Gramática da Gravura

July 8, 2017 | Autor: Rozélia Medeiros | Categoria: Gravuras, Semiotica Visual
Share Embed


Descrição do Produto

Gramática da Gravura Rozélia Medeiros – [email protected] Resumo: pequeno ensaio sobre relações entre os conceitos de especular, signo, hábito, imagem, gravura, rizoma, platôs, na visão de Perniola, Deleuze e Peirce, inspirados na leitura de dois contos, um de Guimarães Rosa e outro de Machado de Assis, que tem no Espelho o tema em comum. Palavras-chave: Gravura, imagem, signo, espelho, Perniola, Deleuze e Peirce.

Da leitura cruzada, mas também em paralelo dos dois contos – Espelhos, de Guimarães Rosa e de Machado de Assis, e rebatida no pensamento ritual, da forma de Mamúrio em Perniola e clivada nos conceitos - sistemas semióticos de Peirce, além de que tudo isto à luz fantasmagórica da virtualidade especular e rebatida no real da invenção de Morel de Bioy Casares nasce - como não poderia deixar de ser, uma pequena „batata‟, tubérculo rizomatoso deleuziano. Estas linhas de pensamento em aparente paradoxo parecem propiciar o surgimento de pequenas „plataformas‟ de relações flutuantes, como num filme antigo do super-herói intergaláctico Buck Rogers, micro efeito-platô ao modo da escritura de Deleuze.

Parece que este jogo conceitual de espelhos, onde cada conceito, que se pode extrair da visão de cada autor mencionado, reflete um ao outro, em continuidade multifacetada, desvelando o fundo infinito para onde, em conjunto, apontam. Desde o mito de Narciso, a idéia é de que, quando se olha para o espelhado olha-se para o infinito de si mesmo, e o que se enxerga é o anteparo da aparência. Nela e dela se pode morrer ou nela está o início. A aparência é o primeiro modo semiótico do fenômeno. Aparência é Imagem. Como anteparo, uma imagem – aparência carreia a ideia de algo que se interrompe, pára e rompe um fluxo contínuo, e isto não parece instintivamente correto para descrever um espelho. Na imagem especular o espaço-tempo se propaga, engolindo tudo o que, impotente, se põe diante dele. Imagem é Gravura.

Quando de alguma maneira se captura um momento desse fluxo, faz-se um registro, uma gravação, se foto grava, um novo fenômeno se manifesta, com novas características, e a partir dele novas relações podem ser estabelecidas. Novos conceitos concorrem para novos entendimentos. Por exemplo, uma fotografia, uma gravura, um desenho possui

algumas características da imagem especular e outras bem diferentes, até mesmo, opostas, e ainda outras recuperadas em novo patamar.

Segundo a tipologia de Mitchell citado por Santaella e Nöeth (2005:36) estaríamos transitando das imagens óticas, espelhos, projeções, sombras, para o universo das imagens gráficas, pinturas, desenhos, esculturas, e acrescentamos gravuras, nas quais a repetição e a reprodutibilidade, a atualização de uma lei, surgem como um elemento a mais de aproximação com o conceito de espelho, matriz e cópia, portanto protótipo e não apenas tipo.

Pode-se, a partir dessa percepção, pensar a hipótese de uma gramática própria da gravura. Gramática no sentido lógico-semiótico, onde se especula sobre um modo „correto‟ de pensar uma imagem gravada, produzir, analisar, contextualizar em termos, artísticos, filosóficos, etc. Será possível produzir textos puramente imagéticos? De isso depreender uma gramática? Daí surgirem linguagem e metalinguagem?

O espelho do banheiro. Uma gravura é diferente de uma fotografia, que por outro lado não deixa de ser uma forma de gravar, e é diferente de um espelho, no entanto existem propriedades em comum. Dessas triangulações talvez se possa chegar num modus operandis de análise para extrair valores gerais que viriam a constituir algum tipo de gramática.

Logo no início de Arte e Ilusão de Gombrich, a propósito de tratar de um caso simples de ilusão, que são algumas ilusões de ótica corriqueiras, e logo depois de ilustrar com seu já patocoelho, que por sinal é um „espelhamento‟, propõe a experiência de logo após sair do banho, postemo-nos diante do espelho embaçado e a seguir desenhemos com o dedo o contorno da cabeça.

Nisso se verifica facilmente que a imagem „gravada‟ na superfície embaçada é cerca de metade do tamanho da cabeça real. Função espelho  função fotográfica + função gráfica. A distância focal, ou a profundidade de campo do espelho atua da mesma forma da fotográfica, e, portanto a imagem não se forma na superfície; já o registro gráfico produzido pelo dedo na película de vapor, segue o princípio da gravação e rebate a profundidade no plano, reduzindo a dimensão real da figura. Arte e Ilusão? Não, Realidade.

Qual é a importância, tanto para produtores, disseminadores, quanto para todos nós os mortais receptores, engolidores de imagens, cogitar sobre estas questões? Ao menos em dois sentidos: como coautores da contemporaneidade temos a necessidade de estar capacitados para lidar com este momento histórico do trânsito da prevalência do verbal, do logocentrismo ocidental para os processos de interação imagética, propiciados e proeminentes, na massificação da informação verbi-voco-visual da nossa experiência diária. Por outro lado, como artistas e todos os demais responsáveis proativos de imagens tem-se a necessidade e dever de buscar linhas de força evolutivas nessas realizações, contribuir para a evolução, mesmo que de forma assintótica, para a melhoria da vida de nossa espécie, em todas as suas dimensões. Entender a importância da Imagem – de sua gramática interna e externa - na constituição do pensamento, dos processos cognitivos e, portanto interpretativos, está dentro deste escopo.

Aqui ainda é importante anotar que uma gramática da Imagem é também uma gramática da Gravura, mas uma não se reduz à outra. Mesmo que se venha a encontrar limitações conceituais a aplicação do termo gramática para operações ou semioses dos signos imagem, em termos epistemológicos, ainda assim, dentro dessas possíveis limitações, mesmo que se constitua apenas uma espécie de proto - gramática, o cotejo entre Imagem e Gravura pode render importantes descobertas, para a compreensão de ambas.

Plataforma 1 – Signo reflexo Mimeses,

.

O reflexo num espelho é uma imagem peculiar. Mas a sua natureza geral como imagem permite tratá-la sob o estatuto semiótico de signo. A principal característica semiótica da

imagem especular que parece saltar a frente é a de um processo dinâmico de reflexão, um fluxo permanente de instantâneos de imagens.

Reflexos são imagens no tempo. Signo cuja natureza primordial é ser in ação, semiose. Semiose ou ação do signo é, em termos da semiótica peirceana, uma relação triádica e tem a forma ordenada de um processo gerativo. Ser uma relação triádica, quer dizer ser uma ação que possui a forma lógica onde três termos – o signo, seu objeto e seu signo interpretante (gerado pelo primeiro por determinação colateral do objeto) agem em cooperação diferencial. Ou seja, um signo representa um objeto diferente dele mesmo para a interpretação na qual um significado é gerado. Este significado é outro signo, diferente do primeiro porque significa apenas alguns dos aspectos possíveis do objeto que os determinou.

Plataforma 2 - O estranhamento na Réplica da Lei. Images each others. Ars como trânsito do mesmo para o mesmo. Para Deleuze, segundo Perniola, o simulacro é o contrário do “fictício”. O que não é fictício é real, possui realidade, capacidade própria de existir, de forma positiva, como alteridade.

A ARTE ALTER A

Do ponto de vista deste trabalho é mais interessante escarafunchar a implicações que decorrem da dissociação do conceito de simulacro do de ficção, mas num espelhamento refrativo das ideias de real, ficcional e virtual. O ficcional não pretende existir na alteridade, apenas ser realmente virtual, uma condição de plausibilidade no máximo. O simulacro é virtualmente real. Uma possibilidade de existência. Uma gramática das Imagens, como linguagem parece ser pensável a partir da ideia de que as Imagens são todas „positivas‟ como em Ops, imagens não são contraditórias entre si, são icônicas, não cópias, mas sim, atualizações de protótipos. Ops segundo Perniola é uma deusa grega tribal ligada à agricultura e que se refere “à dimensão abstrata correspondente, que abrange as noções de abundância, de prosperidade, de ajuda, de completude,...” Mas o mais significativo sobre essa relação „alegórica‟ está na relação que o autor estabelece entre Ops e opus, obra. “Ops é afim com opus: designa a atividade produtora, a abundância considerada enquanto força ativa que cria a prosperidade através de uma repetição. As colheitas, as frutas, os produtos naturais já seriam simulacros, repetições perfeitas, cópias produzidas por uma força que

nunca cria nada de absolutamente novo ou original. A obra da natureza se revelaria assim semelhante à obra de arte humana” (2000:235). É uma contradição, pois ao mesmo tempo em que o que se reproduz é a força prototípica, a singularidade do gosto do fruto tanto é melhor quanto mais for livre e perfeito na reprodução daquela qualidade da semente. Semente não é origem é mídia.

O positivo exige o negativo, e não de modo diádico. A ideia do negativo fundo é fundamental para a produção de um discurso, e só um discurso é passível de exprimir uma gramática. Como pode se produzir um discurso sem a disposição linear sucessiva no tempo de qualidades - ideias? Não se pode. Como uma imagem „isolada‟ em si mesma, ensimesmada, uma figura pode „dizer‟ alguma coisa? E diz. Todo mundo sabe. Um negativo-fundo é um positivo, uma figura.

Quando olhamos uma imagem visual qualquer e, supostamente conseguimos recorta-la dos perceptos visuais adjacentes, ou isolar a figura do fundo, ela se propaga na continuidade das imagens mentais que incontrolavelmente são produzidas pela ação do signo gerando interpretantes.

Cada imagem mental produzida é outro signo, criatura da imagem para qual olhamos, entidade positiva, que têm como de fundo o discurso polifônico e polissêmico de todas as possibilidades, de todo o devir - potência daquelas imagens – ideias que não nos ocorrem, mas poderiam vir a ocorrer. Hábito – pode ser definido como a repetição regular ou frequente de uma ação, é também um modo de agir, de uma perspectiva psicológica ou subjetiva, ou um modo de açãomanifestação de um ponto de vista lógico-objetivo. No espelho – a imagem refletida obedeça menos ao objeto que reflete do que a possibilidade do próprio espelho. Quem dita o resultado – imagem final produzida é a regra-natureza do espelho. Um espelho convexo não produz uma imagem plana qualquer que seja o objeto. É a lei – hábito do espelho. A gravura é sempre mais a reprodução de si mesma – que são as propriedades de sua matriz, suas regularidades – do que qualquer objeto referente possível. Esta é a lei que rege suas réplicas.

Mas assim como cada reflexo é vicariamente ligado ao espelho e ao objeto no tempoespaço, a cada instante ele se atualiza e neste fato qualquer alteração de luz ou de ponto de vista é a quebra dessa regularidade, também cada cópia ou impressão está submetida à ação do acaso, à quebra da regularidade automática, inerente até aos processos mais precisos de reprodução. Para a gravura artística isto pode ser um fator desejável.

Hábito e mudança de hábito é o contínuo fluir do processo semiótico, da atualização de signo em signo, de imagem em imagem. O Hábito de gerar hábitos é a lei da mente. E a crença é o hábito inteligente, não o mero repetir automático do gesto aprendido, proposto, mas para que assim seja a noção de hábito exige a noção de mudança de hábito. A quebra da regularidade pela espontaneidade do novo ou do novamente, que assim confirma a própria semiose ou a ação preponderante do signo. Que não é igual sendo o mesmo, um modo de pensar implícito. Um signo só é signo na medida em que gera um Interpretante, signo mais desenvolvido, representamen, que é o signo com um interpretante mental. Uma sucessão de reflexos, de „cópias‟ que são qua cópia. Devir nunca é Imitar, in Deleuze. Setembro de 2009 – Poética da Imagem

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS: ASSIS, Machado de. "O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana". In: Obras Completas de Machado de Assis: Papéis avulsos (Vol. XII), Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W.M. Jackson, 1952. PEIRCE, Charles S. 1995. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. CD-ROM DATABASE. Chalettesville, VA: INTERLEX CORPORATIONS. PERNIOLA, Mário. "A arte de Mamúrio". In: Pensando o ritual: sexualidade, morte,mundo. São Paulo: Studio Nobel, 2000. ROSA, Guimarães. "O espelho". In: Primeiras estórias. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 2008. SANTAELLA, Lucia; NOETH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1997. SANTAELA, Lúcia. 1995. A Teoria Geral dos Signos: Semiose e Autogestão. São Paulo: ÁTICA.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.