Gramática Culinária em espaços bilingues: breve análise do caso colombiano em UNILA

June 19, 2017 | Autor: I. Henrique Vieira | Categoria: Antropología, Antropologia Da Alimentação
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  Ivanildo Henrique Vieira  Antropologia da Alimentação    Gramática Culinária em espaços bilingues:   breve análise do caso colombiano em UNILA   

Eu  acabo  de  chegar  a  Universidade  Federal  da  Integração  Latinoamericana  –  UNILA, o ano é 2012. Uma de minhas primeiras refeições na moradia estudantil  da  UNILA  que  viria  a  ser  conhecida  como  a  Quebrada  do  Guevara,  estou  almoçando,  a  refeição  está  servida  na  parte  côncava  da  tampa  de  uma panela  improvisada  como  um  prato,  a  comida  é  agarrada  com  a  mão  em  bocados  desajeitados,  essa  situação  se  deve  pela  falta  de  talheres  suficientes  para  todos  os  moradores  que  recém  chegados  como  eu  e  mesmo  a  tampa  de  panela  empregada  como um prato é dividida. Assim começou meu contato com  as “comidas estrangeiras”, e em especial com a comida colombiana.  Apesar  de  eu  nunca  ter  comido  muitas comidas ​ exóticas1, essa experiência me  marcaria  e  afetaria  por  algum  tempo,  pois  eu,  quando  morava  com  meus  pais 

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Uso aqui o adjetivo exótica por falta de uma nomenclatura melhor, mas sem nenhum tipo de  referencia a comidas típicas de quaisquer comunidades ou grupos étnicos. Entenda‐se aqui comida  exótica como toda aquela que, no senso comum de um morador de uma cidade do interior do  Paraná, não é uma comida ´´normal´´ ou comida do dia a dia mas sim de comida diferente,  estrangeira... em resumo, não cotidiana. 

sequer  aceitava  comer  no  mesmo  prato  que  minhas  irmãs,  e  ali  naquele  momento  estava  comendo  com  as  mãos,  uma  comida  preparada  em  um  mutirão  de  pessoas  de  diferentes  nacionalidades,  dividindo  uma  tampa  de  panela com um ecuatoriano indígena da Amazônia.  Partindo  desse  arsenal  de  informações  coletadas  em  pelo  menos  três  anos  de  relação  mais  ou  menos  direta  (sendo  esses  dois  últimos  anos  convivendo  na  mesma  casa)  com estudantes colombianos que possuem residência em Foz do  Iguaçu  ­  Brasil  tentarei  analisar  aqui,  aquilo  que  Claude  Fischler  conceitualiza  em  seu  livro  ​ “El  (h)omnívoro.  El  gusto,  la  cocina  y  el  cuerpo”2  (1995),  ​ como  gramática culinária​  ou ​ cocina​ :   ​ “Se  define  habitualmente  la  cocina  como  un  conjunto  de  ingredientes  y  de  técnicas  utilizadas  en  la  preparación  de  la  comida.  Pero  se  puede  entender  «cocina»  en  un  sentido  diferente,  más  amplio  y  más  específico  a  la  vez:  representaciones,  creencias  y  prácticas  que  están  asociadas  a  ella  y  que  comparten  los  individuos  que  forman  parte  de  una  cultura  o  de  un  grupo  en  el  interior  de  esta  cultura.  Cada  cultura  posee  una  cocina  específica  que  implica  clasificaciones,  taxonomías  particulares  y  un  conjunto  complejo  de  reglas  que  atienden  no  sólo  a  la  preparación  y combinación de alimentos,  sino  también  a  su  cosecha  y  a  su  consumo.  Posee  igualmente  significaciones que están  en  dependencia  estrecha  de  la  manera  como  se  aplican  las  reglas  culinarias.  Para  retomar  la  analogía  con  el  lenguaje,  se  suele  decir  que  así  como  los  errores  gramaticales  pueden  alterar  o  anular  el  sentido,  los  errores  de  «gramática  culinaria»  pueden entrañar impropiedades inquietantes para el comensal.”  Sobre  este  conceito  bastante  abrangente  de  gramática  culinária  o  autor  toma  em  consideração  três  elementos  principais  da  alimentação  para  focalizar  as  suas  análises:  o  fundo  de cozimento, o fundo de especiarias ou condimentação  e a comensabilidade.  

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 Essa é a tradução de Mario Merlino para o espanhol pela ​ Editorial Anagrama, Barcelona, 1995.  A edição original é intitulada  ​ L’homnivore, Editions Odile Jacob, Paris, 1990 

 

Quando  fala  de  fundo  de  cocção  (ou  cozimento)  Fischler nos apresenta a ideia  de  que  todo  alimento,  muito  antes  de  ser  consumido  é  dotado  de  valor  enquanto  ​ comida  possível  dentro  de  uma  possibilidade  muito  maior  de  comestíveis  em  determinado  contexto geográfico, climático e histórico. No caso  de  interdições  nascem  os  tabus alimentares, os tabus, segundo aponta o autor,  necessitam  primeiro  serem  reconhecido  como  efetivamente  ​ comestível​ ,  caso  contrário  o  interdito  não  seria  necessário.  Este  primeiro  item,  além  daquela  divisão  prévia  do  que  ​ pode  ser  comido,  inclui  todos  os  procedimentos  necessários  para  o  consumo  dos  alimentos  tais  quais  os  processos  de  descasque, cocção, abafamento, defumação, fritura, resfriamento…  Nessa  perspectiva  em  minha  pesquisa,  pude  constatar  que  uma  das  primeiras  dificuldades  para  os  estudantes  colombianos  ao  tratar  de  reproduzir  sua  gramática  culinária  em  terras  brasileiras,  era  o  fato  de  que  eles  não  tinham  a  sua  disposição  elementos  considerados  comuns  e de fácil acesso na Colômbia  e que não o são por estes lados.   A  ​ Harina  P.A.N.3  é  uma  farinha  de  milho  pré­cozida  muito  comum  nos  mercados  colombianos,  mas não é facilmente encontrada no Brasil e quando é,  custa  absurdos  em  relação  a  outras  farinhas  nacionais.  Talvez  por  isso  todas  as  vezes  em  que  questionei  qual  a  comida  que  os  estudantes  mais  sentiam  falta  por  aqui  a  arepa  apareceu  como  a  principal.  A  arepa  colombiana4,  um 

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 Apesar de ​ Harina P.A.N.​  se tratar de uma marca venezuelana de farinha de milho pré­cozida e  não de um tipo propriamente dito de farinha, ela é citada sempre dessa forma pelos  interlocutores, provavelmente por se tratar da primeira grande marca a industrializar tal farinha e  distribuir em grande escala, atingindo o mercado nacional e o internacional no caso da exportação  para a Colombia.  4  Arepa é um prato de massa feita de  farinha de milho, ovos,água e sal assada, frita ou  defumada em formato de pequenas tortillas recheadas ou não. Faço aqui a distinção entre a  arepa colombiana em contraposição a arepa venezuelana, pois apesar de ambas possuírem o  mesmo produto base (farinha de milho) e praticamente o mesmo modo de fabricação, as arepas  colombianas são geralmente mais achatadas e brancas e (ao menos aparentemente), admitem  uma gama menos variada de recheios, enquanto aquelas produzidas na Venezuela são ​ amarillas  y más gorditas​  e envolvem um espectro mais amplo de recheios e sabores incluindo doces,  salgados, carnes, queijos, geléias... Sobre a origem da ​ “arepa verdadeira” (se é que exista)​  não  existe nenhum consenso sobre o local exato, apesar de ser inegável o consumo de arepas no  período pré­colombino em toda aquela região. 

 

prato  típico  e  comum  a  toda  a  nação  colombiana,  não  pode  ser  reproduzida  materialmente pela ausência do produto base, a saber, harina pan.  Partindo  dessa  única  prerrogativa,  a  gramática  culinária  colombiana  ficaria  impedida  de  ser  executada  nas  ​ terras  brasilis​ ,  então  como  seria  possível  que  eu  tenha  experimentado  a  arepa  colombiana  em  Foz  do  Iguaçu  sem  que  ninguém  tenha  importado  a  famosa  ​ Harina  P.A.N.  venezuelana?  Aqui  eu  parto  da  hipótese  de  adaptação  e/ou  reinterpretação  e/ou  re­invenção  das  regras  gastronômicas.  Fui  convidado  a  participar  de  um  pequena  reunião  de  estudantes  colombianos  que  iriam  tratar  de  fazer  uma  ´´noite  da  comida  típica  colombiana´´  por  terem  encontrado  no  mercado  o  chamado  ​ plátano  ​ (banana da terra) ainda verde, que  é  a  época  em  que  tal  fruta  é  usada  na  culinária  colombiana.  Nessa  noite  iriam  testar  uma  possível  arepa  abrasileirada, se assim pode­se dizer,além de outras  receitas.  A  primeira  mudança  observada  em  relação  a  ´´arepa  à brasileña´´ que comi foi  essencialmente  qualitativa,  me  alertaram  os  interlocutores  e  executores  da  receita.  Como  a  harina  pan  verdadeira  é  pré­cozida  eles  afirmam  que  nossa  farinha  de milho é de qualidade inferior aquela, e que por tal motivo haveria que  adaptar  a  receita,  encontrar  as  porcentagens  corretas  do  fubá  mimoso  (ou  polentina  em  alguns  casos)  que  é  a  nossa  farinha  de  milho  mais parecida com  aquela supracitada.   Uma  vez  encontrada  a  divina  proporção entre a farinha de milho, os ovos, o sal  e  a  água  necessária  para  uma  boa  massa  de  arepa,  um  elemento  que  irá  garantir  a  qualidade  final  do  produto  é  o  recheio.  Geralmente  com  recheio  pouco  volumoso,  as  arepas  colombianas  são  caracterizadas  pela  espessura  slim  da  massa  o  que  as  torna  mais  leves  e  saborosas  ­  que  fique  claro  ­  segundo  os  mesmos  colombianos  ao  fazerem  comparações  com  os  pratos  similares produzidos na Venezuela. 

 

Nesse  momento  uma das garotas colombianas que estava ajudando a preparar  as  arepas  exclama  ​ “Tenian  que  ser  rolos5,  para  hacer  unas  arepas  tan  sin  relleno  así”  ao  observar  que  o  ´´padrão´´  adotado  para  as  arepas  seria  aquele  praticado  na  capital  do  país.  Em  Bucaramanga,  cidade  de  onde  a  garota  provém,  existe  o  costume  segundo  ela  de  se  prepararem  arepas  muito  mais  recheadas,  fato  atestado também por outros estudantes, provenientes de Cali e  de  Cartagena.  Para  além  disso,  após  alguns  debates  concluiu­se  que  a  Colômbia  possui  uma  enorme  variedade  de arepas, enquanto na Venezuela só  haveria poucas variações.    O  segundo  elemento  tomado  por  Claude  Fischler  é  o  do  fundo  de especiarias  ou de condimentação se trataria dos procedimentos executados com o alimento  para  coagi­lo  a  ter  um  sabor diferente, são os saborizadores e condimentos em  geral  e  os  subprocessos  envolvidos  neles  como  a  moeção  dos  grãos  de  pimenta  do  reino  no  ato  de  apimentar  algum  alimento,  por  exemplo.  Para  o  autor  este  seria  o  elemento  mais  facilmente  identificável,  sendo  portanto  um  sinal  diferenciador  para  se  reconhecer  os  “gostos  culturais”  entre  as  diferentes  gramaticas culinárias.  Quando  as  arepas  ficaram  prontas,  começou­se  a  produzir  os  diferentes  recheios.  E  muito  se  falava  sobre  ​ los  condimientos  ​ de  las  salsas  colombianas​ .  Novamente  iniciou­se  outro  debate  sobre  quais  das  regiões  colombianas  produzia  o  ´´verdadeiro  melhor  recheio´´  salgado  ou  doce,  eventualmente  ganha  o  salgado,  mas  qual  salgado?  carne?  frango?  queijo  é  salgado?  Interessante  pensar  que  na  ausência  de  muitos  condimentos  tradicionalmente  utilizados  na  Colômbia,  mas  inexistentes  aqui,  os  indivíduos,  primeiro  mantenham  esses  nomes  e  combinações  de  especiarias  para  determinado  recheio,  e  em  segundo  lugar,  existe  toda  uma  apropriação  de  outros  condimentos,  conhecidos  por  aqui  ou  re­interpretados,  como  os  ´temperos 

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 ​ Rolo​  é uma gíria comumente usada pelos moradores do interior da Colombia para se referir  pejorativamente aos moradores da cidade de Bogotá, os quais acusam de serem “​ unos creídos,  unos chetos ​ (almofadinhas, mauricinhos)​  porque viven en la Capital, ¡uy si, uy sí!” 

 

bahianos´  comprados  em  saquinhos  no  mercado  o  qual  dizem  ser  bastante  similar a um usado na Colômbia.  O  último  espectro  de  análise  proposto  por  Fischler  é  o  da  comensalidade.  Entendido  em  um  horizonte  bem  mais  amplo  do  que  o  simples  ´´compartilhamento  de  uma  mesa´´  (dai  ​ com​ ­​ mensalis)​ ,  o  autor argumenta que  todo  o  ritual  envolvido  na  apresentação,  empratamento  e  degustação  do  alimento  faz  parte  daquilo  chamado  comensalidade,,  além  das  normas  de  etiqueta  diante  de  cada  contexto  culinário  especifico.  Comensal  do  francês  commensal  e  este  do  latim  ​ commensalis  são  todos  aqueles  que  dividem  a  mesa,  compartilham  a  refeição  e  preferencialmente,  o  mesmo sistema de bons  modos à mesa, etiqueta…   É  farta  a  bibliografia  que  trata  entre  as  relações  de  parentesco  criadas  a  partir  de  relações  de  comensalismo,  neste  sentido  sou  inclinado  a  acatar  algumas  dessas  posições.  O  ato  de  compartilhar  a  mesa,  a  preparação  e  a  comida  em  si,  é  realmente  impactante  produzindo  interações  sociais  profundas,  uma  vez  que  tudo  o  que  produzimos  leva  um  pouco  de  nós  e,  se  nós  somos  o  que  comemos,  quando  comemos  algo  que  alguém  produz  carregamos  implicitamente (ou aceitmos carregar) um pouco desse alguém em nós.      Bibliografia:   FISCHLER,  Claude.  ​ El  (h)omnívoro.  El  gusto,  la  cocina  y  el  cuerpo​ .  Editorial  Anagrama, Barcelona, 1995.  ________________.  Gastro­nomía  y  gastro­anomía.  Sabiduría  del  cuerpo  y  crisis biocultural de la alimentación moderna​ . Gazeta de Antropologia, 2010.  disponível 

em 

 

acesso 1 de julho de 2015. 

 

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