\"GRAÇAS A DEUS\": Análise do discurso providencialista de Cristóvão Colombo nos diários da descoberta da América.

July 7, 2017 | Autor: Barbara Lima | Categoria: Historia Da America
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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E RELAÇÃOES INTERNACIONAIS

BARBARA CARINA LIMA DA SILVA

“GRAÇAS A DEUS”: ANÁLISE DO DISCURSO PROVIDENCIALISTA DE CRISTÓVÃO COLOMBO NOS DIÁRIOS DA DESCOBERTA DA AMÉRICA.

SEROPÉDICA 2014

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O trabalho desenvolvido a seguir abrange uma breve análise do discurso providencialista encontrado nos escritos de Cristóvão Colombo em seus Diários da descoberta da América. É levada em consideração na análise a produção do primeiro diário das viagens feita por Bartolomé de Las Casas1, entendendo assim que a estruturação da narrativa se diferencia dentre os escritos da primeira viagem e as demais, assim como a visão providencialista apresentada nas mesmas. O interesse pela presença do providencialismo2 surge a partir das narrativas de Colombo e Las Casas, nos quais é possível observar a constante ‘necessidade’ de atribuir crédito aos acontecimentos das viagens a figura do divino. Na leitura da fonte encontram-se expressões como “Graças a Deus” e “Nosso senhor” (esta com a intenção de demonstrar que os acontecimentos ocorreram em permissão do mesmo) e a palavra “Deus” também é utilizada diversas vezes, algo que pode ser encarado como algo comum da época visto que a transição entre Idades Média e Moderna estava acontecendo gradualmente e figuras como Colombo e Las Casas eram ‘homens de Deus’, assim como outros cronistas contemporâneos aos mesmos que tinham intrínsecos aos seus escritos a menção ao Deus que serviam. Durante a leitura da fonte surgiu o questionamento “por que a narrativa tem essa perspectiva providencialista?”. Esta pergunta será a norteadora deste trabalho onde irei desenvolver, através da análise da fonte, de historiografia e outras fontes primárias, um diálogo dentre as mesmas para apresentar os motivos nos quais Colombo e Las Casas utilizaram desse tipo de discurso. Ao final desta análise espera-se obter um maior entendimento da narrativa dos autores dos diários, assim como compreender, a partir daí, o contexto histórico religioso no qual esses homens estavam inseridos e as influências teológicas e filosóficas expostas em seus textos. Uma vez observadas estas particularidades no texto, foram buscados norteadores que embasassem a afirmativa de que tais fragmentos de narrativa continham traços providencialistas. Para o conceito “providencialismo" foi encontrada a definição da Universidad Nacional Autónoma de México, em seu Diccionario de Filosofía Latinoamericana3, o qual direcionará, a princípio, o entendimento do mesmo aplicado aos escritos: El providencialismo tiene su fundamento en la presentación del suceder histórico como un proceso lineal desde un origen a una meta, normalmente situada en tiempo futuro; idea que procede de la Biblia y que tiene un fuerte contenido teológico. De ahí fue tomada por el Cristianismo que, a partir de Agustín de Hipona, la desarrolló en forma de providencialismo histórico”: el hombre, desde una situación de profunda miseria, a causa del pecado que 1

Las Casas: Sevilha 1474 – Madrid 1566, foi um cronista, teólogo, padre dominicano, defensor dos índios que participou da segunda viagem de Colombo a América. 2 Sistema dos que tudo atribuem à ação da providência divina: Santo Agostinho e Bossuet tomavam Deus como o ponto de convergência de toda a atividade social, continuando-se a sua doutrina teológica no providencialismo dos metafísicos. Disponível em: Acesso em: 20 de Out. de 2014 3 Verbete: Providencialismo. Disponível em: Acesso em: 20 de Out. de 2014

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le dañó en su naturaleza, avanza, guiado y custodiado por Dios hacia el Reino de Dios, que ni siquiera es de este mundo, según la fe cristiana (en otras palabras, es la historia de la salvación).

Como dito na citação acima, temos como referencial para este conceito em Santo Agostinho de Hipona4 que, em sua obra ‘Cidade de Deus’, apresenta um enredo da história humana movida pela providência divina5. O entendimento religioso a partir do providencialismo se pauta numa linearidade de acontecimentos que começa na queda da humanidade, no Jardim do Éden, e finda no Juízo Final6, tendo Deus como protagonista e responsável por todos os acontecimentos ocorridos dentre estes dois pontos. Ao observar o discurso de Santo Agostinho, é possível responder ao questionamento feito no início desse texto sobre o discurso utilizado por Colombo e Las Casas. Os escritos de Santo Agostinho vieram muito antes da produção dos diários aqui analisados, logo, pode-se dizer que a narrativa na fonte é produto de uma herança de escritas teológicas com fortes ideias providencialistas. Para ilustrar esta afirmativa dentro da narrativa de Colombo podemos utilizar de um relato do mesmo que teria ocorrido como uma espécie de revelação divina na qual o Almirante ouve uma voz que diz “Não tenhas medo; confia; todas estas atribulações estão escritas em pedra de mármore e não sem motivo.”7. Ou seja, a partir dessa mensagem revelada a Colombo entende-se que as tormentas e as vitórias atribuídas às suas viagens tem um direcionamento divino e, em consequência disso, deve-se dar graças a Deus. O que nos leva também à ideia de Agostinho, que: “(...) a Providência pode ser usada tanto para castigo dos ímpios, como provação para os justos, sendo que os a diferença reside no estado final de ambas as classes de pessoas: os ímpios são castigados para a condenação, os justos, para um futuro glorioso.”8

Seguindo o raciocínio de que a provação guia o justo a uma vitória futura, é possível encontrar essa intenção de que não somente a salvação no fim dos tempos seria o “futuro glorioso”, mas, para Colombo, a conquista das Índias ilustrava bem essa ideia de provisão divina que o faria passar por momentos difíceis no mar, porém, tais provações levariam ao seu desejado destino. Sobre o fragmento que trata mais especificamente sobre uma “promessa de terra” feita pelo divino a Colombo falaremos mais a seguir. 4

Santo Agostinho de Hipona foi bispo e doutor da Igreja (354-430), autor de obras de referência para Igreja e estudiosos de teologia e patrística como “Confissões”, sua biografia e “Cidade de Deus”. Fonte: SGARBOSSA, Mario. Os Santos e Beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente. 3 ed. 2012. p. 732. 5 SOUZA NETO, José de Maria G. de; SOUZA, Juarlyson Jhones Santos de. Santo Agostinho: Enredo histórico e providencialismo. Revista de Teologia e Ciências da Religião da UNICAP. Paraíba. V. 1 N.1. p. 81. 2011. 6 BASCHET, Jerome. A Civilização Feudal: do ano mil a colonização da América. São Paulo: Editora Globo. 2006. 7 COLOMBO, Cristóvão. Diários da Descoberta da América. Porto Alegre. L&PM. 1991. 236 p. Coleção L&PM Pocket. (Grifo nosso) 8 SOUZA NETO, José de Maria G. de Souza; SOUZA, Juarlyson Jhones Santos de. Op. cit. p.81.

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Há nuances muito aparentes nos diários que caracterizam diferentes formas nas quais esse providencialismo é exposto. Por exemplo, na primeira viagem, onde temos a narrativa de Las Casas, vemos a predominância da expressão “Graças a Deus”, onde são dadas graças até mesmo pelos danos sofridos e desventuras durante a navegação. O norteador de fé dos homens que navegavam durante esse período estava ainda muito ligado ao imaginário medieval cristão, formado por personalidades como o próprio Santo Agostinho já citado anteriormente, em que se justificava tudo através da ‘vontade de deus’. Já nos outros diários vemos ainda a presença da ‘necessidade’ de ter essa ligação terrena x divino, mas não na forma da expressão utilizada por Las Casas. Agora Colombo transcreve os acontecimentos creditando a Deus as bonanças e provações passadas. São nesses escritos que podemos observar a presença da expressão “Nosso Senhor”, que tem como objetivo ilustrar a intervenção do divino como fator decisório e indispensável. A escolha dos autores para expressar literariamente esse providencialismo, utilizando-se de “Graças a Deus” e “Nosso Senhor”, fica evidente e é possível, desse ponto, também perceber a diferença de narrativa entre um e outro. Porém, vemos isso de forma muito mais clara durante as descrições da quarta viagem do Almirante (1502-04). Logo nos primeiros parágrafos de sua Carta aos Reis Católicos temos a frase “(...) Nosso Senhor os coloca à minha frente quando lhe imploro.”9 Nesta citação podemos analisar também não somente a ideia de Deus como centro e provedor dos dias e dos acontecimentos, mas também que o mesmo proveria a eles em momentos de tribulação, mostrando, assim, que ajudaria ao justo quando necessário. Para conectarmos as narrativas apresentadas à influência dos teólogos e filósofos da religião é possível fazer uma análise comparativa de fragmentos encontrados em textos de Santo Agostinho de Hipona em sua obra Cidade de Deus e dos escritos dos Diários como apresentado a seguir: “Quem lhes assombrou, freou, admiravelmente abrandou as mentes assim truculentas e ferozes foi Ele [Deus], que por boca do profeta há longo tempo dissera: (...)”10 e “Quem é de ser, é Deus, pela boca do profeta no décimo quarto salmo, quem diz: (...)”.11. Então, vemos que, em ambos os discursos, Deus se faz presente para interferir em algo, provendo de sua presença e do acontecimento que ali se julga necessário acontecer. Reforçando ainda mais a ideia de uma narrativa providencialista em Colombo. O providencialismo é aplicado nos mais diversos aspectos dessas narrativas náuticas. Ainda em análise do último diário vemos que o mesmo agradece por um naufrágio evitado, pelas terras conquistas e até mesmo por uma navegação vantajosa como na passagem “(...) e ali Nosso Senhor me concedeu vento e corrente propícios.”12

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COLOMBO, Cristóvão. Diários da Descoberta da América. Porto Alegre. L&PM. 1991. p.195. Coleção L&PM Pocket. 10 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. 9. ed. Trad. de Oscar Paes Lemes. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2006. 11 COLOMBO, Cristóvão. Op. Cit. p. 236.. (Grifo nosso) 12 COLOMBO, Cristóvão. Diários da Descoberta da América. Porto Alegre. L&PM. 1991. Coleção L&PM Pocket. p. 196.

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Retomando a revelação em sonho tida por Colombo podemos observar pontos ainda mais claros que expõem a vontade divina na atuação do Almirante, como em: “(...) Que foi ele que fez por Moisés ou por Davi seu súdito? (...) fez teu nome ressoar maravilhosamente pela terra toda. As Índias, que constituem partes tão ricas do mundo, deu para que fossem tuas.(...)” 13

Ou seja, de toda a análise da fonte encontramos a máxima de Colombo nesse breve texto, que mostra a conquista das “Índias” como uma dádiva concedida pelo divino, legitimando ainda mais a ideia de uma história que corre de acordo com a vontade de Deus e tira do tempo e da constituição do mesmo a imagem da deusa da Fortuna, que tinha o destino como imprevisível, alocando no lugar a provisão do deus cristão como a regente de toda a vida. Através das análises desses trechos, do conjunto da obra e do diálogo feito com os autores que abordam essa temática é possível afirmar que nas narrativas dos Diários da Descoberta da América existe a presença providencialismo, fruto de uma herança de narrativas teológicas de autores como Santo Agostinho de Hipona, em vias de agradecer e reconhecer durante os escritos à interferência divina dos acontecimentos terrenos nos períodos de navegação feitos por Colombo.

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COLOMBO, Cristóvão. Diários da Descoberta da América. Porto Alegre. L&PM. 1991. Coleção L&PM Pocket. p. 200.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. 9. ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2006. BRAGA, Teófilo. Sistema de Sociologia. p. 92, ed. 1884. Disponível em: Acessado em: 20 de Outubro de 2014. BASCHET, Jerome. A Civilização Feudal: do ano mil a colonização da América. São Paulo: Editora Globo. 2006. COLOMBO, Cristóvão. Diários da Descoberta da América: As quatro viagens e o testamento. Porto Alegre. L&PM. 1991. 236 p. Coleção L&PM Pocket. GUERRA, François-Xavier (org.) Mémoires en Devenir. Amérique latine XVIe-XXe siècle. Trad. Jaime Almeida. Bordeaux: Maison des Pays Ibériques, 1994, p. 9-27. NETO, José de Maria G. de Souza; SOUZA, Juarlyson Jhones Santos de. Santo Agostinho: Enredo histórico e providencialismo. Revista de Teologia e Ciências da Religião da UNICAP. Paraíba. v. 1 n.1. 2011. Disponível em: Acesso em: 20 de Out. de 2014 SGARBOSSA, Mario. Os Santos e Beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente. 3 ed. Ed. Paulinas. 2012. 732 p. Acesso em: 20 de Out. de 2014

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