naqueles três países eram tão oligárquicos quanto seus pares latino-americanos. As divergências entre estes dois mundos, nos campos social e político, são menores que as convergências. Rivera (2000, p. 37) observa que não se deve assumir que o modelo do governo representativo tenha vindo ao mundo pronto e acabado, com respostas para todos os problemas com que viria a se defrontar. Mais do que isto: não se deve assumir que as falhas e inconsistências do modelo teriam se manifestado exclusivamente na América Latina.13 A implantação do modelo conviveu com os mesmos problemas nos dois lados do Atlântico e nos dois hemisférios. Desde o ponto de vista institucional, não cabe falar em divergência ou rotas. Há uma história comum, a da evolução e transformação do governo representativo. Uma história que é necessariamente turbulenta e errática em função das inconsistências do modelo original. O ponto de partida necessário, portanto, é uma caracterização mais acurada do governo representativo, de seus princípios e forma de funcionamento. Tomar a extensão do direito de voto aos mais pobres como o principal indicador, quando não o único, de democratização acaba por deixar em segundo plano as transformações radicais, verdadeiras rupturas, que marcaram o nascimento da moderna democracia. Dito de forma diversa: não se deve assumir que o único e o mais importante desafio institucional enfrentado pelo governo representativo em sua evolução tenha sido a extensão do sufrágio aos mais pobres. Não se pode assumir que os pais fundadores do governo representativo tenham sido capazes de antecipar todas as vicissitudes práticas com que o modelo que criaram viria a se defrontar. Na realidade, a incompletude do modelo não tardou a se manifestar. Como argumentou Hofstadter (1969), o modelo criado não tinha lugar para a constituição de uma oposição legítima ao governo. Não tinha lugar no sentido em que não era possível acomodar uma oposição legítima aos princípios do governo 112

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representativo identificados por Bernard Manin. Como afirma Hofstadter (1969, p. 8, tradução nossa): A ideia de uma legítima-oposição reconhecida, organizada e livre o suficiente em suas atividades para ser capaz de retirar do poder o governo em exercício, por meios pacíficos, é uma ideia imensamente sofisticada, e esta não era uma ideia que os Pais Fundadadores encontraram totalmente desenvolvida e pronta para ser aplicada quando eles começaram sua experiência com o constitucionalismo republicano em 1788.14

O reconhecimento de uma oposição legítima não se resume e, portanto, não deve ser confundido como o reconhecimento da liberdade da opinião pública identificada no modelo de Manin. Como observa Hofstadter (1969), a liberdade para a crítica política se encontrava firmemente estabelecida na experiência política inglesa e norte-americana, mas o que era chamado pelos ingleses de uma oposição formada – isto é, um grupo de oposição organizado e permanente, distinto de um indivíduo expressando a sua opinião dentro ou fora do parlamento – ainda ficava aquém da respeitabilidade, e na opinião de muitos recebia a mácula da deslealdade, subversão ou traição (HOFSTADTER, 1969, p. ix, tradução nossa).

Não é a liberdade individual que está em jogo. É algo mais complexo, como nota Hofstadter, mais sofisticado, que está em jogo. Vale observar que o autor está se referindo a uma oposição legítima, constitucional e responsável que pretende chegar ao poder por meios eleitorais. Por isto mesmo, a solução para esta dificuldade não se dá no campo dos valores ou ideais. Não se trata simplesmente de a oposição aderir à Constituição, aceitar as regras do jogo e visar chegar ao poder por meios eleitorais. Não é fácil assimilar uma oposição deste tipo. A história norte-americana, analisada por Hofstadter, prova-se crucial para o argumento, uma vez que a dificuldade desta aceitação se manifesta no interior da elite responsável pela elaboração e aprovação da Constituição. Ao longo do governo de John Adams (1796-1800), James Madison e Alexander Hamilton, que anos antes haviam colaborado na elaboração dos Federalists Papers, acabam em partidos opostos, o Republicano e o Federalista respectivamente. Enquanto Madison está entre os que acusam os federalistas de traidores da causa republicana, de defensores de um governo aristocrático alinhado com os interesses monarSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

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quistas da Inglaterra, Hamilton está entre os que acreditam que os republicanos não passariam de democratas extremados, verdadeiros jacobinos que, por isto mesmo, defendiam a França e a Revolução Francesa. Ou seja, cada um dos partidos nega legitimidade a outro, caracterizando-os como inimigos da ordem política vigente, verdadeiros traidores da pátria, representantes dos interesses estrangeiros. Tanto Madison quanto Hamilton, como deixaram claro nas páginas em que defenderam conjuntamente a ratificação da Constituição que haviam ajudado a elaborar, execravam os partidos políticos, mas isto não os impediu de participarem ativamente na criação de partidos políticos. O mais interessante no caso dos dois é que tenham liderado partidos diferentes. Jefferson, mesmo tendo afirmado em carta a Thomas Hopinkson que não iria aos céus se o preço a pagar fosse entrar em um partido,15 não hesitou em fundar um partido para entrar na Casa Branca. Como mostra Hofstadter (1969), a adaptação das ideias à realidade não foi fácil e tomou tempo. Como indica o mesmo autor, na realidade, esta aceitação nunca foi completa, justamente porque ela envolve um conflito com o princípio segundo o qual o critério para o exercício do poder é a qualificação do candidato e não sua fidelidade e pertencimento a um grupo político qualquer. Há, portanto, um conflito entre o princípio da distinção e o partidário. A aceitação da oposição responsável passa por uma questão prática e imediata, a saber, o tratamento dispensado pelo governo à oposição. Se os detentores do governo foram legitimamente eleitos, então como justificar a contestação de seus atos? Uma vez mais, cabe citar Hofstadter (1969, p. 87, tradução nossa): Aqueles que estão no poder tendem a pensar em si próprios não como membros de um partido que tomou o controle do governo, mas sim como o governo em si mesmo. Assim, a oposição é identificada como uma facção inteiramente destrutiva, como o antigoverno. Suas críticas das politicas adotadas são tomadas como críticas ao governo. Sua crítica a um governo particular é tomada como a crítica a todo e qualquer governo. É assim identificada a anarquia, subversão e deslealdade.

A oposição ao governo em exercício é naturalmente confundida com a oposição ao governo em si mesmo. A tendência a negar legitimidade aos partidos tem duas mãos. O governo tende a ver a oposição como 114

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subversiva tanto quanto a oposição questiona a integridade dos governantes. Os governantes, contudo, contam com uma vantagem evidente, uma vez que justamente por ser governo, controlam o aparato de repressão e podem definir os limites da ação da oposição. Os federalistas, por exemplo, aprovam em 1798, o Alien and Sediction Act, com base no qual restringem a ação legal da oposição. O seu objetivo era claro: perseguir e eliminar a oposição. Falharam, mas os seus sucessores, os republicanos, não. A ascensão de Jefferson ao poder em 1800 leva ao desaparecimento dos federalistas da cena política e a um longo período de governo unipartidário. Os princípios do governo representativo não preveem a emergência de eleições competitivas. Não deveriam ser e, em geral, não eram. Eleitores deveriam reconhecer os seus superiores. Campanhas e, mesmo, candidaturas prévias eram vistas como ilegítimas, quando não proibidas por medidas legais. Pedir votos seria dar prova de que o pretendente ao cargo não teria suas qualidades naturalmente reconhecidas pelos eleitores. Além disto, se candidatar, aspirar a um cargo público era dar mostras de ambição, de desejo de governar. Exercer um cargo público era visto como um encargo, um ônus que comportava colocar o interesse público acima do privado. Virtude era a característica exigida para o exercício do poder. Como afirma Hofstadter (1969, p. 47), referindo-se especificamente a Virgínia no período anterior à independência, “a sociedade colonial era uma sociedade estruturada com base na deferência (a deferential society) e assim também era com sua vida política”. A implicação para as eleições é que “no século XVIII, virginianos não eram eleitos em razão do grupo ao qual eram associados ou pelo que se propunham a fazer a respeito desta ou daquela questão, mas sim porque eles eram quem eram” (HOFSTADTER, 1969, p. 64). A deferência dos subordinados para com os socialmente superiores era a relação crucial sobre a qual se assentavam as expectativas sobre como as eleições deveriam funcionar. Nestes termos, é impossível dissociar o voto da submissão socialmente construída. Era justamente isto que se esperava do eleitor, que consentisse ser governado pelos seus superiores, que reconhecesse que o papel de governar cabia aos que se destacavam socialmente. O critério que eleitores deveriam usar ao votar não deveria ser político, mas sim social. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

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Competição eleitoral e partidos políticos não eram partes do modelo original. Mas, como todo cientista politico sabe, tenha ou não lido Schattschneider, a democracia foi criada pelos partidos e é impensável sem eles. A referência aos dois eixos da democratização identificados por Dahl é imediata. A presença de partidos que competem pelo poder, que buscam votos para chegar ao poder, está diretamente associada ao eixo da contestação. O fato é que a movimentação neste eixo tende a ser menos estudada e analisada do que a ampliação da participação. O processo de democratização acaba por ser identificado à ampliação da participação. Ainda assim, competição eleitoral é o elemento crucial em qualquer definição de democracia contemporânea. Democratização, portanto, não se resume a extensão do sufrágio. A dificuldade maior decorre da necessidade de encontrar uma fórmula institucional que regule a competição entre os partidos por votos. Trata-se de um desdobramento não previsto pela teoria. Uma dificuldade que se manifestou com a mesma força e intensidade nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Brasil, México e assim por diante. O fato é que os pais fundadores do governo tinham expectativas irrealistas sobre o funcionamento das eleições. Mas este irrealismo não diz respeito às expectativas quanto às relações entre superiores e subordinados. Como o caso norte-americano deixa claro, o problema se manifesta nas relações internas à elite. O conflito entre republicanos e federalistas se dá no interior da elite e não tem implicações diretas para a definição da cidadania política. Os líderes de ambos os grupos eram igualmente membros das elites. O que não estava previsto não era que os membros das elites não pudessem ter divergências entre si. O que não estava no mapa era que levassem suas divergências aos eleitores, que se organizassem para vencer eleições. Partidos eleitoralmente constituídos não poderiam existir. A informalidade que cercava o processo eleitoral garantia que a influên­ cia e o controle social exercidos pelos mais favorecidos se fizessem presentes na assembleia eleitoral. O processo eleitoral deveria funcionar como um momento em que os eleitores expressavam sua aquiescência para com os representantes, momentos de reafirmação da hierarquia social, momentos para expressão pública do consentimento da diferença. Por isto mesmo, como argumenta John Stuart Mill em Considerações sobre 116

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o governo representativo, cuja primeira edição é de 1861, não poderia ser secreto. Quando eleições funcionam de forma adequada, os mais capazes são eleitos. Contudo, a quem cabe o papel de julgar se as escolhas feitas foram corretas, se de fato os mais qualificados para o exercício do poder foram os escolhidos? Como vimos anteriormente, os republicanos, liderados por Tomas Jefferson e James Madison, acreditavam piamente que os federalistas não deveriam merecer a confiança do povo. Foram eleitos, foram distinguidos com a aprovação popular, mas não deveriam ter sido. Mas como explicar que as eleições tenham levado a escolhas equivocadas? Se o poder é conferido a homens destituídos da qualificação necessária, então o processo eleitoral necessariamente deve ter sido corrompido em algum ponto. Ou bem houve fraude (alteração dos resultados) ou bem o povo que participou do processo eleitoral não tinha as qualificações necessárias e, desta forma, pode ser corrompido por políticos inescrupulosos. Assim, o conflito entre as elites acaba por desaguar no debate acerca dos critérios para atribuir o direito do voto. Eleitores passíveis de ser objeto de corrupção devem ter seu direito de voto negado. As elites políticas, quando divididas, só têm uma forma de explicar o apoio eleitoral obtido por seus adversários: a corrupção, a influência ilegítima exercida por seus oponentes para granjear a simpatia e confiança popular. O conflito intraelite, portanto, remete necessariamente ao debate sobre os critérios empregados para definir o direito ao sufrágio. O eleitorado verdadeiramente qualificado seria aquele dotado da capacidade de distinguir entre os membros da elite econômica aqueles que são os verdadeiramente virtuosos. O eleitor que falha ao fazer esta distinção, que pauta suas escolhas por critério diverso, deve ter negado o direito ao sufrágio. O equívoco da sua escolha é prova da sua incapacidade. Neste modelo, vale insistir no ponto explorando suas consequências sobre outro ângulo, não há lugar para partidos que visem influir nas decisões dos eleitores. Fazer campanhas e procurar arregimentar eleitores contraria as normas que estruturam as relações representados-representantes. A superioridade que destaca o governante potencial tem que ser percebida naturalmente pelo eleitor. A relação esperada e legítima é a da deferência. Aquele que pede votos, que organiza eleitores para Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

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apoiá-lo, implicitamente, reconhece a insuficiência das suas qualificações, recorrendo à construção de um elo artificial entre representantes e representados. Fazer campanha, organizar um partido, é dar prova da motivação facciosa da empreitada, com toda a carga pejorativa que o termo carrega consigo. Obviamente, republicanos e federalistas acreditavam que contavam com os votos do eleitor capacitado e seus adversários, com o dos despreparados. A corrupção dos eleitores sempre é a arma a que recorrem os adversários, os ambiciosos, os que se movem pelos interesses parciais. Cada uma das partes acredita estar do lado certo, que seu grupo reúne os homens virtuosos, cujo apoio deriva da confiança e deferência entre as camadas inferiores. Ainda que a comparação não seja usual, o fato é que a natureza do conflito entre federalistas e republicanos é a mesma que se verifica entre conservadores e liberais nos primeiros anos do reinado de dom Pedro II após a derrubada do Gabinete da Maioridade pela intervenção do Poder Moderador. Os conservadores justificam a dissolução da Câmara eleita em 1840 como uma medida necessária para deter o “embate das facções”, antes que estas tenham produzido “irreparáveis estragos” ao sistema monárquico constitucional representativo, do qual seriam os defensores legítimos. A dissolução se impõe como uma defesa da ordem constitucional, porque A atual Câmara dos Deputados, Senhor, não tem a força moral indispensável para acreditar e fortalecer entre nós, o sistema representativo. Não pode representar a opinião do País porque a expressão da vontade nacional e das necessidades públicas somente a pode produzir a liberdade dos votos (JAVARI, 1989, p. 84).

Os liberais, de sua parte, em Representação enviada ao imperador pela Câmara Provincial de São Paulo, acusam o Gabinete no poder de “traidor”, que seus atos estariam pondo em risco a “paz do Império, a ordem e a tranquilidade da Província e até a segurança do Trono”. Os liberais sustentam que a Lei da Reforma do Código e a criação do Conselho de Estado seriam obras de uma Legislatura irregular, composta por uma “maioria vendida” e, por isto mesmo, em desacordo com a verdadeira “vontade nacional” (MARINHO, 1843, p. 307).

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Como se vê, cada um dos partidos acusava o outro de deslealdade e desrespeito à Constituição. Conservadores e liberais acreditam que representam a vontade nacional, que seriam os vencedores em uma eleição livre. Segue desta premissa que se derrotados, tal fato só pode ser explicado pelos expedientes escusos a que recorreram os vencedores. Os adversários são facciosos e, por isto, prontos a recorrer à corrupção para chegar ao poder. Ironicamente, no interior dos princípios do governo representativo, as influências que emergem de relações políticas, ditada pela disputa do poder, são vistas como ilegítimas. Os homens de partido se movem pela ambição, pelo desejo de exercer o poder e dele tirar vantagens para si e para seus seguidores. A influência legítima é aquela que é construída no campo social, anterior portanto à política. Como sustenta Bernard Manin (1997, p. 203): Eleições aparecem como reflexos e expressão de interações não-políticas. [...] Estes [os vínculos e interações] não são gerados pela competição política. Antes o contrário, estes laços constituem recursos preexistentes que políticos mobilizam em sua luta pelo poder. Representantes, obtiveram proeminência em suas comunidades em virtude de seu caráter, riqueza, ou ocupação. Eleições selecionam um tipo particular de elite: os notáveis. Governo representativo começou como o governo dos notáveis.

Considerações finais A análise da história política brasileira tende a ser reconstituída a partir do contraste com a história da Inglaterra, França e Estados Unidos. Em geral, o foco explicativo recai sobre as travas que impediram que o desenvolvimento das instituições democráticas seguisse o rumo tomado naqueles países. Trata-se de uma explicação calcada sobre o signo da ausência, incompletude, divergência ou anomalia. Em Nunes Leal, o contraste toma a forma da contraposição entre a forma corrompida e a íntegra do governo representativo. Nas explicações calcadas no modelo da expansão da cidadania, a ênfase recai sobre a resistência das elites brasileiras em aceitar ideário da igualdade fundamental entre os homens. Em ambos os casos, o modelo explicativo se baseia no contraste entre o real e o idealizado. As referências históricas aos casos de implantação

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plena da democracia são escassas e esquemáticas. Na realidade, o modelo das trajetórias divergentes se equivoca quanto ao ponto de partida da experiência política moderna. O ponto de partida é o governo representativo e a desigualdade politica que eleições supõem. Sua evolução, portanto, não pode ser traçada e apreendida pela extensão do sufrágio. A emergência dos partidos e das eleições competitivas marca o advento da democracia. O caminho não estava traçado de antemão e não foi simples e automático em nenhum lugar.

Notas 1 Este trabalho foi parcialmente financiado com recursos da Fapesp e do CNPq. 2 Para uma análise dos debates com ênfase no elitismo do liberalismo

brasileiro, ver Kinzo (1980). 3 Para uma revisão completa da evolução da legislação eleitoral brasileira, consultar Nicolau (2012). Para um questionamento da interpretação tradicional sobre a Lei Saraiva, ver Buescu (1981). 4 Ver Carvalho (2003), para uma generalização do argumento. 5 A falta de linearidade da expansão do direito ao voto nos Estados Unidos,

marcada por movimentos cíclicos de expansão e retração, é enfatizada por Keyssar (2000). O caso francês e suas inúmeras idas e vindas é o objeto de estudo de Rosanvallon (1999). Para uma revisão das interpretações sobre a expansão do sufrágio na Inglaterra, consultar Conacher (1971). 6 Os países citados como pertencendo ao Noroeste são os mesmos que trilharam a rota clássica de Barrington Moore Jr. 7 Manin apresenta uma caracterização mais complexa. São quatro os traços distintivos do governo representativo: seleção dos governantes por eleições dentro de intervalos regulares; independência relativa dos governantes diante dos eleitores; liberdade da opinião pública e o caráter público das decisões.

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8 Na Inglaterra, as normas e efeitos práticos contribuíam decisivamente para assegurar a distinção. Do ponto de vista prático pesavam os custos eleitorais que ficavam a cargo dos candidatos. 9 Wanderley Guilherme dos Santos (2013, p. 13) chama atenção para a ambiguidade que marca a análise dos governos oligárquicos, vistos ora como antidemocráticos ora como protodemocráticos. 10 Cabe observar: o termo democratização implica a suposição de um processo

evolutivo em que os sistemas políticos se tornam mais democráticos com o tempo. 11 A distinção países desenvolvidos/subdesenvolvidos caiu em desuso em

função de suas conotações evolucionistas. O tratamento em separado como duas realidades diversas persiste, dando lugar a verdadeiros malabarismos tipológicos para distinguir as trajetórias díspares. A América Latina pode ser mais facilmente delimitada, por critérios históricos e geográficos, que o grupo contrastante. Para não incorrer neste tipo de erro, optei por elencar os casos. Não é fácil encontrar um critério que coloque Inglaterra, França e Estados Unidos em um mesmo grupo. 12 Ter o direito ao voto não implica ter as mesmas chances de exercer o poder.

Esta a desigualdade fundamental implicada pela adoção do método eleitoral. A indistinção que caracterizaria a democracia, a igualdade entre súditos e soberanos não é obtida. Por isto mesmo, o sorteio é o método de seleção de líderes associada à democracia. 13 Rivera (2000) nota que a reconstituição da história político-institucional da

região, invariavelmente, atribui à realidade social inóspita todas as dificuldades e tropeços do governo representativo. O modelo institucional, assim, é absolvido, como se seus criadores tivessem formulado as respostas para todas as vicissitudes que enfrentaria. O modelo estaria pronto para ser aplicado. Se falha, a culpa é do usuário. O corolário desta visão é a ideia da transplantação. O modelo teria sido concebido tendo em vista uma realidade social diversa, mais igualitária, na qual, quando implantado, teria funcionado sem maiores problemas. 14 A tradução de todas as citações do trabalho de Hofstadter são minhas. 15 A passagem é a seguinte: “I never submitted the whole system of my

opinions to the creed of any party of men whatever, in religion, in philosophy, in politics, or in anything else, where I was capable of thinking for myself. Such an addiction is the last degradation of a free and moral agent. If I could not go to heaven but with a party, I would not go there at all.” Thomas Jefferson to Francis Hopkinson, in Writings of Thomas Jefferson, Memorial Editon, Lipscomb and Bergh Editors, Washington DC, Vol. 7 pag 300.

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