Gramática histórica da língua inglesa

May 25, 2017 | Autor: Tom Finbow | Categoria: Languages and Linguistics, Historical Linguistics, Linguistics
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Gramática histórica da língua inglesa Organizador

Thomas Daniel Finbow Doutorado (D.Phil.) e Mestrado (M.Phil.) em Filologia Comparativa e Linguística Geral pela Universidade de Oxford Professor Doutor de Linguística Histórica Departamento de Linguística (FFLCH) na Universidade de São Paulo

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© 2017 by Pearson Education do Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Pearson Education do Brasil. Diretora de produtos: Gabriela Diuana Supervisora de produção editorial: Silvana Afonso Coordenador de produtos: Vinícius Souza Editor: Casa de Ideias Redação: Julia Coachman e Thomas Daniel Finbow Projeto gráfico e diagramação: Casa de Ideias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nononononononono-- São Paulo : Pearson Education do Brasil, 2016. ISBN 978-85-xxx-xxx-x 1. Nonono CDD-000.0 00-00000 -000.00 Índice para catálogo sistemático: 1. Nononononononon  0000000

2016 Direitos exclusivos para a língua portuguesa cedidos à Pearson Education do Brasil Ltda., uma empresa do grupo Pearson Education Avenida Santa Marina, 1193 CEP 05036-001 – São Paulo – SP – Brasil Fone: 11 3821-3542 [email protected]

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sumário

Apresentação........................................................................................... VII Prefácio........................................................................................................ IX Unidade 1  Inglês antigo........................................................................1 Linguística histórica...................................................................................3 Famílias linguísticas.................................................................................3 Método de reconstrução comparada...............................................7 A família indo-europeia...................................................................... 21 A família germânica.............................................................................. 26 Mudança linguística................................................................................ 29 História interna versus história externa......................................... 29 Mudança fônica..................................................................................... 30 Mudança gramatical............................................................................. 31 O inglês antigo.......................................................................................... 34 História externa: as migrações germânicas à Grã­‑Bretanha..... 34 História interna: a estrutura do inglês antigo............................. 37 Os dialetos anglo-saxões.................................................................... 45 Inglês antigo em contato com outras línguas............................. 50 História externa: os reinos anglo-saxões...................................... 50 Contato com as línguas celtas.......................................................... 52 Contato com o latim............................................................................. 53 Contato com o norreno....................................................................... 54 História externa: os séculos IX e X................................................... 56 Fontes textuais.......................................................................................... 59 Beowulf...................................................................................................... 59 The Dream of the Rood.......................................................................... 60 The Anglo-Saxon Chronicle.................................................................. 60 Beda, Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum................................. 61 Unidade 2  O inglês médio................................................................. 67 História externa da Inglaterra medieval........................................ 71 A conquista normanda e o século XII............................................. 71 O século XIII: o império angevino.................................................... 78 O século XIV: a Guerra dos Cem Anos e a Peste Negra............ 83 O século XV e a Guerra das Rosas.................................................... 98

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IV

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Influências estrangeiras......................................................................100 Contato com o francês normando e o francês de Paris.........100 Contato com outras línguas............................................................108 História interna: mudanças estruturais........................................109 Fonologia...............................................................................................109 Morfologia e sintaxe...........................................................................115 Diversidade dialetal..............................................................................120 Os dialetos medievais do inglês e do escocês..........................122 Literatura medieval...............................................................................130 Peterborough Chronicle...................................................................131 Sir Gawain and the Green Knight..................................................... 133 Geoffrey Chaucer.................................................................................135 The Paston letters.................................................................................. 137 Unidade 3  O inglês pré-moderno.................................................147 História externa: a Renascença, a Reforma, a Guerra Civil Inglesa, a Restauração da monarquia e a “Revolução Gloriosa”................................................................................................151 Henry VII..................................................................................................153 Henry VIII................................................................................................156 Edward VI................................................................................................161 Mary I.......................................................................................................163 Elizabeth I...............................................................................................164 James I.....................................................................................................168 Charles I...................................................................................................170 Charles II.................................................................................................176 James II....................................................................................................177 História interna: mudanças estruturais........................................178 Fonologia...............................................................................................178 Morfossintaxe.......................................................................................191 Léxico.......................................................................................................207 Ortografia, gramáticas e dicionários.............................................217 Ortografia...............................................................................................217 Gramáticas e dicionários ..................................................................221 Textos pré-modernos...........................................................................227 Poesia e teatro elizabetanos............................................................228 Shakespeare e a Bíblia King James................................................238 Ben Jonson e os poetas metafísicos.............................................243 John Milton e John Bunyan.............................................................246 Daniel Defoe e Jonathon Swift.......................................................252 Unidade 4  O inglês moderno.........................................................269 Variação e mudança na América do Norte..................................274

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Sumário

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A constituição do inglês americano.............................................274 Inglês no Canadá.................................................................................278 Diferenças entre o inglês americano e o inglês britânico....280 Variação global.......................................................................................285 Inglês no Caribe...................................................................................285 Inglês na África.....................................................................................290 Inglês na Ásia........................................................................................298 Austrália e Nova Zelândia.................................................................301 Variação nas ilhas britânicas e na Irlanda...................................305 Inglaterra................................................................................................305 Escócia.....................................................................................................310 País de Gales..........................................................................................313 Irlanda......................................................................................................315 Referências..............................................................................................323

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a p r e s e n taç ão

Nos catálogos de livros universitários há vários títulos cuja primeira edição saiu há 40, 50 anos, ou mais. São livros que, graças à identificação da edição na capa (e somente a ela), têm sua idade revelada. E, ao contrário do que muitos podem imaginar, isso não é um problema. Pelo contrário, são obras conhecidas, adotadas em diversas instituições de ensino, usadas por estudantes dos mais diferentes perfis e reverenciadas pelo que representam para o ensino. Qual o segredo de sucesso desses livros? O que eles têm de diferente de vários outros que, embora tenham tido boa aceitação em um primeiro momento, não foram tão longe? Em poucas palavras, esses livros se adaptaram às novas realidades ao longo do tempo, entendendo as mudanças pelas quais a sociedade – e, consequentemente, as pessoas – passava e as novas necessidades que se apresentavam. Para que isso fique mais claro, vamos pensar no seguinte: a maneira como as pessoas aprendiam matemática na década de 1990 é igual ao modo como elas aprendem hoje? Embora os alicerces da disciplina permaneçam os mesmos, a resposta é: não! Nesse intervalo de tempo, ocorreram mudanças significativas – a Internet se consolidou, os celulares se popularizaram, as redes sociais surgiram etc. E todas essas mudanças repercutiram no modo de vida das pessoas, que se tornou mais rápido e desafiador, transformando os fundamentos do processo de ensino/aprendizagem. Foi com base nisso que nasceu a Bibliografia Universitária Pear­son (BUP). Concisos sem serem rasos e simples sem serem simplistas, os livros que compõem esta série são baseados na premissa de que, para atender sob medida às necessidades tanto dos alunos de graduação como das instituições de ensino – independente­mente de eles estarem envolvidos com ensino presencial ou a distância –, é preciso um processo amplo e flexível de construção do saber, que leve em conta a realidade em que vivemos. Assim, as obras apresentam de maneira clara os principais conceitos dos temas propostos, trazendo exatamente aquilo que o estudante precisa saber, complementado com aprofundamentos

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VIII

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e discussões para reflexão. Além disso, possuem uma estrutura didática que propõe uma dinâmica única, a qual convida o leitor a levar para seu dia a dia os aspectos teóricos apreGramática histórica da língua inglesa sentados. Veja como isso funciona na prática: A seção “Panorama” aprofunda os tópicos abordados ao mostrar como eles funcionam Temas Inglês antigo 63 na 1prática, promovendo interessantes reflexões. – Linguística histórica Neste tema, conheceremos o conceito de família linguística, as aplicações da reconstrução comparada e as mudanças sonoras que ocorreram na família indo-europeia. Exploraremos também as línguas germânicas, aprendendo quais são suas raízes e classificações.

Panorama

2 – Mudança linguística No segundo tema, aprenderemos as diferenças entre história interna e história externa, conhecendo os aspectos sonoros das línguas e as principais linguísticas em relação a Emalterações português, há distinção entre linguagem, línmorfologia, sintaxe, léxico e semântica. guas e dialetos. Possivelmente você já deve ter ouvi-

Diferenças entre linguagem, línguas e dialetos veiculada em alguma língua específica, adquirida pelos indivíduos no processo de aquisição da língua

3 – O inglês antigo do falar sobre os três termos, não é mesmo? São três Em seguida, estudaremos a história externa da cumprem estruturação do mesma finapalavras distintas que uma inglês, avaliando o contexto histórico das migrações germânilidade: promover a comunicação entre os falantes. cas na Grã-Bretanha. Analisaremos também os principais dialeContudo,West embora linguagem, tos anglo-saxões: Northumbrian, Saxon, Mercian e língua, Kentish.idioma e dialeto sejam termos corriqueiros, os sociolinguistas, 4 – Inglês antigo em contato com outras línguas aqueles a relação entre a língua e Aprenderemos, neste tema, o queque foi aestudam heptarquia, relacionan-

materna. A língua é, sobretudo, um instrumento re-

nérica e inata que todo ser humano possui para

Quando dizemos que a língua é um instrumento

aprender alguma língua ou algumas línguas nati-

do povo, dizemos que, embora existam normas

lacional que estrutura o sistema de comunicação de algum grupo e possibilita a formação de signos linguísticos (morfemas, palavras, frases e sentenças), e permite a transmissão de mensagens entre indivíduos (codificação e descodificação de significado),

longo do livro, leitor queAo é a sua maior finalidade. Ou seja,o uma língua ése depara com um “princípio estruturador” ou, em outras palavras, vários hipertextos. Classificados como “Saiba é uma certa organização de conceitos, do sistema plo”, “Fique e “Link”, 5 – Fontes textuais bons fundamentos científicos, e seu uso quotidia- mais”, sonoro e “Exem­ dos elementos gramaticais que é atento” comPor fim, avaliaremos algumas dascausar mais relevantes Fique atento Link obras do inno pode mal-entendidos. partilhada pelos membrospermitem de determinadoao grupo esses hipertextos aluno ir além em glês antigo, reconhecendo seu enorme valor para as pesquisas social por terem-na aprendido. Os falantes de uma linguísticas e sua importância para a literatura inglesa. suas oferecendo-lhe Linguagem línguapesquisas, servem-se dela para estabelecer interaçõesamplas possibicom a sociedade em que vivem. Para os linguistas, a linguagem é a faculdade ge- lidades de aprofundamento. Introdução a sociedade, tendem a evitá-los, já que, especialdo os aspectos particulares de cada um dos sete grande reinos Saiba mais Exemplo anglo-saxões: Sussex, Kent, Wessex, East Anglia, Essex, mente linguagem, língua e Mercia dialeto,e pressupõem Northumbria. algumas relações hierárquicas que carecem de

Seja como for o que penses, creio que é melhor dizê-lo com boas palavras.

(William Shakespeare)

vamente. Tal capacidade é específica à nossa espé-

Nesta unidade trataremos da linguística histórica. Iniciaremos nossos cie, uma herança genética que possibilita qualquer estudos aprendendo o conceito de família linguística e como funciona criança a adquirir qualquer língua natural apenas o método da reconstrução comparada de linguagens. Conheceremos por exposição a pessoas falando-a, sem nenhuma também as modificações sonoras ocorridas na família indo-europeia, formal. Por mais germânicas. que um filhote de gato, além de investigar as origensinstrução e classificações das línguas

cachorro ou papagaio conviva com seres huma-

gramaticais, de significado dialógica e de pronúncia aproxima (as A linguagem o esnormas reais reveladas nas práticas linguísticas tudante dos temas abordados, eliminando cotidianas da comunidade de falantes nativos, qualquer obstáculo para seu não as normas prescritivas da gramática tradi- entendimento cional), cada falante desenvolve uma forma de e incentivando o estudo. expressão própria, originando aquilo que cha-

nos, embora possa aprender a reconhecer diversas

mamos de fala. No entanto, qualquer fala, em-

palavras e expressões (e até57enunciar algumas, no

bora possa ser individual, distintiva e criativa, é

A diagramação contribui para que o esturegida sempre por regras maiores e mais gerais dante registre ideias e faça anotações, intera(as normas da língua). Caso contrário, cada um a língua dos donos da mesma maneira que uma de nós com acabariaocriando sua própria língua, o criança se tornar um falante nativo, capaz de pro- gindo conteúdo. Inglês antigo

caso do papagaio), ele nunca aprenderá a dominar

Os avanços vikings e a ascensão do reino de Wessex

As invasões dos vikings, principalmente do grande exército dinamarquês, desestruturaram a geografia social e política da Grã-Bretanha e da Irlanda. No entanto, em 878, a famosa vitória do rei Alfredo sobre os vikings, em Edington, freou a investida dinamarquesa. Porém, a Nortúmbria já se tornara um reino viking, enquanto a Mércia foi partida ao meio e a Ânglia Oriental já não mais era um território político anglo-saxão. Os reinos pictos, escoceses (imigrantes do norte da Irlanda que fundaram um reino na costa sudoeste da futura Escócia – em latim, os irlandeses eram chamados Scotti) e galeses também foram abalados pelos ataques vikings, que certamente também contribuíram para a constituição do Reino de Alba, que mais tarde formaria a Escócia.

duzir sentenças inteiramente originais, nunca an-

que impossibilitaria a comunicação, porque nin-

tes ouvidas, e de interpretá-las.

guém compartilharia as normas para decifrar as

Todastransmitidas. essas características mensagens Na fala encontramos deixam claro muitas variações linguísticas, que jamais devem que os livros da Bibliografia Universitária ser vistas como transgressões, mas como prova Uma língua é uma manifestação da Linguagem. Não constituem aliado de que a língua é viva e dinâmica, aum não serimportante que as podemos acessar a Linguagem, nossa capacidade Pearson variantes consideradas “erradas” ocorram na boca linguística geral, de forma direta, pois ela sempre é para estudantes conectados e professores objetivos – ou seja, para o mundo de hoje – e certamente serão lembrados (e usados) por muito tempo. Língua

Figura 1.10 Divisão da Inglaterra no século X.



Cedido à Escócia c. 975

TH

Assentamento norueguês

RT

A

O

R

N

ST

LOTHIAN

Assentamento dinamarquês

Bamburgh

Fronteira do reino de

HU

C

Guthrum

RIA M B ne

LY

D

Rio Ty

E Carlisle

Eamont

55º N

English Frontier, 927

Rio Tee s

Mar do Norte

Rio Ouse

REINO

York

Ilha de Man

Fronteira inglesa, 920

Mar da Irlanda

Rio Trent

DE YORK

Manchester

Thelwall Bakewell Runcorn Davenport Chester Eddisburg

Dublin

Lincoln

MÉRCIA

Rio Ou se

ern Sev Rio

Stafford Tamworth

INGLESA

Bedford

Gloucester

Buckingham

Wallingfdord Malmesbury Rio Thames

Bath

ar Tam Rio

Southhampton Wareham

Thetford

Cambridge

Maldon

London

Winchester

W E S S E X Lydford Exeter

ÂNGLIA

O R I E N TA L

Hertford

Cricklade

OCEANO ATLÂNTICO

Fronteira inglesa, 917

TERRA DOS CINCO BURGOS

Canterbury

Hastings Porchester Chichester

Ilha de Wight

ancha l da M Cana

Fonte: adaptada de Blair (1984, p. 89).

Boa leitura!

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p r e fác i o

Este livro não pretende oferecer aos leitores não especialistas apenas uma introdução ao percurso histórico do inglês traçada em termos das modificações das estruturas linguísticas. Também buscamos, no entanto, fornecer aos interessados os fundamentos da linguística histórica descritiva e comparada, além de um embasamento em aspectos da sociolinguística variacionista, além de determinados elementos da filologia e noções da história dos povos anglófonos. Nosso objetivo é, portanto, ambicioso, motivado pelo desejo de proporcionar aos estudantes uma base geral em linguística, por meio da linguística histórica do inglês. Por conseguinte, visamos ir além do tratamento oferecido nos compêndios clássicos de “gramática histórica”, juntando à história interna e à história externa da língua inglesa diversas reflexões acerca de várias questões teórico-práticas ligadas à pesquisa linguística em uma capacidade mais genérica, para enfatizar a importância de se enxergar a situação linguística em qualquer momento da perspectiva mais ampla possível. Esperamos que o aluno conclua seus estudos com uma noção de quão multifacetado é o trabalho do linguista na hora de lidar com a fantástica diversidade e a riqueza da linguagem humana, apresentada sob o viés de uma das línguas mais faladas no mundo. É inegável que o inglês é uma língua importantíssima ao redor do mundo. Por isso, ela merece o interesse dos cientistas e das pessoas de modo geral. Por outro lado, jamais podemos perder de vista a maneira pela qual a língua inglesa chegou a tal posição: mais por casualidade histórica que por qualquer outro mérito próprio. Ninguém que contemplasse os dialetos germânicos migrantes no leste da Grã-Bretanha no século VI d.C. apostaria que alguns de seus descendentes se tornariam uma força global. Em outras palavras, toda e qualquer língua é um objeto de análise interessante e que vale a pena conhecer e investigar, pois todas elas são incrivelmente ricas e é muito difícil deduzir como as coisas vão se desenvolver no futuro! Iniciamos a Unidade 1 com a identificação das relações de parentesco na família indo-europeia. Depois, apresentamos os diferentes tipos de mudança que impactam as estruturas linguísticas. Descrevemos o ramo germânico do indo-europeu, ao qual o inglês pertence e as características

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X

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do inglês antigo, como o contexto histórico que levou os povos litorâneos do noroeste europeu a se deslocar para a ilha da Grã-Bretanha e se estabelecer por lá. Abordamos como o contato com os povos e as línguas dessa ilha influenciou na evolução e diversificação do inglês antigo. Finalmente, oferecemos uma breve amostra literária (em prosa e em verso) do inglês antigo. Abrimos a Unidade 2 com uma apresentação panorâmica da história da Inglaterra medieval com foco em quatro períodos: a primeira dinastia normanda; a constituição do Império angevino sob Henrique II e Eleonora de Aquitânia; a Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França; e a guerra civil conhecida como a “Guerra das Rosas”. Além dos acontecimentos políticos, destacamos as diferentes contribuições socioculturais de cada período histórico e o impacto nas questões linguísticas. A segunda parte da Unidade 2 se concentra na enorme contribuição da língua francesa à formação do léxico inglês. O terceiro tema explica as mudanças que afetaram as demais estruturas da língua inglesa (os sons e a gramática) durante o período medieval. E o quarto tema segue exemplificando a grande diversidade dialetal que caracteriza o inglês médio. Encerramos com alguns monumentos literários medievais. A Unidade 3 apresenta o período pré-moderno e começa com a acidentada história externa, fundamental à construção da identidade britânica moderna. A seguir, apresentamos as mudanças estruturais que converteram os dialetos medievais em algo que nos é reconhecível como inglês. A terceira parte proporciona um panorama dos debates sobre a melhor maneira de regular e codificar a língua em dicionários, gramáticas e tratados de ortografia. Novamente, fechamos a unidade com uma passagem pelos mais conceituados autores da língua inglesa do período: Shakespeare, John Milton, Daniel Defoe e Jonathan Swift. A Unidade 4 fala da diversidade do inglês como um idioma global. Começamos com o estabelecimento do inglês em territórios norte-americanos e a evolução dos vários tipos de inglês falados nos Estados Unidos e no Canadá. Seguimos em frente, comparando o padrão britânico ao padrão americano. No terceiro tema descrevemos as variedades do inglês pelo mundo. Por fim, voltamos às origens para tratar da diversidade dialetal nas Ilhas Britânicas e na Irlanda. Concluindo, nosso objetivo é fundamentar os principais aspectos da linguística geral, linguística histórica e sociolinguística para o leitor não especialista e sem conhecimentos prévios por intermédio da evolução da língua inglesa. Esperamos que o presente livro tenha algo a oferecer para qualquer pessoa que deseja se iniciar no instigante mundo da linguística sócio-histórica e da fascinante história do inglês. Bons estudos! Thomas Finbow

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unidade

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Inglês antigo Objetivos de aprendizagem Explorar o campo da linguística histórica, compreendendo o caráter mutável das línguas e as relações existentes entre elas. Descobrir as chamadas famílias linguísticas, aprendendo como funciona o método de reconstrução comparada e analisando os padrões de alterações sonoras na família indo-europeia. Conhecer as origens e a classificação tradicional das línguas germânicas. Diferenciar história interna e história externa e aprender como a fonética e a fonologia formam o panorama sonoro das diversas línguas. Investigar as transformações linguísticas possíveis nos contextos morfológico, sintático, lexical e semântico-pragmático. Conhecer a história externa da formação da língua inglesa, abordando principalmente as migrações germânicas às ilhas britânicas. Analisar a estrutura do inglês antigo e explorar os quatro principais dialetos anglo-saxões da época: Northumbrian, West Saxon, Kentish e Mercian. Estudar a chamada heptarquia, conhecendo os sete maiores reinos anglo-saxões: Kent, Sussex, Wessex, East Anglia, Essex, Mercia e Northumbria. Reconhecer a influência das línguas celtas, do latim e do norreno na formação da língua inglesa. Pesquisar a história externa do inglês antigo, analisando a trajetória das invasões vikings e a unificação do reino da Inglaterra. Conhecer as principais fontes textuais do inglês antigo, descobrindo a importância dessas obras para o estudo da linguística.

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Temas 1 – Linguística histórica Neste tema, conheceremos o conceito de família linguística, as aplicações da reconstrução comparada e as mudanças sonoras que ocorreram na família indo-europeia. Exploraremos também as línguas germânicas, aprendendo quais são suas raízes e classificações. 2 – Mudança linguística No segundo tema, aprenderemos as diferenças entre história interna e história externa, conhecendo os aspectos sonoros das línguas e as principais alterações linguísticas em relação a morfologia, sintaxe, léxico e semântica. 3 – O inglês antigo Em seguida, estudaremos a história externa da estruturação do inglês, avaliando o contexto histórico das migrações germânicas na Grã-Bretanha. Analisaremos também os principais dialetos anglo-saxões: Northumbrian, West Saxon, Mercian e Kentish. 4 – Inglês antigo em contato com outras línguas Aprenderemos, neste tema, o que foi a heptarquia, relacionando os aspectos particulares de cada um dos sete grande reinos anglo-saxões: Sussex, Kent, Wessex, East Anglia, Essex, Mercia e Northumbria. 5 – Fontes textuais Por fim, avaliaremos algumas das mais relevantes obras do inglês antigo, reconhecendo seu enorme valor para as pesquisas linguísticas e sua importância para a literatura inglesa.

Introdução Seja como for o que penses, creio que é melhor dizê-lo com boas palavras. (William Shakespeare)

Nesta unidade trataremos da linguística histórica. Iniciaremos nossos estudos aprendendo o conceito de família linguística e como funciona o método da reconstrução comparada de linguagens. Conheceremos também as modificações sonoras ocorridas na família indo-europeia, além de investigar as origens e classificações das línguas germânicas.

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Em seguida, definiremos os conceitos de história interna e história externa, compreendendo como o padrão sonoro de uma língua é formado a partir da fonologia e da fonética. Abordaremos também as mudanças linguísticas que podem ocorrer nos campos sintático, morfológico, semântico-pragmático e lexical. Além disso, analisaremos a história externa da construção da língua inglesa, estudando a chegada germânica ao território britânico e conhecendo os quatro principais dialetos anglo-saxões. Aprenderemos ainda o que foi a famosa heptarquia, descobrindo como as línguas celtas, latim e norreno contribuíram com a formação do inglês antigo. Por fim, examinaremos o contexto histórico das invasões vikings, que acompanhou o processo de consolidação do reino inglês, além de explorarmos as mais importantes fontes textuais do inglês antigo.

Linguística histórica Famílias linguísticas Ao explorarmos o vasto campo da linguística histórica, devemos ter em mente uma de suas características fundamentais: a natureza dinâmica e mutável das línguas humanas. Essas mudanças que as línguas sofrem ao longo do tempo, contudo, não descaracterizam seu potencial semiótico ou sua plenitude estrutural. Ou seja, apesar das variações geográficas, socioculturais, cronológicas e de uso, as línguas mantêm sempre uma organização básica, viabilizando seu uso contínuo e desimpedido pelos falantes e preservando, assim, sua funcionalidade social. O fim do século XVIII foi marcado por diversas pesquisas científicas dedicadas a investigar a história das línguas ao redor do mundo. Nessa época, foram realizadas análises pioneiras dos diversos grupos de línguas, em um padrão sistemático e específico, visando fundamentalmente descobrir correlações entre eles que pudessem demonstrar relações de parentesco entre as línguas. A esperança dos estudiosos era que, caso fossem encontradas evidências contundentes nesse sentido, seria possível comprovar a existência de uma fonte comum, uma língua-mãe global que teria originado todas as demais, tal como narra a história bíblica da torre de Babel. No continente europeu, já se sabia da evidente origem latina das línguas italiana, francesa e espanhola, entre outras. Contudo, a principal dificuldade para os estudiosos que se interessavam pelas relações de parentesco entre as línguas era metodológica: eles

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Saiba mais O prefixo “proto” significa que a língua não está atestada em nenhum livro ou inscrição, pois existia muito antes da invenção da escrita (ou, após a invenção da escrita, significa que os falantes não a conheciam), mas

não tinham desenvolvido nenhum método sistemático para decidir quais semelhanças eram relevantes e quais não tinham importância. Além disso, não houve consenso sobre a regularidade da mudança estrutural ou, inclusive, se as línguas podiam mudar de forma independente, por gerar inovações, ou se as diferenças eram o resultado da “mistura” de línguas de tipos diferentes. Porém, com o emprego de novas técnicas capazes de solucionar parte desses problemas em grupos mais extensos de línguas, foram encontrados fortes indícios da existência de uma língua pré-histórica que teria gerado a maioria das línguas da Eurásia. Essa língua passaria a ser conhecida como protoindo-europeu e, a partir de então, vários outros grupos de línguas passaram a ser estudados com base no mesmo método de pesquisa.

sua estrutura fônica, gramatical e seu vocabulário foram reconstruídos por meio do método comparativo aplicado às descendentes dessa língua ancestral, das quais temos registros escritos.

Fique atento Por meio da comparação entre várias línguas, os pesquisadores conseguiram identificar relações sistemáticas entre sua estrutura linguística (os sons, os paradigmas flexionais de declinação de caso nos nomes e adjetivos e na conjugação dos verbos), deduzindo que, por existir tantos paralelos repetidos com tanta frequência, elas devem ser originadas de uma fonte em comum. O panorama linguístico da Europa teve grande importância nesse processo, com a percepção de importantes similaridades e diferenças, por exemplo, entre palavras nas línguas italiana, francesa, espanhola e portuguesa. Um exemplo disso são as expressões para “caro” e “campo” em algumas línguas neolatinas: Francês cher champ

Italiano caro campo

Espanhol caro campo

Português caro campo

Nestas palavras, o fonema francês /ʃ/, representado por ch, apresenta clara relação de correspondência com o fonema /k/, simbolizado por c em vocábulos italianos, espanhóis e portugueses. A partir dessa comparação, é possível dizer que ao menos alguns termos com o fonema francês /ʃ/ são derivados do fonema mais antigo /k/, passando por mudanças fonéticas e fonológicas até estabelecer-se em sua forma atual /ʃ/. Essa teoria pode ser confirmada por outros exemplos, tais como: Francês chandelle chez

Italiano candela casa

Espanhol candela casa

Português candeia casa

Latim candela casa

Fonte: adaptado de Lehmann (1992, p. 6-7).

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É frequente a alusão a árvores genealógicas ou famílias linguísticas nesse processo de análise de laços históricos entre as línguas. No caso das línguas românicas, como o espanhol, o francês, o italiano etc., elas são consideradas línguas “filhas” da língua “mãe”, o latim. Assim, o italiano pode ser entendido como uma língua “irmã” do francês e do espanhol. De modo similar, a língua protoindo-europeia (PIE) representa a língua-mãe na família indo-europeia, tendo o latim, o grego, o sânscrito e muitas outras como línguas-filhas (CRYSTAL, 1992).

Saiba mais Teoria da árvore genealógica ou família linguística A teoria da árvore genealógica ou família linguística (Stammbaumtheorie) foi desenvolvida pelo linguista austríaco August Schleicher. Embora Schleicher utilizasse o conceito da evolução, sua interpretação dessa noção ainda incluía muitos princípios da ciência natural pré-Darwiniana. Ele introduziu o conceito de linguagem como um organismo que pode nascer, evoluir, entrar em decadência e morrer, sujeito a transformações que podemos analisar por meio de métodos do campo da biologia. Por esse motivo, em meados do século XIX os linguistas consideravam apropriado descrever as relações entre línguas com a terminologia do parentesco biológico. Para cada “ramo” ou “galho” que se separa dos demais na árvore genealógica, a bifurcação corresponde a uma ou várias mudanças que separa as filhas de determinada língua-mãe entre si e da sua antecessora comum.

Embora a metáfora das famílias linguísticas seja útil para a compreensão do fenômeno das relações de parentesco entre línguas e para a cronologia da formação de novas línguas, é importante reconhecer que essa abordagem não corresponde a uma sequência linear e padronizada. Ou seja, uma língua-mãe pode deixar de existir após o “nascimento” de línguas-filhas, pode coexistir com suas filhas e até sobrevivê-las, pode interagir com suas filhas, ou pode desenvolver-se de modo relativamente autônomo. A trajetória de constituição de uma nova língua, portanto, é repleta de pequenas e constantes transformações, influenciadas pelas diferentes reações dos diversos grupos sociais e pelas inovações que surgem constantemente entre seus membros.

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Exemplo Não são apenas as línguas indo-europeias que podem ser agrupadas em famílias e subfamílias. Aproximadamente 7.000 famílias linguísticas vivas já foram identificadas (ainda há outras muitas já extintas). As línguas urálicas são um exemplo típico do conceito de família linguística. Elas formam uma família de línguas euroasiáticas oriundas dos Montes Urais e faladas por aproximadamente 20 milhões de pessoas. O estoniano, o finlandês e o húngaro são as três línguas dessa família com maior quantidade de falantes. No caso brasileiro, podemos citar o tupi, que é composto por 10 famílias, algumas delas, como o tupi-guarani, com até 40 línguas.   Figura 1.1  Família de línguas urálicas. 

Samoieda yurak

Urálico (c. 4000 a.C.)

Norte

Samoieda do Yenisei

Samoieda

Tavgi Selcupe

Sul

(Camassiano) (etc.)

Ob-úgrico Ostíaco Vógul

Úgrico

Fino-úgrico (c. 3000 a.C.)

Montes Urais

Permiano

Húngaro Votiáco Ziriano

Fínico (c. 1500 a.C.)



Fínico volgaico

Mordoviano Cheremise

Fínico báltico (c. 500 a.C.) (Divisão c. 1 d.C.)

Lapão (Divisão c. 750 d.C.) Lapão oriental Lapão setentrional Lapão meridional Lude

Finlandês Carélio

Ingriano Vepsa

Estoniano Votiano

Estoniano meridional

Livônio

Fonte: Anttila (1972, p. 301).

O século XX trouxe novas nomenclaturas e classificações para esse processo. O termo “família” ainda é utilizado como uma

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designação genérica para grupos de línguas que apresentam correlações históricas, porém em algumas classificações é estabelecida uma diferenciação quanto à intensidade dessas relações. Assim, o termo “família” geralmente é empregado para nomear línguas muito próximas, enquanto a expressão “filo” ou “tronco” diz respeito a línguas com conexões mais superficiais. O termo “macrofilo” ou “superfamília”, por sua vez, é utilizado para descrever grupos de línguas com ligações ainda mais indefinidas e fracas do que as observadas nos filos. As línguas aborígenes da Austrália, por exemplo, embora sejam claramente relacionadas entre si, não apresentam evidências históricas de conexões claras acima do nível da família – diferente do indo-europeu, em que os ramos podem ser agrupados em famílias sucessivamente maiores –, razão pela qual costumam ser classificadas como filo ou macrofilo australiano, em vez de família australiana, pois algumas famílias menores não se deixam aglomerar no bloco maior chamado “pama-nyungano”. Portanto, embora os linguistas suspeitem que a relação genealógica entre essas famílias linguísticas exista, ainda não foi possível comprová-la definitivamente pelo método comparativo e fala-se de “filo” ou “macrofilo”, já que esses termos apontam para uma relação possível, porém, menos segura. No Brasil, as línguas indígenas do grupo macro-jê apresentam uma situação parecida. Na classificação genética das línguas, as relações linguísticas são determinadas quanto ao grau de “parentesco”; assim, temos as chamadas “línguas-mães”, “línguas-filhas”, “línguas-irmãs” e “famílias de línguas”. Desse modo, se o processo de reconstrução obtiver êxito, serão comprovadas as relações existentes entre as línguas abordadas.

Método de reconstrução comparada No ano de 1808, foi publicada a obra Über die Sprache und die Weisheit der Indier, do alemão Friedrich Schlegel, reconhecida como marco inicial das pesquisas comparativistas. Nela, Schlegel realiza comparações sistemáticas entre línguas antigas europeias e o sânscrito, e propõe métodos de classificação entre as diversas línguas, buscando determinar seu parentesco e descobrir sua ascendência comum. De acordo com Crystal (1992), o método comparativo é um modo de comparar sistematicamente uma série de línguas, visando provar relações históricas entre elas. Primeiro, partindo do nível dos sons, os pesquisadores descobrem uma série de similaridades

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e divergências entre as línguas, buscando em seguida reconstruir uma fase inicial de evolução comum a todas elas. Essa prática é chamada de reconstrução comparada. Nela, línguas que provam ter a mesma ancestral são conhecidas como cognatas. Essa relação é mais facilmente constatada quando a existência da língua-mãe é comprovada, como no exemplo das várias palavras para pai nas línguas indo-europeias: Protoindo-europeu pǝtér

Latim páter

Grego clássico patḗr

Sânscrito pitā

Gótico fádar

Irlandês antigo áthir

Esquimó ataataq

Como podemos ver, todas as formas acima, exceto a palavra esquimó, podem ser derivadas regularmente da palavra em PIE *pǝtér. O esquimó se deixa excluir por não ser possível estabelecer correspondências sistemáticas entre os fonemas que compõem a palavra /ata:taq/ e as formas fonológicas dos demais vocábulos. Assim, mesmo que o PIE não existisse mais, seria viável reconstruir sua estrutura a partir desse tipo de comparação entre várias palavras. Essa técnica comparativa é empregada de modo análogo quando a língua-mãe foi extinta, como no caso da língua indo-europeia. Nesse caso, as formas em latim, grego, sânscrito, eslavo antigo, armênio etc. para pai, por exemplo, são comparadas visando a reconstrução do termo original indo-europeu, *pǝter. Cabe ressaltar que, no estudo de linguística histórica, o uso de asterisco precedendo uma palavra significa que esse termo é uma reconstrução, não apresentando comprovação escrita em registros históricos. A pronúncia dos termos reconstruídos é um tema extensamente debatido entre os linguistas; enquanto alguns atribuem características fonéticas a eles e os pronunciam dessa forma, outros defendem que isso não é adequado, dado o grau de abstração de tais termos e a natureza hipotética e probabilística das formas propostas.

Abordagem genética das linguagens Podemos dizer que duas línguas de uma mesma família de línguas são geneticamente relacionadas, ou seja, são cognatas, quando elas se originam ou “descendem” da mesma língua original; e quando essa língua-mãe é reconstruída, ela é então chamada de protolíngua. Quer dizer, o latim e o inglês antigo não são protolínguas, apesar de serem a mãe do português e do inglês,

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respectivamente, por serem línguas atestadas em manuscritos e inscrições, mas o PIE ou o protogermânico são protolínguas, por serem fruto de reconstrução. A reconstrução de linguagens por meio do método comparativo objetiva recuperar o máximo possível da língua ancestral ou da protolíngua, comparando as línguas descendentes e buscando estabelecer quais foram as transformações sofridas por elas. A fonologia costuma ser o primeiro aspecto analisado nesse processo, que tenta inicialmente reconstruir o sistema sonoro. Em seguida, são estudadas características inerentes ao vocabulário e à gramática da protolíngua. Por meio da comparação entre as características herdadas por cada língua-irmã românica, por exemplo, almeja-se reconstruir os aspectos linguísticos da língua protorromânica – que não é idêntica ao latim devido às formas presentes no latim que desapareceram totalmente na passagem às línguas-filhas sem deixar nenhum rastro e que, portanto, não podem ser reconstruídas. Um exemplo disso é o fato de sabermos que o latim tinha /h/ apenas porque os romanos nos contaram, esse som não continuou em nenhuma língua neolatina. A língua protorromânica apresenta os aspectos mais falados do latim na época em que começou a sofrer suas primeiras variações e fragmentações, que posteriormente se converteram em suas línguas “descendentes”. O êxito nessa trajetória de pesquisa depende de uma série de fatores, como evidências de características originais da língua-mãe nas línguas-filhas e a habilidade no emprego de técnicas do método comparativo.

Exemplo No caso de línguas amplamente documentadas, como o latim, é possível verificar se as características que descobrimos por meio do método comparativo são compatíveis com os registros escritos. Quando pesquisamos muitas famílias de linguagens, porém, esse recurso de conferir as reconstruções não está disponível. A língua protogermânica, originadora da família à qual pertence o inglês, é um exemplo disso, uma vez que não existe qualquer documentação escrita dela, que é reconhecida apenas por meio de reconstrução comparada. Todas as línguas existentes atualmente que possuem línguas-parentes apresentam um histórico nas famílias de línguas. Por meio da aplicação do método comparativo às línguas-parentes das quais possuímos registros é possível reconstruir a língua-mãe original.

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Assim sendo, é realizado um processo de comparação entre a língua inglesa e suas línguas-parentes, tais como o alemão, o sueco, o dinamarquês e o islandês, visando compreender as características da protolíngua protogermânica. O inglês, portanto, representa um dialeto do protogermânico que passou por grandes e contínuas transformações até se tornar a língua que hoje conhecemos, diferenciando-se assim de suas línguas-irmãs, que tiveram suas próprias modificações. É importante observar que todas as protolínguas já foram línguas reais, ainda que as pesquisas atuais ainda não sejam capazes de reconstrui-las em sua totalidade.  Figura 1.2  Família de linguagens protorromânica e genealogia espanhola.

Protorromânico (bisavó)

Românico ocidental (avó) Ibero-românico (mãe)

Românico oriental

Galo-românico

Ocidental (irmã)

Ítalo-dálmata

Românico dos Balcãs

Norte

Românico Galego Espanhol Português

Occitano

Catalão (irmã)

Francês

RetoSardo Italiano Dálmata -românico

Fonte: Campbell (1998, p. 110).

Padrões de mudanças sonoras na família indo­ ‑europeia A família indo-europeia teve grande influência sobre o processo evolutivo da linguística histórica. As Leis de Grimm, Grassmann e Verner são grandes marcos na história indo-europeia e na das línguas em geral, e compreendê-las é fundamental para o entendimento do método comparativo e da teoria dos padrões ou regularidade sonora.

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Como descrever os sons de qualquer língua Quando os linguistas descrevem os sons de uma língua, eles usam um vocabulário técnico especial e representam os sons por meio do Alfabeto Fonético Internacional (AFI). O motivo para isso é preservar a consistência das descrições e destacar as relações comuns que diferentes articulações mantêm. Não podemos confiar nas ortografias tradicionais, pois cada língua estabelece suas próprias normas de representação na escrita, de modo que as letras individuais e suas combinações não são iguais. Por exemplo, em inglês, a letra a é pronunciada “ei” e tem esse valor fônico de ditongo em várias palavras, como name “nome”, que é pronunciada “neim”. Em alemão, a letra j representa o som da semivogal i em iogurte em português. Em francês, ch soa como em português, mas em espanhol, soa como se fosse escrito tx ou tch em português; e em italiano, ch funciona como qu antes de i e e em português, ou seja, para expressar o som “duro” como em queijo. Muitas línguas empregam letras “mudas”, como o e no final de name, ou o h de homem. Tudo muito complicado e confuso, não é? Para evitar essas dificuldades, os linguistas desenvolveram um alfabeto em que cada símbolo sempre corresponde ao mesmo som, independentemente da grafia tradicional da língua em questão. Dessa maneira, eles sempre sabem como pronunciar uma palavra escrita com esse alfabeto fonético, seja como for a língua. Por exemplo, queijo é escrito [′kej.ʒʊ]. Tais transcrições fonéticas são sempre escritas entre colchetes. O apóstrofo inicial “ ′ ” marca qual sílaba é tônica (a articulada com maior força e volume). Outro aspecto é que cada sílaba é separada por pontos. Qu- = [k], ei = [ej], j = [ʒ] e o o final, que é quase um u, é transcrito como [ʊ]. Esse valores fônicos nunca variam, de modo que tchau e ciao – o correspondente de tchau em italiano – são transcritas da mesma forma, como [′tʃaw]. O AFI contém símbolos para praticamente todos os sons possíveis nas línguas humanas. Além do uso do AFI, linguistas utilizam uma nomenclatura para classificar os sons conforme uma série de traços articulatórios (como você configura os órgãos da fala ao pronunciar certo som). Por exemplo, [k] é descrito como uma “consoante oclusiva velar surda oral”. Isso quer dizer que é, primeiro, uma consoante – ou seja, sua produção envolve bastante interferência no fluxo de ar que sai dos pulmões, diferentemente de uma vogal, que modifica pouco a passagem de ar pulmonar. Segundo, a língua realiza um

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fechamento total da passagem do ar, que depois é solto com uma microexplosão. Terceiro, “velar” quer dizer que o fechamento total da língua é realizado contra o “véu palatino” (também conhecido como palato mole). Quarto, “surda” significa que as cordas vocais não vibram durante a articulação; e, finalmente, “oral” significa que o palato mole está levantado, de modo que o ar escapa apenas pela boca, e não pelo nariz. Cada símbolo no AFI corresponde a um som classificado dessa maneira. Os pontos de articulação (articuladores passivos) discriminados no AFI são: lábios; dentes; alvéolos; região prepalatal ou alveopalatal; palato duro; palato mole ou véu palatino; úvula (a “campainha”); faringe; laringe. Os articuladores ativos, que se deslocam no espaço para interagir com os articuladores passivos, são:

lábio inferior; dentes inferiores; língua (a ponta ou ápice, a lâmina e o dorso); palato mole; cordas vocais.

Além da oclusão (bloqueio total do ar), as maneiras de articulação (a conjunção dos articuladores) são:

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Fricção/Fricativa – o articulador ativo se aproxima muito do articulador, mas não fecha a passagem de ar totalmente. Africação – uma oclusiva e uma fricativa articuladas sucessivamente, como ts, dz, pf, bv etc. Nasalização/nasal – o palato mole desce, permitindo o ar pulmonar passar pelo nariz. Lateralização/lateral – a língua fecha a passagem do ar na região central da boca, mas o ar pode escapar livremente pelas laterais. Vibração/vibrante – os lábios, o ponto ou dorso da língua bate muito rapidamente, uma ou várias vezes.

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Retroflexão/retroflexo – a língua se curva para cima e a parte de baixo encosta na região alveolar. Vozeamento – as cordas vocais vibram com a passagem do ar (vozeado/sonoro), criando um zumbido na laringe, ou as cordas vocais são afastadas, de modo que o ar passe livremente pela glote (o espaço entre as cordas vocais), sem nenhuma vibração (desvozeado/surdo).

As vogais também são descritas da mesma maneira, sendo divididas entre anteriores e posteriores, a depender de qual parte da língua, a frente ou o dorso, é a mais elevada. Além disso, podemos notar a presença ou ausência de arredondamento dos lábios e a posição do véu palatino para cima (vogais orais) ou para baixo (vogais nasais). Convencionalmente, distinguimos quatro graus de altura da língua: 1. 2. 3. 4.

alto [i u]; médio-alto [e o]; médio-baixo [ɛ ɔ]; baixo [a ɑ ɒ].

Também existem descrições dessas vogais cardeais em termos da abertura da boca, de modo que alto = fechado, médio-alto = médio-fechado, médio-baixo = médio-aberto e baixo = aberto. Para que você se familiarize com esse alfabeto, segue um quadro com seus principais aspectos:   Quadro 1.1  Alfabeto Fonético Internacional. 

Consoantes (mecanismo de corrente de ar pulmonar) bilabial Oclusiva Nasal Vibrante

labiodental

p b m B

Tepe (ou flepe) Φ  β Fricativa Fricat. lateral Aproximante Aprox. lateral

dental alveolar pós-alveolar retroflexa palatal

velar

uvular faringal glotal

ɱ

f v

θ  ð

ʋ

t  d

ʈ  ɖ

c  ɟ

k g

q  G

n r

ɳ

ɲ

ŋ

N R

ɾ

ɽ

s z ɫ  ɹ l

ʃ  ʒ

ʂ  ʐ

ç  ʝ

ɻ ɭ

j ʎ

x  ɣ χ  ʁ

ʔ

ħ

ʕ

h ɦ

ɮ ɰ ʟ

Em pares de símbolos, tem-se que o símbolo da direita representa uma consoante vozeada. Acredita-se serem impossíveis as articulações nas áreas sombreadas.

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Consoantes (mecanismo de corrente de ar não pulmonar) Cliques

ǃ pós-alveolar

Implosivas vozeantes ɓ bilabial ɗ dental/ alveolar ʄ dental

ǂ palatoalveolar ǁ lateral-alveolar

ɠ velar Ƹ uvular

ʘ bilabial ǀ dental

Suprassegmentos ' acento primário 'foʋnɘ'tiʃɘn

Ejetivas ʼ como em pʼ bilabial tʼ dental/ alveolar kʼ velar sʼ fricativa alveolar

Tons e acentos nas palavras Nível Contorno ě ou � ou ˥ ascendente ê� é alta descendente ĕ � alto ē ˧ média ascendente ě � baixo è ˨ baixa ascendente ẽ � ascendenteȅ ˩ muito baixa -descendente etc. ascendência global ↓ downstep (quebra brusca) descendência global ↑ upstep (subida brusca)

' acento secundário ː Longa



ˑ Semilonga



˘ muito breve

ĕ

. divisão silábica

ɹi.ækt

ǀ grupo acentual menor ǁ grupo entonativo principal ̮ ligação (ausência de divisão) central

ɨ

ʉ ʊ

iy

ɤ o

ϴ

ε ɞ

œ æ a

ɑ

œ

ɑ

Aberta (ou baixa)

e

a

Meia-aberta ε (ou média-baixa)

ø

e

Meia-fechada e (ou média-alta)

c v

i y

posterior

n m

anterior Fechada (ou alta)

Quando os símbolos aparecem em pares, aquele da direita representa uma vogal arredondada. Diacríticos Pode-se colocar um diacrítico acima de símbolos cuja representação seja prolongada na parte inferior, por exemplo: ŋ̇ . . desvozeado   ṇ ḍ ˯ vozeada    h aspirada    th dh mais arred.    menos arred.   ̟ avançado    u̟ ̠ retraído     ̈ centralizada     ë ̇ centraliz. média  ė ̣silábica     ṇ ̭ não silábica    ḙ roticização   ɚ a

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̤ voz. sussurrado   ̰ voz. tremulante   ̪ ̪ linguolabial     w  labializado   tw dw j   palatalizado   tj dj ɤ  velarizado    tɤ dɤ ҁ faringalizado   tҁ dҁ ̴ velarizada ou faringalizada ̝ levantada ̞ abaixada ̘ raiz da língua avançada ̙ raiz da língua retraída

̪ dental      t̪ d̪ ̺ apical       t̺ d̺ ̻ laminal      t̻ d̻ ͂ nasalizado     e͂ soltura nasal      dn  soltura lateral     dl ̚   soltura não audível  d ̚ ɫ e (ɹ̝ = fricativa bilabial vozeada) e̞ (β̝ = aproximante alveolar vozeada) e̘ e̙

n l

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Outros símbolos ʍ f ricativa labiovelar desvozeada w  aproximadamente labiovelar vozeada ɥ aproximadamente labiopalatal vozeada ʜ f ricativa epiglotal desvozeada ʢ fricativa epiglotal vozeada ʡ  oclusiva epiglotal

ɕʑ f ricativas vozeadas epiglotal ɹ flepe alveolar lateral ɧ articulação simultânea de ʃ e X Para representar consoantes africadas e uma articulação dupla, utiliza-se um elo ligando os dois símbolos em questão. k͡ p t͜ s

Fonte: Egelbert (2011, p. 44-45 apud GUIMARÃES, 2015, p. 26-27).

Lei de Grimm A Lei de Grimm promove “deslocamentos de sons” pautados basicamente nas consoantes, que Grimm separa em três grupos ou ordens. Cada grupo, por sua vez, é composto por três séries (uma de consoantes labiais, uma de dentais e uma de velares). O chamado grupo das “tênues”, na terminologia de Grimm, corresponderia às atuais consoantes oclusivas surdas (p, t, k), enquanto as “médias” seriam as oclusivas sonoras (b, d, g) e fricativas sonoras (v, ð), e as “aspiratæ” seriam as oclusivas surdas aspiradas (pʰ, tʰ, kʰ), as fricativas surdas (f, θ , x ) e as africadas (pf, ts ). Estabelecendo comparações entre o grego, o gótico e o alto alemão, Grimm indica um movimento “descendente”, defendendo uma visão romântica de uma contínua decadência das línguas ao separarem-se da língua-mãe. Do grego, que representa os sons originais, Grimm parte para o gótico, que representa o germânico ancestral (a língua germânica mais antiga de que temos registros escritos), e do gótico para o alto alemão antigo. Os itens abaixo representam uma série de alterações nas pausas da língua protoindo-europeia para a protogermânica seguindo a Lei de Grimm:

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Oclusivas sem som (p, t, k) > fricativos sem som (f, θ, x). Oclusivas sonoras (b, d, g) > oclusivas surdas (p, t, k). Oclusivas sonoras aspiradas (bʰ, dʰ, gʰ) > oclusivas sonoras simples (b, d, g).

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Gramática histórica da língua inglesa

No Quadro 1.2, a seguir, as formas inglesa e gótica de palavras demonstram os efeitos dessas mudanças na língua germânica. As versões em sânscrito, latim e grego, por outro lado, apresentam as oclusivas da língua indo-europeia inalteradas, sem passar pelas transformações da Lei de Grimm presentes nas formas germânicas. Quadro 1.2  Efeitos da Lei de Grimm sobre cognatas indo-europeias.

Sânscrito Set Ia: *p > f pad- (pé) páńča (cinco) [páɲča] prapū- (clarear, fazer brilhar) pitár- (pai) nápāt(descendente) Set Ib: *t > θ trī-/tráyas (três) tv-am (tu) -ti- (sufixo nominalizador, -te, mor-te ‘morte’) gátis (passo, jeito de andar)

Grego podpénte

Latim

Gótico

Inglês

ped[quinque] [kwinkwe] propūrus (puro) pater nepōs (sobrinho, neto)

fōtus fimf

foot five

fra[OE fȳr]

fro fire (fogo)

fadar [faðar] [OHG nefo]

father [OE fæder] nephew [OE nefa]

treĩs/tría tū (Dório) -ti-

trēs tv-am -tis/-sis

þrija þu

three thou -th

mor-tis

básis (indo)

propur patér

health, truth, birth, death (saúde, verdade, nascimento, morte)

Set Ic: *k > h (or [x]) śvánkúōn [ʃvən-] śatám (cento/cem) (he-)katón [ʃətə´m] kravís (carne crua) kré(w)as (carne crua, carne)

canis hunds hound (cão) [kanis] centum hunda (pl.) hundred [kentum] cruor (cru, raw [OE hrāw] sangue, espesso/ (cadáver) consistente/ grosso) dáśa (dez) déka decem taíhun ten [də´ʃə ] [dekem] [tɛxun] Set IIa: *b > p (*b era um som bem raro no protoindo-europeu, e muitos duvidam que ele realmente fazia parte do sistema fonético dessa língua) (Lituânia) diups deep [OE dēop] dubùs (profundo) kánnabis (Lituânia) hemp (cânabis, [kanapẽs] (empréstimo?)) Latim sliupan slip lūbricus

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Set IIb: *d > t d(u)vá-

dúo/dúō

duo

dántdáśa [d´əʃə] padad(comer) véda Set IIb: *g > k ǰánás ǰánuǰnātá áǰra(país) mr̥ ǰ(ordenhar) Set IIIa: *bh > b bharbhrátar

odóntdéka podédō (eu como) woīda

dentdecem [dekem] pededō (eu como) videō

génos gónu gnōtós agrós

genus genū (g)nōtos ager

kun-i (raça, tribo) kniu kunnan akrs

(a-)mélgō (espremer)

mulgeō (ordenho)

miluk-s (leite)

phérphrátēr

ferfráter

baír-an [bɛran] brōƿar

a-bhū-t (ele foi)

é-phu (geri, produzi)

fu-ti (ele foi)

bau-an [bō-an] (morar, habitar)

ti-thē-mi (eu coloquei, pus) thrasús (atrevido) thúr-a ē-wíthewos’ (jovem solteiro) méthu mésos

fē-cī (fiz, fabriquei) (fest-)

khēn

Set IIIb: *dh > d dhā(colocar, pôr) dhr̥ aṣṇóti (ele se atreve) dvārvidhávā mádhu madhyaSet IIIc: *gh > g haṁs-á(cisne, ganso) stigh(passo largo) vah(levar, carregar)

steíkhō (ando a passo) wókh-os (carruagem, biga)

twái [twɛ-] tunƿus taíhun [tɛxun] fōtus

wáit [wɛt]

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two (dois) tooth (dente) ten (dez) foot (pé) eat [OE etan] (< com + ed + e + re) wit (saber, conhecer) kin knee know acre (medida de área) milk (leite)

bear (levar, carregar) brother (irmão (cf. fraternal)) be (ser)

do [OE dō-n]

for-ēs vidua

(ga-)dars (ele se atreve) daúr- [dor-] widuwo

dare [OE dear(r)] (ele se atreve) door (porta) widow (viúva)

medius

midjis

mead (hidromel) mid (meio)

āns-er,

Gans [German]

goose

veh-ō (levo, carrego)

steigan [stīgan] (escalar) ga-wig-an (mexer, sacudir)

weigh/wain (pesar/ carro, carreta)

* OE = Old English ou inglês antigo. OHG = Old High German ou alto alemão antigo. Fonte: Campbell (1998, p. 137-140).

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Gramática histórica da língua inglesa

Como vimos, a Lei de Grimm representa constantes correlações entre línguas germânicas e não germânicas, resultantes de regulares mudanças sonoras na língua germânica. Há, contudo, exceções à Lei de Grimm, como as oclusivas em agrupamentos de consoantes exemplificadas no Quadro 1.3, a seguir. Quadro 1.3  Exceções à Lei de Grimm em agrupamentos de consoantes.

Sânscrito 1. páś-

Grego [skep-]

spec-

2. ṣṭhiv-)



spu-

3. ạṣtáu [əʂʈə´u] 4. nákt-

oktō

octō [oktō] noct[nokt-] capt(ivus) (captivo) -tis/sis básis (indo)

5. 6. -tigátis (andar) 7.

nukt-

-timor-tis (morte)

Latim

piscis [piskis]

Gótico [OHG speh-] speiw-an [spīw-an] ahtáu [axtau] nahts [naxts] (haft)

fisks

Inglês spy (?) (ver, enxergar) spew (cuspir, vomitar) eight (oito) night (noite) [OE hæft] (prisioneiro) -t (sufixo normalizador) thrift, draught, thirst, flight, drift (parsimônia, corrente de ar, sede, voo, deriva) [OE fisc] (peixe)

Fonte: Campbell (1998, p. 141).

De acordo com a Lei de Grimm, o /p/ nos termos (1) e (2) do sânscrito, grego e latim, por exemplo, deveria corresponder a /f/ nas formas em inglês e gótico, e não ao /p/ existente nessas versões. De modo similar, no intervalo de (3) a (6), seria esperado que o inglês e o gótico apresentassem /θ/ (escrito ), e não o verificado /t/, correspondendo ao /t/ do sânscrito, grego e latim. Já no (7), o /k/ do latim deveria corresponder ao /x/ germânico, não ao /k/ dos termos gótico e inglês nesse grupo de cognatas (CAMPBELL, 1998). Vale destacar, ainda, o caso da palavra svan em sânscrito, em que o *k do PIE também sofreu mudança: Sânscrito svan

Grego kuon

Latim canis

Gótico hunds

Inglês hound (cão)

Todas essas exceções podem ser compreendidas quando considerarmos que a Lei de Grimm surgiu antes da emergência de várias fricativas e oclusivas. Contudo, se a Lei de Grimm for corretamente

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aplicada – excluindo oclusivas após fricativas (/s f θ x/ + oclusiva) e outras oclusivas em agrupamentos de consoantes, por exemplo, as Leis de Grassmann e de Verner que veremos a seguir – e desde que não hajam alterações inerentes a essas circunstâncias, as oclusivas em agrupamentos não são de fato exceções às mudanças sonoras. Lei de Grassmann A chamada Lei de Grassmann, também conhecida como “lei de dissimilação das aspiradas”, elucida outro grupo de formas que aparentavam ser exceções à Lei de Grimm. Em grego e sânscrito, a Lei de Grassmann promove sistemáticas substituições na primeira de duas oclusivas aspiradas, levando a primeira a perder sua aspiração. Como resultado disso, algumas correspondências sonoras entre as línguas grega e o sânscrito desobedecem às previsões da Lei de Grimm, como é possível observar nas cognatas a seguir: Sânscrito bodha

Grego peutha

Gótico biudan

Inglês bid (despertar, tomar consciência)

bandha

bindan

bind (vincular, amarrar)

O primeiro deriva do termo protoindo-europeu *bheuda-, enquanto o segundo advém da forma *bhendh. Houve subtração do primeiro bh por conta da ocorrência de uma segunda oclusiva aspirada na mesma palavra (dh, neste caso). A partir daí, temos uma correspondência sonora em (1): Sânscrito b / Grego p / Gótico b / Inglês b Segundo a Lei de Grimm, espera-se que o /b/ do sânscrito corresponda ao /p/ germânico (inglês e gótico nesse caso) e que o /b/ germânico corresponda ao /bh/ do sânscrito e ao grego /ph/. Assim sendo, a relação de correspondência verificada indica uma exceção à Lei de Grimm (CAMPBELL, 1998). Os grupos de cognatas correspondentes ao (1), no entanto, não são verdadeiras exceções à Lei de Grimm. Na realidade, as formas germânicas são descendentes regulares das PIE /bh dh gh/ > protogermânico /b d g/ de acordo com a Lei de Grimm, sendo

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as formas em sânscrito e grego não correspondentes ao esperado em virtude da subtração regular da primeira parada aspirada pela Lei de Grassmann, sempre que tal parada precedia outra pausa aspirada. Podemos concluir, portanto, que a correspondência sonora é motivada por essas modificações sistemáticas da Lei de Grimm na língua germânica e da Lei de Grassmann no grego e no sânscrito. Lei de Verner A Lei de Verner explica uma série de formas que constituíam o último e mais complexo grupo de exceções à Lei de Grimm a serem explicadas. Algumas delas são demonstradas no quadro a seguir: Quadro 1.4  Exemplos da Lei de Verner.

Sânscrito

Grego

Latim

Gótico

Inglês

1. saptá

heptá

septem

sibun

seven

2. pitár-

patḗr

pater

fadar

OE fæder

3. śatám

(he-)katón

[śətəm]

centum

[faðar]

‘father’ (pai)

hunda (pl.)

hundred

[kentum]

(cem, cento)

4. śrutás

klutós ‘heard’

OE hlud ‘loud’

‘heard’

(ouvido)

(ruidoso, [volume] alto)

(ouvido) 5.

makrós ‘long,

macer

[OHG

meagre

slender’

[maker]

magar]

(pouco)

(comprido, magro, estreito) Fonte: Campbell (1998, p. 143).

De acordo com a Lei de Grimm, o /p/ do sânscrito, grego e latim deveria corresponder ao /f/ na língua germânica (representada aqui pelo gótico e pelo inglês); mas em vez disso temos em gótico /b/ e em inglês /v/. A partir do gótico /b/, a correspondência esperada em sânscrito seria /bh/ e em grego /ph/ (1). Já nos grupos cognatos (2-4), o /t/ do sânscrito, do grego e do latim corresponde ao /d/ germânico, e não ao /θ/ como previsto pela Lei de Grimm; também não correspondem ao esperado o sânscrito /dʰ/ e o grego /tʰ/, dado o germânico /d/.

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Ou seja, Verner destacou que a Lei de Grimm se aplicava somente quando a vogal precedente era acentuada. Assim, o /θ/ germânico no meio de uma palavra, por exemplo, transformava-se primeiro em /ð/ e depois em /d/, exceto quando a vogal precedente era tônica. Caso a vogal precedente fosse átona, a Lei de Grimm funcionava normalmente. Quadro 1.5  Exemplos dos efeitos contrastantes da Lei de Grimm e da Lei de Verner nas consoantes intermediárias.

Lei de Grimm

Lei de Verner

‘...C...

...C...’

*p > f

*p > b [β]

1a. Ingl. Ant. hēafod ‘head’ (cabeça)

1b. Gótico sibun [siβun] ‘seven’ (sete)





Latim caput [káput]

Sânscrito saptá-

*t > θ

*t > d [ð]

2a. Gótico brōþar [brōθar] ‘brother’ (irmão) Sânscrito brátar-

2b. Ingl. Ant. fæder ‘father’ (pai)

*k > x

*k > g [ɣ]

3a. Gótico taíhun ‘ten’ (dez)

3b. Gótico tigus ‘decade’ (década)





Grego déka



Sânscrito pitár-

Grego dekás

Fonte: Campbell (1998, p. 144).

A família indo-europeia A família indo-europeia, também conhecida como indo-germânica ou ariana, é constituída por centenas de dialetos e línguas que englobam as principais línguas da Europa, do norte da Índia, do Paquistão, do Afeganistão, do Irã, e, no passado, da Anatólia (hitita) e da Ásia Central (tocário). Embora não existam registros históricos da língua indo-europeia original, podemos caracterizar sua estrutura por meio das línguas descendentes, reconstruindo assim seus aspectos léxicos e inflexões. As línguas descendentes do indo-europeu apresentam vários graus de semelhança entre si, fator relativamente influenciado pela localização geográfica. Essas línguas são divididas nos seguintes grupos: indiano, iraniano, armênio, helênico, albanês, itálico, balto-eslavo, germânico, céltico, hitita e tocariano. Vamos conhecê-los separadamente a seguir (LEHMANN, 1992):

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Indiano – os Vedas ou livros sagrados da Índia são os mais antigos textos literários preservados em qualquer língua indo-europeia. Eles são formados por quatro grupos de livros, que juntos fundamentam o brahmanismo – filosofia religiosa indiana surgida há aproximadamente três mil anos. O conteúdo desses livros foi transmitido oralmente por muitos séculos até ser registrado por escrito em sânscrito. Gradualmente, a língua sânscrita passou a ser empregada em outras formas escritas não religiosas, até que gramáticos nativos estabeleceram uma forma literária padronizada para a língua, que ficou conhecida como sânscrito clássico. Paralelamente, porém, havia um grande número de dialetos de uso rotineiro, os quais originariam as línguas indianas atuais, como hindu, urdu, bengali e outras. Iraniano – o grupo de línguas conhecido como iraniano é encontrado na região do noroeste da Índia e no Irã. Os ocupantes dessas áreas habitaram e viajaram por muito tempo com membros da ramificação indiana, fato que explica o considerável número de características linguísticas em comum entre eles. Os mais antigos indícios do grupo iraniano são divididos em dois ramos, um oriental e um ocidental, respectivamente correspondentes ao avéstico e ao persa antigo. O avéstico, também conhecido como zenda, corresponde a uma língua iraniana oriental, relacionada ao sânscrito, empregada na antiga Pérsia e idioma do livro sagrado do Zoroastrismo – o Avesta. Já o persa antigo, encontra-se preservado somente em alguns registros cuneiformes que relatam as conquistas dos reis Dario (522-486 a.C.) e Xerxes (486-466 a.C.). A forma mais moderna dessa língua, datada dos primeiros séculos da era atual, é chamada de ­Pahlavi ou médio iraniano e era a língua oficial do Estado e da igreja ao longo da dinastia dos sassânidas (226-652 d.C.). Essa é considerada a língua ancestral do persa moderno. Armênio – a língua armênia é falada em uma pequena área ao sul do Cáucaso e na extremidade oriental do Mar Negro. A chegada dos armênios nessa região ocorreu entre os séculos 8 e 6 a.C., vindos dos Balcãs. Suspeita-se que a língua da antiga população dessa área tenha influenciado o armênio, especialmente em relação ao aspecto fonológico.

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A língua armênia apresenta determinadas alterações em algumas de suas consoantes que se assemelham às alterações encontradas no germânico e que, como ocorre com esta, podem estar relacionadas a interações com outras línguas. Como as línguas do sul do Cáucaso, o armênio não possui gênero gramatical. Além disso, ao contrário do que se observa entre o indiano e o iraniano, o armênio não apresenta características em comum com nenhum outro grupo da família indo-europeia, razão pela qual é considerada uma língua bastante isolada. Helênico – nos primórdios da História, a região do Egeu foi habitada por populações diferentes em termos linguísticos e raciais dos gregos, que povoariam essa região mais tarde. Por volta do ano 2000 a.C., em um contexto de mistura e interação entre o grego e as línguas pouco conhecidas dessas populações, o povo grego tomou a região. Sendo assim, a partir da análise da língua grega, é possível identificar os cinco principais grupos de dialetos: o iônico, do qual o ático é um subdialeto; o eólico, no norte e nordeste; o arcádico-cipriota, no Peloponeso e no Chipre; o dórico, que mais tarde substituiu o arcádico no Peloponeso; e o grego do noroeste, do centro norte e da parte ocidental da região grega. Também existe o grego micênico que foi encontrado em listas e inventários de produtos na escrita silábica Linear B em tabletes de barro, decifrados pelo inglês Michael Ventris, em 1952; a mais antiga variedade do grego (1600-1200 a.C.), aproximadamente 300 anos mais antigo que o grego clássico. Albanês – o pequeno grupo albanês localiza-se na região da costa oriental do Mar Adriático. Supõe-se que a língua albanesa seja remanescente da língua ilíria, falada em tempos antigos no noroeste dos Balcãs. Além disso, nosso conhecimento do albanês é recente, e o vocabulário dessa língua é extremamente misturado com noções de latim, turco, grego e eslavo; fatos que dificultam uma análise mais específica da língua albanesa. Diante disso, um longo tempo se passou até que o albanês fosse reconhecido como membro da família indo-europeia. Itálico – o grupo itálico encontra-se concentrado na região da Itália e, embora a maioria das pessoas costume

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relacionar a Itália à Roma e Roma ao latim, muitas outras línguas atuaram nessa área. A posição geográfica favorável e o clima ameno italiano atraíram habitantes de diversas culturas e línguas. Como exemplo podemos citar o etrusco, língua não aparentada com a família indo-europeia que era falada na região oeste; a língua venética, falada na região do Vêneto; e o messápio, falado no extremo sudeste italiano. Além disso, o grego era amplamente empregado em muitas colônias gregas do sul da Itália e da região da Sicília. Todas essas línguas, contudo, foram sucumbindo ao latim conforme Roma conquistava maior poder político na região. Assim, a colonização romana na Espanha e na Gália – por volta de 51 a.C. –, nas ilhas do Mediterrâneo, no norte africano e até mesmo na Grã-Bretanha espalhou o latim por todo esse novo território, interagindo com outras línguas e locais. As diversas línguas que demonstram influência do latim em várias partes do antigo Império Romano são conhecidas como línguas românicas. Algumas delas inclusive propagaram-se, muitos séculos depois, por outras regiões, especialmente no chamado Novo Mundo. Os principais exemplos de línguas românicas são o italiano, o francês, o espanhol, o português e o romeno. Essas línguas, no entanto, não são derivadas do latim clássico, uma variedade literária, mas do latim falado pelas classes populares e sujeito a frequentes transformações. Balto-eslavo – o ramo balto-eslavo abrange uma ampla região na parte oriental europeia. Ele é composto por dois subgrupos bastante semelhantes entre si: o báltico e o eslavo. O báltico é comporto por três línguas: o prussiano, o letão e o lituano. O prussiano não existe mais, pois foi substituído pelo alemão desde o século XVII. O letão, por sua vez, é uma língua falada por aproximadamente três milhões de pessoas no território da Letônia. Já o lituano é reconhecido na família indo-europeia por seu alto grau de conservadorismo, preservando estruturas e características já extintas em quase todas as demais línguas da família. O subgrupo eslavo é formado por três línguas bastante parecidas: o eslavo do leste, o eslavo do oeste e o eslavo do sul. O eslavo do leste e o eslavo do oeste ainda abrangem áreas

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contíguas, o eslavo do sul, porém, encontra-se separado dos outros por uma área habitada por romenos e húngaros. O eslavo do leste abrange três variedades: o russo, principal variedade e falada como primeira ou segunda língua por aproximadamente 220 milhões de pessoas, o ucraniano e o bielorrusso. O eslavo do oeste apresenta quatro variações: o polonês, falado por mais de 40 milhões de pessoas, o tcheco, o eslovaco e as línguas sorábias. O eslavo do sul, por fim, inclui o búlgaro, o servo e o croata, o esloveno e o macedônio moderno. Germânico – o germânico ou protogermânico corresponde à forma que as línguas do ramo germânico possuíam antes de diferenciarem-se entre si. Ou seja, assim como ocorreu com o indo-europeu, o germânico antecede os mais antigos registros históricos encontrados, sendo necessária sua reconstrução pelos filólogos. O germânico do leste, o germânico do norte e o germânico do oeste são os três subgrupos de línguas descendentes desse grupo. No germânico do leste, o extinto gótico era a principal língua. O germânico do norte, por seu turno, é predominante nas regiões da Escandinávia, Dinamarca, Islândia e Ilhas Faroé. Já o germânico ocidental é especialmente interessante, pois trata-se do grupo no qual a língua inglesa se encontra; e apresenta-se em duas ramificações: o alto alemão e o baixo alemão. O alto alemão diz respeito a todas as variedades linguísticas do Hochdeutsch (alemão padrão) e do iídiche, bem como de dialetos locais alemães falados nas regiões sul e central da Alemanha, na Áustria, Liechtenstein, Suíça, França (regiões do norte de Lorraine e Alsácia), Polónia e Itália. É empregado ainda na Romênia, Rússia, Estados Unidos e Namíbia. O baixo alemão, por sua vez, é um conjunto de línguas – atualmente tidas como dialetos – que formam o campo dialetal das línguas germânicas faladas no leste dos Países Baixos e no norte da Alemanha. O baixo alemão apresenta muitos pontos em comum com o frísio e com o próprio inglês. Céltico – as línguas célticas já constituíram um dos maiores grupos da família indo-europeia. Nos primeiros anos da era cristã, os celtas ocupavam a Espanha, a Gália, a Grã-Bretanha, a região ocidental da Alemanha e o norte da Itália. O

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progresso da civilização celta, alguns séculos antes, levou as línguas célticas também à Grécia e à Ásia Menor. Atualmente, no entanto, o grupo de línguas célticas é utilizado somente por minorias em regiões das Ilhas Britânicas e da França. Hitita e tocariano – os grupos hitita e tocariano são os mais novos integrantes da família indo-europeia, descobertos apenas no século XX. O hitita era o idioma falado pelos hititas, donos de um império sediado na região centro-norte da atual Turquia, e trata-se da mais antiga língua indo-europeia conhecida, surgida aproximadamente em 1600 a.C. Já as línguas tocárias ou tocarianas representam um dos campos mais desconhecidos da família indo-europeia, divididas entre os chamados tocariano A e tocariano B, presentes em cidades nos oásis ao redor do deserto de Taklimakan (Ásia Central), entre os séculos VI e VIII.

A família germânica A família germânica é um grupo de línguas derivado da língua ancestral protogermânica (PGmc), que por sua vez tem suas origens na ainda mais remota língua-mãe protoindo-europeia (PIE). O germânico é um grupo indo-europeu da região noroeste que apresenta vários aspectos em comum com o eslavo, o báltico, o céltico e o itálico. Os mais antigos textos germânicos são inscrições rúnicas do século III d.C. Esses registros, embora fragmentados e por vezes ilegíveis ou curtos, nos permitem traçar um panorama da família germânica em seus primórdios. Um dos textos mais antigos encontrados, do ano 200 d.C., é o seguinte: Figura 1.3  Antiga inscrição germânica encontrada na região da Jutlândia do Norte, Dinamarca.

ᛒ ᛁ ᛞ ᚫ ᚹ ᚫ ᚱ ᛁ ᛃ ᚫᛉᛏᚫᛚᚷ ᛁ ᛞ ᚫ ᛁ b i d awa r i j az t alg i d a i Bida-Warijaz entalhou isto. Fonte: Lass (1994, p. 12).

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Classificação das línguas germânicas A classificação tradicional das línguas germânicas estabelece três grupos principais: os germânicos do leste (Gmc. Or.), do norte (Gmc. set.) e do oeste (Gmc. Oc.). No entanto, a recente descoberta de inscrições rúnicas mais antigas e diferentes das anteriormente conhecidas indicou a existência de um quarto dialeto, distinto do germânico do leste e ancestral dos germânicos do norte e do oeste: o germânico do noroeste (Gmc. NOe.). A árvore genealógica das línguas germânicas, portanto, seria: Figura 1.4  Árvore genealógica das línguas germânicas.

Proto-Gmc

Gmc. Or.

Gmc. NOe.

Gmc. set.

Gmc. Oc.

Fonte: Lass (1994, p. 14).

Saiba mais Família linguística germânica ocidental Ao analisarmos a árvore genealógica linguística germânica, cabe destacar que os povos germânicos ocidentais dividiam-se em três grandes grupos tribais: os ingvaeones, os istvaeones e erminones. Os dialetos ingvaeones eram falados na região da costa do Mar do Norte, os dialetos istvaeones eram empregados nas áreas centrais e os dialetos erminones estão mais relacionados ao moderno alto-alemão. A família germânica ocidental é representada a seguir, incluindo as línguas modernas:

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Figura 1.5  Família linguística germânica ocidental.

*Protogermânico ocidental AD 100 'Ingveônica'

'Istveônica'

'Erminiônica'

200 300 ‘Angl-Fr’ 400 500 600 700

OHG OE

OS

800

OLF

900 1000

ME

MLG

MDu

LG

Du

MHG

OYi

G

Yi

1100 1200

OFri

1300 1400 1500 1600 1700

ModE

Fri

Afr

1800 1900 1990 ‘Angl-Fr’ – Anglo-Frisian – Anglo-frísio OE – Old English – Inglês Antigo ME – Middle English – Inglês Médio ModE – Modern English – Inglês Moderno OFri – Old Frisian – Frísio Antigo Fri – Frisian – Frísio OS – Old Saxon – Saxão Antigo MLG – Middle Low German – Baixo-alemão Médio LG – Low German – Baixo-alemão OLF – Old Low Franconian – Baixo-francônio Antigo MD – Middle Dutch – Holandês Médio Du – Dutch – Holandês Afr – Afriânder OHG – Old High German – Alto-alemão Antigo MHG – Middle High German – Alto-alemão Médio G – German – Alemão OYi – Old Yiddish – Iídiche Antigo Yi – Yiddish – Iídiche

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*As datas à margem esquerda não representam as datas de surgimento de fato das línguas, mas indicam as datas dos primeiros textos evidenciando a existência da língua, ou a época em que determinada tradição demonstra uma clara inovação. Fonte: Lass (1994, p. 15).

Mudança linguística História interna versus história externa No âmbito da Linguística Histórica, a trajetória de uma língua pode ser analisada com relação à sua história externa ou interna. A primeira diz respeito a características extralinguísticas, ou seja, aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos que de alguma forma impactaram o processo evolutivo de uma língua. A língua galega, por exemplo, falada na região noroeste da Espanha, foi duramente discriminada durante o período conhecido como franquismo. Somente com o fim da ditadura de Franco ela foi reconhecida como idioma oficial daquela área. Outro exemplo característico de história externa é a conquista romana da Península Ibérica, a qual promoveu a formação das diversas línguas românicas da região. A história interna, por sua vez, relaciona-se à constituição da língua e suas transformações nos vários campos linguísticos ao longo do tempo, tais como a morfologia, a sintaxe e a fonética. As alterações fonéticas pelas quais as palavras passam ao longo dos anos, de acordo com as chamadas leis fonéticas, são um claro exemplo da história interna de uma língua. A lei da simplificação articulatória ou “lei do menor esforço” propõe que os falantes de uma língua sempre tentam deixar sua pronúncia mais fáceis para o aparelho fonador. A existência de poucas palavras proparoxítonas no português corrobora essa ideia; assim, o termo latino /′o.ku.lu/ (proparoxítona), por exemplo, passou (via /′ok.lu/) a ser /′ɔ.ʎo/ “olho” (paroxítona). No entanto, para que a comunicação seja possível, é preciso que as unidades com significado (morfemas) sejam distintas umas das outras, e isso exige que a “lei de menor esforço” não vá longe demais e reduza todo e qualquer morfema a uma sequência de /ǝ/ (a articulação de menor esforço), como uma espécie de zeros e uns do binário.

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De acordo com Faraco (2005), muitos linguistas modernos concordam que é importante conjugar a história interna e a externa das línguas, visando uma compreensão mais abrangente e empiricamente apropriada das complexas transformações pelas quais as línguas passam. Ainda segundo o autor, há duas maneiras principais de lidar com essa correlação: a aditiva, que argumenta que todos os aspectos da história interna de uma língua devem ser avaliados antes de olharmos para os elementos externos; e a integrativa, que propõe a análise simultânea dos fatores internos e externos, uma vez que ambos teriam grande importância no processo de formação linguística.

Mudança fônica A fonética e a fonologia são os ramos da linguística responsáveis pela análise da estrutura sonora das línguas. Enquanto a fonética se ocupa dos aspectos articulatórios e físicos, ou seja, os sons da fala, sua formação e qualidades acústicas, a fonologia relaciona-se à parte estrutural, analisando como organizam-se e funcionam os mecanismos que promovem o quadro sonoro de uma língua (FARACO, 2005). Da mesma forma, é importante diferenciar o conceito de mudança fonética, que representa uma modificação na pronúncia de alguns segmentos em certos vocábulos, da chamada mudança fonológica, que abrange mudanças na quantidade de unidades sonoras distintivas (fonemas), por exemplo, afetando todo o sistema de interações entre elas. Portanto, a troca de [1] por [w] no término de sílabas no português brasileiro, por exemplo, modificou a pronúncia de termos como golpe e alto, mas não mudou a quantidade de fonemas da língua, pois sua substituição por outros fonemas resulta na troca de um signo por outro, como nos casos do substantivo mar, que pode ser pronunciado das seguintes maneiras: /maR/ = [maɾ], [maɹ], [max], [mah], [mar]; ou no caso do advérbio mal, de pronúncias /maL/ = [mal], [maƚ], [maw]. Por outro lado, Faraco (2005) explica que a supressão dos fonemas medievais africados /ts/ e /dz/, que foram fusionados com as fricativas /s/ e /z/, respectivamente, no português moderno, por exemplo, modificou a estrutura geral da língua, diminuindo seu número de unidades sonoras distintivas. Similarmente, o acréscimo de fonemas no processo de transição do latim para o português

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também alterou a composição da língua, uma vez que incluiu novos fonemas que se diferenciam dos já existentes, por exemplo /s/ > /z/ entre vogais, > /ʃ/ antes ou depois de [j] (> /ʒ/ entre vogais); /g/ > /dʒ/ antes de vogais anteriores (/i/ e /ɛ/) (> /ʒ/); /k/ e /t/ > /tʃ/ (depois > /ts/) antes de /i/ e /e/ átonos etc. Segundo Faraco (2005), há várias transformações possíveis no contexto morfológico, tais como:





Conversão de vocábulos autônomos em morfemas derivacionais – como no caso de advérbios indo-europeus se tornando prefixos em latim, após anteposição e aglutinação aos verbos. Supressão de sufixos como morfemas distintos, passando a compor a raiz do vocábulo – um exemplo disso é o sufixo latino -ulu-, referente a grau diminutivo, o qual deixou de ser sufixo para compor a raiz das palavras. Modificações no sistema flexional – como na transição do latim para as línguas românicas, em que o sistema de flexão de caso foi cortado.

Mudança gramatical Mudança morfológica No campo da linguística, a morfologia corresponde ao ramo responsável pela análise da formação, estrutura e classificação das palavras. Nela, os vocábulos são estudados isoladamente, desconsiderando sua participação na frase ou período em que estão inseridos. A morfologia, portanto, dedica-se à investigação da estrutura interna das palavras, observando seus componentes (os morfemas) e processos derivacionais (as origens de novos vocábulos) e flexionais (aspectos gramaticais como pessoa, tempo, gênero e número). As investigações morfológicas também se interessam pela gramaticalização, ou seja, o processo pelo qual palavras lexicais (itens do vocabulário) são convertidas em elementos gramaticais, muitas vezes perdendo sua função lexical totalmente, como no caso do tempo futuro em português, em que as desinências número-pessoais -ei, -ás, -á, -emos, -eis e -ão, que vêm do verbo haver (habere em latim), atualmente não possuem nenhum vínculo em seu significado com a da palavra original (“possuir”, “ter”). Nesse caso, o processo de gramaticalização esvaziou completamente o significado original, deixando apenas a função gramatical de indicar o tempo futuro. O fato de as desinências aparecerem na

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posição de sufixos também é um indício da sua antiguidade, pois evoluiu em uma época em que a ordem sintática comum era com o verbo em final de frase e qualquer verbo auxiliar devia seguir o verbo matriz (Dare habeo = “hei de dar”, “tenho de dar” > dar (h)ei = “vou dar”, “darei”). Observe como, em português literário, as desinências número-pessoais no tempo futuro ainda são separáveis (mesóclise), por exemplo, dá-lo-ei, apontando para um tempo em que a base e o auxiliar eram unidades independentes, conforme as expressões tenho-o visto, quero o ver. Tal inserção de pronomes no tempo futuro sintético não é possível em outras línguas neolatinas modernas. Outro caso de gramaticalização em andamento nas línguas românicas é o uso do verbo ir como auxiliar para expressar o tempo futuro, ou seja, darei, darás, dará etc. – substitutos das formas em latim dabo, dabis, dabit etc. – estão sendo substituídos por vou dar, vais dar, vai dar etc. No português brasileiro, podemos apontar para o uso generalizado do substantivo a gente para expressar a primeira pessoa do plural (nós), ou a introdução do pronome você(s) (< vossa(s) mercê(s)) para se referir a qualquer segunda pessoa (o antigo tu e vós).

Mudança sintática A sintaxe, ao contrário da morfologia, analisa as palavras como elementos integrantes de uma frase, estudando questões referentes à ordem, concordância e subordinação. Um exemplo clássico de sintaxe histórica é o estudo da ordem dos integrantes de uma sentença. Na transição do latim para as línguas românicas, por exemplo, os termos em latim apresentam flexão de caso, indicando sua função sintática; no entanto, com a perda dessa flexão, aumenta a rigidez da ordem, como podemos observar nas línguas românicas. Portanto, a sentença em latim Paulum Maria amat (Maria sendo sujeito e Paulo objeto) passa para português como “Maria ama Paulo”, e qualquer mudança de ordem afeta o significado, diferentemente do latim (FARACO, 2005). No estudo da sintaxe, a gramaticalização também tem papel importante, pois, como vimo na morfologia, ela pode ser definida como um processo de modificação linguística que impacta o conteúdo semântico de um vocábulo ou expressão, transformando seu elemento lexical (uma palavra) em elemento gramatical (uma preposição ou pronome, por exemplo). Um exemplo típico desse

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processo na língua portuguesa é a formação do pronome pessoal “você” com base em uma expressão lexical (“Vossa Mercê”). Nesse processo de formação, temos ainda a chamada descoloração semântica, que ocorre sempre que um termo ou expressão tem seu significado lexical inicial substituído por um significado e função gramatical novos; e a redução fonética, responsável pela forma reduzida “cê”, frequentemente utilizada em substituição a “você” na língua falada. Se a morfologia interessa-se pela gramaticalização por ser uma fonte de novos morfemas, para a sintaxe é interessante investigar o contexto em que os processos de gramaticalização ocorrem, buscando descobrir como a colocação particular de uma palavra poderia influenciar na maneira que é compreendida pelos falantes, de modo que possa desencadear o processo de descoloração semântica.

Mudança lexical e semântico-pragmática Mudança semântico-pragmática O campo da semântica compreende o estudo do significado e da interpretação do significado de uma palavra, de uma expressão ou de uma frase inserida em certo contexto. A semântica, portanto, aborda a chamada significação. Tratando-se de linguística histórica, as alterações semânticas são analisadas a partir da palavra, ou seja, são entendidas como processos que modificam o significado da palavra (FARACO, 2005). As diversas taxionomias dessas modificações são, normalmente, debatidas em conjunto com as figuras de linguagem, tais como a metáfora, a hipérbole e a metonímia. Isso ocorre devido à crença de que, como o processo de geração de figuras origina novas significações, ele também influencia as mudanças de significado das palavras. São estudados na semântica histórica tanto os processos que diminuem ou restringem o significado da palavra quanto os que o expandem. Segundo Faraco (2005), o uso do termo “arreio” é um exemplo do primeiro caso: no português antigo, o vocábulo significava todo tipo de enfeite ou adorno; atualmente, porém, representa somente as peças destinadas à montaria de cavalos. Já o segundo caso é exemplificado pelo termo “revolução”, que inicialmente se aplicava apenas ao meio astronômico, significando a movimentação cíclica e regular dos corpos celestes. Mais tarde, porém, o vocábulo adquiriu um significado de movimento social que

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reestabelece uma ordem prévia, conectando-se ainda com seu significado original de ciclo ou volta. Atualmente, o termo “revolução” corresponde à aniquilação de uma ordem para a instauração de outra. Desse modo, a utilização dos mecanismos da chamada etimologia mostra-se bastante útil. A etimologia é o estudo gramatical da origem e da história das palavras, analisando de onde surgiram e qual sua evolução ao longo dos anos. Os dicionários etimológicos destinam-se a agrupar os resultados dessas pesquisas. Cabe destacar ainda o papel da pragmática, geralmente relacionada ao estudo da utilização de elementos linguísticos em comparação a suas funções estruturais. Assim, a pragmática histórica pode abordar, por exemplo, o emprego do pronome de tratamento “você” ao longo do tempo, analisando a quem ele se destinava em cada período histórico da língua portuguesa. Mudança lexical Como vimos, todas as áreas de estudo da linguística dedicam-se à análise da palavra, seja abordando sua estrutura sonora, na fonética e na fonologia; sua constituição interna, na morfologia; seu papel integrante em sentenças, na sintaxe; seu significado, na semântica; ou sua utilização, na pragmática. Na linguística histórica ocorre o mesmo, com estudos direcionados a cada tipo de mudança que uma palavra pode sofrer ao longo do tempo. Do mesmo modo, é possível estudar a composição do léxico de uma língua, ou seja, analisar o conjunto de vocábulos que os falantes de determinado idioma possuem à disposição para se expressar, observando os chamados “empréstimos” ou fluxos de termos oriundos de outras línguas. Ao abordarmos os aspectos lexicais de uma língua, fica mais fácil notar como cultura e linguagem apresentam relações estreitas. Podemos dizer, inclusive, que, por abrigar o acervo de palavras de determinada língua, o léxico representa o patrimônio cultural do povo que o utiliza.

O inglês antigo História externa: as migrações germânicas à Grã­ ‑Bretanha Por volta de 449 d.C., com o começo da invasão da ilha de Grã-Bretanha por tribos germânicas, ocorreu um importantíssimo

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marco na história da língua inglesa e da civilização humana em geral. Assim, ao longo de aproximadamente um século, bandos de conquistadores e colonizadores migraram de sua terra natal, na região dos Países Baixos e da Dinamarca, firmando residência nas zonas sul e leste da ilha britânica e expandindo gradativamente sua ocupação em direção ao norte e oeste. Atualmente, embora seja possível compreender como se deu esse processo, muitas questões permanecem obscuras, como as datas das migrações, sua localização precisa e as tribos germânicas envolvidas nesse processo. No ano 731 d.C., a versão oficial da invasão germânica à Grã-Bretanha é reportada na obra História Eclesiástica do Povo Inglês, do monge inglês Beda. Nela, o autor relata que as tribos germânicas que conquistaram a Inglaterra foram os jutos, originários do norte da península dinamarquesa, os anglos, do sul da mesma região, e os saxões, do sul e do oeste da antiga Ânglia, atualmente um distrito alemão. Os frísios, que originalmente ocupavam uma estreita faixa ao longo da costa desde a desembocadura do rio Weser, localizado no noroeste da atual Alemanha e Holanda, até o Reno, seriam a quarta tribo invasora. Figura 1.6  Localização original das tribos germânicas que invadiram a Inglaterra, de acordo com Beda. 10º L

ltic o

S TO JU

Bá ar M

ANGL

Mar do Norte 55º N

OS

R

R

Ems

F

S

Rio Elb a

Rio Ode r

O

Weser io

I

Rio

Í

S

S ÕE SAX

no Re Rio

Fonte: adaptada de Baugh e Cable (1994, p. 46).

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A Grã-Bretanha esteve sob ataques saxões desde o século IV d.C., até mesmo durante o domínio romano na região. Simultaneamente, a região norte da ilha sofria duras investidas dos pictos – povo que vivia na Caledônia, região que hoje integra a Escócia –, enquanto as forças romanas dominantes faziam o possível para defender o território. No entanto, com a decadência do Império Romano, os celtas não mais eram capazes de conter os pictos. Diante disso, ­Vortigern, líder regional celta, teria feito uma aliança com os jutos, que os ajudariam a expulsar os pictos em troca da ilha de Thanet, localizada ao leste de Kent, no sudeste da atual Inglaterra. Os jutos, porém, não ficaram satisfeitos com apenas esse território. Percebendo a fragilidade dos bretões, começaram a forçar entrada para o sudeste, na região de Kent. A invasão dos jutos foi muito diferente do domínio romano anterior. Enquanto os romanos governavam e regravam o povo da região, os jutos tomavam suas terras e os expulsavam. As invasões de outras tribos germânicas, anos mais tarde, seguiriam esse modelo, conforme atesta a chamada Crônica Anglo-Saxônica, um conhecido grupo de anais em inglês antigo que relatam a história do povo anglo-saxão. No contexto linguístico, podemos dizer que o inglês atual é resultado da história dos dialetos falados pelas tribos germânicas que tomaram a Inglaterra no século V. Assim, embora não seja possível diferenciar claramente os dialetos dessas tribos na época das migrações, por ainda serem ágrafas, podemos presumir, com base nas diferenças que posteriormente observamos, que haviam poucas divergências entre eles.

Fique atento Os nomes “English” e “England” Os conquistadores germânicos eram chamados indiscriminadamente de “saxões” pelos celtas, talvez devido ao primeiro contato entre eles e um povo germânico ter ocorrido com os saxões. Os primeiros escritores latinos também costumavam chamar os habitantes da Inglaterra de saxões, nomeando sua terra como Saxônia. Porém, não demorou muito para o termo Anglo ser implantado ao lado de saxão e Saxônia, representando todas as tribos germânicas. Esse nome é autóctone, ou seja, deriva da palavra germânica escrita

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Inglês antigo

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variavelmente como ænglisc, anglisc, engelisc (em inglês moderno, Angle, Anglo, Anglian, English) e que denominava um dos povos que migrou para as ilhas Britânicas, os anglos – cuja pátria ancestral foi a região de ­Angeln (alemão) ou angel (dinamarquês), que corresponde ao litoral báltico de ­Schleswig-Holstein. Em alemão e dinamarquês, eng significa “estreito”, “apertado” (provavelmente uma referência ao estuário do rio Schlei, o significado seria algo como “a água estreita”). Alternativamente, pode haver alguma ligação com a palavra “gancho”, “anzol” (em inglês moderno, angling – pesca com vara e linha). Independentemente do significado verdadeiro, o termo pode ser associado à raiz protoindo-europeu *ang- (dobrado, curvado). O nome Englisc (English) para a língua inglesa surge mais tarde, mas os termos correspondentes Angli e Anglia ocorrem em textos latinos da época. Os termos englisc e engelcynn (povo anglo/parentes dos anglicanos) passam então a ser usados para designar a língua de todas as tribos germânicas invasoras. Somente a partir do ano 1.000 o nome Englaland (England), a “terra dos anglos”, começa a ser utilizado no sentido de um reino, embora o título latino rex anglorum (rei dos anglos) e, subsequentemente, rex totius Britanniae (rei de toda Bretanha) foi aplicado aos sucessores de Alfredo Magno, vencedor dos vikings.

História interna: a estrutura do inglês antigo Fonologia A língua inglesa atual é o resultado de um processo evolutivo que perdurou por mais de 15 séculos. O chamado inglês antigo ou anglo-saxônico (Old English) foi o inglês escrito e falado do ano 450 ao ano 1100. Ao estudarmos os aspectos fonológicos de uma língua em um período tão distante, resta-nos estabelecer hipóteses com base em alguns critérios específicos. Após vastos estudos nesse campo, finalmente temos conhecimentos acerca da pronúncia da maioria dos sons da época. Desse modo, podemos dizer que, caso ainda existisse um anglo-saxão daquele tempo, provavelmente seríamos capazes de estabelecer alguma forma de comunicação inteligível com ele (CRYSTAL, 1995, p. 18). Ainda de acordo com Crystal (1995), há quatro principais tipos de evidências empregados no processo de dedução dos efeitos sonoros das letras do inglês antigo:

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1. Lógica alfabética – como possuímos conhecimentos sólidos da pronúncia das letras do alfabeto romano, podemos supor que os missionários que as adaptaram ao inglês antigo o tenham feito de forma lógica. Assim, a letra m latina, por exemplo, seria usada para representar o mesmo som na língua inglesa, e letras e símbolos novos somente seriam criados caso nenhuma letra latina existente fosse adequada. Além disso, ao contrário do inglês moderno, o inglês antigo apresenta caráter muito mais “fonético”, quase não existindo as chamadas letras mudas. 2. Reconstrução comparativa – podemos estabelecer uma reconstrução do âmbito sonoro do inglês antigo por meio de comparações com o inglês moderno (a língua padrão ou os dialetos regionais) e/ou os dialetos medievais. 3. Mudanças fônicas – ao analisarmos as mudanças sonoras que ocorrem conforme as línguas evoluem, podemos determinar como elas devem ter acontecido. O pronome atual “it”, por exemplo, equivale a “hit” no inglês antigo. Ou seja, se o h era pronunciado, então houve posteriormente uma mudança sonora na língua, com a supressão do mesmo. Considerando que a extração do h em pronomes ainda é um fenômeno frequente na língua inglesa, essa teoria parece bastante razoável. 4. Evidência poética – a forma como poetas criam rimas é um importante indício da estrutura sonora de uma língua.

Morfologia, sintaxe e léxico No inglês antigo, de modo similar ao latim, o sistema de flexões nominais ou declinação apresenta três categorias: gênero, número e caso. No entanto, essas três categorias são representadas simultaneamente por uma mesma forma nominal. 1. Gênero – no inglês antigo temos os gêneros masculino, feminino e neutro. Este último é empregado para palavras que não são nem masculinas nem femininas. Cabe destacar, porém, que o gênero natural, fundamentado nas diferenças de sexo, nem sempre equivale ao gênero gramatical. Assim, os vocábulos wif (mulher), maegden (menina) e cild (criança), contrariando expectativas, são neutros.

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2. Número – assim como no inglês moderno, o inglês antigo apresenta somente dois números: o singular e o plural. 3. Caso – ao contrário do inglês moderno, em que palavras como os substantivos mostram variações em seu final (desinências nominais) para indicar somente aspectos de número e gênero, os substantivo, adjetivos e pronomes no inglês antigo demonstram já nas desinências a função que desempenham no período. Caso é o nome dado à forma tomada por um termo declinável para demonstrar com precisão a função sintática que desempenha na frase. Temos no inglês antigo quatro casos: 1. Nominativo – é o caso do sujeito. 2. Genitivo – trata-se principalmente do complemento terminativo do nome, que apresenta como principal função indicar posse. 3. Dativo – representa atribuição, indicando o sujeito ou “coisa” a quem um objeto se destina, ou em benefício de quem se realiza algo. Sua principal utilização é como indicativo da função de objeto ou complemento indireto de orações. 4. Acusativo – a principal função do acusativo é a indicação do objeto ou complemento direto do verbo. Portanto, um substantivo típico em inglês antigo apresenta um paradigma (quadro) de casos do seguinte tipo: Inglês antigo

Alemão moderno

Nom., se cyning “o rei” (sujeito)

der Bär, der Mann “o urso”, “o homem”

Acu., þone cyning “o rei” (objeto direto)

den Bären, den Mann etc.

Gen., þæs cyningas “do rei” (possessivo)

des Bären, des Mannes

Dat., þam cyninge (“ao/pelo/no rei”)

dem Bären, dem Mann(e)

Ainda em relação aos substantivos, no inglês antigo eles eram classificados como fortes e fracos, como ainda existe em alguns substantivos no alemão moderno, por exemplo, der Bär “o urso” acima. Assim, enquanto os chamados substantivos fracos tinham terminações mais uniformes, os substantivos fortes apresentavam formas mais variáveis.

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Gramática histórica da língua inglesa

Substantivo fraco

Substantivo forte

“nome” (masc.)

“pedra” (masc.)

“barco” (neut.)

“palavra” (neut.)

Sg. Nom.,

nama

stan

scip

word



Acu.,

naman

stan

scip

word

Gen.,

naman

stanes

scipes

wordes

Dat.,

naman

stane

scipe

worde

Pl. Nom.,

nama

stanas

scipu

word

Acu.,

naman

stanas

scipu

word

Gen.,

namena

stana

scipa

worda

Dat.,

namum

stanum

scipum

wordum

Fonte: Mitchell e Robinson (1989, p. 19, 22-23).

Quase todos os adjetivos em inglês antigo também eram divididos em duas classes de fortes e fracos. A distinção era se o adjetivo era empregado sozinho, de forma predicativa, por exemplo, “o homem é velho” = Se mann is eald, ou se qualificava o substantivo sem artigo, nem demonstrativo, por exemplo, “homens velhos” = ealde menn. Esses usos pediam a forma “forte” do adjetivo. A forma “fraca” era usada quando o adjetivo seguia algum demonstrativo ou artigo, por exemplo, se ­ealda mann “esse homem velho”, ou um adjetivo possessivo, por exemplo, min ealda freond “meu velho amigo”. Basicamente, as formas fortes podem aparecer sozinhas enquanto as formas fracas precisam de alguma outra palavra para dar apoio (MITCHELL; ROBINSON, 1989, p. 30-31). As diferenças entre os dois paradigmas são exemplificadas a seguir, com a palavra tila “bom”: Declinação fraca de adjetivos: Singular

Plural

Caso

Masculino

Feminino

Neutro

(todos os gêneros)

Nom.,

se tila mann

seo tile giefu

þat tile scip

þa tilan menn, giefa, scipu

Acu.,

þone tilan mann

þa tile giefe

þat tilan scip

þa tilan menn, giefa, scipu

Gen.,

þæs tilan mannes

þære tilan giefe þæs

tilan scipes

þæra tilra, manna, giefena, scipa

Dat.,

þæm tilan manne

þære tilan giefa

þæm tilan scipe

þæm tilum mannum, giefum, scipum

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Se mann “o homem”, seo giefu “o presente”, þæt scip “o barco”. Declinação forte de adjetivos: Singular

Plural

Caso

Masculino

Feminino

Neutro

Masculino

Feminino

Neutro

Nom.,

til mann

tilu giefu

til scip

tile menn

tile giefa

tilu scipu

Acu.,

tilne mann

tile giefe

til scip

tile menn

tile giefa

tilu scipu

Gen.,

tiles mannes

tilre giefe

tiles scipes

tilra manna

tilra giefena

tilra scipa

Dat.,

tilum manne

tilre giefa

tilum scipe

tilum mannum

tilum giefum

tilu scipum

Observe: Se mann is til “o homem é bom”, seo giefa is tilu “o presente é bom”, þæt scip is tilu “o barco é bom”. Já quanto à sintaxe dos adjetivos, preposições e artigos, esses elementos gramaticais no inglês antigo eram empregados de modo bastante similar ao inglês moderno. Como ocorre atualmente, portanto, eles em geral são inseridos antes do substantivo. A principal diferença está relacionada ao uso dos verbos, que frequentemente apareciam antes do sujeito ou no final da oração, diferentemente do que observamos hoje. Semelhante aos verbos na língua moderna, o inglês antigo já exibia as classes fortes e fracas. O primeiro conjunto modifica a vogal do radical para indicar diferenças de tempo e/ou pessoa, por exemplo, infinitivo/presente do indicativo: strive – pretérito perfeito: strove – particípio: striven (“esforçar-se”, “esforça-se” – “esforçou-se” – “esforçado”), sing – sang – sung (“cantar/canta” – “cantou” – “cantado”. A segunda classe marca o pretérito e o particípio por um sufixo que contém uma oclusiva dental, por exemplo, dance – danced – danced (“dançar/dança” – “dançou” – “dançado”), laugh – laughed – laughed (“rir/ ri” – “riu”  – “rido”), scrub – scrubbed – scrubbed (“esfregar/ esfrega” – “esfregou” – “esfregado”), hum – hummed – hummed (“zumbar/zumba” – “zumbou” – “zumbado”). Observe que a pronúncia do sufixo escrito muda de acordo com o vozeamento da última consoante do radical: [dans-], [laf-] + [-t], [skrʌb-], [hʌm-] + [-d], ou seja, vozeado com vozeado e desvozeado com desvozeado. Quando o radical termina em uma vogal, a consoante do sufixo é [-d], por exemplo, sow – sowed –

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Gramática histórica da língua inglesa

sowed “semear/semeia” – “semeou” – “semeado”). Quando o radical termina em uma consonante dental ([t], [d]), a vogal do sufixo é pronunciada (nos demais casos, é muda), ou seja, spot – spotted – spotted “localizar visualmente” = [spɒt-] + [-ıd], plot – plotted – plotted “tramar” = [plɒt-] + [-ıd], bud – budded – b­ udded “brotar” = [bʌd-] + [ıd], skid – skidded – skidded “derrapar”, “escorregar” = [skıd-] + [-ıd]. Em inglês antigo, os verbos fortes distinguem sete classes, baseadas no modelo de alternância na vogal radical e um marcador no infinitivo (qual vogal e que tipo de consoante): Classe

Infinitivo

I.

scinan

II.

Sing. do pret.

Pl. do pret.

[i:] + C

scan

scinon

scinen “brilhar” (shine)

creopan

[e:ǝ] + C

creap

crupon

cropen “arrastar-se” (creep)

brucan

[u] + C

breac

brucon

brucen “disfrutar”

III.

bregdan

(várias)*

brægd

brugdon

brogden “puxar”

IV.

beran

[ɛ] + [l, r]

bær

bæron

boren “levar” (bear)

tredan

[ɛ] + ocl./

træd

trædon

treden “pisar” (tread)

for

foron

faren “ir”

V.

Marca

Part.

fric.**

VI.

faran

VII.

healdan

heold

heoldon

healden “segurar” (hold)

hatan

het

heton

haten “mandar”

[a] + C

* A classe III abrange cinco subtipos: 1. [ɛ] + C C (bregdan) e – æ – u – o; 2. [eǝ] + [r] + C (weorpan “jogar”), [h] + C (feohtan “brigar”, “lutar”): eo – ea – u – o; 3. [ɛ] + [l] + C (helpan “ajudar”): e – ea – u – o; 4. C palatal + ie + C C (gieldan “ceder”, “dar”): ie – ea – u – o; 5. [i] + nasal + C (drincan “beber”): i – a – u – o. ** Ou seja: [p t k d g] ou [f θ s]. Fonte: baseado em Mitchell e Robinson (1989).

Em VII, o particípio e o infinitivo sempre têm a mesma vogal, tal como as duas formas do pretérito – ou eo ou e – que distingue os dois subgrupos da classe. A conjugação de um verbo forte típico é exemplificada por singan “cantar”:

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Inglês antigo

Presente do

Pretérito do

Pretérito do

indicativo

subjuntivo

indicativo

subjuntivo

singe

singe

sang

sunge

2ª. þu

singest

singe

sunge

sunge

3ª. he, heo, hit

singeþ

singe

sang

sunge

Pl. 1ª. we

singeþ

singen

sungon

sungen

2ª. ge

singeþ

singen

sungon

sungen

hie

singeþ

singen

sungon

sungen

Sg. 1ª.

3ª.

ic

Presente do

Sing. do imperativo: sing!

Pl. do imperativo: singaþ!

Infinitivo: singan

Infinitivo flexionado (“para...”) to

43

singenne Gerúndio: singende

Particípio: (ge-)sungen

Fonte: baseado em Mitchell e Robinson (1989).

Os verbos “fracos” exibem três subgrupos principais. A terceira classe contém apenas quatro verbos: habban “ter”, libban “viver”, secgan “dizer” e hycgan “pensar”. O primeiro subgrupo contém duas subclasses. Exemplificamos as três classes maiores com fremman “fazer”, lufian “amar” e habban “ter”. Presente do Presente do indicativo

subjuntivo

Pretérito do

Pretérito do

indicativo

subjuntivo

Sg. 1ª.

ic

fremme

fremme

fremede

fremede

2ª.

þu

fremest

fremme

fremede

fremede

3ª.

he, heo, hit

fremeþ

fremme

fremede

fremede

Pl. 1ª.

we

fremmaþ

fremmen

fremedon

fremeden

2ª.

ge

fremmaþ

fremmen

fremedon

fremeden

3ª.

hie

fremmaþ

fremmen

fremedon

fremeden

Sing. do imperativo: freme!

Pl. do imperativo: fremmaþ!

Infinitivo: fremman

Infinitivo flexionado (“para...”) to fremmenne

Gerúndio: fremmende

Particípio: (ge-)fremed

Fonte: baseado em Mitchell e Robinson (1989).

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Gramática histórica da língua inglesa

Presente do

Presente do

Pretérito do

Pretérito do

indicativo

subjuntivo

indicativo

subjuntivo

Sg. 1ª.

ic

lufie

lufie

lufode

lufode

2ª.

þu

lufast

lufie

lufodest

lufode

3ª.

he, heo, hit

lufaþ

lufie

lufode

lufode

Pl. 1ª.

we

lufiaþ

lufien

lufodon

lufoden

2ª.

ge

lufiaþ

lufien

lufodon

lufoden

3ª.

hie

lufiaþ

lufien

lufodon

lufoden

Sing. do imperativo: lufa!

Pl. do imperativo: lufiaþ!

Infinitivo: lufian

Infinitivo flexionado (“para...”) to lufienne

Gerúndio: lufiende

Particípio: (ge-)lufod

Fonte: baseado em Mitchell e Robinson (1989).

Presente do

Presente do

Pretérito do

Pretérito do

indicativo

subjuntivo

indicativo

subjuntivo

Sg. 1ª.

ic

hæbbe

hæbbe

hæf(e)de

hæf(e)de

2ª.

þu

hæf(a)st

hæbbe

hæf(e)dest

hæf(e)de

3ª.

he, heo, hit

hæfþ

hæbbe

hæf(e)de

hæf(e)de

Pl. 1ª.

we

habbaþ

hæbben

haf(e)don

hæf(e)den

2ª.

ge

habbaþ

hæbben

haf(e)don

hæf(e)den

3ª.

hie

habbaþ

hæbben

haf(e)don

hæf(e)den

Sing. do imperativo: hafa!

Pl. do imperativo: hafaþ!

Infinitivo: habban

Infinitivo flexionado (“para...”) to habbenne

Gerúndio: habbande

Particípio: (ge-)hafed

Fonte: baseado em Mitchell e Robinson (1989).

Léxico O vocabulário do inglês antigo, a princípio, era estreitamente relacionado às línguas germânicas, com poucas interferências de outros idiomas. A grande quantidade de termos normandos que hoje integram o vocabulário inglês, por exemplo, não era empregada naquela época.

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Por outro lado, mais de mil vocábulos anglo-saxões sumiram do vocabulário do inglês antigo após a conquista normanda da Inglaterra, no século XI. Entre os termos sobreviventes, no entanto, alguns mudaram tão pouco ao longo do tempo que quase não diferem de suas formas atuais, como mann (man (homem)) e cild (child (criança)). O inglês antigo é caracterizado por sua flexibilidade, ou seja, sua capacidade de dar novos sentidos a palavras já existentes. Por meio da inclusão de prefixos e sufixos, era comum a formação de uma grande quantidade de termos derivados. Um exemplo típico desse processo é o vocábulo “mood” (humor), que no inglês antigo significava “coração”, “espírito”, “coragem” ou “orgulho”. Ao adicionar o sufixo -ig, era formado o adjetivo “modig” (em inglês moderno, moody (mal-humorado)), relacionado a uma série de atributos como animado, altivo, arrogante. Com o emprego de outros sufixos, formou-se o advérbio “­modiglice” (orgulhosamente) (em inglês moderno, moodily (“mal humoradamente”)) e o substantivo “modignes”, significando “orgulho” ou “magnanimidade” (em inglês moderno, moodiness (mau humor)). Diferentemente do inglês moderno, que tende a assimilar ou importar elementos de outras línguas (especialmente o francês, o grego e o latim), o inglês antigo baseia-se em sua capacidade de derivação e formação de palavras.

Os dialetos anglo-saxões O inglês antigo não era uma língua uniforme, apresentando divergências relevantes entre as várias regiões da Grã-Bretanha. Existiam quatro dialetos principais na época: o nortúmbrio (Northumbrian), o saxão ocidental (West Saxon), o kentiano (Kentish) e o mércio (­Mercian). O nortúmbrio e o mércio estavam presentes ao norte do rio Tâmisa, trazidos pelos anglos. Esses dialetos apresentam características em comum, sendo conhecidos em conjunto como Anglian. No entanto, o nortúmbrio, falado ao norte do Humber, e o mércio, empregado entre o Tâmisa e o Humber, possuem algumas diferenças significativas. Acredita-se que os dialetos já mostrassem tais divergências antes da invasão germânica, mas muitos aspectos parecem ter evoluído já na Inglaterra. Contudo, a expansão do reino Saxão Ocidental colocou o dialeto homônimo em destaque, desenvolvendo uma variedade escrita bastante padronizada e, pela quantidade de material escrito

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Gramática histórica da língua inglesa

nesse dialeto, tornando-o a principal referência no estudo do inglês antigo. Esse domínio perduraria até a conquista normanda da Inglaterra, no século XI. Figura 1.7  Os dialetos do inglês antigo. 0º

N

O R

T

55º N

Ú

M

B R I

O

Mar do Norte

Rio Severn

Mar da Irlanda

M

É

R

C

O

m isa



Rio

I

OCEANO ATLÂNTICO

O X Ã S A

A L E N T I D O C

l da Cana

KENTIAN

O

a Manch

Fonte: adaptada de Baugh e Cable (1994, p. 52).

Variação linguística É sabido que a comunicação frequente entre pessoas que falam uma mesma língua gera um efeito de uniformização da mesma, ou seja, determinado padrão oral é negociado informal e inconscientemente entre os participantes que se sobrepõem às diferenças de fala individuais existentes, em uma tentativa de facilitar a intercompreensão (assimilação). No nível de uma comunidade linguística, pressões sociais regulam a constituição das normas, também favorecendo certa uniformidade. Quando há uma separação entre duas comunidades, porém, esse quadro muda e observa-se o

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crescimento de divergências na língua, já que cada grupo tende a obedecer suas próprias normas. Nesses casos, o grau de afastamento entre as comunidades geralmente é proporcional à variação linguística observada; assim, separações sutis levam a diferenciações igualmente suaves, gerando somente dialetos locais. Por outro lado, afastamentos mais consideráveis, sendo eles geográficos ou sociais – por exemplo, classes, castas –, podem tornar a variedade de uma comunidade praticamente ou totalmente incompreensível à outra, situação prototípica que caracteriza o surgimento de línguas diferentes. No entanto, mesmo quando há a criação de outra língua, normalmente é possível identificar aspectos remanescentes entre as línguas separadas, o que configura um forte indicativo de uma união passada. A relação entre o inglês e o alemão é um exemplo desse processo; ao compararmos vocábulos como Wasser (alemão, água) e water (inglês, água), Brot (alemão, pão) e bread (inglês, pão) ou Milch (alemão, leite) e milk (inglês, leite), entre tantos outros, não restam dúvidas quanto ao parentesco entre as línguas. Processo semelhante pode ser verificado entre a língua inglesa e o latim: father (inglês, pai) e pater (latim, pai), brother (inglês, irmão) e frater (latim, irmão). As correlações nesses casos não são tão evidentes p:f, t:ð (< θ / V__V); b:f, ʌ:a, t:ð, r:r etc., mas cedem ao método comparativo. Uma cadeia de comparações muito mais extensa envolve várias línguas europeias, o que nos leva à conclusão de que grande parte dos idiomas europeus e mesmo alguns asiáticos já foram uma só língua: Sânscrito Pitar (pai)

Grego

Gótico

Alemão

Holandês

Inglês

Patêr (pai)

Fadar (pai)

Vater (pai)

Vader (pai)

Father (pai)

A formação de dialetos Como aprendemos, o processo de invasão de povos germânicos à Grã-Bretanha provocou diversas transformações, trazendo também uma série de novos dialetos de uma nova língua, os quais, juntos, seriam marcantes na formação da língua inglesa. A maior parte da estrutura conhecida do inglês antigo encontra-se escrita no dialeto West Saxon ou saxão ocidental, consequência da grande influência dessa região no século X. Outros dialetos da época, ao contrário, apresentam poucos textos dispersos

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encontrados até hoje. Apesar disso, aspectos peculiares de cada um desses dialetos possibilitaram que os estudiosos de linguística os identificassem e apontassem suas principais características, como veremos a seguir. West Saxon De acordo com Brook (1963 [1972]), o domínio do dialeto West ­Saxon ou saxão ocidental na Grã-Bretanha era tamanho que há mais trabalhos escritos nele do que em todos os demais juntos. Seus principais autores foram o rei Alfredo e o abade Ælfric, os quais deixaram trabalhos marcantes da época como Cura Pastoralis e História do Mundo, de Paulo Orosius (traduzido pelo rei Alfredo), além de homilias e uma gramática (pelo abade Ælfric). Ainda segundo Brook (1963 [1972]), o dialeto West Saxon ou saxão do oeste apresenta as seguintes características principais:



Saiba mais O conceito de



metafonia (em alemão, Umaut) trata-se da anteriorização e do alçamento por um grau de uma vogal pela presença de outra vogal alta [i u] na sílaba seguinte: [ɑ] > [ɛ], [ɔ] > [œ], [o] > [ø] etc.



A utilização de [æ] como uma adaptação da forma do West Germanic [ã] a partir do germânico [æ], enquanto a maioria dos outros dialetos passou a representar [æ] como e. Essa característica do West Saxon provavelmente já existia antes da invasão germânica à Grã-Bretanha, uma vez que o frísio antigo também apresenta esse padrão. A ditongação de vogais por influência de consoantes palatais precedentes. A conversão de [æ] e [io] em [ie]; A ausência de metafonia em vários vocábulos que apresentam tal mudança em outros dialetos, como exemplificado pelas formas em West Saxon gebedu (orações) e wita (estudiosos), em oposição a gebeodu e wiota nos outros dialetos. Síncope na terceira pessoa do singular de verbos no presente do indicativo, ao contrário do que encontramos em outros dialetos, em que geralmente palavras terminadas com o sufixo -eð sofrem metafonia e perdem sua vogal temática. Como exemplo podemos comparar as formas cīest (chooses (escolha)) e hielt (holds (segura)) do West Saxon com as formas cēoseð e haldeð que encontramos em outros dialetos.

Northumbrian O dialeto nortúmbrio ou Northumbrian perdurou na escrita (os dialetos do inglês no norte e da Escócia continuam o nortúmbrio)

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do final do século VII ao início do século IX, tendo como principal autor o monge inglês Beda (672-735). Sua obra História Eclesiástica do Povo Inglês foi um marco na história da literatura anglo-saxônica, além de diversos outros trabalhos seus como os versos “Canto de Morte de Beda”. Entre os mais relevantes aspectos do Northumbrian, podemos citar:



A inclusão do */a/ do germânico ocidental precedendo [r] + consoante, principalmente quando uma consoante labial ([p], [b], [f], [m] ou [w]) precede a vogal ou aparece após o [r]. Vocábulos iniciados com [w] provocando arredondamento da vogal ou do ditongo posterior. A supressão do [n] no final de vocábulos, como ocorre em bigeonda (beyond (além)) e wosa (to be (ser/estar)), em comparação às formas do saxão ocidental bigeondan e wesan (BROOK, 1963 [1972], p. 52-53).

Kentish O dialeto Kentish ou kentiano possui características bastante particulares, embora apresente poucos textos disponíveis para estudo. Entre suas principais características podemos relacionar:



A frequente conversão de y [y] em e [e], como podemos observar no vocábulo senn (sin (pecado)), empregado em substituição ao synn geralmente utilizado nos demais dialetos. O uso do e destacado da forma , a qual resulta na mutação do germânico [aj] para a forma [a]. Assim, temos em Kentish as formas enig (any (qualquer)) e mest (most (maioria)) em vez de ænig e mæst dos demais dialetos (BROOK, 1963 [1972], p. 49).

Mercian O estudo do Mercian ou mércio é muito interessante para a linguística, considerando que o inglês moderno possui importantes raízes neste dialeto. Assim, apesar de o mércio não apresentar rastros históricos tão claros quanto o nortúmbrio, por exemplo, podemos identificar como suas principais marcas:

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A conversão das formas [æ] em [ɛ] e [ɑ] em [æ]. São exemplos os vocábulos deg (day (dia)) e dægas (dias), em vez de dæg e dagas nos outros dialetos. A mutação de [æ] para [æǝ] provocada pela existência de uma vogal no final da sílaba seguinte, como podemos observar em featu (vessels ou embarcações) em vez da forma fætu dos outros dialetos (BROOK, 1963 [1972], p. 48).

East Anglian As principais características do East Anglian, o qual abrange tanto o dialeto Northumbrian quanto o Mercian, são:







A utilização de a [a] precedendo l + consoante, seguindo a forma do germânico ocidental, enquanto os dialetos Kentish e saxão ocidental usam ea [ɛǝ]. Por exemplo, a utilização da forma all (todos) em East Anglian, enquanto em outros dialetos temos a forma eall. A monotongação dos ditongos ea [ɛǝ], eo [eǝ], io [jo], æ [æ] para e [e] e i [i], respectivamente, sempre que forem seguidos por c [k], g [g] ou h [h, x], se isolados ou precedidos por uma consoante líquida (l ou r). Tendência a manter a vogal média-baixa arredondada anterior [œ] (pronuncia-se com a língua na posição para [ɛ] (é do português), mas com os lábios arredondados também), a qual em saxão ocidental ou West Saxon era não arredondada e [ɛ]. A conservação de -u ou -o como terminações de verbos na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (BROOK, 1963 [1972], p. 44).

Inglês antigo em contato com outras línguas História externa: os reinos anglo-saxões No começo do século VII, a Inglaterra encontrava-se dominada por sete grandes reinos anglo-saxões: Kent, Sussex (South Saxons ou saxões do sul), Wessex (West Saxons ou saxões ocidentais), East Anglia (Anglia oriental), Essex (East Saxons ou saxões orientais), Mércia e Nortúmbria. Juntos, esses reinos formavam a chamada heptarquia.

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Figura 1.8  Reinos anglo-saxões e reinos celtas (em negrito). 0º

GODODDIN

Lindisfarne Bamburgh

Yeavering

BERNICIA Rio T

D

Rio Tee s

se Ou Rio

Ilha de Man

York

DEIRA Sancton Mar do Norte

ELMET

t en Tr Rio

ME

GWYNEDD

RC

IA ern Sev Rio

DYFED

POWYS MAGONSAETE Gloucester

Crowland

MID D LE AN GLIA

Oundle

Glastonbury

Burgh Caistor Castle

EAST AN GLIA

Sutton Hoo

Colchester

Cirencester

ESSEX London

Bath

OCEANO ATLÂNTICO

LIN D SEY

Rio Ou se

Anglesey

Mar da Irlanda

55º N

Monkwearmouth Jarrow

e yn

RH EG E

Rio Thames

WESSEX Winchester

Kelvedon

Mucking

Rochester Canterbury

SUSSEX

KENT

Rio ar Tam

IA ON MN U D

Isle of Wight

l da Cana

a Manch

Fonte: adaptada de Blair (1984, p. 60).

Além dos grandes reinos, existia uma série de outros reinos menores; como o de Surrey, que ficava na região sudeste da Inglaterra e que, por volta de 670, possuía um “sub-rei” chamado Frithuwold. Pelo que se sabe, é provável que seus ancestrais tenham sido soberanos de um reino independente, portanto, no século VII, possivelmente existiam dúzias de reinos menores à margem dos grandes reinos. Os reinos maiores, contudo, não eram totalmente independentes. Beda e outras fontes descrevem vários outros reis (Bretwaldas ou Brytenwaldas) que sucessivamente dominaram a maioria ou todos os povos anglo-saxões. O contexto político do século VII foi marcado por uma grande instabilidade de poder, com inúmeros conflitos entre reinos. Havia

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trocas constantes de reinos dominantes, uma vez que a manutenção do poder conquistado era mais árdua do que a conquista em si. Isso ocorria porque manter um reinado exigia forças militares, as quais, por sua vez, eram conseguidas por intermédio de riquezas obtidas pelo exercício do próprio poder.

Contato com as línguas celtas A conquista do povo celta da Grã-Bretanha pelos anglo-saxões resultou em uma interação entre as línguas; assim, podemos encontrar no vocabulário do inglês antigo alguns exemplos de palavras que os anglo-saxões adotaram do léxico da população celta nativa. Apesar da impressão deixada por alguns autores de que os celtas haviam sido completamente exterminados, exceto em determinadas regiões, muitos deles sobreviveram e foram assimilados pela cultura dos invasores. As leis do rei Ine, de Wessex, por exemplo, incluem referências ao valor monetário de compensação a pagar para a morte ou lesão de diversas classes de pessoas, incluindo nobres e plebeus celtas, indicando que ainda existiam comunidades celtas no período da Heptarquia. A Crônica Anglo-Saxônica relata uma batalha sangrenta entre nativos e invasores na região de Pevensey, no sudeste da Inglaterra, destacando que nenhum celta sobreviveu ao conflito. Apesar disso, um considerável número de populações celtas permaneceu por vários séculos na região oeste da Grã-Bretanha, no País de Gales, na Cornualha e no noroeste (Cúmbria). Nos dois primeiros, as populações se mantêm até hoje; tal fato é corroborado pela existência de diversas nomenclaturas celtas para as localidades dessas áreas.

Exemplo Há claras evidências da influência das línguas celtas na formação de nomes de localidades na língua inglesa. O reino de Kent, por exemplo, tem seu nome originado da palavra celta Canti ou Cantion, de significado desconhecido, mas o termo já era atestado entre os romanos. Já os nomes de reinos da Nortúmbria, Deira e Bernícia, provavelmente derivam de nomes de tribos celtas. Além disso, também apresenta origem celta a primeira sílaba de nomes de cidades como Winchester, Salisbury, Exeter, Gloucester, Worcester e Lichfield. O próprio nome da atual capital inglesa Londres (London), embora possua origem incerta, provavelmente é originado do vocabulário celta. Fonte: Pei (1968, p. 24).

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Além disso, é provável que muitos celtas tenham sido feitos escravos pelos invasores saxões ou tenham se casado com pes­ soas do outro povo. Assim, o contato entre celtas e anglo-saxões em muitas partes das ilhas britânicas foi frequente e próximo por séculos. Os empréstimos celtas são predominantemente topônimos, cuja frequência aumenta de modo considerável quanto mais a oeste se vai. No leste, até os topônimos costumam ser de origem germânica. Um aspecto gramatical eventualmente associado às línguas celtas é o favorecimento de construções verbais analíticas (perifrásticas) com particípios progressivos, por exemplo, be going, was eating, could have been seen etc., que diferencia o inglês das demais línguas germânicas, as quais não tiveram contato com o substrato celta. Apesar disso, segundo Baugh e Cable (1994), a maior parte do vocabulário celta não integrou a língua inglesa de forma permanente, desaparecendo ao longo do tempo ou convertendo-se em meros vocábulos regionais.

Contato com o latim Ao contrário da língua celta, o latim não era a língua de um povo conquistado, mas de uma civilização altamente conceituada, a qual os anglo-saxões admiravam e buscavam imitar. As relações entre os saxões e essa civilização, a princípio somente comercial e militar, tornaram-se também intelectual e religiosa, prolongando-se por muitos séculos e renovando-se constantemente (PEI, 1968). Essa interação teve início muito antes da chegada dos anglo-saxões à Inglaterra, perdurando por todo o período do chamado inglês antigo. Enquanto as tribos germânicas – que originariam o povo inglês – ainda estavam tomando a Grã-Bretanha, elas relacionaram-se constantemente com os romanos, adotando uma série de vocábulos latinos. Grande parte do vocabulário latino incorporado originou-se também do contato com os celtas, povo cujo léxico era fortemente influenciado pelo latim, depois de quase meio milênio de subjugação à Roma. Além disso, mais de um século e meio após a invasão germânica e com a conversão dos anglo-saxões, o latim tornou-se língua litúrgica dessa cultura, gerando uma adesão ainda maior a termos latinos no inglês antigo. Vale destacar que a conversão

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dos anglo-saxões ocorreu em duas ondas: inicialmente, por missionários irlandeses de Iona, em Nortúmbria e, pouco depois, por missionários romanos no sul – com destaque para o primeiro missionário, S. Agostinho de Canterbury, em Kent.

Fique atento Empréstimos linguísticos do latim no inglês antigo Ao abordamos a importação de termos latinos para o inglês antigo, devemos considerar os seguintes aspectos:

A predominânica de termos germânicos quanto à religião, a despeito da presença do latim entre os religiosos – são exemplos as palavras “halig” (holy (santo)), “hadian” (to ordain (ordenar)) e witega (prophet (profeta));

Resistência à incorporação de palavras latinas quando já existe um termo anglo-saxão correspondente – são exemplos da retenção de termos latinos as palavras: God e godspell (Gospel (evangelho)) e synn (sin (pecado));

Assimilação total dos vocábulos latinos adotados no inglês antigo – são exemplos os vocábulos planta, que origina o verbo plantian (plantar), e martyr, do qual se deriva o termo martyrdom (martírio) (PEI, 1968, p. 25).

Contato com o norreno O norreno ou nórdico antigo é uma língua germânica setentrional utilizada por povos escandinavos e suas colônias ao longo da era viking e da Baixa Idade Média Nórdica, no período entre 800 e 1300 d.C. O norreno divide-se em três grupos de dialetos: o Nórdico Antigo Ocidental, na região da Noruega; o Gútnico Antigo, na Gotlândia (sudeste da atual Suécia); e o Nórdico Antigo Oriental, abrangendo a Dinamarca e o resto da Suécia. No final do século VIII, prováveis mudanças políticas ou econômicas na região da Escandinávia levaram seu povo a desenvolver o gosto pelas viagens de exploração, comércio e pirataria. Com o tempo, porém, jornadas a princípio voltadas à pilhagem, converteram-se em colonização e conquistas de territórios, promovendo a ocupação e instauração de reinos vikings na Rússia, Islândia, Groenlândia, Normandia e finalmente na própria Inglaterra.

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Por meio dos ataques dos vikings dinamarqueses – os quais perduraram por volta de 200 anos até o domínio da maior parte da Inglaterra Oriental –, as ilhas britânicas passavam por sua segunda grande invasão linguística. Aproximadamente mil palavras norrenas ou nórdicas foram absorvidas pela língua inglesa (e ainda mais nos dialetos setentrionais), com acentuado aumento de nomes de localidades de origem escandinava. De acordo com Crystal (1995), o contato próximo entre os anglo-saxões e os dinamarqueses é claramente perceptível quando observamos a grande quantidade de empréstimos linguísticos. Termos comuns no inglês moderno, como get (conseguir), both (ambos), give (dar) e same (mesmo), possuem origem escandinava, a qual influenciou até mesmo a formação dos pronomes pessoais they, them e their, que substituíram as formas inglesas originais. Figura 1.9  Distribuição de nomes de famílias inglesas com a terminação -son, como Jackson e Davidson. Tais nomes, de origem escandinava, revelam a influência linguística dos vikings dinamarqueses na Inglaterra, especialmente nas regiões de Yorkshire e ao norte de Lincolnshire. O mapa indica a quantidade de nomes escandinavos diferentes em cada condado inglês. 0º

31 - 50 17 - 26 12 - 14 0 - 10

38

55º N

45

37

Mar do Norte

50 43 47 26

Mar da Irlanda

0

23

31

22

2

7

10

12

10

18

17

12

6

40

8

12

6 1

7

10

14

5

7

OCEANO ATLÂNTICO

6 3

4 2

6

6 10

1

2

ancha l da M Cana

Fonte: adaptada de Crystal (1995, p. 26).

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História externa: os séculos IX e X As invasões dos vikings De acordo com a Crônica Anglo-Saxônica, o primeiro ataque viking registrado na Grã-Bretanha ocorreu no ano de 793, com a pilhagem no mosteiro de Lindisfarne, localizado na costa oeste da Escócia, nordeste da Inglaterra, na região que era o reino de Nortúmbria. Esse seria o ponto de partida para uma série de ataques vikings às ilhas britânicas no século seguinte. Após um breve período de saques e investidas violentas, os ­vikings começaram a colonizar as terras inglesas e nelas comerciar. Em sua maioria dinamarqueses, chegaram em navios de guerra bem construídos e com numerosos exércitos, conquistando quase todos os reinos ingleses que eram independentes. No final do século IX, já governavam grande parte do território inglês, que ficou conhecido como o Danelaw (literalmente, a “Lei dinamarquesa”).

Saiba mais Danelaw Consta na Crônica Anglo-Saxônica, Danelaw é o nome histórico dado aos territórios britânicos dominados pelas leis dos vikings dinamarqueses (Danes), contrastando com a Lei Mércia ou Lei Saxã Ocidental vigente nas demais ­áreas da Grã-Bretanha. As leis dinamarquesas vigoravam nos reinos de Nortúmbria e Ânglia Oriental, e nas terras dos Cinco Burgos de Leicester, Nottingham, Derby, Stamford e Lincoln. O Danelaw foi concedido aos escandinavos pelo rei Alfredo Magno (também conhecido como Alfredo, o Grande) no tratado de Wedmore, após a derrota dos vikings de Guthrum na batalha de Edington em 878, e formalizado no “tratado de Alfredo e Guthrum”, em algum momento entre 878 e 890. O documento da negociação ainda existe em inglês antigo e em uma versão latina posterior, a Quadripartitus, compilado durante o reinado de Henry I (1100-1135).

Alfredo (849-899), rei de Wessex, defendeu seu reino contra os vikings por meio da construção de várias fortalezas. Seu êxito contra as investidas vikings e a reorganização do reino por ele liderada lhe outorgaram o epíteto “o Grande”.

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Os avanços vikings e a ascensão do reino de Wessex As invasões dos vikings, principalmente do grande exército dinamarquês, desestruturaram a geografia social e política da Grã-Bretanha e da Irlanda. No entanto, em 878, a famosa vitória do rei Alfredo sobre os vikings, em Edington, freou a investida dinamarquesa. Porém, a Nortúmbria já se tornara um reino viking, enquanto a Mércia foi partida ao meio e a Ânglia Oriental já não mais era um território político anglo-saxão. Os reinos pictos, escoceses (imigrantes do norte da Irlanda que fundaram um reino na costa sudoeste da futura Escócia – em latim, os irlandeses eram chamados Scotti) e galeses também foram abalados pelos ataques vikings, que certamente também contribuíram para a constituição do Reino de Alba, que mais tarde formaria a Escócia. Figura 1.10  Divisão da Inglaterra no século X. 0º

Cedido à Escócia c. 975

TH

RT

A

Assentamento norueguês

O

TR

LOTHIAN

N

S

Assentamento dinamarquês

Bamburgh

C

HU

Fronteira do reino de

RIA M B ne

LY

Guthrum

D

Rio Ty

E Carlisle

Eamont

55º N English Frontier, 927

Rio Tee s

Mar do Norte

Rio Ouse

REINO

York

Ilha de Man

Fronteira inglesa, 920

Manchester Thelwall Bakewell Runcorn Davenport Chester Eddisburg

Dublin

Mar da Irlanda

Rio Trent

DE YORK

Lincoln

M ÉR C I A

Rio Ou se

ern Sev Rio

Stafford Tamworth

I N GL ESA

Bedford

Gloucester

Buckingham

Wallingfdord Malmesbury Rio Thames

Bath

ar Tam Rio

Lydford Exeter

Southhampton Wareham

Thetford

O RIE NTAL

Cambridge

Maldon

London

Winchester

W E S S E X

ÂNG L IA

Hertford

Cricklade

OCEANO ATLÂNTICO

Fronteira inglesa, 917

TERRA DOS CINCO BURGOS

Canterbury

Hastings Porchester Chichester

Ilha de Wight

ancha l da M Cana

Fonte: adaptada de Blair (1984, p. 89).

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A tomada da Ânglia Oriental, da Nortúmbria e do noroeste da Mércia pelos vikings dinamarqueses resultou em uma série de assentamentos vikings nessas regiões. No começo do século X, o governo norueguês de Dublin (na Irlanda) passa a administrar também o reino dinamarquês de York (na Grã-Bretanha). Esses assentamentos dinamarqueses e noruegueses foram influentes o bastante para marcar significativamente a língua inglesa, especialmente os dialetos falados nas regiões de maior população escandinava. Assim, embora a vasta maioria dos cem vocábulos mais utilizados no inglês atual seja derivada do inglês antigo, diversas palavras essenciais da língua inglesa moderna são originárias do nórdico antigo. Ademais, vários nomes de localidades em zonas de colonização viking apresentam origem escandinava. No ano de 899, já no fim do reinado de Alfredo, ele era o último soberano inglês remanescente. Sob seu comando, a Mércia foi incorporada aos domínios de Wessex, sendo governada por seu genro Æthelred. A região da Cornualha, localizada ao extremo sudoeste da Inglaterra, também foi dominada por Wessex, assim como os reinos galeses, que, embora independentes em termos práticos, reconheceram Alfredo como seu soberano.

A consolidação do reino de Inglaterra Ainda durante o reinado de Alfredo, o Grande, os anglo-saxões de Wessex foram lentamente ampliando seus domínios, reconquistando os terrenos perdidos para os vikings dinamarqueses. Essa trajetória de expansão foi, portanto, iniciada pelo rei ­Alfredo, que passou a acumular os títulos de rei de Wessex e rei dos Anglo-Saxões. A unificação de todas as terras anglo-saxônicas, contudo, ainda estava apenas começando. Com a morte do rei Alfredo, em 899, seu filho Edward, o Velho (870-924), foi coroado e prosseguiu com a dura missão de unir os territórios sob domínio escandinavo à coroa de Wessex, conquistando as Midlands Orientais e a Ânglia Oriental dos dinamarqueses, no ano de 917, e tornando-se o primeiro a finalmente derrotar os escandinavos do Danelaw. Em 918, após a morte da irmã de Edward, Etelfleda, ele passou a reinar também sobre a Mércia, encerrando a independência nominal desse reino. Com a morte de Edward, Athelstan (895-939), seu filho, assumiu o trono e conquistou, em seguida, o último reduto dinamarquês

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na Nortúmbria, York. Dessa maneira, Athelstan tornou-se o primeiro rei anglo-saxão de todo o território inglês, no ano de 927. Dessa forma, o sonho de Alfredo, o Grande, se concretizou, e Athelstan recebeu o título de rei dos Ingleses. Com isso, a terra dos anglos (Engla land, em inglês antigo) finalmente fora unificada politicamente sob um único rei.

Fontes textuais Beowulf De autoria desconhecida e criado entre os séculos VIII e IX da era cristã – apesar de já ser recitado pelos menestréis da Idade Média desde o século VII –, Beowulf é o mais antigo texto conhecido da literatura anglo-saxônica. Esse poema épico passa-se na Escandinávia do século VI, apresentando várias alusões a outras lendas e heróis das crenças das tribos germânicas. Não há fatos que comprovem a real existência do personagem principal, o príncipe Beowulf, apesar de alguns eventos relatados possuírem comprovação histórica. Dividido em duas partes, o poema conta com mais de três mil versos, começando pela narração de como Beowulf, príncipe sueco e herói da tribo dos gautas, vai ao socorro do rei da Dinamarca, cujo reino se encontrava ameaçado pelo demônio ­Grendel. Com a ajuda de seus companheiros, Beowulf vence Grendel e, posteriormente, a mãe de Grendel, que tentara se vingar da morte do filho. Na segunda parte, Beowulf, após um reinado tranquilo de cinquenta anos em sua terra natal, trava sua última batalha contra um dragão que ameaça seu reino. Mesmo sendo capaz de derrotá-lo, a vitória custa-lhe a vida. O único manuscrito conhecido de Beowulf data do século VI, porém há evidências de que o texto original já existia anteriormente. Como outros poemas anglo-saxões, Beowulf não utiliza rimas, estando escrito em versos aliterativos, nos quais a primeira metade de cada verso se relaciona à segunda metade por sílabas de som semelhante. Outro atributo interessante do poema é o uso de kennings, figura de linguagem que consiste na utilização de referências poéticas compostas em lugar do nome habitual de indivíduos ou coisas. É um exemplo típico de kenning a representação do mar como “caminho da baleia”.

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De acordo com Mitchell et al. (apud MITCHELL; ROBINSON, 1989, p. 267), o poema Beowulf representa uma sólida demonstração do poder e da variedade da poesia no inglês antigo, expondo narrações sobre temas como o valor da batalha, reflexões sobre o homem e seu mundo e um claro senso da transitoriedade das coisas.

The Dream of the Rood Provavelmente escrito em meados do século VIII, The Dream of the Rood (O Sonho do Crucifixo) é o primeiro poema da língua inglesa relacionado a sonhos e um dos documentos centrais da literatura do inglês antigo. Atualmente, o poema existe em sua forma mais completa no Livro Vercelli, um manuscrito de poesia e prosa do inglês antigo datado da segunda metade do século X. O poema é dividido em três partes principais: o relato do sonhador de sua visão da cruz, o monólogo da cruz descrevendo o processo de crucificação e a resolução do sonhador de buscar a salvação da cruz. Os monólogos e subsequentes diálogos de dois personagens – o sonhador e o crucifixo – desenham o quadro do poema. Deve-se observar, ainda, a capacidade do poeta de The Dream of the Rood de utilizar novos vocábulos e frases para descrever as características de Cristo, de Deus e da cruz. Assim, além de um dos personagens do poema ser um objeto inanimado, a atribuição de personalidade e poder de oratória ao crucifixo diferencia The ­Dream of the Rood dos demais poemas da época.

The Anglo-Saxon Chronicle A Crônica Anglo-Saxônica ou Crônica Anglo-Saxã (Anglo­ ‑Saxon Chronicle) é uma coletânea de anais escritos em inglês antigo que relata a saga do povo anglo-saxão. Seu manuscrito original foi provavelmente redigido em Wessex, no final do século IX, durante o reinado de Alfredo, o Grande. Foram feitas várias cópias da obra original, as quais foram entregues em monastérios ingleses e constantemente atualizadas de forma independente. Há nove manuscritos dessa obra conservados inteira ou parcialmente, embora nem todos apresentem a versão original. Enquanto o mais antigo deles foi produzido ainda no final do reinado de Alfredo, o mais recente foi elaborado em 1116, no monastério

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de Peterborough (Peterborough Abbey), após um incêndio ter destruído o acervo local. A maior parte do conteúdo da Crônica encontra-se no formato de anuário, sendo o primeiro registro do ano de 60 d.C. A narração dessa obra mostra-se bastante parcial, uma vez que se percebem omissões e contradições por parte dos escribas. Apesar disso, a Crônica é o mais importante documento histórico desse período inglês, descrevendo os acontecimentos desde a evasão dos romanos até as décadas da conquista normanda e fornecendo informações exclusivas da época. Esses manuscritos são fontes inestimáveis da história da língua inglesa; o manuscrito de ­Peterborough, por exemplo, é um dos representantes pioneiros do chamado inglês médio (Middle English). Atualmente, sete dos nove manuscritos e fragmentos remanescentes estão localizados na Biblioteca Britânica (British Library), enquanto os outros dois estão na Biblioteca Parker da Universidade Corpus Christi, em Cambridge, e na Biblioteca Bodleian, em Oxford.

Beda, Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum Grande parte do que hoje sabemos a respeito da história inglesa antes do século VIII fundamenta-se na obra Historia ­Ecclesiastica Gentis Anglorum (História Eclesiástica do povo inglês), do monge Beda (673-735); primeira narrativa inglesa que aborda, até 731, o período da ocupação romana. Nessas crônicas, Beda descreve o plano do Papa Gregório ­Magno de liderar a missão religiosa de conversão dos anglo-saxões, mas terminou optando por enviar Santo Agostinho (de Canterbury, não de Hipona). Os textos de Beda dimensionam o efeito do cristianismo nos infiéis, relatando também o encontro entre o inglês antigo e o latim. Além disso, o Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum foi o primeiro livro a apresentar notas de rodapé. Outro aspecto valioso dessa obra são as informações de figuras políticas e eventos da história anglo-saxônica, obtidas por Beda de consultas em monastérios, Igrejas e registros dos governos da época. O monge presta atenção especial aos conflitos entre cristãos romanos e celtas, além das datas e localidades de eventos importantes no calendário cristão. No ano de 1899, Beda foi canonizado, sendo atualmente conhecido como São Beda, o Venerável (Saint Bede, the Venerable).

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Gramática histórica da língua inglesa

Exercícios de fixação 1. Explique o conceito de plenitude estrutural ou potencial semiótico. 2. O que era a linguagem protoindo-europeia? 3. Quem foi August Schleicher e qual foi sua importância no campo da linguística? 4. Qual é a utilidade do método de reconstrução comparada? 5. O que é uma protolíngua? 6. Explique a chamada Lei de Grimm. 7. Qual era a formação da família indo-europeia? 8. Como podemos classificar as línguas germânicas? 9. Diferencie história interna de história externa. 10. De acordo com Faraco, como é possível con-

20. Como podemos deduzir os efeitos sonoros das letras do inglês antigo, de acordo com Crystal (1995)? 21. Quais gêneros existem na declinação do inglês antigo? 22. Quais eram os quatro principais dialetos anglo-saxões? 23. Quais eram as mais importantes características do dialeto West Saxon? 24. Cite os principais aspectos relativos ao dialeto Northumbrian. 25. Quais reinos anglo-saxões constituíram a conhecida heptarquia?

jugar a história interna e a história externa de

26. O que era o chamado Danelaw?

uma língua?

27. Qual era a realidade política na Grã-Bretanha

11. Quais são as diferenças entre fonética e fonologia? 12. Qual é o papel da morfologia na área da linguística? 13. O que é gramaticalização? 14. Defina descoloração semântica.

ao longo do século VII? 28. Descreva a influência das línguas celtas e do latim na formação do inglês antigo, diferenciando-os. 29. Qual foi o primeiro ataque viking registrado na Grã-Bretanha?

15. Conceitue etimologia.

30. Quem foi Alfredo, o Grande?

16. O que representa o léxico de uma língua?

31. Quem foi Athelstan e qual foi sua relação com

17. Quais tribos germânicas conquistaram a Inglaterra, de acordo com a obra História Eclesiástica do povo inglês? 18. Por que a chegada dos jutos à Inglaterra foi diferente do governo romano anterior? 19. Como era o vocabulário do inglês antigo?

Book 1.indb 62

o processo de unificação da Inglaterra? 32. Explique a estrutura de The Dream of the Rood, distinguindo-o dos outros poemas da época. 33. Qual foi a importância da obra História Eclesiástica do povo inglês para os estudos histórico-linguísticos?

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Inglês antigo

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Panorama Diferenças entre linguagem, línguas e dialetos Em português, há distinção entre linguagem, lín-

veiculada em alguma língua específica, adquirida

guas e dialetos. Possivelmente você já deve ter ouvi-

pelos indivíduos no processo de aquisição da língua

do falar sobre os três termos, não é mesmo? São três

materna. A língua é, sobretudo, um instrumento re-

palavras distintas que cumprem uma mesma fina-

lacional que estrutura o sistema de comunicação

lidade: promover a comunicação entre os falantes.

de algum grupo e possibilita a formação de signos

Contudo, embora linguagem, língua, idioma e dia-

linguísticos (morfemas, palavras, frases e sentenças),

leto sejam termos corriqueiros, os sociolinguistas,

e permite a transmissão de mensagens entre indiví-

aqueles que estudam a relação entre a língua e

duos (codificação e descodificação de significado),

a sociedade, tendem a evitá-los, já que, especial-

que é a sua maior finalidade. Ou seja, uma língua é

mente linguagem, língua e dialeto, pressupõem

um “princípio estruturador” ou, em outras palavras,

algumas relações hierárquicas que carecem de

é uma certa organização de conceitos, do sistema

bons fundamentos científicos, e seu uso quotidia-

sonoro e dos elementos gramaticais que é com-

no pode causar mal-entendidos.

partilhada pelos membros de determinado grupo

Linguagem

língua servem-se dela para estabelecer interações

Para os linguistas, a linguagem é a faculdade ge-

com a sociedade em que vivem.

nérica e inata que todo ser humano possui para

Quando dizemos que a língua é um instrumento

aprender alguma língua ou algumas línguas nati-

do povo, dizemos que, embora existam normas

vamente. Tal capacidade é específica à nossa espé-

gramaticais, de significado e de pronúncia (as

cie, uma herança genética que possibilita qualquer

normas reais reveladas nas práticas linguísticas

criança a adquirir qualquer língua natural apenas

cotidianas da comunidade de falantes nativos,

por exposição a pessoas falando-a, sem nenhuma

não as normas prescritivas da gramática tradi-

instrução formal. Por mais que um filhote de gato,

cional), cada falante desenvolve uma forma de

cachorro ou papagaio conviva com seres huma-

expressão própria, originando aquilo que cha-

nos, embora possa aprender a reconhecer diversas

mamos de fala. No entanto, qualquer fala, em-

palavras e expressões (e até enunciar algumas, no

bora possa ser individual, distintiva e criativa, é

caso do papagaio), ele nunca aprenderá a dominar

regida sempre por regras maiores e mais gerais

a língua dos donos da mesma maneira que uma

(as normas da língua). Caso contrário, cada um

criança se tornar um falante nativo, capaz de pro-

de nós acabaria criando sua própria língua, o

duzir sentenças inteiramente originais, nunca an-

que impossibilitaria a comunicação, porque nin-

tes ouvidas, e de interpretá-las.

guém compartilharia as normas para decifrar as

Língua

Book 1.indb 63

social por terem-na aprendido. Os falantes de uma

mensagens transmitidas. Na fala encontramos muitas variações linguísticas, que jamais devem

Uma língua é uma manifestação da Linguagem. Não

ser vistas como transgressões, mas como prova

podemos acessar a Linguagem, nossa capacidade

de que a língua é viva e dinâmica, a não ser que as

linguística geral, de forma direta, pois ela sempre é

variantes consideradas “erradas” ocorram na boca

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64

Gramática histórica da língua inglesa

de falantes não nativos e jamais seriam aceitas e

variedade que, por uma série de acidentes histó-

entendidas naturalmente pela comunidade de

ricos, acabou se tornando o protótipo. Ou seja, a

falantes maternos (e até variantes não nativas,

inglês culto não é mais que um dialeto que ga-

inicialmente consideradas “erradas” pelos falantes

nhou prestígio por ser o mais usado na corte real

nativos, podem acabar sendo integradas no siste-

em Londres e pelas classes sociais dominantes. Por

ma de regras da língua do grupo, se as condições

esse destaque sociocultural, que não tem nada

socioculturais estiverem propícias).

a ver com nenhuma qualidade inerente à ele, o

Dialeto

dialeto da elite inglesa passou a ser considerado o modelo da “língua inglesa” e seus usos acaba-

O dialeto é usado tipicamente para se referir à

ram consagrados como “corretos” nos dicionários

variedade de uma língua própria de uma região

e nas gramáticas. Sendo assim, divergências dessa

ou território e está relacionado às variações lin-

norma eram tratadas como erros. No entanto, essa

guísticas encontradas na fala de determinados

variedade padrão culta não é a “mãe” das demais

grupos sociais. As variações linguísticas podem ser

variedades diatópicas faladas na Grã-Bretanha (e

compreendidas a partir da análise de diferentes

ao redor do mundo). O escocês e os dialetos do

fenômenos: exposição aos saberes convencionais

norte da Inglaterra são as filhas do nortúmbrio;

(diferentes grupos sociais utilizam a língua de ma-

os dialetos falados no sudoeste descendem do

neiras diferentes e julgam os usos de maneiras di-

saxão ocidental, e assim por diante. O “inglês” ofi-

ferentes); situação de uso (os falantes adequam-se

cial é o resultado de uma mistura de variedades

linguisticamente às situações comunicacionais de

diatópicas medievais e pré-modernas faladas pelo

acordo com o nível de formalidade, grau de inti-

centro-leste e sudeste da Inglaterra, cujos falantes

midade (variação diafásica), meio de interação, por

contribuíram para formar a população da capital

exemplo, escrita versus oral (variação diamésica); e

em sucessivas ondas migratórias.

contexto sociocultural (gírias e jargões podem di-

Consequentemente, ao falarmos da “língua ingle-

zer muito sobre grupos específicos formados por

sa”, é imprescindível estarmos cientes de que o que

algum tipo de “simbiose” cultural). A variação de-

unifica as diversas variedades modernas é sua rela-

corrente de divisões sociais (classes, castas etc.) é

ção genealógica com outras variedades anteriores,

chamada de diastrática, a decorrente de variação

as quais também podem ser derivadas de forma

geográfica, diatópica, e as decorrentes de fatores

sistemática pela aplicação do método de recons-

cronológicos são as diacrônicas.

trução comparada de versões ainda mais antigas,

Contudo, é preciso ter cuidado ao classificar as

até chegar ao protogermânico e, em última instân-

diferentes variedades linguísticas identificáveis

cia, ao protoindo-europeu. Portanto, poderíamos

por meio da hierarquia convencional na qual as

classificar todas as línguas indo-europeias como

línguas possuem dialetos. Na verdade, em termos

“dialetos” da sua mãe, embora elas sejam tão dife-

das relações genealógicas, muitas variedades que

rentes entre si. É por esse motivo que os linguistas

são classificadas como “dialetos” de uma “língua”

tendem a evitar os termos “língua” e “dialeto” ao

não possuem nenhuma relação direta com a va-

tratar de agrupações cognatas complexas, e pre-

riedade identificada como “língua”. Por exemplo,

ferem denominar tudo uma “variedade linguística”,

os “dialetos” ingleses não são corruptelas ou des-

sem pressupor nenhuma relação hierárquica além

vios do inglês padrão, mas dialetos irmãos daquela

da ascendência comum.

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Inglês antigo

65

Recapitulando

A

Book 1.indb 65

prendemos nesta unidade a noção de

principais dialetos anglo-saxões: Northumbrian,

família linguística, descobrindo o uso

West ­Saxon, ­Mercian e Kentish.

da reconstrução comparada para com-

Conceituamos a heptarquia anglo-saxônica e

preender as línguas do passado. Estudamos as

descobrimos a participação do latim, das lín-

línguas germânicas, suas origens e classificações.

guas celtas e do norreno na constituição do

Além disso, abordamos os conceitos de his-

inglês. Examinamos, ainda, a história externa

tória interna e história externa, conhecendo

da língua inglesa antiga, compreendendo o

a participação da fonética e da fonologia no

contexto das invasões vikings e da unificação

aspecto sonoro das línguas. Analisamos a his-

do reino britânico. Finalmente, exploramos as

tória externa do estabelecimento da língua in-

principais obras do inglês antigo, tais como a

glesa, avaliando como ocorreram as migrações

Crônica Anglo-Saxônica e a História Eclesiástica

germânicas à Grã-Bretanha e a utilização dos

do povo inglês.

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unidade

2

O inglês médio Objetivos de aprendizagem Explorar as mudanças que ocorreram na língua inglesa entre a invasão normanda de 1066 e a coroação de Henry VII em 1485, que encerrou a Guerra das Rosas. Descobrir a história externa do reino da Inglaterra e como a conquista pelos normandos transformou radicalmente o contexto sociocultural e político dos falantes do inglês antigo. Conhecer as origens e a classificação tradicional dos dialetos ingleses medievais. Entender a relação entre a história interna e a externa das línguas para, então, compreender as mudanças estruturais da língua inglesa. Investigar as transformações linguísticas que ocorreram nos contextos fonético-fonológico, morfológico, sintático, lexical e semântico-pragmático durante o período medieval. Analisar a estrutura do inglês médio e explorar as principais divisões dialetais da época: Norte, Sudoeste, Centro-Oeste e Centro-Leste, Sudeste e Angliano Oriental. Estudar a expansão territorial dos descendentes de William I, “o Conquistador”, no continente europeu, conhecendo os domínios da dinastia Plantageneta, as repercussões do contato com a cultura literária francesa e com a cultura trovadoresca occitana. Reconhecer a significativa influência da língua francesa, em seus dialetos normando e parisiense, na formação da língua inglesa durante a Idade Média. Pesquisar a história externa do inglês médio, analisando a trajetória das invasões inglesas da França no século XIV, o impacto social da Peste Negra e a instabilidade política do reino da Inglaterra durante a Guerra das Rosas no século XV.

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Gramática histórica da língua inglesa

Conhecer algumas das principais fontes textuais do inglês médio, ressaltando a importância dessas obras para o estudo da linguística e para a reintegração da língua como o veículo de cultura da elite.

Temas 1 – História externa da Inglaterra medieval Neste tema, você estudará três momentos centrais à história da Inglaterra: primeiro, a controvérsia sobre a sucessão à coroa da Inglaterra que levou a duas invasões do país em 1066, o impacto na sociedade e cultura inglesas da conquista normanda e a expansão territorial inglesa no sul e no oeste da atual França ao longo do século XII durante os reinados dos descendentes de William I. Então, você explorará de que maneira nos séculos XIII e XIV a sociedade híbrida anglo-normanda se envolveu em relações intensas, às vezes violentas e outras pacíficas, com seus vizinhos imediatos escoceses, galeses e além-mar, com irlandeses, franceses, e no contexto das Cruzadas, com povos ainda mais distantes. Veremos as terríveis consequências da Peste Negra, que dizimou a população e alterou as relações sociais na essência. Finalmente, você investigará a grande instabilidade política no século XV conhecida como a Guerra das Rosas, durante a qual os territórios continentais ingleses foram perdidos definitivamente, quando o inglês volta a ser uma língua culta entre a elite, e cujo fim encerra o período medieval em terras inglesas. 2 – Influências estrangeiras Neste tema, você investigará as profundas influências que a conquista normanda exerceu na língua inglesa, especialmente no tocante ao léxico e à grafia. Você aprenderá a detectar a origem dialetal diversa de palavras emprestadas do francês normando ou da variedade de Paris, e verá as outras línguas que contribuíram à evolução do inglês ao longo da Idade Média.

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O inglês médio

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3 – História interna: mudanças estruturais Neste tema serão abordadas as mudanças que ocorreram na estrutura da língua inglesa durante os séculos medievais. Você identificará as numerosas mudanças que atingiram o sistema fônico e a gramática. 4 – Diversidade dialetal Neste tema, você estudará a diversidade dialetal do inglês com mais detalhes, aprendendo como os dialetos anglo-saxônicos evoluíram nas diferentes regiões, gerando a enorme variedade linguística que observamos no inglês medieval. Também aprenderá um pouco das diferenças que existiam entre o inglês da Inglaterra e sua irmã escocesa. 5 – Literatura medieval Este tema apresentará uma seleção das mais importantes obras literárias produzidas em inglês durante o período medieval. Você conhecerá o valor específico desses monumentos linguísticos e investigará seu papel no retorno da língua inglesa ao estatuto de língua literária, depois de vários séculos de inferioridade sociocultural frente à francesa.

Introdução To Frankis & Normanz, for þar grete laboure, To Flemmynges & Pikardes, þat were with him in stoure, He gaf londes bityme, of whilk þer successoure Hold ȝit þe seysyne, with fulle grete honoure. (Robert Mannyng of Brunne) Mannyng’s Chronicle (1338) (ed., Hearne, I, 72)1 Þus come lo Engelond in to Normadies hond. & þe normans ne couþe speke þo bote hor owe speche & speke French as hii dude atom, & hor children dude also teche; So þat heiemen of þis lond þat of hor blod come Holdeþ alle þulke spreche þat hii of hom nome. 1 “A franceses e normandos, por seu grande trabalho, / A flamingos e picardos, que estavam com ele na batalha, / ele deu terras logo, das quais os sucessores deles / ainda possuem o título, com muito grande honor.”

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Vor bote a man conne Frenss me telþ of him lute. Ac lowe men holdeþ to Engliss & to hor owe speche ʒute. Ich wene þer ne beþ in al þe world contreyes none Þat ne holdeþ to hor owe speche bote Engelond one. Ac wel me wot uor to conne boþe wel it is, Vor þe more þat a mon can, þe more wurþe he is. Chronicle of Robert of Gloucester (c. 1300) (ll. 7537-7547)2

Nesta unidade, você aprenderá sobre a história externa da Inglaterra, desde os últimos anos do reino anglo-saxônico e até a controvérsia sobre a sucessão ao trono de Edward “o Confessor”, que desencadeou duas invasões do reino no ano de 1066. Primeiro, no norte, pelos noruegueses, que o rei Harold Godwinsson conseguiu repulsar, e em seguida no sul, pelos normandos sob o duque William, “o Bastardo”. A vitória das tropas de William sobre o exército de Harold na batalha de Hastings mudaria o curso da história da Inglaterra e da língua inglesa profundamente. Depois, você estudará o impacto da conquista normanda sobre a sociedade e a cultura da Inglaterra. O domínio total do país por uma pequena elite francófona causou um período de contato prolongado e íntimo entre o inglês e a cultura e língua francesa. Os interesses políticos dos reis da Inglaterra no continente europeu, na Irlanda e na Grã-Bretanha durante os séculos depois da conquista, exerceriam influências que transformariam a língua inglesa. Quando o inglês começa a ressurgir na escrita depois de um longo tempo, durante o qual o francês tinha sido o principal veículo da cultura literária, a forma da língua é quase irreconhecível quando a comparamos com a do inglês antigo. Seus estudos levarão você a investigar a natureza dessas mudanças estruturais e os motivos que fizeram que a língua inglesa não desaparecesse, abandonada em prol do francês, e as condições que possibilitaram seu retorno. 2 “Escutem! Assim, veio parar a Inglaterra, na mão da Normandia. / E os normandos não sabiam falar outra língua naqueles tempos que a própria deles / e eles falavam francês, como costumavam em sua terra, e a seus filhos, o ensinaram também; / De modo que, homens nobres deste país que vêm do sangue daqueles, / todos eles mantêm essa mesma língua que tomaram deles. / Pois, a não ser que um homem saiba francês, as pessoas pouco o estimam. / Contudo, homens comuns preservam o inglês e ainda mantêm sua fala. / Acredito que haja, em todo o mundo, nenhum país / que não preserva sua própria língua, exceto a Inglaterra apenas. / Mas é sabido que é bom saber as duas, / porque quanto mais um homem souber, mais ele vale.” Tradução baseada em Baugh e Cable (1994).

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História externa da Inglaterra medieval A conquista normanda e o século XII A morte sem herdeiro do rei Edward III, “o Confessor”, da Inglaterra em 1066 precipitou uma crise política no reino. Havia três pretendentes ao trono inglês: o cunhado do falecido rei, Harold Godwinsson, o poderoso earl de Wessex; Harold “Hardrada”, rei da Noruega; e William, duque da Normandia, primo distante do rei Edward.

Saiba mais Harold Godwinsson As fontes históricas parecem indicar que Harold Godwinsson, o earl de Wessex, foi o escolhido por Edward como seu herdeiro. Além da preferência real, Harold tinha a vantagem de ser o mais poderoso dos grandes senhores ingleses: o earl de Wessex incluía toda a região Sul da Inglaterra, e os outros nobres anglo-saxões favoreciam sua candidatura, por ser nativo e conhecido. Sua irmã Edite era casada com o rei Edward, e seu irmão Tostig era o earl de Nortúmbria. A família de Godwin dominava a política inglesa durante os meados do século XI. No entanto, as relações entre a família de Harold e o rei Edward não eram sempre cordiais. Seu pai, o earl Godwin, tinha apoiado os reis dinamarqueses Canuto, Haroldo “Pé-de-Lebre” e Hardacanuto durante o longo exílio de Edward na Normandia. Godwin e seus filhos tinham sido exilados por Edward entre 1053 e 1054, por terem se recusado a punir os envolvidos em um levantamento no porto de Dover. Harold também tinha uma relação difícil com seu irmão mais novo, Tostig, que se rebelou e foi exilado. Tostig apoiou a invasão de Harold Hardrada e morreu lutando contra os noruegueses na batalha de Stamford Bridge em setembro de 1066.

Saiba mais Harold Sigurdsson “Hardrada” Rei da Noruega de 1046 a 1066, Harold teve uma vida plena de aventuras antes de ser morto na batalha de Stamford Bridge, lutando contra o exército do rei Harold Godwinsson, perto de York, a principal cidade no norte da Inglaterra,

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Gramática histórica da língua inglesa

em setembro de 1066. Seu apelido “Hardrada” significa “governo” ou “julgamento duro”, porque reprimia violentamente qualquer contestação a sua autoridade. Os historiadores consideram que a morte de Harold marca o fim da era viking (séculos IX a XI). Antes de assumir o trono da Noruega, Harold viajara muito pelos principados eslavos no Leste Europeu, lutando como mercenário, e integrou a famosa “guarda varegue” dos imperadores bizantinos em Constantinopla, por quem lutou pelo Mediterrâneo. Sua vida foi matéria de várias sagas nórdicas. Harold justificou sua reivindicação ao trono da Inglaterra por um acordo entre o rei Hardacanuto da Inglaterra e da Dinamarca e o rei Magnus da Noruega, sendo que cada rei indicou o outro como seu herdeiro. Contudo, quando Hardacanuto morreu em 1042, Edward, o filho de Ethelred, o último rei anglo-saxão antes da conquista dinamarquesa, fez-se coroar rei da Inglaterra na ausência de Magno, que por inércia ficou apenas com a Dinamarca. Quando Magno morreu, Harold executou os planos noruegueses já existentes de retomar a Inglaterra por força das armas. No entanto, seu exército foi derrotado pelas forças do novo rei Harold Godwinsson.

Figura 2.1  Duque William de Normandia (no centro) com seus meios-irmãos, Odo, bispo de Bayeux (à esquerda), e Robert, Conde d’Eu (à direita, com espada na mão). Foi Odo que mandou fazer a “tapeçaria de Bayeux”, um painel de linho de quase 70 m de comprimento por 50 cm de largura, bordado com cinquenta cenas do contexto histórico da conquista normanda.

Fonte: Bayeux Museum.

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Saiba mais William, “o Bastardo”, duque da Normandia William acreditava ser o herdeiro legítimo de Edward, “o Confessor”, por ser o parente de sangue mais próximo (eles eram primos de segundo grau). Além de alegar que Edward já lhe tinha prometido o trono, William declarou que Harold Godwinsson jurou sobre uma caixa de ossos santos que apoiaria William, quando o duque capturou o nobre inglês depois que ele sofreu um naufrágio na costa normanda. Portanto, quando Harold foi coroado em Londres, William considerou que tinha sido traído. Ele conseguiu um decreto do papa de que Harold havia se perjurado e, portanto, poderia ser deposto. Filho ilegítimo do duque Roberto I com sua amante, Arlete, William foi nomeado duque em 1035 na idade de sete ou oito anos. Ele escapou de várias tentativas de assassinato durante sua infância e adolescência, e os nobres normandos lutaram entre si para supremacia no ducado e para controlar o jovem duque. Consolidando sua posição em 1047, William fechou uma aliança por matrimônio com seu poderoso vizinho, o conde de Flandres, e guerreou contra seus vassalos rebeldes e outros nobres franceses.

Quando resolveu invadir a Inglaterra, William juntou um poderoso exército chamando não apenas seus vassalos normandos, mas também guerreiros de outras regiões da França, com a promessa de grandes recompensas de terras e botim. Com o apoio pelo conselho de nobres ingleses, o witenagemot, Harold Godwinsson foi coroado em janeiro de 1066. Harold Hardrada invadiu o norte da Inglaterra em setembro. No entanto, o exército escandinavo foi derrotado pelos ingleses na batalha de Stamford Bridge em 25 de setembro, onde Harold Hardrada foi morto. Assim que a batalha acabou, Harold soube da invasão de William da Normandia no litoral sul, e o exército inglês teve de  retornar em marcha forçada. A batalha decisiva entre normandos e anglo-saxões ocorreu em 14 de outubro, em um morro perto da cidade de Hastings. Depois de várias horas de combate, os normandos conseguiram romper a parede de escudos dos ingleses. Harold Godwinsson foi morto, e as tropas de William venceram a batalha. William foi coroado em Londres em 25 de dezembro de 1066.

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Gramática histórica da língua inglesa

Figura 2.2  Lugares e eventos importantes na Inglaterra no ano de 1066. 0º

3º O

Batalha de Fulford Haroldo Hardrada e Tostig Godwinson derrotam Eduíno e Morcar (20 de setembro)

54º N

Batalha de Stamford Bridge Haroldo derrota Haroldo Hardrada e Tostig Godwinson (25 de setembro)

Wallingford Stigand se submete Berkhamsted Líderes ingleses (final de outubro) se submetem (fim de outubro) Londres Guilherme é coroado (25 de dezembro)

Southwark Guilherme é repelido (meados de outubro) Batalha de Hastings Guilherme derrota Haroldo (14 de outubro)

Pevensey Guilherme desembarca (28 de setembro) Canal da Mancha

Fonte: Amitchell125 e Lumos3.

Saiba mais Os normandos: vikings afrancesados O próprio nome “Normandia” significa “terra dos homens do norte” (cf., inglês, northman, latim, nor(t)mannus, “escandinavo”). Os vikings tinham ocupado áreas ao redor da desembocadura do rio Sena desde meados do século IX para passar o inverno e como uma base para atacar outras regiões. A Normandia começou como território cedido em 912 pelo rei da França, Charles III, “o Simples” (r. 893-922), ao líder dinamarquês Rollo. Figura 2.3  A Normandia. 0º

Dieppe

Canal da Mancha

Fécamp

Ilhas Cherbourg Anglonormandas

Lillebonne Rouen

Le Havre

49º N

Caen Ri o

na

Évreux O

e rn

Avranches

Lisieux

Se

Coutances

o Ri

Bayeux

Alençon

R io

Eu

re

Fonte: Urban.

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O inglês médio

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A concessão de terras francesas assemelha-se à criação do Danelaw no norte e no leste da Inglaterra por Alfredo Magno, em 886, em seu tratado com o rei dinamarquês de East Anglia, Guthrum. Rollo jurou lealdade ao rei Charles, casou-se com sua filha e aceitou ser batizado. Em troca, Rollo recebeu o título ao território e foi nomeado duque. Ao longo do século seguinte, os duques da Normandia expandiram seus domínios à custa dos senhores vizinhos e sempre mantiveram bastante independência política a respeito do seu senhor feudal, o rei da França. Rapidamente, os normandos perderam a maioria de suas características escandinavas, assimilando-se à cultura geral, falando um dialeto do francês antigo, construindo grandes catedrais, fundando mosteiros e colonizando outras regiões. No século XI, a Normandia foi uma das regiões mais dinâmicas de toda a França medieval.

A vitória dos normandos transformou a sociedade inglesa profundamente. Da noite para o dia, os nobres ingleses que não foram mortos nas batalhas, ou nos levantamentos posteriores, foram substituídos por seguidores de William (em 1072, apenas um dos doze earls era inglês e esse foi executado quatro anos depois) (BAUGH; CABLE, 1994, p. 109). A grande maioria dos principais cargos eclesiásticos também foi distribuída entre normandos, por exemplo, os dois arcebispados, de York e de Canterbury. Apenas um bispo, Wulfstan de Worcester, sobreviveu à troca de regime, e foi vítima de zombarias dos outros religiosos porque não sabia falar francês. Os abades dos grandes mosteiros também foram trocados por normandos ou franceses de outras regiões, à medida que faleciam. Em 1075, 13 dos 21 abades que assinaram os decretos do Concílio de Londres eram ingleses; em 1087 havia apenas três. Além dos magnatas seculares e religiosos, havia uma massa de seus seguidores comuns normandos, bretões e franceses de outras regiões que procuravam fazer fortuna nessa terra de oportunidades. William reprimiu com muita violência grandes levantamentos que ocorreram anualmente entre 1067 e 1070, especialmente no norte da Inglaterra. O novo rei redistribuiu os feudos entre seus seguidores. A ocupação foi segurada pela construção de castelos de mota, de terra e madeira, para possibilitar que grupos reduzidos de normandos pudessem dominar a população majoritariamente hostil.

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Gramática histórica da língua inglesa

Figura 2.4  Um castelo de mota normando da época da conquista.

torre de menagem plataforma

ponte levadiça casa senhorial recinto fortificado

mota baluarte de terra paliçada

portaria fortificada

fossa ponte levadiça

Entre 1085 e 1086, William mandou um censo geral do reino em que os investigadores anotaram o valor, a extensão e o dono de todas as posses antes da conquista e a situação contemporânea, para fixar os títulos às propriedades e para calcular impostos. Esse registro, que ainda existe, ficou conhecido como o Domesday Book (Livro do dia de avaliação). Quase todos os novos senhores eram falantes do normando, um dialeto regional do francês antigo, ou de variedades de outras regiões francesas. No entanto, a maior parte dos senhores de terras menores conseguiu manter suas posses depois da conquista. Como Baugh e Cable (1994, p. 111) observam, porém, apesar de os normandos e seus aliados constituírem uma minoria da população da Inglaterra (apud GILLINGHAM, 1984 [1997], p. 104), estimam-se aproximadamente 10 mil normandos contra 1 a 2 milhões de ingleses, a influência exercida por essa pequena elite francófona era completamente desproporcional, por sua dominância de todas as posições de destaque social, militar e religioso.

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O inglês médio

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Figura 2.5  Uma típica herdade feudal menor.

Herdade feudal Pasto natual Bosque Terceiro campo (alqueivado) Primeiro campo plantio invernal

Casas de servos

Prado

Casarão do senhor Fábrica/Ferraria

Primeiro campo plantio invernal

Igreja

Rio

Taverna Poço Celeiro

Segundo campo (plantio de primavera) Moinho d’agua

William I faleceu em 1087. Ele dividiu seu reino entre seus filhos: o primogênito, Robert, recebeu o ducado da Normandia, e o segundo filho, William, recebeu a Inglaterra. O caçula, Henry, recebeu uma herança em dinheiro. Robert e William II brigavam para unificar os territórios, até a morte de William II em 1100, quando Henry assumiu o trono da Inglaterra e, capturando Roberto em 1106, unificou o ducado com o reino novamente. O reino de Henry I contribuiu para restabelecer a autoridade real, mas sua morte em 1135 provocou uma nova crise política, porque seu único herdeiro legítimo morrera afogado em um naufrágio em 1120. Henry nomeou sua filha Matilda, viúva do imperador Sacro Romano, Henry V, como sua herdeira, mas a sucessão foi contestada por um primo dela, Stephen de Blois, conde de Boulogne, que se fez coroar. Matilda e seu segundo marido, Geoffrey, conde de Anjou, e seu filho Henry, apelidado FitzEmpress, “filho da Imperatriz” (o prefixo fitz é o cognato normando de fils, “filho” em francês central), lutaram contra Estevão na Inglaterra e na Normandia, de 1139 até 1053, um período conhecido como “A Anarquia”, durante o qual o controle do país trocou de mãos várias vezes. Finalmente, depois da morte do primogênito de Stephen, Geoffrey e

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Henry, concordaram que, em troca de manter a paz, Henry herdaria o reino. Quando Stephen morreu em 1154, Henry foi coroado.

O século XIII: o império angevino Henry II foi um rei enérgico, que atuou decisivamente para restabelecer a autoridade real na Inglaterra, depois dos longos anos de guerra civil. No entanto, o ato mais influente de sua vida foi certamente seu casamento em 1152 com Eleonor, duquesa de Aquitânia. Ela foi a herdeira de imensos territórios na Occitânia (atual sudoeste da França), que, junto com as terras possuídas por Henry II nos dois lados do Canal da Mancha, criaram um domínio feudal imenso que se estendia da fronteira da Escócia até os Pirineus. Figura 2.6  O “Império” angevino. 0º

Carlisle Dublin

Mar do Norte

York Chester

Limerick Cork

Waterford Bristol

Londres

50º N Paris

Caen OCEANO ATLÂNTICO

Rennes Nantes

Chinon Poitiers La Rochelle Bordeaux

Território herdado por Henry II Território adquirido por Henry por seu casamento com Eleonora de Aquitânia em 1152

Bayonne

Le Puy

Toulouse

Nines

Fonte: Watson (2015).

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Henry e Eleonor tiveram cinco filhos e três filhas. A relação deles era tumultuosa. Henry teve vários filhos ilegítimos com diversas amantes, como era esperado de um rei medieval. A partir de 1167, o casal real passou a viver separadamente. Eleonor levou sua corte para a cidade de Poitiers, onde se acredita que ela tenha presidido as célebres, e eventualmente lendárias, “cortes de amor” citadas pelo escritor Andreas Capellanus (André Capelão). De acordo com Capellanus, Eleonor e várias outras nobres julgavam casos amorosos em conformidade com as regras do amor cortês. O período em que Eleonor esteve em Poitiers é importante por ter difundido e popularizado a cultura trovadoresca pelo mundo medieval, incluindo a Inglaterra.

Saiba mais Occitano e francês Na França, não se fala apenas o francês. Na Bretanha, no oeste, fala-se bretão, uma língua celta que descende da língua falada no sudoeste e no sul da Grã-Bretanha na época das invasões anglo-saxônicas. Muitos romano-bretões se refugiaram dos anglo-saxões de Wessex em uma série de emigrações para o continente. Alguns grupos desses celtas refugiados se estabeleceram no litoral norte da Espanha e na Galícia. Entre as línguas românicas faladas na França, existem três grandes divisões dialetais: 1.

Os dialetos francianos – (picardo, normando, angevino, champanhense, orleanês, pontevino, borgonhês, valão) são os falados ao norte do rio Loire, até a fronteira linguística com o germânico (os dialetos flamengos, holandeses e alemães), aproximadamente ao longo do rio Reno.

2.

No leste, no oeste da região da Borgonha, na Suíça ocidental e no noroes­te da Itália há dialetos franco-provençais, que misturam alguns traços dos grupos setentrionais e meridionais, sem ser idênticos a nenhuma dessas agrupações.

3.

Ao sul do rio Loire, existe o bloco occitano, que inclui o provençal, o lengadociano e o gascão, entre outros dialetos regionais.

O occitano ou língua d’oco (porque a palavra para “sim” é òc < latim, hoc, “isso”), é uma língua semelhante, porém, distinta do francês. Na Idade Média, os menestréis compunham poesia pastoral e épica em dialetos francianos ou em língua d’oil (atual francês, oui “sim” < latim, hoc ille, “isso ali”), mas eles preferiam compor poesia lírica em occitano, seguindo a tradição estabelecida pelos trovadores. O occitano era conhecido pelos filhos de Henry II e Eleonor de

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Aquitânia, porque era sua língua materna. O próprio Richard era conhecido pelo apelido “oc et no” (“sim e não”), por ser muito taciturno. Richard I compôs um poema J’a nus hons pris ou J’a nuls om pres (“Nenhum homem que é preso”), em versões em occitano e em francês, durante sua prisão pelo duque Leopoldo da Áustria entre 1192 e 1194. O poema é dirigido à sua meia-irmã, Maria de Champanhe, expressando seus sentimentos de abandono por seu povo e seus parentes.

Saiba mais O sistema feudal Na Idade Média, as pessoas acreditavam que a hierarquia social tinha sido criada por Deus, tal como todo o mundo. Cada pessoa pertencia inalteravelmente a uma das cinco camadas sociais. Entre as pessoas comuns e os nobres existia uma divisão insuperável de natureza que foi determinada ao nascimento. Cada classe realizava determinadas funções. O que as ligavam eram os direitos e responsabilidades. Por exemplo, as terras pertenciam ao monarca, que as distribuía entre seus principais vassalos nobres (barões) em troca de serviços militares, ajuda financeira e administração de impostos e de justiça. Os nobres maiores, por sua vez, distribuíam as terras que receberam do rei entre a nobreza inferior (os cavaleiros), que prestava serviço militar e administrava localmente. Essas relações entre os nobres foram baseadas em juramentos de lealdade e serviço (homenagem) do vassalo ao seu senhor. Entre as pessoas comuns livres, os moradores das cidades ocupavam-se com o comércio ou como artesões; no campo, eram produtores rurais. O último degrau da hierarquia social eram os servos, as pessoas comuns não livres, que trabalhavam na lavoura. Os servos pertenciam ao senhor feudal e não podiam deixar a propriedade onde nasceram. Os servos deviam serviços na lavoura por determinado número de dias por semana nas terras particulares do seu senhor, além de trabalhar em suas próprias faixas de terreno, que eram espalhadas por três ou quatro grandes campos, para que todos compartilhassem os terrenos melhores e piores. O que sobrasse depois da sua autossustentação poderia ser vendido. Além do serviço de trabalho, os servos deviam diversos impostos em espécie ao seu senhor e à Igreja. Em troca, o senhor feudal deveria protegê-los contra violência e administrar justiça.

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Do lado religioso, existia um pouco mais de flexibilidade para as pessoas comuns alcançarem posições de destaque, o que tornava a carreira religiosa uma opção atrativa para indivíduos não nobres talentosos e com ambição. No entanto, os cargos mais altos quase sempre eram ocupados por nobres. Figura 2.7  Estrutura da sociedade medieval.

REI Transmite terras, títulos, cargos e privilégios

Fornecem dinheiro e cavaleiros Barões Fornecem serviço militar e proteção

Transmitem terras e cargos Cavaleiros

Fornecem alimentos, produtos e serviços

Transmitem terras Lavradores

Hierarquia social medieval cristã (social e religiosa, determinada por Deus) A†Ω Senhor secular: rei ou imperador Nobreza secular: príncipe, duque, conde, cavaleiro Comerciantes, artesãos, camponeses livres Servos

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DEUS Senhor religioso: papa Nobreza religiosa: cardeal, arcebispo, bispo Sacerdotes, frades e monges Fiéis

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Em 1173, Henry, o filho mais velho de Henry e Eleonor, rebelou-se contra seu pai e procurou apoio com seus irmãos Richard e Geoffrey entre os vassalos da mãe deles. A rebelião fracassou, mas, pelo fato de ter ajudado seus filhos contra ele, Henry II encarcerou Eleonor durante 16 anos em vários castelos pelo sul da Inglaterra, até a morte dele em 1189, quando Richard assumiu o trono. Apesar da sua fama de “Coração de Leão”, Richard I passou pouquíssimo tempo na Inglaterra, preferindo explorar seu reino como uma fonte de renda para manter seus exércitos no continente. Ele participou ativamente da terceira Cruzada, mas não conseguiu reconquistar Jerusalém do grande líder muçulmano, Saladino. Ele foi preso na Áustria ao voltar da Terra Santa e ficou refém do Imperador Sacro Romano entre 1192-1194, sendo solto por um resgate colossal de 10 mil libras de prata. Guerreou constantemente contra o rei da França, Felipe Augusto, morrendo em 1199 em decorrência de uma flechada de besta gangrenosa que sofreu quando sitiava um castelo. Durante o reinado de John “Sem-Terra” – que ganhou esse apelido por não receber inicialmente nenhum patrimônio territorial do seu pai –, vários territórios ancestrais foram conquistados pelos franceses. A perda do ducado da Normandia e os condados de Anjou e Maine danificou o prestígio da monarquia, e as políticas desmedidas adotadas por John para financiar a campanha de retomar as terras continentais o tornaram impopular. Depois que o rei fracassou na tentativa de reconquistar a Normandia, o final do seu reinado viu uma série de rebeliões pelos barões que obrigaram o monarca a assinar a Magna Carta em 1215, um documento em que os direitos e as responsabilidades do rei e de seus vassalos foram definidos de forma a limitar o poder do monarca de governar sem consultar os magnatas do reino. Nenhuma parte respeitou o acordo da Carta inicialmente, e o país recaiu em uma guerra civil em que os barões recebiam o apoio do rei da França; quando John morreu de disenteria em 1216, e seu filho Henry, de apenas nove anos, assumiu o trono, sob a tutela de William, “o Marechal”.

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O longo reinado de Henry III foi cheio de incidentes. Além de apertar a população para financiar campanhas militares e extravagantes gestos religiosos e cerimoniais, a situação política foi afetada pela presença de diversos grupos de parentes da família real, savoiardos da família da rainha Eleonor de Provença, e pictevinos da família do rei, que eram favorecidos na corte, o que alienou a nobreza inglesa, resultando numerosas rebeliões e muita instabilidade sociopolítica.

O século XIV: a Guerra dos Cem Anos e a Peste Negra O reinado de Edward I Edward I reinou de 1272 a 1307. Durante sua juventude, ele participou ativamente de intrigas e rebeliões dos barões contra seu pai, inicialmente apoiando os rebeldes, para depois defender ferrenhamente a posição do rei contra seus adversários. Foi à Terra Santa na nona Cruzada. Edward foi um rei ativo administrativamente, promovendo várias reformas e reorganizações jurídicas e burocráticas, principalmente com o objetivo de melhorar suas rendas, para financiar seus projetos militares, pois era muito ativo nesse âmbito também. Ele completou o domínio inglês em Gales, onde fez prevalecer o direito inglês, e tentou subjugar a Escócia à coroa inglesa. Nesse empreendimento, seus sucessos iniciais não foram duradouros, sendo desfeitos durante o reinado do seu filho, Edward II. Como todo monarca da dinastia Plantageneta, ele era ativo na política continental, tentando principalmente estabelecer alianças contra a França, com o objetivo de recuperar seus territórios ancestrais na Normandia e em Anjou. A necessidade de conseguir dinheiro para realizar suas ambições políticas fazia que Edward tivesse de recorrer mais ao parlamento para facilitar a arrecadação de impostos, fortalecendo a instituição, pois os nobres negociavam o aumento e a garantia de seus direitos com o rei em troca de liberar o apoio financeiro.

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Figura 2.8  Gales depois do tratado de Montgomery em 1267, mostrando a extensão do poder do príncipe galês Llywelyn durante as instabilidades do reinado de Henry III. 3º O

Iarllaeth Caer Gwynedd

Powys Fadog

Powys Wenwynwyn Mar da Irlanda

Ceredigion Candref Mawr

52º N

Reino da Inglaterra

Gwynedd, principado de Llywelyn ap Gruffudd Territórios conquistados por Llywelyn

Builth

Territórios de vassalos de Llywelyn

Brycheining

Senhorias dos barões anglo-normandos “da Marca galesa” Senhorias dependentes diretamente do rei da Inglaterra

Marcher Lordships

OCEANO ATLÂNTICO

Fonte: AlexD.

Figura 2.9  Os domínios em Gales depois do Tratado de Aberconwy de 1277. 3º O

Cemais

r ff

Deganwy Aberconwy Garth

Rhosyr

w

Dolbadan

Arfon

dd we ch

Ar Celyn l Bangor le

Rhu fo n

Abe

ra

Dolwyddelan

iog

Dyfrfuin Clwyd

53º N

Llyn

Mar da Irlanda

Dunoding

Penllyn

Senhorias da Marca Galesa e outras dependências reais

Reino da Inglaterra

Principado de Gwynedd, sujeito a Llywelyn ap Gruffydd Terras de Dafydd ap Gruffydd, irmão de Llywelyn Senhorias “da Marca” e demais vassalos reais Antigo território galês cedido ao reino da Inglaterra

Fonte: AlexD.

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Figura 2.10  Gales depois do Estatuto de Rhuddlan de 1284. 3º O

Flint LINCOLN

Anglesey

WARREN

Carnarvon

FITZALAN

PO OL E

Mar da Irlanda

CORBET

Ca rd ig an

MORTIMER

M A

Reino da Inglaterra

Principado do Gales do Norte, administrado pelo justiciar de Galês do Norte, nomeado pelo rei, com os nomes dos distritos As senhorias da Marca Galesa, com seus sobrenomes Outros territórios administrados diretamente pela coroa inglesa, com os nomes dos distritos

L AL SH R

GIF FO RD

52º N

n he art rm Ca

Condado Palatino de Chester

BOHUN

LANCASTER

CLARE

OCEANO ATLÂNTICO

Fonte: AlexD.

Embora não houvesse nenhuma imposição linguística, a presença de senhores feudais anglo-normandos e seus seguidores, além das guarnições dos vários castelos construídos ao mando de Edward I, aumentou a quantidade de falantes de inglês (e francês) na região galesa, especialmente no sul e no sudoeste.

Edward I na Escócia A entrada dos ingleses na política escocesa resultou da morte do rei Alexandre III e de todos seus parentes mais próximos entre 1281 e 1290. Os escoceses pediram que Edward I administrasse o processo de negociação entre os pretendentes ao trono, John Balliol e Robert de Brus, e implementasse o resultado, sem participar no julgamento, que seria feito por uma comissão de nobres. No entanto, Edward exigiu que o preço da sua participação fosse a submissão feudal à sua pessoa. Os escoceses evitaram a exigência, entregando o reino a Edward durante a deliberação, mas com o entendimento de que seria o candidato selecionado como rei a tomar a decisão final.

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Quando Balliol foi escolhido, porém, Edward não deixou de se considerar o senhor feudal da Escócia e demandou que os barões escoceses lhe prestassem serviço militar contra a França. Os nobres escoceses recusaram-se a lutar pelo rei inglês, seu inimigo ancestral, contra o aliado tradicional deles, e atacaram a cidade de Carlisle no norte da Inglaterra, com a ajuda dos franceses. Em retaliação, Edward invadiu a Escócia em 1296, saqueando a cidade de Berwick e derrotando os escoceses em uma batalha em Dunbar. O recém-coroado Balliol foi deposto e levado preso para Londres, e um inglês foi instalado para governar o país. Figura 2.11  Mapa da região fronteiriça entre Inglaterra e Escócia na virada do século XIII para XIV.

Fonte: Heritage History (www.heritage-history.com).

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A resistência escocesa não demorou. Em 1297, William Wallace e Andrew Moray derrotaram um exército inglês na batalha de Stirling Bridge e tomaram o castelo. Edward, que estava em campanha em Flandres, voltou para a Inglaterra e liderou uma nova invasão, derrotando Wallace gravemente na batalha de Falkirk. Nos anos seguintes, apesar da guerrilha liderada por Wallace, o controle inglês foi restabelecido, à medida que os nobres escoceses se submetiam a Edward, reconhecendo seu domínio. Em 1305, William Wallace foi traído pelos ingleses e foi executado em Londres. Em 1306, Robert the Bruce, neto do pretendente perdedor em 1292, assassinou seu maior rival, John Comyn, e fez-se coroar rei, iniciando um movimento independentista. Surpreendidos pelo sucesso de Bruce, e com Edward doente e velho, os ingleses conseguiram derrotar as forças de Robert the Bruce e retomaram os castelos capturados. Contudo, no ano seguinte, Robert the Bruce voltou a derrotar os governadores ingleses, e Edward resolveu intervir pessoalmente, apesar das suas enfermidades. Ele marchou rumo à Escócia, mas contraiu disenteria e faleceu na fronteira.

O reinado de Edward II Edward II não foi um rei guerreiro como seu pai. Durante seu reinado, Robert the Bruce conseguiu expulsar os ingleses da Escócia definitivamente, na batalha de Bannockburn em 1314. Em seguida, o país sofreu uma fome devastadora. O comportamento desmedido do favorito dele, Piers Gaveston, tinha enfurecido os nobres e seu pai, Edward I, que o exilou. Depois da morte de Edward I, porém, Edward II revogou o exílio. O retorno do detestado favorito fez que os barões obrigassem o rei a assinar uma série de garantias para manter a paz. Em 1308, Gaveston foi exilado novamente, por seu tratamento da rainha, Isabel, filha do rei da França, mas Edward II conseguiu que Gaveston voltasse em 1309. Continuando a alienar a nobreza com sua arrogância e insultos, Gaveston foi exilado pela terceira vez em 1311. Quando voltou em 1312, o rei restaurou todas as terras, os títulos e os privilégios confiscados. Os barões e o partido real começaram a se preparar para lutar, mas Gaveston foi capturado por um grupo de barões hostis, condenado por romper os termos do acordo de 1311 e, então, executado.

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A derrota na Escócia em 1314, os problemas com a França sobre a Gascunha (a última possessão continental inglesa, sendo o litoral sudoeste da atual França) e rivalidades e animosidades entre as facções nobres e o rei levaram a uma crise política em que a rainha Isabel se aliou com o poderoso barão Roger Mortimer, que estava foragido na França após uma rebelião contra a coroa em 1322. Isabel e Mortimer invadiram a Inglaterra em 1327 com um pequeno exército. A cidade de Londres levantou a favor dos invasores, e Edward II fugiu para Gales, onde foi capturado, obrigado a abdicar a favor de seu filho Edward III, de quatorze anos, e foi encarcerado no castelo de Kenilworth, onde morreu em circunstâncias misteriosas, provavelmente assassinado.

O reinado de Edward III A abdicação de Edward II deixou o reino da Inglaterra nas mãos da rainha-mãe, Isabel, e seu amante, Roger Mortimer, como regentes que governaram durante a menoridade de Edward III. Mortimer abusava da sua posição para se enriquecer; ele perdeu uma batalha contra os escoceses, que resultou em um tratado humilhante para os ingleses, e desentendeu-se com o jovem rei. Em 1330, com um pequeno grupo de companheiros, Edward III capturou seu antigo guardião e mandou executá-lo e encarcerou sua mãe sob prisão domiciliar, começando seu reinado pessoal. Entre os primeiros objetivos de Edward III estava o recomeço de hostilidades com a Escócia. Uma invasão organizada por nobres ingleses que perderam terras nos tratados anteriores conseguiu uma vitória importante e instalaram Edward Balliol no trono no lugar de David II. Os escoceses retaliaram, e Balliol teve de fugir e pedir ajuda ao rei inglês. A reação de Edward III foi decisiva: ele invadiu a Escócia novamente, sitiou a cidade fronteiriça de Berwick e derrotou o exército escocês que fora salvar a cidade. Edward Balliol foi restaurado ao trono da Escócia, e o país cedeu bastante território no sul para a Inglaterra. No entanto, os ganhos políticos e territoriais na Escócia não foram consolidados e, em 1338, foi preciso renegociar um tratado com David II, que estava retomando o controle do país.

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A paz com a Escócia foi necessária para evitar o risco de uma guerra em duas frentes, devido à deterioração das relações com a França. Os franceses tinham atacado cidades costeiras na Inglaterra e, em 1337, o rei da França, Philippe VI, confiscara o ducado de Aquitânia e o condado de Ponthieu, que pertenciam ao rei da Inglaterra. Em lugar de negociar e prestar a homenagem esperada de um vassalo feudal, tal como seu pai Edward II tinha feito, Edward III declarou-se o herdeiro legítimo ao trono francês, como neto de Philippe IV e sobrinho de Charles IV, por parte da sua mãe, Isabel, porque, embora a Lei Sálica observada na França desde doze anos antes proibisse a sucessão às mulheres, em princípio, a lei não impediu a transmissão do título pela ascendência materna. Os franceses contestaram que o atual rei Philippe VI possuía a melhor reivindicação à coroa, sendo primo do falecido rei Charles IV. Assim começou a Guerra dos Cem Anos. Edward iniciou sua ofensiva contra Philippe VI por vias diplomáticas, negociando alianças com príncipes e reis vizinhos da França. A estratégia mostrou-se cara e pouco eficiente, provocando descontentamento entre a população da Inglaterra devido aos impostos punitivos cobrados. A necessidade de negociar com o parlamento em 1340 trouxe o rei de volta para a Inglaterra de Flandres, onde ele estava com o exército. Depois de uma rigorosa purga de oficiais e uma série de negociações conflituosas com o parlamento em que o rei teve de aceitar fortes limitações sobre sua liberdade administrativa para conseguir a votação de impostos que tanto desejava, Edward mudou de estratégia e invadiu a França diretamente. Desembarcando 15 mil soldados na Normandia, o rei tomou a cidade de Caen e marchou ao norte para se reunir com o restante das forças inglesas, que estavam em Flandres. No caminho, Edward ganhou uma vitória importantíssima contra um exército francês muito maior em Crécy, em agosto de 1346. Em outubro, um exército inglês capturou o rei da Escócia, e, com a fronteira setentrional da Inglaterra pacificada, Edward sentiu-se bastante seguro de lançar uma considerável ofensiva militar contra o importante porto de Calais, que caiu depois de um sítio de quase um ano.

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Figura 2.12  Território inglês na França em 1337. 0º

INGLATERRA

Londres

Fla nd er

s

Southhampton Calais

eno oR Ri

a Manch al da Can

Normandia

Paris

Champagne Sena Rio

Bretanha Rio Lo ire

Anjou

Blois Touraine

OCEANO ATLÂNTICO

Borgonha

IMPÉRIO SACRO ROMANO

Poitiers Auvergne

45º N

Aquitânia Rio

Rio Rodano

Bourdeaux

Ga ro na

Gasconha

Languedoc Toulouse

Mar Mediterrâneo 1337 Situação antes da Batalha de Crécy

ESPANHA

Território inglês Território francês

Fonte: Pojer e Greeley (2016, p. 29).

Em 1348, a Peste Negra eclodiu na Inglaterra, matando quase um terço da população. A catástrofe impossibilitou a manutenção de hostilidades, e as campanhas militares na França recomeçaram apenas na década de 1350, quando o infante Edward, “o Príncipe Negro”, ganhou uma batalha em Poitiers contra um exército francês muito maior, em que o rei Jean II e seu filho

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menor, Felipe, foram presos. No entanto, a última campanha de Edward III foi inconclusiva, e o rei inglês aceitou renunciar sua pretensão ao trono francês no Tratado de Brétigny em 1360 em troca da confirmação do seu domínio sobre os territórios conquistados. Figura 2.13  A divisão da França de acordo com o Tratado de Brétigny. O território cinza escuro foram as terras cedidas a Edward III. 0º

INGLATERRA Calais Flanders eno oR Ri

a Manch al da Can

Picardia Normandia

Paris

Sena Rio

Bretanha Rio Lo ire

Anjou

Blois Touraine

OCEANO ATLÂNTICO

Champagne

Borgonha

IMPÉRIO SACRO ROMANO

Poitiers Auvergne

Lyon

45º N

Aquitânia Rio

Rio Rodano

Bourdeaux

Ga ro na

Gasconha

Languedoc Toulouse

Mar Mediterrâneo ESPANHA

Fonte: John Richard Green.

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Saiba mais O impacto da Peste Negra A Peste Negra foi o nome dado a uma onda de epidemias que assolou a Europa durante o século XIV. Proveniente do oriente, a peste costumava ser transmitida por mordidas de pulgas infectadas (as pulgas viajavam nas ratazanas e nas pessoas). A mortandade foi tremenda. Estima-se que quase um terço da população da Europa morreu. O impacto dessa epidemia foi incalculável, alguns efeitos da terrível doença atingiram a estrutura social e até teve repercussões para o uso da língua inglesa. Socialmente, a mortandade resultou em uma falta de mão de obra para a lavoura e outras atividades artesanais. Consequentemente, os lavradores ganharam mais poder de barganha com seus senhores, pois seu trabalho valia mais. As tentativas do governo de legislar sobre o preço de trabalho, geralmente a favor dos senhores, provocava ressentimento entre as pessoas comuns, o que levou, finalmente, a um grande levante de campesinos dos condados de Kent, Sussex, Essex e East Anglia durante o reinado de Richard II. O povo exigia a troca dos ministros reais, a quem culpavam pela pesada tributação para financiar a guerra na França, em que os exércitos ingleses iam perdendo território. Além disso, eles queimavam os registros oficiais de propriedades e títulos e matavam os fiscais, para impossibilitar a arrecadação de novos impostos. Quanto ao impacto da Peste Negra no uso da língua inglesa, quem nos informa sobre isso é o estudioso John of Trevisa (d. 1352). Nascido na Cornualha, no extremo sudoeste da Inglaterra, John of Trevisa era poliglota: provavelmente falava cornualhês, inglês, francês e latim. Foi clérigo e professor na universidade de Oxford. Em 1387, ele traduziu do latim para o inglês o Policronicon de Ranulf Higden, uma história do mundo desde a criação até 1352. Em determinado momento, Higden relata como a Peste Negra mudou o ensino na Inglaterra a favor da língua inglesa: “Um [motivo] é que as crianças na escola, ao contrário do uso e costume de todas as outras nações, são obrigadas e abandonar sua própria língua e continuar seus estudos e negócios em francês e faz-se assim desde que os normandos vieram para a Inglaterra pela primeira vez. Também, os filhos dos nobres são ensinados a falar o francês desde a idade em que são balanceados em seu berço e aprendem a falar e brincar com um joguinho de criança; e homens rústicos se comportam como gentis-homens, e fazem grande esforço para falar francês, para que sejam considerados mais cultos.” (apud CRYSTAL, 1995)

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Nesta altura, o tradutor, John of Trevisa, acrescenta a seguinte observação: Tal prática era muito comum antes da primeira peste e, posteriormente, está um tanto alterada. Assim que John Cornwall, professor de gramática, mudou o ensino nas escolas de gramática e a análise do francês para o inglês pelo francês; e Richard Penkridge aprendeu tal método de ensino dele, tal como outros homens de Penkridge, de modo que hoje, 1385 a.C., no nono ano do reinado do segundo rei Richard depois da conquista, em todas as escolas de gramática na Inglaterra, as crianças abandonam o francês e compõem e aprendem em inglês e, assim, elas têm uma vantagem, por um lado, e uma desvantagem no outro. A vantagem é que elas aprendem a gramática em menos tempo que as crianças aprendiam. A desvantagem é que, hoje em dia, os estudantes na escola de gramática não conhecem nada de francês, menos que conhecem seu talão esquerdo, e é um infortúnio para eles se tiverem de atravessar o mar e viajar a países estrangeiros, e noutras circunstâncias. Também, hoje, a maioria dos gentis-homens já deixaram de ensinar o francês a seus filhos (apud CRYSTAL, 1995, p. 39). A nova técnica de ensino desenvolvida por Richard of Penkridge, tornou-se necessária para as lições de “gramática” (latim), que antes eram dadas em francês, porque os jovens não sabiam mais falar francês o suficiente para aprender o latim por esse meio. Os principais professores de latim vinham da vida religiosa. Essas comunidades eram especialmente afetadas pela peste, porque funcionavam também como hospitais. A falta de eclesiásticos fez que o inglês entrasse no ensino com língua veicular, substituindo o francês que desempenhava essa função e tornando essa língua menos importante na cultura inglesa e, simultaneamente, abrindo mais espaço para o uso do inglês.

Velho e doente, Edward III retirou-se do governo deixando-o nas mãos de seus filhos e favorecidos. Em 1369, os franceses atacaram sob o comando do novo rei Charles V (Jean II morreu preso na Inglaterra, esperando a arrecadação de seu resgate) e o eficaz Bertrand du Guesclin. O príncipe John of Gaunt foi enviado à França para organizar a resistência, mas foi em vão. Todas as regiões conquistadas pelos ingleses foram perdidas no Tratado de Bruges em 1375, com a exceção das cidades de Calais no noroeste, Bordeaux e Bayonne no sudoeste. O reinado de Edward III foi importante para a língua inglesa, pois o rei explorou o medo que existia desde os tempos de Edward I de que os franceses pretendessem erradicar a língua, depois de terem conquistado o país, para aumentar o sentimento nacional

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durante as guerras no continente. Edward também forjou uma relação mais próxima com a nobreza, instituindo a Order of the Knights of the Garter (“Ordem dos Cavaleiros da Jarreteira”), que ainda existe hoje, fomentando identificação com o monarca e com a Inglaterra entre uma elite social que era essencialmente anglo-normanda e bilíngue. A partir de 1362, por outro lado, a língua inglesa experimentou certa ressurgência oficial quando uma lei obrigou o uso dessa língua nos tribunais (ironicamente, esse “Estatuto de Advocacia” foi redigido em francês!). Em 1363, o parlamento foi declarado aberto em inglês pela primeira vez – contudo, o parlamento ainda foi aberto em francês várias vezes até 1377. Nos anos seguintes, escritores como William Langland, John Gower e Geoffrey Chaucer compuseram obras literárias em inglês para o consumo da corte (veremos mais detalhes no último tema desta unidade).

O reinado de Richard II Quando Edward III morreu em 1377, seu neto, Richard, filho do Infante Edward, o Príncipe Negro (que já tinha falecido em 1376), foi declarado rei com apenas dez anos de idade. Inicialmente sob a tutela de vários conselhos de nobres, o reinado de Richard II teve vários momentos de instabilidade. A repetida arrecadação de impostos para malsucedidas campanhas militares contra a França provocou descontento entre a população geral, cuja maior manifestação foi a Revolta dos Lavradores em 1381, quando um levantamento popular nos condados de Kent e Essex ocupou as áreas de Londres, incendiando o palácio do tio do rei, John of Gaunt, e assassinando o arcebispo de Canterbury e o Alto Tesoureiro. Com apenas 14 anos, Richard negociou com os rebeldes e conseguiu acalmá-los depois que seu líder, Wat Tyler, foi morto. Subsequentemente, o jovem rei derrotou os lavradores e reprimiu o levantamento. Dificuldades políticas entre as facções favorecidas pelo rei e por seu tio, John of Gaunt, e seu filho, Henry Bolingbroke, complicaram a situação no reino com frequência. O partido de Bolingbroke conseguiu dispersar o círculo de favorecidos do rei, obrigando-o a se exilar ou condenar seus seguidores. Richard aceitou o domínio dos “Senhores Suplicantes” durante oito anos de paz relativa, quando, em 1379, ele mandou prender e executar

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vários deles para se vingar das humilhações anteriores. Apesar de ter comprado o apoio dos nobres com títulos e terras confiscados dos homens condenados, o poder da família de Lancaster continuou a preocupar Richard e, quando o velho duque de Lancaster, John of Gaunt, morreu em 1399, o rei não permitiu que o exilado Henry Bolingbroke sucedesse ao título do pai e estendeu o tempo de exílio de dez anos para toda a vida, confiscando todas as suas terras. Uma mudança política na França instigou o duque de Orléans a apoiar Henry Bolingbroke a invadir a Inglaterra para desestabilizar o regime. Desembarcando no norte, enquanto Richard estava em campanha na Irlanda, Bolingbroke, alegando apenas querer assumir sua herança, conseguiu rapidamente atrair um contingente considerável de seguidores. Quando Richard chegou à Inglaterra, ele se entregou a Bolingbroke, prometendo abdicar se sua vida fosse salva. Henry Bolingbroke assumiu o trono em 1399, embora não fosse o herdeiro mais próximo por sangue, esse foi Edmundo Mortimer, earl da Marca, filho de Lionel de Antuérpia, o segundo filho sobrevivente de Edward III; Henry era filho de John of Gaunt, o quarto filho, embora a linhagem de Bolingbroke fosse por ascendência paterna direta.

Os reinados de Henry IV e Henry V Richard II morreu, provavelmente de fome no Castelo de Pontefract, perto de York em 1400. Não se sabe se ele se suicidou por uma greve de fome ou se ele foi assassinado. O reinado de Henry IV foi perturbado por rebeliões, complôs e constantes questionamentos de sua legitimidade, já que Richard Plantageneta, duque de York, possuía um vínculo mais próximo com o antigo rei Richard II. Não obstante, Henry VI conseguiu manter-se no trono, que passou para seu filho Henry V em 1415. O breve reinado de Henry V (1413-1422) ficou célebre entre os monarcas medievais ingleses como o rei que mais perto chegou do cobiçado trono francês. Depois de uma série de vitórias deslumbrantes, especialmente na batalha de Agincourt, contra grande desvantagem numérica. Henry negociou o Tratado de Troyes em 1420, em que foi estipulado que ele passasse a ser o herdeiro presuntivo do rei Charles VI e se casasse com a infanta Catarina de Valois, para unificar as duas linhagens definitivamente.

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Figura 2.14  As conquistas francesas de Henry V. 0º

Mar do Norte

Londres Southhampton

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Paris

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OCEANO ATLÂNTICO

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ARMAGNAC

Toulouse

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AUVERGNE

45º N

Avignon

DAUPHINÉ

Provença Marselha

NAVARRA

Mar Mediterrâneo (C) 1429 Território máximo anglo-borgonhês

ARAGÃO

Fronteiras da França

Fonte: Pojer e Greeley (2016, p. 21).

Henry V foi o primeiro rei a utilizar o inglês em sua correspondência pessoal desde a conquista normanda, há quase 350 anos. Ele também promovia o uso da língua inglesa na administração do reino, o que contribuiu significativamente à evolução do estilo denominado o “padrão chancelaresco”. A despeito de seus sucessos militares, em campanha na França em 1422, Henry V contraiu disenteria e faleceu à idade de apenas 36 anos, deixando o trono a seu filho, Henry VI, com apenas nove meses. Dois meses depois da morte de Henry V, o rei francês louco Charles VI também morreu, fazendo que Henry VI da Inglaterra se tornasse também Henry I da França.

O reinado de Henry VI O reinado de Henry VI foi inquieto. A longa menoridade do rei-menino possibilitou o crescimento de rivalidades ferozes entre

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os nobres mais importantes para integrar e controlar os conselhos governantes, com vistas a beneficiar a si e seus parentes por sua posição privilegiada. Tentando tirar proveito da situação política estagnada na Inglaterra, o dauphin francês fez-se coroar na Catedral de Reims como Charles VI em 1429. As vitórias de Joana d’Arc e outros líderes militares dinâmicos franceses deram novo ímpeto à resistência à ocupação inglesa, que havia perdido forças depois da morte do rei guerreiro Henry V. Aos poucos, os ingleses iam sendo empurrados para o oeste. As derrotas militares coincidiam com um período em que o jovem rei favorecia uma estratégia pacífica de negociação com os franceses, casando-se com Margaret de Anjou, sobrinha de Charles VI, entretanto, mandou entregar os condados de Maine e Anjou para os franceses em lugar de pagar um dote, uma ação extremamente impopular na Inglaterra. Simultaneamente, as forças francesas varriam a presença inglesa do mapa, deixando apenas um pequeno território ao redor da cidade de Calais. Figura 2.15  Território inglês na França no fim da Guerra dos Cem Anos. 0º

INGLATERRA

Londres

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Southhampton

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Normandia

Paris

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OCEANO ATLÂNTICO

Ducado de Borgonha

IMPÉRIO SACRO ROMANO

Poitiers Auvergne

45º N

Aquitânia Rio

Rio Rodano

Bourdeaux

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Gasconha

Languedoc Toulouse

Mar Mediterrâneo

1453 Fim da guerra Território inglês Território francês

ESPANHA

Territórios borgonheses reconciliados com a França

Fonte: Pojer e Greeley (2016, p. 29).

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Henry VI foi um rei pacífico e pio que investiu bastante em obras ligadas à educação e à cultura. Ele fundou o famoso Colégio Eton e colleges (instituições de ensino superior) nas universidades de Cambridge e Oxford. Ele patrocinou a construção de igrejas e a produção de música, arte e manuscritos. Sua corte era suntuosa, e os gastos extravagantes da família real e seus seguidores chegaram a pesar negativamente nas finanças do reino.

O século XV e a Guerra das Rosas A disputa acirrada pela coroa entre as linhagens de Lancaster (Henry VI) e York (duque Richard) e seus descendentes, que duraria o resto do século XV, ficou conhecida como a “Guerra das Rosas”, devido aos emblemas heráldicos das duas estirpes: uma rosa vermelha para os lancastrianos e uma rosa branca para os yorkistas.

O fim do reinado de Henry VI Os repetidos fracassos militares na França e as intrigas constantes na corte foram agravados pelas enfermidades mentais do rei, que sofreu um colapso mental em agosto de 1453, ficando insensível ao que passava a seu redor durante mais de um ano. Richard, o poderoso duque de York, assumiu a liderança do governo como Protetor do Reino e procurou restaurar a ordem, eliminar abusos e corrupção, e reduzir os gastos excessivos da família real. Quando o rei finalmente voltou a si no natal de 1454, vários nobres manifestaram seu apoio ao duque de York para continuar na regência e, mais tarde, para assumir o trono, apontando para sua maior proximidade de parentesco com o antigo rei Edward III. Por fim, foi decidido que Richard assumiria o trono quando Henry morresse. Em 1460, Richard, duque de York, morreu em batalha. Em 1461, Henry foi 1ibertado da prisão que sofria, mas estava muito debilitado mentalmente para governar. No mesmo ano, Edward, filho de Richard de York, venceu a batalha de Towton, e Henry e a rainha Margaret fugiram para a Escócia. Edward de York declarou-se rei, apesar de certa resistência por lancastrianos no norte. Em 1465, Henry foi capturado novamente e encarcerado na Torre de Londres.

O reinado de Edward IV Edward IV desentendeu-se com seus principais apoiadores nobres, os duques de Warwick e de Clarence, que tramaram um

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pacto com a rainha Margaret em exílio para restaurar Henry VI ao trono com ajuda do rei da França. O complô deu certo, e Henry foi entronado novamente em 1470, embora o governo do reino ficasse nas mãos dos dois duques. O regime restaurado durou apenas seis meses, porque Warwick declarou guerra contra o poderoso duque da Borgonha, e em retaliação o príncipe continental deu todo apoio financeiro e militar necessário para Edward IV montar seu retorno à Inglaterra. Nas batalhas que seguiram, os duques de Warwick e Clarence morreram, como também morreu Edward, o único filho de Henry VI e Margaret de Anjou.

Saiba mais Figura 2.16 A chegada da imprensa móvel à Inglaterra.

Fonte: Culture Club/Getty Images.

A apresentação a Edward IV em 1477 por Anthony Woodville de um dos primeiros livros impressos em inglês, Dictes and Sayings of the Philosophers (“Ditados e provérbios dos filósofos”). O texto foi traduzido do francês pelo próprio Woodville, cuja irmã Elizabeth era rainha, e foi impresso por William Caxton, que trouxe de Bruges a primeira imprensa móvel para a Inglaterra em 1476. Esta miniatura ilustra o evento da apresentação ao rei e à rainha, com seu filho, Edward, príncipe de Gales e o futuro Edward V, e o irmão do rei, Richard de Gloucester, o futuro Richard III.

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Edward IV foi um monarca bem-sucedido. Um excelente general que nunca foi derrotado em batalha, ele conseguiu eliminar seus adversários e estabilizar o reino politicamente, depois de quase duas décadas de guerra civil entre as facções de York e Lancaster. Ele foi um administrador hábil e comerciante astuto, fazendo muito para reabastecer as finanças reais. Sua corte foi esplêndida e patrocinou a vida cultural e artística do período. No entanto, a despeito do sucesso, com sua morte em 1483, seu herdeiro, Edward V, foi declarado ilegítimo e desapareceu junto com seu irmão menor, após ser encarcerado por seu tio, Richard, o duque de Gloucester, que fora encarregado pelo falecido rei Edward IV de cuidar dos seus filhos, e se declarou rei.

O reinado de Richard III Richard III enfrentou duas rebeliões importantes durante seu breve reinado. A primeira, em 1483, foi reprimida, mas a segunda, em 1485, liderada por Henry Tudor, último (e distante) descendente da linhagem de Lancaster, derrotou as forças de Richard na Batalha de Bosworth, em que Richard III foi morto, encerrando a dinastia Plantageneta que reinava na Inglaterra desde Henry II no século XII, terminando definitivamente também o período da Guerra das Rosas e iniciando a dinastia dos Tudor. De relevância para a questão da língua inglesa, a ordem de Richard III traduziu do francês as leis e estatutos do reino, sendo redigidos em inglês.

Influências estrangeiras Ao longo da Idade Média, o inglês estava em contato com várias línguas que contribuíam com vocábulos e influenciavam a evolução da gramática.

Contato com o francês normando e o francês de Paris O principal impacto da conquista normanda e o domínio de uma elite francófona durante mais de 350 anos sobre a língua inglesa está evidente no vocabulário. Não existem tantas características gramaticais que possamos atribuir ao longo convívio

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com o francês. Quando duas línguas estão em contato, é natural que as pessoas tomem palavras para se referir a coisas, práticas e ideias novas, para as quais não atribuíram um termo próprio. Podemos descrever as relações entre os grupos de falantes em contato como: (1) substráticas, (2) superestráticas, ou (3) adstráticas. 1. No primeiro caso, um grupo autóctone é dominado por outro grupo e abandona sua língua ancestral para a nova. No entanto, aspectos da língua original influenciam a nova língua no vocabulário, na gramática e no sotaque. 2. No segundo caso, um grupo chega a uma região e domina a população local. Em lugar de provocar o abandono da língua ancestral autóctone, porém, é o grupo imigrante que acaba abandonando sua língua, mas não antes de deixar vários aspectos dela influenciarem a língua da maioria. 3. Denominamos adstrático o caso de duas línguas que coexistem com pouco ou nenhuma diferença de prestígio ou número de falantes, por exemplo, português no Brasil e espanhol na Argentina. Evidentemente, a situação na Inglaterra era uma relação de superestrato entre o francês e o inglês. O domínio sociopolítico dos normandos e seus descendentes criou as condições perfeitas para a enxurrada de empréstimos lexicais franceses que observamos em inglês, porque a posição dominante dos falantes de francês fazia que eles detivessem prestígio, e esse prestígio social foi transferido para sua língua. Como as pessoas tendem a desejar o prestígio, saber francês ou pelo menos usar algumas palavras francesas se tornava uma maneira de demonstrar sofisticação e importância. Além da atração do prestígio, outro motivo mais prosaico favorecia a adoção de palavras francesas: as necessidades da interação cotidiana. Como quem mandava o fazia em francês, quem soubesse a língua teria melhores oportunidades. Por outro lado, o inverso também é verdade: para interagir com seus vassalos e servos ingleses, os normandos tinham de aprender inglês. Gradualmente, pela intensa interação social, a elite anglo-normanda tornou-se bilíngue, abrindo outra frente para a fácil entrada de palavras francesas no inglês das camadas sociais mais altas.

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Gráfico 2.1  Quantidade de empréstimos lexicais que entraram na língua inglesa entre 1000 d.C. e 1900 d.C.

1100–

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300 260 220 180 140 100 60 20 1000

Fonte: Crystal (1995, p. 47).

O Gráfico 2.1 representa a entrada de vocábulos franceses no inglês desde o final da época anglo-saxônica, de acordo com a primeira atestação textual. Os empréstimos não são uniformes: no início do período, há mais influências nos dialetos meridionais, em traduções do francês, na poesia trovadoresca e de cavalaria, que em outros gêneros e lugares. Até o século XIV, porém, não existe dúvida quanto ao grau de permeação, por exemplo, Crystal (1995) afirma que, em 858 linhas do “Prólogo” dos Contos de Canterbury de Chaucer, há quase 500 empréstimos lexicais franceses. Baugh e Cable (1994) observam que é possível distinguir dois momentos na história dos empréstimos lexicais franceses que entraram no inglês durante a Idade Média, com o ano de 1250 como a divisa aproximada. As palavras que entraram antes dessa data são menos numerosas (existem aproximadamente 900) e tendem a exibir características fonéticas associadas ao dialeto normando. Tais palavras também são mais específicas quanto ao campo semântico (a área do significado) no qual foram introduzidos, por exemplo:

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Hierarquia social – baron “barão”, prince “príncipe”, princess “princesa”, duke “duque”, duchess “duquesa”, count “conde”, countess “condessa”, noble “nobre”, dame “dama”, squire “escudeiro”, page “pajem”, servant “criado”, serf “servo”, messenger “mensageiro”. Religião – pray “orar”, confession “confissão”, communion “comunhão”, sermon “sermão”, homily “homilia”, clergy “clero”, clerk “clérigo”, prelate “prelado”, dean “decano”, chaplain “capelão”, pastor “pastor”, vicar “vicário”, abbess “abadessa”, friar “frade”, theology “teologia”, religion “religião”. Literatura de cavalaria e de amor cortês – minstrel “menestrel”, troubadour “trovador”, juggler “joglar”, story “estória”, rhyme “rima”, lay “balada, canção”, poet “poeta”, tragedy “tragédia”, romance “romance”.

Na segunda fase de empréstimos, a quantidade de empréstimos aumentou de modo exponencial, provavelmente devido à situação social em que o bilinguismo em francês e inglês era muito mais comum. As áreas do léxico mais atingidas pelos empréstimos, de acordo com Baugh e Cable (1994), são:





Governo e administração – government “governo” (fr., gouvernement), govern “governar” (fr., gouverner), administer “administrar” (fr., administrer), crown “coroa” (fr., couronne), estate “estado” (fr. ant., estat, fr. mod., état), empire “império” (fr., empire), realm “reino” (fr., royaume), reign “reinado” (fr., règne), court “corte”, “tribunal” (fr., court), council “conselho” (fr., conseil), parliament “parlamento” (fr., parlement), assembly “assembleia” (fr., assemblée), alliance “pacto” (fr., alliance), tax “imposto” (fr., taxe). Títulos e cargos – chancellor “chanceler” (fr., chancelier), treasurer “tesoureiro” (fr., trésorier), marshall “marechal” (fr., maréchal), governor “governador” (fr., gouverneur), councillor “conselheiro” (fr., conseilleur), minister “ministro” (fr., ministeur), mayor “prefeito” (fr., mayeur), constable “contestável” (fr., contestable); sir “senhor” (fr., sire, sieur), madam “senhora” (fr., madame); vassal “vassalo” (fr., vassal), homage “homenagem” (fr., hommage), peasant “camponês” (fr., paysan), bailiff “meirinho” (fr., bailli [arcaico]). Direito – plea “pleito” (fr., plaider), defendant “réu” (fr., défendant), judge “juiz” (fr., juge), jury “júri” (fr., jurée),

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inquest “inquérito” (fr. ant., enqueste, fr., enquête), proof “prova” (fr., preuve), sentence “sentença” (fr., sentence), prison “prisão”, “presídio” (fr., prison). Atividades militares – army “exército” (fr., armée), navy “marinha” (fr. ant., navie), battle “batalha” (fr., bataille), enemy “inimigo” (fr., ennemi), combat “combater” (fr., combat), siege “sítio” (fr., siège), soldier “soldado” (fr. ant., soldier), guard “guarda” (fr., garde), captain “capitão” (fr., capitain),  sargeant “sargento” (fr., sargeant); arms “armas” (fr., armes), lance “lança” (fr., lance), mail “malha” (fr., maille), archer “arqueiro” (fr., archer), barbican “barbacã” (fr., barbican), moat “fossa” (fr., motte), ambush “emboscar” (fr., embuschier), banner “bandeira” (fr., bannière), brandish “sacudir”, “agitar” (fr. ant., brandire, brandiss-), vanquish “vencer” (fr. vainquire, vanquiss-), defend “defender” (fr., défendre). Moda, comida e vida social – fashion “moda” (fr., façon), dress “vestidura” (fr., dresser), gown “vestido” (fr. ant., goune), robe “roupa longa” (fr., robe), cape “capa” (fr., cape), ­cloak “manto” (fr. ant., cloche, cloque); dinner “jantar” (fr. ant., disner, fr., dîner), supper “ceia” (fr., souper), feast “banquete” (fr. ant., feste, fr. mod., fête), venison “veado” (fr., venaison), beef “carne bovina” (fr., boeuf), mutton “ovelha” (fr., mouton), pork “porco” (fr., porc), sausage “salsicha” (fr. ant., saussiche), sardine “sardinha” (fr., sardine), oyster “ostra” (fr. ant., oistre, fr. mod., huître), raisin “uva-passa” (fr., raisin), orange “laranja” (fr., orange), peach “pêssego” (fr., pêche), biscuit “biscoito” (fr., biscuit), toast “torrada” (fr., toster), cream “creme” (fr., crème), jelly “geleia”, “gelatina” (fr., gelée), herb “tempero” (fr., herbe), mustard “mostarde” (fr. ant., moustarde, fr. mod., moutarde), vinagar “vinagre” (fr., vinaigre), recreation “diversão”, solace “consolo”, jollity “alegria, jovialidade”, dance “dança”, carol “hino natalino”, revel “festim, folia”, juggler “prestidigitador”, fool “bobo”, melody “melodia”, music “música”, chess “xadez”, dalliance “galanteio”, conversation “conversação”, dais “estrado, plataforma”, parlour “sala de estar”, wardrobe “guarda-roupa”, pantry “dispensa”, scullery “área de serviço”, joust “peleja”, tournament “torneio”, pavilion “pavilhão”.

Outra distinção que observamos entre a fase mais antiga e a fase mais recente dos empréstimos lexicais franceses no inglês é o

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dialeto de origem. As palavras que entraram antes vieram da variedade normanda do francês antigo. Tal como o inglês antigo (como qualquer língua), o que chamamos “francês” não é algo uniforme, mas antes é um conglomerado de variedades regionais e sociais. A situação não era diferente no passado: podemos identificar diversos tipos regionais entre os falares antigos pelo reino da França. O francês normando era uma variedade ocidental e exibe algumas características que o distinguem das outras variedades faladas em outros lugares. Por exemplo, nos dialetos centrais franceses, dos quais a língua padrão descende, o grupo /ka-/ em início de palavra em latim tardio passou a ser pronunciado como /tʃa-/ (como se fosse escrito txa- ou tcha- em português, ou  cha- em inglês ou espanhol), por exemplo, latim: captivus /kap′tiwu/ “preso”, “cativo” > francês central antigo: chaitiff /tʃaj′tif/, mas em francês normando, o /ka-/ era preservado, dando caitif /kaj′tif/, que entrou no inglês medieval escrito caitiff. Essa distinção entre ca- e cha- é evidente em palavras como carry “levar”, carriage “carruagem”, case “caixa”, cauldron “caldeirão”, carrion “carniça”, todos importados do dialeto normando, os quais correspondem a charrier, charriage, châsse, chaudron e charogne em francês moderno, descendente dos dialetos centrais. Às vezes, as duas versões, a normanda e a parisiense, coexistem em inglês, tipicamente com alguma distinção de significado, por exemplo, cattle (< catel normando) “gado” versus chattel (< chatel parisiense) “bem”, “possessões”; ou catch “pegar” (< cachier normando) versus chase “perseguir” (< chacier parisiense, = fr. mod. chasser). Outra diferença entre os dialetos centrais e do noroeste era entre /gw-/ e /w-/ em início de palavra. O francês central favorecia a primeira variante, e o normando, a segunda, de modo que encontramos guichet “guichê” e wicket “postigo”, waste “desperdiçar”, “lixo” (do verbo waster) versus g(u)aster em francês central (= fr. mod., gâster), cognatos com gastar em português. Outros exemplos incluem: wasp (nor.) “vespa” e guêpe (fr. cent.), warrant e guarantee “garantia”, reward “recompensa” versus regard “consideração”, wardrobe “guarda-roupa” (mas guardsman “sentinela”), warden e guardian “guardião”, wage “salário” e guage “avaliação”, “medida”. O /w/ em /kw-/ também caiu nos dialetos centrais do francês, de modo que, em inglês, encontramos quit “abandonar”, quarter “quartel”, quality “qualidade”, question “questão”, “pergunta”, require “precisar”, todos com /kw-/, como descendentes das variantes

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normandas, e em seus cognatos em francês moderno, encontramos quitter, quartier, qualité, question etc., todos com /k/. Nas vogais, o ditongo [úi] evoluiu para [y] em normando (a língua na posição de [i], mas com os lábios arredondados). Em inglês médio, esse [y] era tomado emprestado na forma de [u] ou [ju] e era escrito , ou , por exemplo, fruit [frut] “fruta”, in lieu of [lju] “em lugar de”. Em francês central, porém, a pronúncia desse ditongo mudou de [úi] para [uí], de modo que “fruta” em francês moderno é [fʁɥí] (aproximadamente frui). Outra mudança vocálica foi o ditongo [ei], que foi preservado em normando, mas se tornou [ói] (depois [ué] e finalmente [uá]): leal “leal”, real “real” (< leial, reial normando) ocorrem em inglês médio, junto com loyal, royal (< parisiense), que se generalizou. Os sufixos “-eiro”, “-ouro” em francês normando eram -arie e -orie /-aria/, /-oria/, mas eram -aire e -oire (/-airǝ/, /-oirǝ/) em francês central. Por isso, inglês exibe salary “salário” e victory “vitória”, mas francês moderno tem salaire e victoire (Observação: a pronúncia de oi como [uá] na última palavra) (BAUGH; CABLE, 1994, p. 171-72).

Grafia Outra área em que a conquista normanda foi bastante sentida foi a grafia. É muito evidente, ao ler um texto medieval, que existia uma diversidade enorme entre as maneiras de escrever. Essa situação pode ser atribuída parcialmente à ausência de uma norma prestigiosa, diferente do corpus anglo-saxônico, em que a variedade desenvolvida pelos escribas de Wessex se tornou predominante e quase eliminou as outras variedades regionais da escrita (no entanto, elas continuavam bem vivas oralmente). Na Idade Média, as línguas de prestígio eram o francês e o latim. O inglês era uma língua popular e pouco usada na escrita. Cada indivíduo utilizava as letras alfabéticas e algumas convenções básicas para representar os sons da sua variedade particular da melhor maneira que pudesse, o que fez a escrita muito idiossincrática. Até o final do período medieval, porém, um padrão (Chancery Standard), baseado na linguagem de Londres e em certas características dos dialetos das regiões dos Central e East Midlands, de onde vieram a maior proporção dos migrantes internos (também havia contribuições significativas das populações de East Anglia, Essex e Kent), surgiu entre os burocratas da chancelaria real no século XIV. Esse

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modelo exerceu uma influência muito grande sobre a consagração de muitas grafias, por seu prestígio e porque suas normas eram adotadas pelos primeiros impressores. Por exemplo, such “tal” versus swich, sich, sych, seche; muitas palavras gramaticais can e could, shall e should, not, but, through, these etc., devem sua forma gráfica às escolhas dos notários da chancelaria (CRYSTAL, 1995, p. 41). A Crônica de Peterborough é uma continuação da Crônica Anglo-Saxônica, foi escrita no mosteiro de Peterborough em East Anglia, até meados do século XII. Depois de uma interrupção entre 1131 e 1154, provavelmente devida à insegurança da guerra civil entre Stephen e Matilda, a crônica continua, mas em um estilo que é diferente da linguagem usada anteriormente. A grafia no Chronicle ainda mantém as letras rúnicas thorn , eth , yogh , ash e wynn . No entanto, encontramos , às vezes, em lugar de ou , e por , e por . As letras e alternam-se em algumas grafias, e aparece para o som /v/ também, ou seja, gyuen = ingl. mod., given “dado” [particípio] e æure = ever “alguma vez” (CRYSTAL, 1995, p. 32-33, 40). A origem dessas mudanças na grafia não é resultado de mudança na língua, mas porque os escribas normandos, que tinham de escrever os nomes de pessoas, costumes, coisas e lugares que eram ditos em inglês, escreviam de acordo com as convenções que aprenderam para representar sua língua, o francês. Portanto, eles trocavam por , por exemplo, cwen > queen “rainha”, por , por exemplo, niht > night “noite”, por , por exemplo, cyrce > church, chyrche “igreja”, por , por exemplo, hus > house “casa”. O som /s/ podia ser escrito antes de e em francês, e essa prática era aplicada em inglês também, por exemplo, cercle “círculo”, cell “cela”. Outro problema que os letrados enfrentavam era a “confusão dos traços mínimos” que afetava as letras . Quando algumas dessas letras estavam escritas juntas no estilo gótico, era difícil reconhecer quais letras eram, de fato, presentes. Seis traços verticais breves poderiam ser , , , entre várias outras possibilidades. Portanto, quando três traços ou mais seguiriam a letra , a letra era usada em seu lugar, para facilitar a leitura, por exemplo, dove, love, come, some, son, one, são pronunciadas com /ʌ/ ou /ʊ/: /dʌv/ “pombo”, /lʌv/ “amor”, /kʌm/ “vir”, /sʌm/ “algum”, /sʌn/ “filho”, /wʌn/ “um”, mas são escritas com . Os

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normandos usavam , e (ainda considerada apenas uma variante de ) com mais frequência que os anglo-saxões, e eles usavam em início de palavra e no meio, independente de o som ser a consoante /v/ ou a vogal /u/. Essa mistura de tradições gráficas francesas e anglo-saxônicas é um dos fatores que faz que a ortografia do inglês seja tão irregular (CRYSTAL, 1995, p. 40-41).

Contato com outras línguas Além do contato íntimo com o francês e o occitano, e com o galês e o gaélico nas regiões celtas, durante a Idade Média, o inglês estava em contato com várias outras línguas europeias, especialmente, as línguas germânicas dos Países Baixos, ou seja, flamengo, holandês e outras variedades do baixo alemão. O baixo alemão é falado nas terras baixas (daí o nome) do norte da Alemanha, Holanda e Luxemburgo. Esses dialetos “baixos” são bem diferentes dos dialetos do alto alemão falado no centro e sul, que é mais montanhoso, causando a designação de “altura”. O alemão padrão é derivado do alto alemão central do período da Reforma protestante (século XV). É difícil saber, às vezes, de onde certas palavras foram tomadas emprestadas, porque essas línguas são muito parecidas, sendo todas do mesmo ramo germânico. Às vezes, é até difícil saber se uma palavra é, de fato, um empréstimo, porque o próprio inglês pertence ao ramo baixo alemão e os dialetos medievais eram muito mais parecidos que as línguas modernas. Havia muita interação entre a Inglaterra e os Países Baixos durante o período medieval. As famílias reais inglesas casavam-se com as dos duques e condes da região, por exemplo, Matilde, esposa de William I, era flamenga, Filipa, rainha de Edward III era de Hainault (atual Bélgica). Mercenários flamengos lutavam nos exércitos ingleses na França, em Gales e na Escócia, e participavam das guerras civis. Outra fonte de interação era o comércio de lã. A Inglaterra era uma grande produtora de lã, mas os tecelões flamengos e holandeses eram melhores, de modo que a lã inglesa era exportada. Os comerciantes alemães da importante Liga Hanseática, ligada a todos os portos do Mar do Norte e do Mar Báltico, mantinham casas filiais em Londres, Boston, no condado de Lincolnshire e de King’s Lynn em Norfolk. Devido à natureza dos contatos comerciais, a maioria das palavras que o inglês recebeu do baixo alemão provém do âmbito dos tecidos (nap “felpa, lanugem”, cambric “cambraia”, duck “lona”)

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e do tráfego marítimo (skipper “capitão”, deck “convés”, bowsprit “gurupés”, lighter “batelão”, dock “doca”, boom “longarina”, freight “frete, carga”, guilder “florim”, dollar “dólar”). O latim medieval, a língua franca internacional da Idade Média, também contribuiu com alguns termos para o inglês, especialmente durante os séculos XIV e XV. O âmbito desses empréstimos, como é de esperar, eram as profissões: direito, medicina, religião, por exemplo, no campo legal: alias “alias”, arbitrator “árbitro”, cliente “cliente”, conviction “condenação”, custody “custódia”, gratis, homicide “homicídio”, legal “legal”, legitimate “legitimar, legítimo”, testify “testificar”; em religião: diocese “diocese”, immortal “imortal”, incarnate “incarnar, incarnado”, limbo “limbo”, mediator “mediador”, missal “missal”, pulpit “púlpito”, requiem “réquiem”, rosary “rosário”; nas ciências: abacus “ábaco”, comet “cometa”, contradiction “contradição”, desk “escrivaninha”, equator “equador”, essence “essência”, genius “gênio”, history “história”, index “índice”, interior “interior”, intellect “intelecto”, library “biblioteca”, ligament “ligamento”, magnify “magnificar”, mechanical “mecânico”, prosody “prosódia”, scribe “escriba”, simile “símile”; alguns termos mais gerais: admit “admitir”, adjacent “adjacente”, collide “colidir”, collision “colisão”, distract “distrair”, expedition “expedição”, include “incluir”, incredible “incrível”, lucrative “lucrativo”, lunatic “lunático”, necessary “necessário”, nervous “nervoso”, picture “pintura”, private “privado”, quiet “quieto”, reject “rejeitar”, solitary “solitário”, tolerance “tolerância”, ulcer “úlcera”.

História interna: mudanças estruturais Já apresentamos uma seleção das mudanças que atingiram o vocabulário inglês. No entanto, todos os níveis estruturais da língua inglesa evoluíram bastante ao longo da Idade Média. Durante o período do inglês antigo, grandes mudanças na situação extralinguística depois da conquista normanda criaram um contexto especialmente propício para inovações.

Fonologia Vários sons mudaram durante a primeira fase depois da conquista: alguns foram substituídos, outros desapareceram. O sistema vocálico foi o mais atingido nesse momento inicial.

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Gramática histórica da língua inglesa

Quadro 2.1  Sons e grafias do inglês antigo.

Letra æ

Exemplo e significado

Símbolo AFI

em inglês antigo sæt “sentou-se” (ingl.

[æ]

mod., sat) dæd “feito”, “ato” (ingl.

Exemplo moderno sat em inglês britânico meridional

[ɛ:]

seta em port. (mas longa)

[ɒ]

hot em ingl. norte-americano

[ɑ] (só antes de m, n, n[g])

Land em alemão

[ɑ:]

father em ingl. brit. merid.

cyrice “igreja” (ingl. mod.,

[tʃ] (antes/depois de i e com

church em ingl.

church)

frequência æ, e, y)

cene “atrevido” (ingl.

[k]

campo em port.

[dʒ]

jump em ingl.

[ɛ]

seta em port.

he “ele” (ingl. mod., he)

[e:]

bêbado (mas longa)

earm “braço” (ingl. ant.,

[æǝ]

Como [æ] seguido por a de lata

mod., deed) a

mann “homem” (ingl. mod., man) dagas “dias” (ingl. mod., days) ham “lar” (ingl. mod., home)

c

mod., keen) cg

ecg “margem” (ingl. mod., edge

e

settan “colocar” (ingl. mod., set)

ea

arm) eare “orelha” (ingl. mod.,

em port. [ɛ:ǝ]

ear) eo

eorl “nobre” (ingl. mod.,

lata em port. [eǝ]

earl) beor “cerveja” (ingl. mod.,

Como ê de bêbado seguido por a de lata em port.

[e:ǝ]

beer) f

Como é de pé seguido por a de

Como ê de bêbado (mas longa), seguido por a de lata em port. v de vida em port.

æfre “cada” (ingl. mod.,

[v] (entre sons sonoros e

every)

vogais)

fif “cinco” (ingl. mod.,

[f]

f de faca em port.

gyt “conseguir” (ingl.

[j] (antes/depois de i e com

y de yellow em ingl.

mod., yet)

frequência æ, e, y)

fugol “pássaro” (ingl.

[ɣ] (entre vogais posteriores

mod., fowl)

([u, o, ɔ, ɒ, ɑ])

gan “ir” (ingl. mod., go)

[g]

five) g

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rr de arruda em port. de RJ g de gato em port.

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h

heofon “céu” (ingl. mod.,

[h] (em início de palavra)

h de hat em ingl.

[ç] (depois de æ, e, i, y)

ich “eu” em alemão

[x] (depois de a, o, u)

r de rato em port. carioca

[ı]

e de mate em port.

[i:]

i de sítio em port. (mas longa)

[ɒ]

o de hot em ingl.

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heaven) niht “noite” (ingl. mod., night) brohte “trouxe” (ingl. mod., brought) i

sittan “sentar-se” (ingl. mod., sit) wid “largo” (ingl. mod., wide)

o

monn “homem” (ingl. mod., man) god “deus” (ingl. mod.,

Norte-americano [ɔ]

ó de avó em port.

[o:]

ô de avô em port. (mas longa)

[z] (apenas entre vogais)

z de zebra ou s de asa em port.

[s]

s de samba

[ʃ]

ch de chave em port.

[t]

t de torre em port.

[ð] (entre vogais)

th de this “este” em ingl.

[θ]

th de through “por” em ingl.

[u]

u de puro em port.

[u:]

u de puro em port., mas longo

god) god “bom” (ingl. mod., good) s

risan “levantar-se” (ingl. mod., rise) hus “casa” (ingl. mod., house)

sc

scip “barco” (ingl. mod., ship)

t

ton “aldeia” (ingl. mod., town)

þ, ð

oþer, oðer “outro” (ingl. mod., other) þurh, ðurh “por” (ingl. mod., through)

u

ful “cheio” (ingl. mod., full) hus “casa” (ingl. mod., house)

ƿ

ƿynn “alegria”

[w]

w de whisky

y

wynn “alegria”

[y]

u de lune em francês

ryman “abrir passagem”

[y:]

u de lune em francês, mas longo

Fonte: Crystal (1995, p. 18).

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Gramática histórica da língua inglesa

Os ditongos do inglês antigo (ea [æǝ], [ɛ:ǝ], eo [eǝ], [e:ǝ]) foram convertidos em vogais simples breves ([ɛ] e [e] breves, escritas com e) e seus pares longos, [ɛ:] e [e:] (escritos ea e ee). Novos ditongos surgiram quando a pronúncia de certas consoantes foi vocalizada, por exemplo, ingl. ant., weg [weg] > ingl. méd., wei [wej] (cf., ingl. mod., way). As vogais átonas em final de palavra deixaram de ser pronunciadas tão claramente, de modo que muitas foram reduzidas a shwa [ǝ], um som indistinto que soa como o a final em lata em português, antes de serem elididas completamente. A dificuldade de distinguir entre as vogais finais causaria um impacto importante na erosão das desinências de caso nos nomes e de tempo e pessoa nos verbos (veja a seguir “Morfologia e sintaxe”). Empréstimos franceses introduziram os ditongos [oi] e [ui] (atualmente [oi] como em joy “alegria”, point “ponto” etc., em ingl. mod.). Com a exceção dos dialetos do norte, [ɑ:] de inglês antigo passou a ser articulado como [o:] por exemplo, ban “osso” [bɑ:] e swa “assim” [swɑ:] do inglês antigo, passaram a ser escritas com bon [bo:] e so [so:] (ingl. mod., bone, so). A consoante [h] começou a ser elidida, por exemplo, ingl. ant., hring [hriŋg] “anel”, hnecca [hnɛkka] “pescoço” > ingl. med., ring [riŋg], neck [nɛk]. Em muitos manuscritos medievais, encontramos grafias em que a ausência da letra h ou sua inclusão onde não era preciso indicam que [h] não era pronunciada, por exemplo, ædde por had “teve”, eld por held “segurou”, his por is “é”, harm por arm “braço”. Posteriormente, no inglês padrão, o [h] foi restaurado em muitas palavras, devido às grafias que ficaram consagradas. Por escrever as palavras com h, as pessoas achavam que deveriam pronunciar algum som, embora isso não tenha afetado certas palavras emprestadas das línguas românicas, como honour, por exemplo, que é [ɒnǝ] ou [ɑnǝɹ]. Diferente da língua culta do sudeste, em muitas variedades do inglês faladas na Inglaterra, a restauração de [h] ao inventário fônico nunca ocorreu, de modo que [h] foi eliminada completamente. Nessas variedades, palavras como hair “cabelo” e air “ar”, harm “dano” e arm “braço” são homófonas, pronunciadas [ɛǝ] ou [ɛ:] e [ɑ:m], respectivamente. A influência do francês também se fez sentir em certas distinções entre consoantes. Por exemplo, em inglês antigo [s] e [z] e [f] e [v] eram variantes que alternavam dependendo dos sons ao

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redor. Tipicamente, [s] e [f] apareciam em início e final de palavra, e [z] e [v] apareciam entre vogais, mas, especialmente no sul, [v] e [z] podiam aparecer no início de palavras também, pois substituir o som sonoro ([v z]) por seu par surdo ([f s]) não afetava o significado de uma palavra, ou seja, fat era pronunciado [vat] e [fat] e queria dizer a mesma coisa (“barril”), tal como fox podia ser [fɒks] ou [vɒks] “raposa” (compare a palavra fox “raposa”, com [f], que é dos dialetos no norte, com vixen “raposa”, com [v], que vem do sul). No entanto, em francês antigo, a distinção entre [f v] e [s z] era importante, porque distinguia palavras: fin “fino” não era igual a vin “vinho”. Com a entrada de tantas palavras francesas, esses contrastes foram adotados em inglês também, de modo que atualmente, fat [fæt] e vat [væt] e seal [sıjl] e zeal [zıjl] são palavras diferentes (“gordo” e “barril”, “foca” e “zelo”, respectivamente), distinguidas pelo contraste entre as consoantes iniciais. Por volta de 1400, no sudeste da Inglaterra, o sistema de sons era aproximadamente como nos mostra o Quadro 2.2. Quadro 2.2  Sistema de sons.

Grafias

Exemplos

IPA

CONSOANTES p(p) – b(b)

pin “alfinete”, bit “mordeu”

[p] – [b]

t(t) – d(d)

tente “barraca” (ingl. mod., tent), dart “dardo”

[t] – [d]

c, k, ck – g(g)

castell “castelo”, kin “parentes”

[k] – [g]

c, ch, tsch, tch

chirche “igreja”

[tʃ]

dg, g(g) + e, i, y

brigge “ponte”

[dʒ]

m, mm

make “fazer”

[m]

n, nn

name “nome”

[n]

ng

song “canção”

[ŋ] (Este som começa a ficar distintivo, por exemplo, sinne [sin] “pecado” versus sing(g)(e) [siŋ] “cantar”)

l, ll

lay “deitar”

[l]

r, rr

rage “raiva”

[r]

w, u, uu

weep “chorar”

[w]

y, i, j

yelwe “amarelo” (ingl mod., yellow)

[j]

f(f)

foole “bobo”

[f]

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Gramática histórica da língua inglesa

v

virtu “virtude” (de francês)

[v] (Este som começa a contrastar com [f])

s(s), c(c) + i, e, y sore “dolorido”, citie “cidade” (do francês)

[s]

z, s

[z] (Este som começa a contrastar

zephyr “zéfiro”

com [s]) sh, ch, sch

shadwe “sombra” (ingl. mod., shadow)

[ʃ]

th, þ

thank, þank “agradecer”; paþ, path “caminho”

[θ] – [ð]

h

happen “ocorrer”

[h] VOGAIS

i, y

ryden “montar”, “andar a cavalo”

[i:]

this “este”

[i]

sweet “doce”

[e:]

heeth “pântano”

[ɛ:]

men(n)(e) “homens”

[ɛ]

joye “alegria”

[ǝ]

a_e

name “nome”

[ɑ:]

ou

houre “hora”

[u:]

oo

good “bom”

[o:]

o

holy “santo”

[ɔ:]

oft “com frequência”

[ɔ]

hand “mão”

[a]

about “sobre”, “ao redor”,

[ǝ]

but “mas”

[ʊ]

ee e

a u

DITONGOS ay

day “dia”

[ai]

ui, uy, oy, oi

joinen “juntar”

[ʊi] (Introduzido do francês)

oi, oy

joye “alegria”

[oi] (Introduzido do francês)

ew

newe “novo”

[iʊ]

fewe “poucos”

[ɛʊ]

au, aw

law “lei”

[aʊ]

ow

growe “crescer”

[ɔʊ]

Fonte: Crystal (1995, p. 42).

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Morfologia e sintaxe Em termos do sistema morfológico, o período do inglês médio é caracterizado pela perda dramática das marcas de flexão do inglês antigo, especialmente nos nomes e nos adjetivos. Na sintaxe, são notáveis as crescentes restrições sobre a ordem de palavras nas frases. As duas mudanças gerais na gramática da língua inglesa estão vinculadas porque a fixação da ordem sintática em Sujeito-Verbo-Objeto (com apenas algumas variações razoavelmente previsíveis) ajudava a contrabalançar a eliminação de desinências. Igualmente, quanto mais rígida a ordem dos constituintes da frase, menos necessárias ficavam as flexões para indicar as funções gramaticais, acelerando sua obsolescência e abandono. Podemos ver a redução nas flexões de caso nominais e adjetivais nos seguintes exemplos: Singular Se tila mann = “o homem bom” (caso nominativo [sujeito]). Þone tilan mann = “o homem bom” (caso acusativo [objeto direto]). Þæs tilan mannes = “do homem bom” (caso genitivo [posse]). Þæm tilan menn = “para, com, por, desde o homem bom” (caso dativo [objeto indireto]). Plural Þa tilan menn = “os homens bons” (caso nominativo). Þa tilan menn = “os homens bons” (caso acusativo). Þara tilra manna = “dos homens bons” (caso genitivo). Þam tilum mannum = “para, com, por, desde os homens bons” (caso dativo). Como você pode ver, para quase todos os casos existe uma desinência específica. Alguns casos, porém, já eram indiferenciados em inglês antigo, por exemplo, plural do nominativo e acusativo no nome. No adjetivo, não havia distinção entre o singular do acusativo, genitivo e dativo e o plural do nominativo e acusativo (tilan). Nesses casos as flexões no artigo definido e/ou o substantivo podiam desambiguar o sentido. O paradigma apresentado exibe a concordância para um substantivo do gênero masculino. Os substantivos femininos e neutros tinham sistemas diferentes para expressar as mesmas distinções de caso, mas quase todas as flexões desapareceram, tais como:

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Gramática histórica da língua inglesa

glof “luva” (subst. fem.) Sg. Nom. seo glof

wif “mulher” (subst. neut.)

> þe glof

þæt wif

> þe wyf

Sg. Acus. þa glofe > þe glof

þæt wif

> þe wyf

Sg. Gen. þære glofe > þe gloves

þæs wifes > þe wives

Sg. Dat. þære glofe > þe glove

þæm wif > þe wyve

Pl. Nom. þa glofa

þa wif

Pl. Acus. þa glofa Pl. Gen. þara glofa

> þe gloves

Pl. Dat. þæm glofum

þa wif þara wifa

> þe wyves

þæm wifum

As formas do artigo definido também iam perdendo as diferenças de caso, até ficar com apenas uma variante: /ðe/, normalmente escrito þe (cf., ingl. mod., the). Para o paradigma de “homem”, as formas em inglês médio eram: þe man (sg. nom., acus.), þe mannes (sg. gen.), þe manne (sg. dat.) e mannes em todo plural. Podemos notar mudanças no sistema pronominal também entre o inglês antigo e o inglês médio, especialmente na terceira pessoa. As formas da primeira e segunda pessoas (“eu”/”nós” e “tu” ~ “você”/”vocês”) mudaram pouco, como podemos ver (inglês antigo > inglês médio): Primeira pessoa do singular

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Segunda pessoa do singular

(“eu”)

(“você”)

Nom., ic  > ic

þu  > þu

Acus., me, mec  > me

þe, þec  > þe

Gen., min  > min

þin  > þin

Dat., me  > me

þe  > þe

Primeira pessoa do plural

Segunda pessoa do plural

(“nós”)

(“vocês”)

Nom., we  > we

ge   > ye

Acus., us  > us

eow  > ow

Gen., ure   > ure

eower  > ower

Dat., us   > us

eow  > ow

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O inglês médio

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O inglês antigo também incluía dois pronomes que se referiam a pares (“nós dois” e “vocês dois”), cujas formas declinadas eram wit, unc, uncer, unc e git, inc, incer, inc, respectivamente. Esses pronomes do número dual desapareceram antes do período do inglês médio. Na terceira pessoa, porém, encontramos a entrada gradual de duas formas diferentes. O surgimento de scho, sche para “ela”, e o aparecimento de þei, þem, þeir no plural para “eles”/“elas”. Em inglês antigo, os pronomes para a terceira pessoa começavam com /h/, escrito h, vejamos: Singular

Plural

Caso

Masculino

Feminino

Neutro

(todos os gêneros)

Nom.,

he

heo

hit

hi, hie

Acu.,

hine

hi, hie

hit

hi, hie

Gen.,

his

hire

his

heora

Dat.,

him

hire

him

him, heom

A transformação de heo /he:ǝ/ em she /ʃe/ é difícil de explicar, mas uma hipótese é que /he:ǝ/ se tornou /hje:/ ou /hjo:/ e depois passou para /ʃe:/ ~ /ʃo:/ (alguns dialetos do norte exibem scho), via uma forma intermédia com /ç/ inicial (o som de rr em morria no sotaque carioca). O problema com a teoria é que existem pouquíssimos exemplos desse tipo de mudança sonora de [hj] > [ʃ], um caso é Hjaltland > Shetland (Xetlândia, um arquipélago ao norte da Escócia). Para auxiliar a mudança fônica tão incomum, alguns linguistas históricos sugerem que possivelmente o artigo definido/ pronome demonstrativo feminino seo (“a” / “essa”) tenha influenciado, talvez porque, com as mudanças fônicas, /hje:/ “ela” e /he:/ “ele” teriam ficado muito parecidos, com alto risco de confusão. Para diferenciar, as pessoas teriam adotado seo ou, pelo menos, transferido a primeira consoante para o pronome pessoal feminino (CRYSTAL, 1995, p. 43). No caso dos pronomes da terceira pessoa do plural, þei, þeir, þem (cf., ingl. mod., they, their, them) surgem nos dialetos setentrionais como um empréstimo do escandinavo e gradualmente, a inovação avança para o sul, eliminando as variantes do pronome nos dialetos centrais e meridionais hi, heo, he, ha, a (nominativo),

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Gramática histórica da língua inglesa

hi, his(e), heom, hem (acusativo), her(e), heor, hure, hire (genitivo), heom, hom, hem, ham (dativo). O nominativo foi afetado primeiro, no século XIV, em Londres, o poeta Geoffrey Chaucer escrevia þei, mas mantinha her(e) ~ hir(e) (genitivo) e hem indistintamente para o acusativo e dativo. No século XV, o genitivo original em h dos dialetos do sul foi substituído por þeir “seu(s)” / “sua(s)” / “dele/as”. Finalmente, no século XVI, por exemplo, nos livros imprimidos por William Caxton, deparamos com them instalado nos casos objetivos. Figura 2.17  Mapa da distribuição de formas para a terceira pessoa do plural (“eles”/“elas”) para o período aproximadamente entre 1350 e 1450. 0º



Mar do Norte

54º N

Mar do Norte

54º N

Mar da Irlanda

Mar da Irlanda

Canal da Mancha

Canal da Mancha

Fonte: A Linguistic Atlas of Late Medieval English (apud BURROW; TURVILLE-PETRE, 1992 [2005], p. 16).

Vejamos a Figura 2.17, o mapa à esquerda mostra as ocorrências de formas com þ- (por exemplo, þem, þam) introduzidas do norreno antigo, e o mapa à direita reflete os casos de formas com ­h- derivadas do inglês antigo (por exemplo, hem, ham). Fica evidente que, no período sob investigação, o segundo grupo está concentrado ao sul de uma linha entre o estuário do rio Mersey no oeste e a grande baía de The Wash, no leste. Por outro lado, as grandes concentrações das formas inovadoras estão ao norte da

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O inglês médio

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mesma linha, mas ocorrências dispersas estão por toda a região sul, conforme os empréstimos penetravam. Um bloco especialmente intenso de þ- está no leste da região sul. Outras mudanças importantes no sistema gramatical durante o inglês médio são: o surgimento gradual do infinitivo marcado com for to ou to em lugar da desinência ­-(i)an, por exemplo, em Chaucer: Thanne longan folk to goon on pilgrimmages / And palmeres for to seken straunge strondes “Então as pessoas desejam fazer peregrinações / e peregrinos a procurarem lugares distantes”. A origem dessa construção era uma expressão de intensão ou propósito, ou seja, “para (que)”. Gradualmente, porém, a expressão foi gramaticalizada, à medida que a desinência -(i)an sofria cada vez mais redução na pronúncia, as formas preposicionadas reforçavam a construção do infinitivo, passando a ser os marcadores dessa forma verbal (CRYSTAL, 1995, p. 45). Nos verbos em geral, os paradigmas não sofreram grandes alterações entre o inglês antigo e o inglês médio nas desinências número-pessoais e de tempo e modo, além de algumas variações fônicas, como fica evidente no exemplo a seguir do paradigma verbal regular “ouvir” de inglês médio (TRAHARNE, 2004, p. xxviii). Inglês antigo Infinitivo

hieran (‘to hear’)

Presente do Indicativo

Inglês médio heren (‘to hear’) Presente Indicativo

Singular 1

hiere

here (‘I hear’)

Singular 2

hierst

herest (‘you hear’)

Singular 3

hierþ

hereð (‘he, she, it hears’)

Plural

hieraþ

hereð (‘we, you, they hear’)

Imperativo Singular

hier

her (‘Hear!’)

Plural

hieraþ

hereð (‘Hear!’)

Singular 1

hierde

herde (‘I heard’)

Singular 2

hierdest

herdest (‘you heard’)

Pretérito (Passado) Indicativo

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Gramática histórica da língua inglesa

Inglês antigo

Inglês médio

Singular 3

hierde

herde (‘(s)he, it heard’)

Plural

hierdon

herden (‘we, you, they heard’)

Pretérito Imperfeito do Subjuntivo Singular

hierde

Plural

hierden

herde (‘I etc. may have heard’) herden (‘we may have heard’)

Particípio Presente/

hierende

herinde (‘hearing’)

(ge)hierede

iherd (‘heard’)

gerúndio Particípio Passado

Diversidade dialetal Tal como o inglês antigo, o inglês médio apresentava variação regional. Em grande medida, os dialetos medievais são continuações e diversificações das cinco principais divisões na língua dos anglo-saxões: nortumbriano, merciano, saxão ocidental, angliano oriental e kentiano. A maior diferença entre a situação dos dialetos anglo-saxônicos e dos medievais é que o merciano divide-se em dois: West Midland “centro-oeste” e East Midland “centro-leste”, que abrange a região de East Anglia. A região sul é repartida entre um bloco ocidental, que continua o antigo West Saxon e outra agrupação no sudeste, que mistura características do dialetos orientais de Wessex com traços do kentiano. Os dialetos setentrionais também acabam se separando entre os falados da Inglaterra e os dialetos escoceses (Scots). Devido às redes de contatos diferentes entre os dois países, a evolução do antigo nortúmbrio não era uniforme.

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Figura 2.18  Mapa das principais divisões dialetais do inglês médio e da localização aproximada de alguns dos textos mais conhecidos escritos nessas variedades. 0º

Mar do Norte

NORTE 15

54º N

Mar da Irlanda

11 8 - 10

WEST MIDLAND 14 g - k

4

3

6 1

14 l - r

EAST MIDLAND

7 12

5.16 - 18 Londres

2? SUDOESTE

13

SUDESTE

Canal da Mancha

1 The Peterborough Chronicle 2 The Owl and the Nightingale 3 Lazamon’s Brut 4 Ancrene Wisse 5 Sir Orfeo 6 The Cloud of Unknowing 7 Langland: Piers Plowman 8 Patience 9 Sir Gawain and the Green Knight 10 Pearl 11 St Erkenwald 12 Trevisa: Dialogue between a Lord and a Clerk 13 Gower: Confessio Amantis 14 Lyrics 15 The York Play of the Crucifixion 16 Chaucer: The Parliament of Fowls 17 Chaucer: Troilus and Criseyde 18 Chaucer: The Canterbury Tales Fonte: Burrows e Turville-Petre (1992 [2005], p. 7).

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O principal motivo para a diversificação regional de línguas é o grau de contato entre os falantes. As redes de interação transmitem produtos, assim como ideias também transmitem palavras e mudanças. Repare como os pronomes escandinavos se deslocavam gradualmente desde seu núcleo original para o sul, como uma onda. Se os falantes de um lugar prestigioso, por exemplo, uma cidade importante, como Londres, adotam determinada variante, é muito provável que outros lugares menores vizinhos vão seguir a moda rapidamente. Tais lugares funcionam como centros irradiadores de mudanças, que tipicamente “pulam” de centro urbano para centro urbano rapidamente e depois preenchem os espaços rurais entre eles mais devagar. Figura 2.19  Divisões dialetais do inglês médio segundo John de Trevisa.3

Fonte: Brook (1963 [1972], p. 58).

A tradução do latim para o inglês feita pelo cornualhês John de Trevisa (m. 1402) do Polychronicon escrito pelo monge Ranulph Higden (m. 1364), que é uma história do mundo desde a criação até meados do século XIV, expressa perfeitamente a percepção de variação linguística pelo reino.

Os dialetos medievais do inglês e do escocês Os dialetos setentrionais são os mais distintivos. A maioria dos textos literários produzidos nesta variedade, porém, é tardia, dos séculos XIV e XV. Dos textos escritos antes, podemos mencionar o Saltério Surtees, do final do século XIII, e o Cursor Mundi, um longo poema. As Canções de Lourenço Minot são do início do 3 “Também os homens ingleses, eles tiveram desde o começo as três maneiras de falar deles: do norte, do sul, e a fala do meio do país, como eles vieram de três tipos de povos da Germânia; assim, por combinação e mistura, primeiro com dinamarqueses e, depois, com normandos, em muitas línguas diferentes é juntado, e alguns usam estranhas articulações de chilrados, rosnados e rangidos.”

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século XIV. Pelo fim do século XIV, existem alguns poemas aliterativos: The awntyres of Arthur (sobre o Rei Arturo), The wars of Alexander (sobre as conquistas de Alexandre Magno) e The destruction of Troy (sobre a Guerra de Troia). Desses, The wars of Alexander se destaca pelo número de elementos escandinavos no léxico e na gramática. Do século XV, há as York Plays: várias peças religiosas escritas e realizadas anualmente na cidade de York. A quantidade de literatura composta no dialeto escocês é menor e mais tardia: Bruce (sobre o rei Robert the Bruce) é de 1387. Do século XV, são o longo poema The Actes and Deidis of the Illustre and Vallyeant Campioun Schir William Wallace (“Os atos e façanhas do ilustre e corajoso campeão Sir William Wallace”) do menestrel Blind Harry (Henry, o Cego) e a Orygynale Cronykil of Scotland (“Crônica Original da Escócia”) de Andrew of Wyntoun. Também do século XV o poema anônimo Rauf Coilgear (“Rafael, o Carvoeiro”). A poesia de Robert Henryson e William Dunbar é associada às cortes reais do final do XV e início do século XIV. As características dos dialetos setentrionais incluem:









A manutenção de a /ɑ:/ do inglês antigo, sem substituí-lo por /o:/ (na escrita por oCe [em que C = qualquer consoante], oo), como ocorreu mais ao sul, por exemplo, stan “pedra” > ston, stoon, stone, hal “inteiro” > hool (ingl. mod., whole), rad “estrada” > road. A simplificação dos ditongos /ai/, /ei/, /oi/, /ui/ para vogais puras longas /a: e: o: u:/. Esta mudança afetou a grafia, porque muitas vezes a letra i continuou sendo escrita e era reinterpretada como uma maneira de marcar quais vogais eram longas. Vemos esse fenômeno na palavra raid “ataque”, cujo étimo é rad “estrada”. No norte e no centro-leste o som de y /y(:)/ perdeu o arredondamento dos lábios, tornando-se /i(:)/. Novamente, a letra tradicional continuava representando o som, mas com um novo valor. Em palavras de duas sílabas, as vogais /ɑ/ e /o/ foram alongadas. No norte, /i/ e /u/ também sofreram a mudança de duração, mas essas vogais eram pronunciadas com a língua mais baixa, convertendo-as em /e:/ e /o:/, por exemplo, ingl. ant., wicu > ingl. méd., weke /we:k/ > ingl. mod., week. A língua avançou e subiu na articulação de /o:/ para criar /y:/ no século XIV. Sabemos disso porque encontramos palavras

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com escritas sune “imediatamente” e buik “livro” (< inglês sona, boc) em rimas com palavras como fortune /fortyn/, que são empréstimos do francês, que também têm esse som /y/. Na maioria dos dialetos ingleses, as vogais /a/ e /o/ foram convertidas em ditongos /ai ei oi/ quando antecediam /x/ (escrito ch, gh), por exemplo, taght /taxt/ “ensinou” > taught /tauxt/ (mod. ingl. /tɔt/). No norte, entretanto, apenas /ɑ/ ditongou, de modo que encontramos taught e aught “oito” (< ingl. ant., aht), mas socht, soght para “procurou”, que era sought no sul. Até o século XV, a vogal fraca átona /ǝ/, escrita com e em final de palavras, desapareceu. No entanto, a perda ocorreu muito mais cedo no norte do que no sul (provavelmente já no século XIII), e já no século XIV é possível encontrar “amor” escrito luf no lugar de love ou loven no sul. No século XIII, /e/ > /i/ na segunda sílaba de palavras dissilábicas, quando essa sílaba era travada, por exemplo, walles “muros” > wallis, wonder “maravilha” > wondir. Os dialetos setentrionais apresentam muitas palavras em que /k/ (c, k) e /g/ (g) correspondem a /j/ (y, ȝ) , /dʒ/ (dg, g + e, i) e /tʃ/ (ch) nos dialetos meridionais, por exemplo, spek “fala” versus spech. Como não existe nenhum cognato escandinavo para essa palavra, não podemos atribuir o /k/ a um empréstimo. Nesses casos, a provável origem é uma generalização de uma consoante em palavras com alternâncias entre as consoan­tes velares /k g/ e palatais /j dʒ tʃ/ que eram causadas pela presença de vogais diferentes, por exemplo, swilc /swilk/ “tal” no nominativo, mas swilces /swiltʃes/ no genitivo e swilcum no dativo, com /k/, devido à vogal posterior. Esse tipo de variação entre a articulação de consoantes devido a vogais existe em português também, por exemplo, elétrico (/k/ antes de /o/) versus eletricidade (/s/ antes de /i/). No centro e sul, os falantes nivelaram as alternâncias em favor das formas palatais; no norte, as formas velares eram generalizadas. O grupo /hw/ em início de palavra era pronunciado com mais força no norte, chegando a /x/, que as grafias chw-, qu(h)-, qw(h)- refletem, sendo escrito wh- no sul, por exemplo, qu(h) at versus w(h)at “que” (< ingl. ant., hwæt). /ʃ/ > /s/ no norte, quando não era enfatizado, por exemplo, fless versus flesh, fiss versus fish etc. Neste caso, os dialetos meridionais mantiveram o som original.

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Um importante marcador gramatical dos dialetos do norte é a desinência -es para a terceira pessoa do singular. Esta variante acabou substituindo a forma -eth, que era típica do sul. Em escocês, o pretérito era escrito com -it, por exemplo, wantit “quis”, “queria”, que em inglês era geralmente escrito -ed, por exemplo, wanted. Algumas formas de negação são típicas do escocês: nae, nocht, e o enclítico -na, versus no e not dos dialetos centrais e meridionais. Figura 2.20  Extrato do poema Cursor Mundi, escrito na primeira metade do século XIV.

Um gosta de rimas para escutar, E romances lidos de diversas maneiras, Sobre Alexandre, o Conquistador; Sobre Júlio César, o Imperador; Sobre a luta terrível da Grécia e de Troia, Em que muitos mais perderam a vida; Sobre Bruto que, sendo de agir valente foi, O primeiro conquistador da Inglaterra; Sobre o Rei Artur, que era mais poderoso, Que qualquer outro de seus tempos, Sobre o destemido que eram seus cavaleiros ferozes, Sobre cujos aventuras ouço contar, Como Gawain, Kai e outros fortes, Para defender a Távola Redonda. Fonte: Brook (1963 [1972], p. 73).

Observem os seguintes traços, que são típicos do inglês setentrional:

a e não o antes de ng e nd em strang “forte” e hand “mão” (L. 5); a ausência de -e final em red “leu”(L. 2), tim “tempo” (L. 8) e tell “contar” (L. 12); i para e em lesis “perderam” (L. 6); k onde os dialetos meridionais teriam ch, por exemplo, rike “rico” (L. 9); qu- em lugar de wh- em quam (L. 10) por whom “a quem”; -(e)s para a terceira pessoa do singular (yhernes L. 1) e do plural (lesis L. 9) (BROOK, 1963 [1972], p. 72).

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Figura 2.21 Extrato do poema Bruce de Barbour.

Contar histórias é prazeroso, Imaginar que elas não são mais de fábulas, Então, seria que histórias que eram verdadeiras, E que eram contadas bem, Teriam prazer em dobro no ouvir. O primeiro prazer é a maneira de contar, E o segundo, a veracidade Que mostra a coisa bem como era; E tais coisas de que se gosta, Ao ouvido de muitos são agardáveis, Portanto, eu queria decidir-me, Se minha inteligência for o suficiente para isso, Verter para o escrito uma história verdadeira. Fonte: Brook (1963 [1972], p. 74).

Notem: y para a vogal normalmente representada por o no centro e sul, por exemplo, gud “bom”, suth “verdade” e não god, soth; -and para o particípio presente em likand, “gostando” (L. 9), plasand “agradando” (L. 10) (versus -ing no sul); suld “deveria” para shuld (L. 3); giff para if(f) “se” (L. 12); nocht para not (L. 2); os itens lexicais tyll “para” e thartill “para ele/isso”. Os dialetos do centro-leste são reconhecíveis pela troca de i por y em unride, dint e lifte (< ingl. ant., ungeryde “...”, dynt “momento”, lypte “levantou”), como os dialetos do norte, mas a letra o em drof, þore e on (< ingl. ant., draf “conduziu”, þare “lá”, an “um”) não é nada comum no norte. O plural do imperativo comes “venham” e till “para” são outras formas comuns no norte, mas o > a antes de m e n, exceto quando as consoantes nasais precedem d e b, ou seja, bigan “começou”, mas hond “mão”, só ocorre no centro-leste. Figura 2.22 Passagem de Havelock the Dane (ll. 2432-46), escrito na variedade do centro-leste.

Havelock o viu e forçou-se para lá, E a barra rapidamente tirou, que era enorme e grande, saibam E jogou a porta aberta E disse, “Agora vou morar aqui: Venham rápido até mim; Maldição em quem entre vocês fujam!” “Não,” disse um, “você vai pagar isso”, E começou a correr para ele,

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em sua mão sacou sua espada; ele ia matar Havelock lá, E com [ele] vieram dois outros, que teriam tirado a vida dele. Havelock levantou a barra da porta, E, com um golpe, ele matou os três deles. Fonte: Brook (1963 [1972], p. 74-75).

Se os dialetos do centro-leste compartilham certos traços com os do norte, os dialetos da região centro-oeste dividem caraterísticas com os do sudoeste, como se pode ver no poema a seguir sobre o homem na lua. Figura 2.23 Exemplo do dialeto medival do centro-oeste: The Man in the Moon (“O homem na lua”), de Harley, MS. 2253).

O homem na lua se levanta em pé e passa, Em seu cajado bifurcado, ele leva seu fardo; É um milagre que ele não escorrega, De medo de cair, ele treme e se desvia. Quando a escarcha congela, ele sofre muito frio; Os espinhos são afiados; eles rasgam sua roupa. Não há ninguém no mundo que sabe quando ele se senta, Nem ninguém, a não ser a cerca-viva, quais roupas ele veste. Fonte: Brook (1963 [1972], p. 75-76).

Repare, por exemplo, em o em mon “homem” e mone “lua” (L. 1), em lugar de man(ne) no leste e norte. O som sonoro /v/ em valle “cair” (ingl. mod., fall) (L. 4) é típico do centro-oeste e sudoeste. A vogal u em burþan “fardo” (L. 2) (ingl. mod., burden) e muche “muito” (L. 3) (ingl. mod., much) em lugar de i ou y são meridionais, tal como a desinência verbal -(e)þ que corresponde a -(e)s no norte e centro-leste, por exemplo, bereþ “leva” (L. 2), burþen (L. 3), shoddreþ “treme” (L. 4). Os verbos stond “levanta-se”, strit “passa”, slyt “escorrega” não apresentam a última sílaba -eþ. Esse processo de perda de sons em final de palavra é chamado apócope e é típico dos dialetos do sudoeste e centro-oeste. Por outro lado, chele “frio”, não descende de cele do dialeto anglo-saxônico ocidental, sendo específico do centro-oeste e, portanto, ajuda a localizar a proveniência da composição. Em bue “seja” (L. 8), encontramos o reflexo arredondado

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do ditongo /e:ǝ/ do inglês antigo, mas em freseþ “congela” e beþ “são” (L. 6) (< ingl. ant., freoseþ, beoþ), a vogal não é articulada com os lábios arredondados. Figura 2.24 Dialeto medieval do sudeste: Ayenbyte of Inwyt (“O arrependimento da consciência”), uma tradução do francês feita pelo monge beneditino, Michael of Northgate, finalizado em 1340.4

Fonte: Brook (1963 [1972], p. 76-77).

Essa passagem apresenta vários traços que apontam para sua origem no sudeste da Inglaterra: A descida e desarredondamento da articulação da vogal y (/y(:)/) do inglês antigo, que passa a e (/e(:)/), por exemplo, ken (L. 8) “gado” (< ingl. ant., cyn, plural de cu “vaca”) (= ingl. mod., kine “gado vacum”). A subida da língua na articulação de æ (/æ/) do inglês antigo para e (/e/), registrada nas grafias efterward “antes”, “antigamente”, wes “era”, hedde “tinha”, þet “que” (= ingl. mod., afterwards, was, had, that). A grafia ye na palavra yhyerde “ouviu” (L. 2) e a grafia uo para a vogal em guod “bom” (ingl. mod., good) (L. 4, 7). A troca de sons fricativos surdos para sonoros em início de palavra, por exemplo, zayþ, zigge, zente, zayd, uor (= ingl. mod., say(-eth), say, send, said, for). 4

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“Antigamente, havia um homem pobre, como me dizem, que tinha uma vaca; e [ele] ouviu seu sacerdote dizer em sua predicação que Deus disse em seu evangelho que Deus entregaria cem vezes tudo o que me desse para ele. O homem bom, com a sugestão da sua mulher, deu sua vaca ao sacerdote, que era rico. O sacerdote tomou [a vaca] dele alegremente, e enviou-a para as outras [vacas] que ele tinha. Quando o entardecer começou, a vaca do homem bom voltou para a casa dele, como ela estava acostumada e levou com ela todo o gado do sacerdote, que eram cem.”

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Figura 2.25 O dialeto do sudoeste: passagem de The Owl and The Nightingale (“A coruja e o rouxinol”) ll. 1721-736.

A corruíra era considerada muito sábia, Porque ela não tinha sido criada no bosque, Ela estava à vontade entre os homens, e deles recebeu sua sabedoria: Ela podia falar onde quisesse, Até ante o rei, se quisesse. “Escutem”, ela disse, “deixem-me falar! Que é isso? Vocês pretendem perturbar a paz, e constranger o rei tanto? Ele ainda não está morto, nem coxo. Vocês dois vão sofrer talvez dano e desonra, se nós quebrarmos a trégua em seu domínio. Deixem ir e acalmem-se, e vamos direto ao julgamento de vocês, e deixemos julgar esse pleito, Tal como foi combinado anteriormente. Fonte: Brook (1963 [1972], p. 77).

As características mais marcantes de que esse manuscrito foi composto no sudoeste da Inglaterra são as seguintes: O reflexo arredondado da vogal y /y(:)/, por exemplo, mankunne (L. 3) “humanidade”, “os homens” (< ingl. ant., manncynn) (= ingl. mod., mankind), lusteþ (L. 7) “escutem” (< ingl. ant., lysteþ) (= ingl. mod., listen), gryþbruche (L. 12) “distúrbio da paz” (< ingl. ant., griþbryce). As vogais /o/ e /a/ do inglês antigo são representadas por /o/ antes de consoantes nasais, seguidas ou não de outras consoantes, por exemplo, schome “desgraça”, “desonra” (L. 9) (< ingl. ant., scamu) (= ingl. mod., shame) (L. 10), lome “coxo” (< ingl. ant., lamu) (= ingl. mod., lame) (L. 11), among “entre” (< ingl. ant., onmang) (= ingl. mod., among) (L. 3), schond “culpa”, “responsabilidade” (< ingl. ant., scandu) (L. 12) (= ingl. mod., scandel), londe “terra”, “país” (L. 14) (< ingl., land) (= ingl. mod., land). Por outro lado, temos a ainda em mannkunne e þanne (< ingl. ant., þone), em que o arredondamento não ocorreu por algum motivo.

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A vogal /æ/ do inglês antigo evoluiu para /ɛ/ em wes “era”/ “foi” (< ingl. ant., wæs) (= ingl. mod., was) e queþ “disse” (< ingl. ant. cwæð) (= ingl. mod. arcaico, quoth). Esse segundo caso é especialmente uma característica dos dialetos meridionais. O pronome hunke é um vestígio de unc, o antigo pronome dual da segunda pessoa do inglês antigo, que não sobreviveu nos demais grupos dialetais.

Literatura medieval Os restos textuais que sobrevivem do período medieval depois da conquista normanda são menos numerosos que os do período anglo-saxônico. A nova situação política é parcialmente responsável pelo aumento na documentação, porque a nova monarquia e seus seguidores precisavam registrar suas posses e avaliá-las. Por esse motivo, encontramos tanto documentos públicos, como o enorme questionário do Domesday Book, quanto empreendimentos administrativos e jurídicos reais e privados (mandados, escrituras, alvarás e privilégios, contratos e listas de tributação etc.). A dificuldade principal, porém, com esse material, é que está escrito ora em latim, ora em francês, e, portanto, os únicos elementos ingleses que aparecem são nomes próprios de pessoas ou de lugares, que são de utilidade limitada para desvendar a evolução da língua. A exclusão da língua inglesa também ocorre no âmbito religioso, devido ao papel do latim como a língua oficial da Igreja. O latim substituiu o inglês como a língua para redigir as crônicas históricas também, encerrando a época da grande Crônica anglo-saxônica e com algumas notáveis exceções em francês, só ressurgindo no século XV (CRYSTAL, 1995, p. 34). O inglês começa a reaparecer nos documentos a partir do século XIII. Primeiro em apenas alguns casos dispersos, depois, com crescente importância, até a enxurrada de manuscritos em inglês que explode em meados do século XV. Os primeiros textos são geralmente de natureza religiosa: sermões, homilias, tratados sobre a vida religiosa e sobre a vida dos santos, e obras de meditação. O século XIV viu um aumento na produtividade

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em inglês com várias traduções do latim e do francês, à medida que o conhecimento da segunda língua diminuía entre a nobreza e a florescente classe mercantil urbana. Diversos textos são lições para o ensino de francês, além de mais material burocrático (proclamações, contabilidade) e experimentação com novos gêneros textuais (provérbios, alegorias, diálogos). A publicação de uma tradução da Bíblia pelo reformador religioso John Wycliffe gerou muita polêmica, tal como as escritas dos seguidores de Wycliffe, os lollardos. Finalmente, a partir da década de 1430, uma onda de documentação tabelional irrompe da chancelaria real, o Chancery Standard, desenvolvendo assim uma norma escrita razoavelmente padronizada.

Peterborough Chronicle A Crônica de Peterborough é um dos primeiros textos que podemos classificar como “inglês médio”. Iniciado como uma versão da Crônica Anglo-Saxônica no mosteiro de Peterborough no centro da região oriental de East Anglia, a crônica foi iniciada depois que os monges perderam muitos manuscritos em um incêndio em 1116. Eles pediram uma cópia da Crônica de outro mosteiro e, ao terminar a cópia, eles continuaram a escrever a história da comunidade. A redação foi interrompida entre 1131 e 1154, provavelmente devido à violência e à instabilidade durante a guerra civil entre Stephen e Matilda. Quando os escribas retomaram suas atividades, depois da morte do rei Estevão em 1154, parece que ocorreu uma mudança na política editorial também, porque a linguagem e as grafias passam a ser muito mais contemporâneas, evitando o estilo arcaico do período anterior. Não há consenso entre os especialistas sobre a identidade da Crônica de Peterborough. Alguns apontam para a presença de arcaísmos que lembram a variedade padrão do saxão ocidental para justificar uma classificação como inglês antigo tardio. Outros estudiosos, porém, indicam as inovações linguísticas e as normas de representação, preferindo identificar o texto como inglês médio precoce.

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Figura 2.26  Peterborough Chronicle.5

Fonte: Crystal (1995, p. 33).

5 “Um amarrou cordas com nós ao redor da cabeça deles e / 2 girou-as de tal modo que entraram no cérebro deles. Eles os colocaram / 3 em uma cela onde havia víboras e serpentes e sapos / 4 estavam, e mataram-nos assim. Alguns eles fecharam no / 5 caixote de tortura, que é uma caixa que é curta e estreita / 6 e rasa, e puseram pedras afiadas dentro dela e / 7 pressionaram o homem nela, de modo a quebrar-lhe todos os membros. / 8 Em muitos dos castelos havia o laço de cabeça e o cabresto, os quais / 9 eram ferros dos quais dois ou três homens eram precisos / 10 para levantar; que era feito de tal maneira que estava fixa em uma / 11 viga, e colocavam um ferro afiado ao redor da garganta do homem / 12 e seu pescoço, de modo que ele não conseguisse nenhuma posição para sentar-se, / 13 nem deitar-se, nem dormir, senão aguentar todo esse ferro. Muitos / 14 mais eles mataram de fome. / 15 Eu não conheço, nem posso contar todas as atrocidades nem todos os / 16 castigos que eles faziam nas pessoas infelizes nesse país, e que / 17 duraram os doze invernos em que Estevão foi rei, e sempre ficava / 18 cada vez pior.”

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Sir Gawain and the Green Knight O poema de “Sir Gawain e o Cavaleiro Verde” foi composto por volta do final do século XIV no dialeto do centro-oeste, embora algumas formas linguísticas indiquem que a versão que sobrevive em manuscrito até hoje foi baseada em outra, provavelmente escrita no dialeto do condado de Lancashire, mais ao norte. A composição é de 2.430 versos, divididos por 101 estrofes, com forte esquema aliterativo. O poema conta duas histórias: a primeira, sobre a chegada do gigante Cavaleiro Verde à corte do rei Artur e seu desafio aos cavaleiros da Távola Redonda de que um deles o golpeia com seu machado, se, dali um ano e um dia, ele puder voltar e realizar o mesmo golpe em que tiver aceito o desafio inicial. Gawain aceita e decepa a cabeça do cavaleiro com um golpe do machado. O Cavaleiro não morre, mas se levanta, pega sua cabeça e lembra Gawain de encontrá-lo em certa capela na data combinada. A segunda história conta as aventuras de Gawain no castelo do lorde Bertilak e sua esposa, quando ele tenta cumprir o acordo com o Cavaleiro Verde. A segunda parte dessa história envolve provas da lealdade, honestidade, coragem e fidelidade ao espírito do código cavalheiresco de Gawain. O sobrinho do rei Artur é apresentado com diversas tentações mundanas: as tentativas de sedução pela Lady Bertilak e a vontade de se salvar da morte certa que o aguarda às mãos do Cavaleiro Verde se cumprir o acordo. Figura 2.27 Sir Gawain e o Cavaleiro Verde.6

6

“Desde que o sítio e o assalto terminaram em Troia, / 2 A cidade destruída e queimada até brasas e cinzas, / 3 O homem que lá criou os engenhos da traição / 4 Foi condenado por sua deslealdade, ele, o mais correto da Terra: / 5 Foi o nobre Enéas e seus ilustres parentes / 6 que, mais tarde, subjugaram províncias, e se tornaram senhores / 7 De quase toda a riqueza das Ilhas Ocidentais. / 8 Quando o nobre Rômulo se dirige rapidamente a Roma, / 9 Com grande pompa, ele constrói aquela cidade primeiro,

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Fonte: Crystal (1995, p. 37).

Os temas do poema misturam elementos da mitologia celta da Irlanda e do País de Gales, além de muitas figuras da tradição arturiana que eram muito populares por toda a Europa Ocidental ao longo da Idade Média. O mesmo manuscrito de Sir Gawain contém três outros poemas, escritos na mesma mão e no mesmo dialeto do centro-leste: A pérola, A pureza e A paciência. Esses poemas tratam de temas religiosos de estilo narrativo.

/ 10 E batiza-a com seu próprio nome, como é chamada agora; / 11 Tírio levanta construções na Toscana, / 12 Langobardo ergue moradias na Lombardia, / 13 E, distante, além do Canal da Mancha, Félix Brutus / 14 Sobre as ladeiras largas de muitas colinas estabelece a Bretanha com júbilo. / 15 Onde lutas e aflições e façanhas maravilhosas / 16 Muitas vezes foram encontradas por lá / 16 E com frequência tanto a felicidade como a tristeza / 17 têm-se alternado rapidamente desde então. / 18 E quando essa Bretanha foi constituída por esse homem nobre, / 19 Homens corajosos se multiplicaram por lá que adoravam lutar / 20 os quais, muitas vezes, em tempos posteriores, causaram danos. / 21 Mais maravilhas ocorreram nesta terra aqui e com maior frequência / 22 Que em qualquer outro lugar que eu conheço desde então, / 23 Mas de todos os reis da Bretanha que viveram aqui, / 24 Sempre Artur foi o mais nobre, dos que eu ouvi contar.”

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Geoffrey Chaucer De todos os autores medievais, Geoffrey Chaucer (ca. 1345­ ‑1400) legou a maior obra à posterioridade. Uma edição da sua produção literária conta mais de 43 mil versos e dois livros de prosa (CRYSTAL, 1995, p. 38). No entanto, não é apenas pelo tamanho que Chaucer é considerado o mais importante escritor da língua inglesa medieval. Em grande medida, a obra chauceriana marca o momento histórico em que o inglês se restabeleceu definitivamente no ambiente culto das cortes reais e da nobreza, que antes haviam preferido consumir sua cultura em francês. Os primeiros poemas que temos de Chaucer são no Book of the Duchess (O livro da duquesa), uma “visão amorosa” (sonho) na forma de elegia que celebra a morte da esposa de John of Gaunt, Branca de Lancaster, escrito entre 1368 e meados de 1370. Além desse livro, outras obras importantes de Chaucer incluem sua tradução do francês de uma parte do Roman de la Rose (O romance da rosa), uma das mais famosas obras de cavalaria medieval, a alegoria The Parliament of Fowls (O parlamento dos pássaros), outra visão amorosa chamada The House of Fame (A casa da fama) de aproximadamente 1378-1385, e The Legend of Good Women (A lenda das boas mulheres), poema inacabado, que trata de heroínas da mitologia clássica que ficaram famosas por terem sofrido pela devoção ao amado. As duas obras mais conceituadas da sua maturidade artística são Troilus and Criseyd (Troilo e Créssida), um tema popular medieval sobre dois amantes durante a Guerra troiana, e The Canterbury Tales (Os contos de Canterbury), sua obra mais famosa. Nos Contos, um grupo de peregrinos sai de Londres para o sepulcro de São Thomas à Becket, na Catedral de Canterbury no condado de Kent. Para se entreter ao longo do caminho, os peregrinos contam histórias. Nunca terminada, a obra contém 24 contos. Embora nenhuma versão manuscrita tenha sobrevivido na mão do autor, existem oitenta cópias contemporâneas: testemunho ao seu sucesso com o público.

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Figura 2.28 Extrato do “Prólogo” d’Os contos de Canterbury.7

Fonte: Crystal (1995, p. 39).

Podemos observar a grande habilidade poética de Chaucer na facilidade com que ele consegue explorar técnicas de rima e 7

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“Quando Abril, com suas chuviscas suaves, / 2 penetra a seca de março até a raiz / 3 E rega cada veia com tal líquido / 4 De cujo vigor é concebida a flor. / 5 Quando Zéfiro também, com seu sopro delicado, / 6 exala em cada bosque e charneca, / 7 Os brotos tenros e o jovem sol / 8 Está no meio de sua passagem por Áries; / 9 E os passarinhos fazem música / 10 E dormem a noite toda de olhos abertos, / 11 De tanto a Natureza atingi-los no coração / 12 Então, as pessoas anseiam para fazer romarias...”

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de métrica para organizar longas frases em blocos auditivos e de senso que podem ser compreendidas sem dificuldade (­CRYSTAL, 1995, p. 39). Os efeitos da linguagem ficam evidentes na passagem citada do “Prólogo”, que começa com uma oração subordinada de quatros linhas que contém uma oração coordenada (em negrito) dentro dela (“Quando Abril, com suas chuviscas suaves, / 2 penetra a seca de março até a raiz / 3 E rega cada veia com tal líquido / 4 De cujo vigor é concebida a flor.”). Essa longa oração subordinada inicial é seguida imediatamente por outra oração subordinada de seis versos que começa com “Quando Zéfiro também, com seu sopro delicado, / 6 exala em cada bosque e charneca / 7 Os brotos tenros ...”. Essa segunda oração subordinada contém duas orações coordenadas (“... e o jovem sol / 8 Está no meio de sua passagem por Áries” e “E os passarinhos fazem música”), uma oração relativa (“Que dormem a noite toda de olhos abertos”) e ainda uma oração parentética (“De tanto a Natureza atingi-los no coração”), antes de chegar à oração principal (“Então, as pessoas anseiam para fazer romarias”). Crystal (1995, p. 39) aponta para várias manipulações habilidosas da ordem normal das palavras que o autor explora para efeitos rítmicos, por exemplo, o verbo antes do sujeito em versos 11 (“So priketh hem nature...”) e 12 (“Than longan folkes to goon on pilgrimages”); no verso 2, o objeto (grifado) vem antes do verbo (“Whan Aprille... / The droght of March hath perced to the root”). Na linha 1, o adjetivo soote (“suaves”) é colocado depois do nome showres (“chuviscas”) e, na linha 6, o verbo auxiliar hath “tem” é precedido pelo particípio do verbo principal inspired (“respirado”, “respirou”). Outros recursos usados pelo poeta são a presença do prefixo y- no particípio yronne “corrido”, ou seja, ronne também era possível, e a inserção do adjetivo demonstrativo that “esse” entre a conjunção temporal whann “quando”, e o nome Aprille “Abril” na primeira linha, para manter o mesmo número de sílabas.

The Paston letters No século XV, no final da Idade Média, entre aproximadamente 1422 e 1509, os membros da família Paston mantiveram uma correspondência volumosa. Mais de mil cartas sobrevivem dos Paston, uma próspera família de fazendeiros, originários de uma aldeia do mesmo nome perto da cidade de Norwich, no condado de Norfolk. O advogado Geoffrey Somerton, cunhado de Clement Paston (d.

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1419), pagou os estudos de seu sobrinho, William Paston. William (1378-1444) foi um advogado muito bem-sucedido, sendo nomeado Justice of the Common Pleas (“juiz do tribunal para casos entre pessoas comuns”) em 1429, e casou-se com uma herdeira. William comprou muitas terras por Paston e o castelo de Gresham. Quando William Paston faleceu em 1444, ele deixou uma herança extensa e valiosa para seu filho primogênito, John, que também era advogado. John Paston passou muito tempo em Londres e deixava a administração de suas propriedades em Norfolk para sua esposa, Margaret. As numerosas cartas trocadas entre John, Margaret e seu filho mais velho, também chamado John, descrevem os tempos difíceis no início da Guerra das Rosas. A família foi envolvida em vários litígios com os poderosos duques de Norfolk e de Suffolk sobre questões relacionadas com as terras que John Paston tinha herdado em circunstâncias controversas de seu amigo e parente, o rico cavaleiro, Sir John Falstaff. John Paston era deputado parlamentar para o condado de Norfolk em 1460 e 1461 e tinha recebido o favor do rei Edward IV na acirrada disputa com os duques de Norfolk sobre o Castelo de Caister, ocupado por John Mobray, duque de Norfolk. O favor real não foi duradouro, pois John foi preso três vezes. Quando John Paston morreu em 1466, as controvérsias sobre seu direito às terras que tinha recebido de Sir John Falstaff continuaram. Seu filho maior, também John, foi feito cavaleiro ainda durante a vida do pai e frequentava a corte de Edward IV. No entanto, Sir John Paston e seu irmão mais novo (também chamado John!) lutaram para o partido lancastriano de Henry VI na batalha de Barnet em abril de 1471, antes da derrota decisiva dos seguidores de Henry VI na batalha de Tewkesbury em maio de 1471, em que Edward IV consolidou seu controle sobre o reino. O conflito com os duques de Norfolk sobre o Castelo de Caistor foi resolvido pela morte do quarto duque em 1476, mas, dois anos mais tarde, uma nova disputa eclodiu, dessa vez com John de la Pole, duque de Suffolk. Sir John Paston morreu sem filhos em 1479. Apesar da sua extravagância e um certo descuido com vendas para pagar dívidas e apaziguar seus rivais, ele legou um patrimônio considerável a seu irmão menor, John. Durante a vida do segundo John Paston, a correspondência entre os familiares diminui e deixou de ter tanto interesse histórico, embora a participação da família Paston continuasse na política regional e nacional em níveis menos elevados.

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Figura 2.29 Carta de Margaret Paston a John Paston, 19 de maio de 1448.8

8

“Meu caro marido, encomendo-me a você, e gostaria que você soubesse que, sexta-feira passada, antes do meio-dia, o vicário de Oxnead cantava a missa na igreja da nossa paróquia, e, no exato momento de elevar a hóstia, James Gloys, que estivera na cidade, voltava para casa pelo portão de Wyndham. E Wyndham estava na entrada, com seu criado, John Norwood ao seu lado, e seu outro criado, Thomas Hawes, estava na rua, perto da fossa. E James Gloys vinha vestido com seu chapéu, entre seus dois criados, como ele costumava. E quando Gloys chegou em frente de Wyndham, Wyndham lhe disse ‘Cobre tua cabeça!’, e Gloys replicou, ‘Eu farei exatamente isso mesmo no seu caso’. E quando Gloys tinha andado mais três ou quatro passos, Wyndham tirou seu punhal e disse, ‘Você vai, mesmo, moleque?’, e, com isso, Gloys se virou e desembainhou seu punhal e se defendeu, fugindo para a casa da minha mãe. E Wyndham e seu homem Hawes jogaram pedras e obrigou Gloys a se refugiar dentro da casa da minha mãe, e Hawes o seguiu para dentro da casa da minha mãe e jogou uma pedra do tamanho de um pão de quarto de um penny na sala contra Gloys, e, então, saiu correndo de novo. E Gloys o seguiu para fora e ficou do lado de fora do portão, e então Wyndham chamou Gloys de ‘ladrão’ e disse que tinha que morrer, e Gloys disse que ele mentiu e chamou-o de caipira, e disse para ele vir ele mesmo ou, se não ele, o melhor homem que tinha e Gloys lhe contestaria, um contra um. E, então, Hawes entrou correndo na casa de Wyndham e trouxe uma lança e uma espada, e deu a espada a seu patrão. E pelo barulho dessa briga e alvoroço, minha mãe e eu saímos da igreja no meio da comunhão, e eu disse a Gloys que entrasse na

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Fonte: Crystal (1995, p. 35).

A carta descreve a briga de vizinhos em linguagem com toda a vivacidade da oralidade. A estrutura das sentenças coordenadas por “e”, com pouca pontuação no original, reflete a ligação mais próxima entre a escrita e a fala. Podemos notar algumas características da variedade regional de Norfolk nas grafias.

casa da minha mãe novamente, e ele fez isso. E, então, Wyndham xingou a mim e à minha mãe de más putas e disse que os Paston e todos seus parentes eram [...]* disse que ele mentiu, como o moleque e caipira que ele era. E ele desabafou com um monte de palavrões, que você ouvirá depois, oralmente”. * O manuscrito está furado aqui.

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Exercícios de fixação 1. Quais eram os três partidos que reivindicavam o trono da Inglaterra no ano de 1066?

12. Quais fatores influenciaram a grafia do inglês durante a Idade Média?

2. Quem eram os normandos?

13. Quais são as principais diferenças entre o in-

3. O que é o Doomesday Book?

glês antigo e o inglês médio em termos do

4. Como o “império” angevino foi constituído? 5. Descreva a estrutura da sociedade feudal. 6. Qual foi o impacto da Peste Negra sobre o uso da língua inglesa?

sistema flexional? 14. Delineie as mudanças que afetaram o sistema pronominal. 15. Quais traços linguísticos e gráficos definem o

7. Qual foi o efeito da Guerra dos Cem Anos so-

dialeto escocês frente ao inglês setentrional?

bre a identidade inglesa em termos de língua?

16. O dialeto do sudoeste compartilha mais tra-

8. Quais áreas do léxico que foram mais atingidas por empréstimos franceses? 9. Quando a maior quantidade de empréstimos franceses entrou na língua, e por que isso ocorreu nesse momento histórico?

ços com qual outro dialeto regional? 17. Como podemos saber que Havelock the Dane foi escrito no dialeto centro-oriental? 18. A Crônica de Peterborough está escrita em inglês antigo tardio ou em inglês médio?

10. Quais outras línguas contribuíram com quan-

19. Quais variantes linguísticas Chaucer explorou

tidades significativas de empréstimos ao in-

para manter a métrica em seu “Prólogo” nos

glês medieval? 11. Como podemos distinguir empréstimos do francês normando dos que vieram do fran-

Contos de Canterbury? 20. Qual é o valor histórico da correspondência dos Paston?

cês central?

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Panorama Geoffrey Chaucer Não se sabe exatamente o ano em que Chaucer

Kent”), um dos deputados parlamentares para

nasceu, além de que tenha sido em meados da

aquele condado.

década de 1340. Filho de um comerciante de vi-

No entanto, Chaucer perdeu todos seus títulos e

nho londrino que tinha conexões com a corte.

cargos, provavelmente devido à instabilidade polí-

Em 1357, Geoffrey entrou como pajem no ser-

tica durante a minoria do jovem rei Richard II, e fi-

viço da esposa do Lionel, duque de Clarence,

cou endividado. Quando Richard II se tornou maior

irmão do rei Edward III, e, mais tarde, passou a

de idade em 1389, a sorte de Chaucer melhorou,

servir a família real. Foi soldado na campanha mi-

e ele foi nomeado Clerk of the King’s Works (“Fiscal

litar contra a França, onde foi capturado e liber-

das Obras Reais”). Entretanto, ele se demitiu do car-

tado depois de pagar um resgate. Por volta de

go em 1391 e aceitou a posição de deputy forester

1360, ele se casou com Philippa, filha de Sir John

(“vice couteiro”), responsável pelo couto de Pether-

Roet, ganhando conexões pela cunhada com o

ton, no condado de Somerset. Na prática, é pro-

partido de John of Gaunt, irmão do rei Edward

vável que ele tenha subcontratado alguém para

III e tio do rei Richard II. Chaucer soube explorar

administrar o dia a dia do couto com uma porcen-

seus laços familiares com a realeza. Até 1368, ele

tagem do estipêndio que recebia pelo cargo.

foi nomeado escudeiro real e participou em várias

Em 1399, Chaucer alugou uma casa nos jardins da

missões diplomáticas na Itália e na França na dé-

abadia de Westminster e morou lá até sua morte

cada de 1370. Em 1382, foi concedido o cargo de

em 1400. Ele foi enterrado dentro da abadia e o

Controller of the Petty Customs (“Fiscal da alfânde-

fato de que sua tumba ali estava fez que, posterior-

ga menor”) e, em 1386, ele foi nomeado Knight

mente, aquela parte da abadia fosse chamada de

of the Shire for Kent (“cavaleiro para o condado de

Poets’ Corner (“canto dos poetas”).

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Recapitulando

N

esta unidade, vimos o rompimento dra-

e o pastoreio alterou pouco, embora elas prestas-

mático com o passado anglo-saxônico

sem seu serviço e pagassem seus impostos a se-

que ocorreu no ano de 1066. A conquista

nhores que falavam outra língua. O inglês nunca

da Inglaterra por William, duque da Normandia,

deixou de ser a língua majoritária. O que mudou

e seus seguidores teve um impacto inimaginável

foi seu acesso ao prestígio sociocultural e o uso na

sobre o rumo político, cultural e linguístico dos in-

escrita, com algumas observáveis exceções, como

gleses. Quase da noite para o dia, a esmagadora

a Crônica de Peterborough e o Orrmulum.

maioria dos senhores feudais do reino fora subs-

O domínio pelos falantes de francês normando de

tituída por uma nova nobreza francófona. E ao

todas as posições de destaque social gerou uma

mesmo tempo, as principais autoridades religiosas

situação em que era interessante aos ingleses

do reino foram trocadas também por prelados

aprender francês, para melhorar suas chances de

normandos.

conseguir uma posição no séquito de algum se-

Os novos governadores e administradores da In-

nhor. Na mesma medida, o convívio intenso entre

glaterra não falavam inglês e, uma vez que con-

normandos e ingleses nas camadas médias da so-

seguiram segurar suas aquisições territoriais, seus

ciedade rapidamente produziam filhos bilíngues,

principais interesses políticos eram direcionados

embora a mais alta nobreza não soubesse inglês e

para o continente e, especificamente, para a Fran-

a grande massa da população não falasse francês.

ça. Além de um novo direcionamento, os conquis-

Vimos que o problemático reinado de Henry III,

tadores normandos conseguiram uma notável

desestabilizado por conflitos entre os nobres an-

concentração de poder. O estado anglo-saxônico

glo-normandos invejosos do favorecimento dos

já era razoavelmente coeso para um reino me-

parentes pictavinos e savoianos da família real, foi

dieval, e ficou ainda mais centralizado depois da

seguido pela estabilidade do reinado do Edward

conquista, especialmente em comparação com

I. As campanhas militares incessantes desse rei

a difusão de poder entre os magnatas franceses,

guerreiro contra galeses e escoceses e na França

muitos dos quais eram mais ricos e mais poderosos

ampliaram os domínios reais e fortaleceram a sen-

que o próprio rei, e cuja subjeção à coroa era mais

sação de unidade entre os nobres mais importan-

teórica que prática. Os grandes projetos de cons-

tes. E depois do reinado instável de Edward II, cujos

trução de castelos, catedrais e abadias, em con-

favoritismos desmedidos novamente provocaram

junção com os empreendimentos fiscais, como o

a ira dos magnatas à rebelião  – o que também

Doomesday Book, possibilitou aos reis da Inglaterra

contribuiu para a noção de uma identidade inglesa

uma boa renda na forma de impostos sobre terras

com seus próprios interesses, diferentes dos grupos

e produtos, porque conheciam as posses de seus

francófonos, continentais –, Edward III restaurou a

vassalos e controlavam o acesso ao poder.

política externa agressiva da Inglaterra para com

Por outro lado, pela imensa maioria das pessoas

a França e a Escócia. A crise na sucessão francesa

comuns na Inglaterra, a vida mudou relativamente

provocou a reivindicação de Edward III ao trono

pouco. Elas continuavam a viver em pequenas co-

francês e desencadeou um período de mais de um

munidades feudais rurais, onde o ritmo da lavoura

século de hostilidades intermitentes entre os dois

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reinos. O estado de guerra prolongado aprofundou

atingidas pelos empréstimos, nos quais a língua

a sensação de separação entre os ingleses e os fran-

francesa era especialmente utilizada.

ceses comuns, embora as duas nobrezas estives-

Outro aspecto da influência francesa sobre o inglês

sem muito ligadas, pela distribuição de suas posses

é a grafia, como foi apresentado. A tradição anglo-

feudais e por laços de parentesco, cultura e língua.

-saxã foi abandonada e os escribas introduziram

Foi precisamente durante esse período (século XIV)

novas abreviações e grafias retiradas da escrita da

que a maior quantidade de empréstimos lexicais

tradição francesa.

entravam na língua inglesa. A enxurrada de pala-

Você aprendeu também as principais mudanças

vras foi causada pelo crescente bilinguismo entre

que atingiram o sistema fônico do inglês, entre

a alta nobreza anglo-normanda. Cada vez mais

o inglês antigo e o inglês medieval (a apócope

pessoas entre as camadas médias da sociedade ti-

vocálica, as mudanças nos ditongos) e o impacto

nham de aprender o francês. Além disso, o dialeto

dessa evolução sobre o desenvolvimento das gra-

anglo-normando não era prestigioso entre as varie-

fias. Além disso, você investigou as mudanças que

dades francesas, devido à prevalência de dialetos

ocorreram no sistema gramatical da língua, com

centrais na corte em Paris. A influência do inglês no

a redução no número de flexões nos nomes e ad-

sotaque, no léxico e na gramática fez que os anglo-

jetivos, a troca dos pronomes pessoais da terceira

-normandos soassem provincianos em Paris e eram

pessoa (hi, heora, him), pelas formas escandinavas

alvo de piadas entre os franceses. Muitos nobres in-

(they, their, them), e a gradual redução nos paradig-

gleses enviavam seus filhos para estudar francês na

mas verbais.

França para aprender a variedade “correta”.

O quarto tema envolveu a grande diversidade de

Vimos como a Peste Negra foi outro fator relevan-

variedades linguísticas regionais faladas no país

te no declínio da língua francesa. A educação, que

durante a Idade Média. Devido à ausência de tipo

antes tinha de ser ministrada em francês, passou

de padrão, existem inúmeras variantes gráficas que

a ser dada em inglês. Então, entramos no período

refletem as diferentes pronúncias. Os dialetos são

inicial da Guerra das Rosas, com as campanhas dra-

divididos em cinco: sudoeste, sudeste, centro-oeste,

máticas de Henry V que o levaram praticamente ao

centro-leste e norte e escocês, cada um com suas

trono da França, se não tivesse morrido de disente-

especificidades lexicais, fônicas, gramaticais e grá-

ria. Foi durante esse segundo período de guerras

ficas, apesar de certa sobreposição, especialmente

que a língua inglesa começou a aparecer em obras

entre os dialetos do escocês e do norte da Inglater-

literárias para o consumo da corte real, como em

ra, e os do sudoeste e do centro-oeste, permitindo

Piers Plowman de John Langland, a poesia de John

assim que possamos identificá-los. Cada grupo dia-

Gower e as brilhantes obras de Geoffrey Chaucer.

letal é representado por uma breve passagem de

No segundo tema, tratamos das mudanças inter-

algum texto conhecido e exemplar.

nas sofridas pelo inglês entre a conquista norman-

No último tema foram apresentadas quatro impor-

da e o fim da Guerra das Rosas. Você estudou as

tantes obras medievais: a Crônica de Peterborough,

diferentes fontes da enorme quantidade de vocá-

o romance de cavalaria arturiano Sir Gawain and

bulos que o inglês tomou emprestado do francês

the Green Knight, The Canterbury Tales de Chaucer,

normando e do francês central, e as características

e a correspondência dos Paston.

fônicas que distinguem suas origens. Além dis-

Cada texto corresponde a um período histórico:

so, você aprendeu as diversas áreas semânticas

escrita nas décadas depois da Conquista, a Crônica

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fica na fronteira entre a tradição da Crônica Anglo-

século XIV para XV, quando o inglês retoma seu

-Saxônica do inglês antigo tardio padrão de Wes-

lugar no centro da vida cultural da elite inglesa

sex e as inovações regionais medievais. Sir Gawain

pela primeira vez desde 1066. As cartas da famí-

representa a cultura cavalheiresca dos séculos XIII

lia Paston espelham as preocupações cotidianas

e XIV, em que elementos mitológicos e lendários

da nobreza menor durante os anos turbulentos

se misturam com a tradição do amor cortês com

em meados do século XV, quando a fraqueza real

as aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda. A

permitia todo tipo de bandidagem e as pessoas

versatilidade do gênio de Chaucer representa a

precisavam negociar o caminho difícil entre as

exuberância das cortes nobres e reais na virada do

facções políticas.

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unidade

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O inglês pré-moderno Objetivos de aprendizagem Conhecer a história externa dos países de língua inglesa no período depois da Guerra das Rosas na Inglaterra, quando a dinastia Plantageneta foi substituída pela dinastia Tudor. Examinar as mudanças sociais significativas que a Inglaterra e a Escócia viveram durante a Reforma Protestante durante os reinados de Henry VIII, Edward VI e Mary I da Inglaterra. Investigar a consolidação do protestantismo anglicano sob o reinado de Elizabeth I e traçar as divisões religiosas na Escócia durante o mesmo período. Estudar a união das coroas da Inglaterra e da Escócia na pessoa de James I (VI da Escócia) e a fundação da dinastia Stuart na Inglaterra. Compreender as tensões religiosas entre a Igreja Anglicana e os “puritanos” calvinistas que levaram à Guerra Civil Inglesa entre o rei Charles I e o Parlamento, a derrota e a execução do rei, e os anos da república sob a liderança de Oliver Cromwell. Notar as características da sociedade da Restauração da monarquia sob Charles II e as preocupações entre a classe governante com seu irmão católico James II como herdeiro, que conduziram à “Gloriosa Revolução”, em que James II foi deposto e o príncipe protestante holandês William, duque de Orange, e Mary, filha de James II, foram instalados no trono. Aprender acerca das principais mudanças que atingiram a língua inglesa durante o período pré-moderno nas áreas da fonética e fonologia, tal como a grande mutação vocálica. Assimilar as mudanças que ocorreram na morfossintaxe da língua, como a obsolescência do pronome pessoal da segunda pessoa do singular, thou, e sua substituição pela forma do plural, you. Indagar sobre as alterações na sintaxe das sentenças em inglês, com o crescente uso de do como verbo auxiliar em perguntas, negativas e afirmações.

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Investigar as controvérsias que envolveram o crescimento exponencial sem precedentes do vocabulário com derivações internas e empréstimos de línguas estrangeiras. Observar o desenvolvimento de uma norma ortográfica mais fixa entre os letrados e os debates que travaram sobre a melhor maneira de representar a língua na escrita. Pesquisar as controvérsias sobre as propostas de estabelecer uma academia para reger a língua inglesa e a produção dos primeiros dicionários e gramáticas para o idioma. Analisar os três grandes monumentos linguísticos do período pré-moderno: o teatro de William Shakespeare, a Bíblia “Autorizada” e o dicionário de Dr. Johnson. Examinar as obras de alguns dos principais escritores pré-modernos, como Ben Jonson, John Donne e os poetas metafísicos, os grandes panfleteiros satíricos, John Milton, Daniel Defoe e Jonathan Swift.

Temas 1 – História externa: a Renascença, a Reforma, a Guerra Civil Inglesa, a Restauração da monarquia e a “Revolução Gloriosa” O primeiro tema desta unidade apresenta uma visão panorâmica dos principais acontecimentos na história externa das regiões de língua inglesa (essencialmente a Inglaterra e o sudeste da Escócia) durante o período entre o fim da Guerra das Rosas na Inglaterra, que marca o surgimento da dinastia Tudor, em 1485, e o fim da dinastia Stuart em 1688. Um momento de enormes mudanças sociais e culturais para os falantes do inglês. No campo da cultura, houve a Reforma Protestante, que separou os dois países da Igreja Católica Medieval. Na Inglaterra, a Igreja Anglicana, mais conservadora, que ainda preservou muitos elementos do catolicismo, e os grupos mais radicais, que procuravam romper de maneira mais definitiva com a Igreja Romana. Na Escócia, a denominação predominante foi o presbiterianismo. Na Irlanda, oficialmente sob o domínio da Inglaterra desde os tempos de Henry II, a Reforma Religiosa

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O inglês pré-moderno

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não teve muito êxito e a maior parte da população permaneceu católica. No entanto, durante todo o período pré-moderno, havia uma política de assentamento de protestantes na Irlanda para aumentar essa população desde o reinado de Elizabeth I. Essas divisões religiosas impulsionaram numerosos conflitos entre diferentes grupos e causaram instabilidade política crônica. Ocasionando um profundo impacto em questões linguísticas, o movimento protestante levou à tradução da Bíblia das línguas clássicas (latim, grego e hebraico) para o vernáculo. Tais traduções serviram como modelos estilísticos para quem quisesse escrever em inglês. Simultaneamente, ocorreu uma explosão na produção de textos literários escritos em inglês para o consumo geral, por exemplo, peças de teatro. O novo interesse nas línguas da Antiguidade clássica que surgiu durante a Renascença também estimulava a produção de livros sobre temas eruditos, como a filosofia, direito, história e teologia, e traduções de obras clássicas para o inglês. A importância de outras línguas europeias como veículos de transmissão das ideias renascentistas, como italiano, espanhol e francês (que ainda era a grande língua vulgar internacional), levou o inglês a uma onda de empréstimos lexicais, gerando polêmicas sobre o valor de enriquecimento do vocabulário com tais palavras e se não seria melhor adotar ou derivar termos com origens nativas. Os modelos externos também eram influentes no que diz respeito ao desejo de fixar a língua em gramáticas e dicionários, que começaram a aparecer em quantidades crescentes durante o período. 2 – História interna: mudanças estruturais O período pré-moderno é relevante por ter sido nesse recorte cronológico que a língua inglesa começou a perder os traços que associamos com a Idade Média, parecendo assim mais familiar. As mudanças no sistema fonético e fonológico, como a grande mutação vocálica, gradualmente rearranjaram os contrastes fônicos em uma distribuição mais reconhecível. Ao mesmo tempo, na morfossintaxe, o sistema pronominal se alinhava com as distinções modernas com a perda de thou (2a p. sing.), primeiro a favor de ye (2a p. pl. do caso sujeito) e finalmente de you (originalmente 2a p. pl. oblíquo). Houve várias

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mudanças na ordem das palavras que tornaram a língua mais próxima da variadade moderna. 3 – Ortografia, gramáticas e dicionários O período pré-moderno também foi o momento em que o desejo de regulamentar a língua começou a se manifestar. Especialmente após a grande variabilidade da Idade Média e o influxo de uma quantidade enorme de expressões emprestadas de outras línguas; muitos letrados, ao registrarem o que acontecia em outros países, por exemplo, o estabelecimento de academias na França e na Itália, ambas grandes fontes erradiadoras de inovações, pensavam que a língua inglesa se beneficiaria de uma organização parecida. Apesar da ideia de uma academia não ter vingado para o inglês, outras questões foram muito debatidas, como a normalização da ortografia, a produção de gramáticas e dicionários para registrar a língua e, em teoria, pelo menos, fixá-la em certa medida. A maturação das ideias sobre tais aspectos da língua será tratada ao longo do tema. 4 – Textos pré-modernos Por fim, abordamos a produção em língua inglesa durante o período pré-moderno. Apresentamos os dois pilares da literatura daquele período, isto é, o teatro de Shakespeare e a tradução “autorizada” da Bíblia, que constituem os alicerces do cânone literário do inglês. Além disso, oferecemos uma seleção de outros escritores importantes em cada divisão do período pré-moderno, outros dramaturgos e poetas importantes da época elizabetana; alguns representantes dos movimentos literários dos anos jacobinos e os gigantes do mundo das letras dos tempos da Guerra Civil Inglesa e da Restauração da Monarquia.

Introdução Nesta unidade, você estudará o período de transição que os historiadores da língua inglesa costumam identificar entre a Idade Média e a Idade Moderna: a época pré-moderna. Você examinará a história das duas dinastias do período pré-moderno, a Tudor (na Inglaterra) e a Stuart (tanto na Escócia ancestral, como na Inglaterra, depois da união das coroas em 1604). Você aprenderá sobre as ações no campo social,

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cultural e político que moldaram a língua inglesa de diferentes maneiras, pela introdução de novas ideias e tecnologias, por contato com diferentes línguas, pela criação ou adoção de novos modelos estilísticos, pela reação de novas necessidades sentidas entre os falantes. Na sequência, você pesquisará as mudanças nos diferentes componentes da língua: o léxico e os sistemas fônico e morfossintático, conduzindo a língua inglesa mais próxima à situação atual. Essas mudanças estruturais tiveram um impacto sensível em questões de representação escrita e nas tentativas de descrever e codificar a língua realizadas por contemporâneos com crescentes níveis de sofisticação. Finalmente, você conhecerá aspectos biográficos e elementos das obras mais relevantes de alguns personagens de destaque em cada um dos subperíodos apresentados.

História externa: a Renascença, a Reforma, a Guerra Civil Inglesa, a Restauração da monarquia e a “Revolução Gloriosa” O termo Renascença refere-se a um movimento cultural que teve início na Itália durante o século XIV. Seus adeptos pregavam um retorno aos valores pessoais e civilizatórios da Antiguidade greco-romana. Uma contribuição importante a essa nova visão humanista veio dos imigrantes gregos que se estabeleceram nos principados e cidades-estados italianos, fugindo da conquista definitiva do Império Bizantino pelos turcos sob o sétimo sultão otomano, Mehmet, o Conquistador. Em 1453, Bizâncio (atual Istambul), a capital do Império Romano oriental, foi capturada, encerrando mais de mil e quinhentos anos de história romana, desde a divisão do Império Romano em duas metades, ocidental, com a capital em Roma (até 476 d.C.), e oriental, com a capital em Constantinopla ou Bizâncio (o Império Bizantino). Radicando-se em cidades como Florença, Gênova, Veneza, Milão, Bolonha e Roma, vários intelectuais bizantinos ocuparam-se de ensinar e difundir língua, literatura, história, cultura e filosofia grega para os italianos medievais. Os imigrantes gregos trouxeram manuscritos antigos que não eram conhecidos pelos estudiosos medievais no Ocidente, que já viviam um período de grande inovação e criatividade desde o século XIII, provocado

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pelo estudo de textos antigos sobre matemática, ciência natural e filosofia, recuperados por meio de traduções de tratados árabes feitas na Península Ibérica e na Sicília. A fase inicial “latina” da Renascença no século XIV foi baseada em Florença. Estudiosos como Francesco Petrarca, Coluccio Salutati, Niccolò Niccoli e Poggio Bracciolini vasculharam as bibliotecas em busca de manuscritos de Cícero, Lucrécio, Tito Lívio e Sêneca, com o intuito de recuperar o conhecimento perdido da Antiguidade. Esse período é conhecido pelas obras literárias de Dante Alighieri, Petrarca e Boccaccio, os quadros de Giotto, as esculturas de Donatello, os diversos feitos dos polímatas Lorenzo Ghilberti e Filippo Brunelleschi e pelo gênio Leonardo da Vinci. O patrocínio dos duques de Milão, como Lorenzo de’ Medici e seus herdeiros, para artistas e estudiosos, com o objetivo de aumentar ainda mais o prestígio da família governante, estimulava uma concorrência intensa entre as cortes dos príncipes italianos. Cada um procurava atrair e manter uma seleção das mais brilhantes mentes e mãos sob seu patrocínio. A segunda fase da Renascença envolve o reencontro com a cultura da Grécia Antiga. A transferência da mais sofisticada cultura bizantina para o contexto dinâmico da Itália tardo-medieval provocou uma verdadeira revolução cultural cuja influência ultrapassava as fronteiras da Península Itálica e transformava o tecido sociocultural da Europa. As ideias renascentistas tiveram um impacto imenso na literatura, arquitetura, nas artes plásticas, música, filosofia e nas ciências. À base do programa renascentista estava o estudo dos autores clássicos com ênfase nos aspectos ditos “humanos” (literatura, história, oratória) e uma nova valorização do ser humano como “a medida de todas as coisas”. O currículo dos estudos humanos incluía cinco áreas principais: poética, gramática, história, retórica e filosofia moral. Na esfera pessoal, o modelo era o “homem universal”, um exemplo da excelência mental, física e espiritual, aperfeiçoado pela riquíssima formação humanista da Antiguidade e sublimado pela religião cristã. O manifesto do plano para formar esse ser magnífico foi apresentado por Giovanni Pico della Mirandola em seu livro De hominis dignitate (Discurso sobre a dignidade do homem) de 1486. A transmissão das ideias renascentistas da Itália para o norte da Europa foi catalisada pela corte dos duques da Borgonha, senhores

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de um grande território fragmentado entre senhorias dispersas que se estendia ao longo da fronteira da atual França e Alemanha. A proximidade com o norte da Itália permitia a passagem fácil de pessoas, textos e ideias para Borgonha, especialmente para as regiões dos Países Baixos, onde havia relações de comércio muito fortes com as ricas cidades flamengas de Bruges, Gante e Bruxelas, as sedes preferidas da corte ducal. Foi nesses lugares que os princípios da Renascença começavam a se divulgar pelo norte da Europa. Áreas afetadas precocemente foram a pintura, por exemplo, Pieter Bruegel, o Velho, Albrecht Dürer, Hieronymus Bosch, Jan Gossaert, Jan van Eyck, Hans Holbein, o Velho, e a música polifônica da escola flamenga. Na Inglaterra, a Renascença veio tardiamente. O surgimento de elementos renascentistas inicia-se apenas por volta da década de 1520, no reinado de Henry VIII. A literatura vernácula, em vez de escrita em latim ou francês, outro aspecto importante da Renascença italiana, já tinha seu correlato na Inglaterra, onde uma vigorosa tradição de literatura vernácula existia desde os tempos de Geoffrey Chaucer, William Langland, John Lydgate, John Gower e Thomas Hoccleve. A principal contribuição das ideias renascentistas foi na área da música (Thomas Tallis e Thomas Morley), no pensamento filosófico e religioso (via seguidores de Erasmo de Roterdã) e na adoção de modelos poéticos, como o soneto. Nas artes visuais, as cortes dos monarcas da dinastia Tudor tendiam a trazer pintores e escultores estrangeiros, como os Holbein, embora, pelo final do século XVI, alguns artistas plásticos, como Nicholas Hilliard e Isaac Oliver, produzissem obras-primas.

Henry VII A vitória de Henry Tudor (n. 1457-m. 1509) e seus seguidores sobre o partido de Richard III na Batalha de Bosworth Field em 1485 é tida como o evento que marca o encerramento da Idade Média nas Ilhas Britânicas e abre a fase renascentista do período pré-moderno. Embora o novo rei fosse da linhagem de Lancaster, ele tomou medidas para reduzir sua associação com uma das facções que tinha disputado a Guerra das Rosas. Henry VII casou-se com Elizabeth de York, filha de Edward IV e sobrinha de seu rival, Richard III (veja Unidade 2). Esse matrimônio deu a reivindicação de seus descendentes ao trono inglês pelos dois lados rivais da estirpe Plantageneta. No entanto, Henry VII tomou estrategicamente

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a sábia decisão de adotar seu próprio nome dinástico, Tudor, por seu pai, Edmund Tudor, o primeiro earl de Richmond, e não continuar com as provocativas denominações ancestrais. A principal preocupação de Henry VII era restaurar a autoridade e as finanças reais, que tinham diminuído muito durante os longos anos de conflito. Com esse fim, ele procurava limitar o poder das famílias nobres importantes, a não ser que apoiassem o regime. Suas políticas para a nobreza e a economia eram interligadas. Por exemplo, George Neville, Lorde Burgavenny, foi condenado, em 1507, por manter um exército privado, pelo qual foi multado em cinco libras por homem a cada mês. O lorde Neville se confessou culpado (era mais barato assim) e pagou uma multa de £70.650 (aproximadamente um milhão de libras modernas) pelos 471 homens que ele contratara durante trinta meses (GUY, 1984, p. 235). Foi por medidas como essa que Henry VII conseguiu restringir a capacidade militar de seus vassalos mais poderosos e encher os cofres da coroa. A política de Henry VII valorizava lealdade ao monarca, bom serviço, esperteza e habilidade, independentemente de sua origem social. O objetivo era recrutar apoio por cima das facções nobres pelo uso judicioso do patronato real, concedendo títulos, terras, cargos, pensões e anuidades. Quem parecia ameaçar o status quo era coibido por processos, penalidades financeiras e, nos casos mais graves, por attainder (confisco de bens, títulos e direitos) por traição, geralmente com condenação à execução. Cada recurso legal e tributário era explorado ao máximo para minimizar gastos e maximizar os retornos. Alguns métodos adotados eram moralmente duvidosos, como a extorsão de cartas de fiança de eventuais opositores políticos para garantia de boa conduta e a venda de cargos no judiciário e na administração. A administração do reino foi realizada principalmente pelo Conselho Real, composto, em teoria, por todos os nobres do reino. Esse conselho era distinto do Parlamento, em que os religiosos, as cidades e as regiões também participavam, sendo consultado para outorgar impostos. Do conselho maior, um pequeno grupo foi selecionado para formar a Court of the Star Chamber (“Corte da Câmara Estrelada”), nomeada pelo desenho do céu noturno pintado no teto da sala onde os conselheiros se reuniam no Palácio de Westminster. A Corte da Câmara Estrelada era dominada pelos Privy Councillors (“conselheiros privados”) do rei e tinha

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a competência para julgar casos contra indivíduos tão poderosos que os tribunais comuns não conseguiriam condenar. A Corte também servia para debater leis que seriam passadas por decreto real, sem a necessidade da demorada e enfadonha consulta aos conselhos maiores. Desse modo, a administração real conseguia se tornar mais eficiente, embora deixasse de ser tão representativa, sendo controlada na prática pelo rei e seu pequeno círculo de conselheiros favorecidos, o que aumentou a possibilidade de abuso de suas competências com julgamentos arbitrários e subjetivos contra seus rivais, que ocorreu mais tarde. Se a política interna de Henry VII buscava sobretudo estabilidade, eficiência e probidade financeira, sua política externa valorizava relações pacíficas, e vantajosas, com os reinos vizinhos. Com esse fim, seu governo assinou o Tratado de Paz Perpétua com a Escócia em 1502 (a primeira entre os dois países em 200 anos), em uma tentativa de romper a Auld Alliance (“aliança antiga”) entre os escoceses e os franceses – um pacto de ajuda mútua assinado por John Balliol da Escócia e Philippe VI da França em 1295 contra as políticas agressivas de Edward I da Inglaterra –, que sempre ameaçava a Inglaterra com uma guerra em duas fronteiras. Conforme os termos do acordo, a princesa Margaret Tudor casou-se com James IV da Escócia, criando o vínculo sanguíneo entre as famílias reais, o que levou James VI da Escócia a herdar o trono inglês como James I, quando Elizabeth I morreu sem filhos, em 1603. Henry também concluiu o Tratado de Medina del Campo em 1489, com a Espanha, recém-constituída da união dos reinos de Castela e Aragão, em que seu filho maior, Arthur, se casaria com a infanta Catarina de Aragão, filha dos “reis católicos”, Fernando de Aragão e Isabela de Castela, e os dois países se apoiariam contra a França e combinariam a redução de tarifas sobre o comércio de certos produtos. No Tratado de Étaples de 1492, concluído com a França depois de uma intervenção militar inglesa na Bretanha, Charles VII da França concordou em tirar seu apoio ao pretendente Perkin Warbeck, que se dizia Richard de Shrewsbury, duque de York, o filho menor de Edward IV, e procurava ajuda financeira e militar nas cortes continentais para montar uma invasão à Inglaterra. A França também pagou uma indenização à Inglaterra, em troca de os ingleses deixarem de interferir na região semi-independente da Bretanha, a qual os franceses queriam dominar.

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Em resumo, o reinado de Henry VII foi bem-sucedido, embora o monarca nunca tenha sido um rei querido. No final da sua vida, a eficácia e autonomia do tribunal da Câmara Estrelada eram usadas para extorquir dinheiro da nobreza por meio do sistema de fianças por boa conduta, sob ameaças de attainder. Por outro lado, o rei conseguiu evitar conflitos externos, fechando alianças proveitosas com os principais poderes europeus, e defendeu os interesses comerciais ingleses, por exemplo, promovendo a produção e venda de lã para os centros de produção têxtil nos Países Baixos. Henry também enriqueceu bastante atuando pessoalmente no comércio de alume, produto químico importante para fixar tintura nos tecidos. O rei importava alume do Império Otomano para revender em Flandres, quebrando o monopólio sobre a pedra-ume exercitado pelo papa, em cujo domínio estava a única mina de pedra-ume na Europa. Internamente, seu governo restringiu vigorosamente qualquer indicação de oposição entre os magnatas regionais, sendo entretanto via canais judiciais, sem recorrer à violência aberta. O reforço do sistema de tribunais no nível do condado com a participação ativa dos justices of the peace (“juízes da paz”), escolhidos entre a pequena nobreza, na manutenção da ordem localmente contribuía bastante com a redução de instabilidade e a implementação eficaz de medidas governamentais. Sua política de tributação intensa às vezes conseguia concessões por pretextos falsos, por exemplo, convencendo o Parlamento a votar-lhe subsídios, supostamente para financiar campanhas militares contra a França ou a Escócia que nunca foram realizadas. Em conjunto com a aplicação de multas e confiscos e a venda descarada de privilégios e títulos, os impostos encheram a tesouraria real.

Henry VIII Com a morte de Henry VII em 1509, seu segundo filho, também chamado Henry, herdou o trono. Arthur tinha morrido em 1502, apenas alguns meses depois de seu casamento com Catarina de Aragão. Embora ele não tivesse gostado inicialmente da ideia de se casar com a viúva de seu irmão, quando seu pai propôs a união, logo depois da sua coroação, Henry VIII declarou que eles se casariam. Em seguida, ele prendeu os dois principais ministros de seu pai, Sir Richard Empson e Richard Dudley, detestados por seu papel nas políticas de extorsão praticadas pelo governo contra os nobres que

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eles acreditavam não apoiar o rei suficientemente. Os dois ex-ministros foram executados em 1510, após condenação por traição. Henry VIII não foi educado para reinar. É provável que Henry VII tenha imaginado uma carreira eclesiástica para seu segundo filho. De qualquer maneira, ele recebeu uma excelente formação renascentista, sendo fluente em latim e francês e provavelmente sabia italiano. Além disso, ele era um músico talentoso e compositor ocasional; até escreveu alguns tratados teológicos. Adicionalmente, Henry era alto para a época (ele media mais de 1,80 m), bonito, forte e ativo, gostava de caçar e de lutar em torneios, sendo especialmente habilidoso na justa. Henry VIII rompeu com as políticas externas cautelosas e a probidade financeira do seu pai. Sonhando com a conquista do trono da França, ele se envolveu ativamente nos conflitos entre os grandes poderes continentais. Em 1513, em uma aliança com o imperador sacro romano e Fernando de Aragão, rei da Espanha, Henry invadiu a França pessoalmente e conquistou algumas cidades. Como costumava ocorrer em guerras entre a Inglaterra e a França, a Escócia reagiu, invadindo o norte da Inglaterra para auxiliar seu aliado. Contudo, na Batalha de Flodden, o exército escocês foi derrotado completamente e o rei James IV, morto. Henry mantinha uma rivalidade pessoal com Francisco I da França e com Felipe V de Habsburgo, rei da Espanha e imperador sacro romano. A maior preocupação de Henry VIII era evitar que o reino re­ caísse em guerra civil que ele temia acontecer se ele não conseguisse garantir a sucessão da dinastia Tudor com um herdeiro homem. Depois de vários bebês que nasceram mortos ou sobreviveram pouco tempo, a rainha deu à luz uma menina, Mary, em 1516. Em 1519, a amante do rei, Elizabeth Blount, teve um filho, que foi chamado Henry FitzRoy. O rei reconheceu seu filho ilegítimo e há motivos para acreditar que ele estava planejando declará-lo seu sucessor oficial quando o jovem Henry faleceu de febre em 1536. Preocupado novamente com o legado dinástico, Henry chegou à conclusão de que seu casamento com Catarina de Aragão, a viúva de seu irmão, não era justificado por motivos religiosos e, portanto, estava malquisto por Deus. Por conseguinte, o rei procurava dissolver a união ante o papa. Este, contudo, o único que podia conceder-lhe o divórcio, estava sob forte pressão do imperador sacro romano, Felipe V da Espanha, sobrinho da rainha, para não ceder aos argumentos do rei da Inglaterra contra sua tia.

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Desesperado com o futuro da sua linhagem e obcecado por Anne Boleyn, uma das damas da rainha, Henry VIII escolheu o caminho radical para resolver seus problemas, adotando a doutrina de Martinho Lutero para se declarar chefe supremo da Igreja na Inglaterra. Por meio desses novos poderes, Henry se deu o divórcio tão desejado e casou-se com Anne em 1532. O fracasso das negociações em conseguir o divórcio real provocou a queda política do cardeal Wolsey, o mais poderoso ministro de Henry, que havia dirigido o governo desde o início do reinado de Henry. Wolsey morreu poucos meses depois. A recusa de reconhecer Henry como o líder supremo da Igreja custou a vida a Sir Thomas More, o Lorde Chanceler, que havia assumido a liderança do governo após a desgraça de Wolsey. Assim, as políticas seculares e religiosos da Reforma Protestante na Inglaterra eram implementadas por Thomas Cromwell e o arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer. A Lei da Sucessão, em 1533, declarou a princesa Mary ilegítima e nomeou qualquer filho de Henry e Anne herdeiro ao trono. No mesmo ano, Anne Boleyn foi coroada rainha e nasceu uma filha, Elizabeth. Henry estava decepcionado que não era um filho homem. Em 1534, as Leis da Supremacia fizeram Henry o chefe supremo da Igreja na Inglaterra. Qualquer oposição aos novos poderes reais era reprimida com violência. Protestos resultaram em várias execuções por suspeita de traição, como os monges cartuxos, o bispo de Rochester e Sir Thomas More. Em 1536, um levantamento em Lincolnshire e a “Peregrinação da Graça”, um levantamento de cerca de vinte a quarenta mil pessoas de Yorkshire, no norte da Inglaterra, protestaram contra o divórcio da rainha Catarina, o casamento com Anne Boleyn (suspeita por ser do sul e dita simpatizante com o protestantismo), a situação econômica ruim (a colheita foi mal) e modificações nos rituais litúrgicos. Henry prometeu perdoar os revoltados e agradeceu-lhes por ter-lhe informado de suas dificuldades e preocupações, em seguida, quando houve uma briga durante o retorno dos “peregrinos”, Henry mandou prender os líderes e executou-os, com mais duzentos outros por traição. Um aspecto importante da Reforma foi a “dissolução dos mosteiros”, entre 1536 e 1540, o fechamento de todas as instituições monásticas, o confisco de seus imensos latifúndios e bens materiais, que foram vendidos ou leiloados para arrecadar dinheiro à

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coroa. Esses recursos eram necessários para repor as finanças reais, em apuros desde as campanhas francesas. Outros atos políticos relevantes no período são Laws in Wales Act (“Decreto sobre as leis em Gales”) em 1535 e em 1542, pelo qual os sistemas administrativo e judicial do principado de Gales foram uniformizados e harmonizados com o sistema inglês, integrando as duas nações, de maneira que aboliu o sistema legal e as unidades territoriais tradicionais, e obrigou os galeses a usar a língua inglesa no Direito e outros atos oficiais. Por um lado, a pequena nobreza galesa não reclamou das mudanças, porque ela percebia que as medidas lhe davam igualdade com os ingleses perante a lei. Um aspecto muito relevante da unificação foi a instauração das condições para favorecer o crescimento de uma classe governante anglófona em Gales. Muito mais tarde, porém, os galeses chegaram a considerar que o custo que pagaram por essa igualdade política e jurídica foi muito alto, já que eles tinham sido obrigados a abrir mão de grande parte de sua identidade e tradições. Outra legislação importante foi a Lei da Coroa da Irlanda, de 1542, um ato do Parlamento irlandês que converteu Henry VIII e seus descendentes em reis da Irlanda. O rei da Inglaterra era nominalmente o “Senhor da Irlanda”, desde os tempos de Henry II, mas o controle político era exercido na prática pelos lordes irlandeses nativos ou pelas famílias anglo-normandas que receberam senhorios feudais. O território controlado pela coroa inglesa era uma faixa ao redor da cidade de Dublin chamada The Pale (literalmente, “A pala”). A fama de Henry VIII, além do rompimento religioso com a Igreja Romana, deveu-se a seus seis casamentos. Após conceder-se um divórcio do primeiro matrimônio com Catarina de Aragão e casar-se com Anne Boleyn, a felicidade do rei não durou. O casal real brigou com frequência e Henry pareceu ter julgado que a falta de um filho, além da princesa Elizabeth, apesar de algum aborto espontâneo, era uma traição pessoal da rainha. Em 1536, o rei sofreu uma queda muito grave durante um torneio e ficou desacordado por dois dias. Quando Anne ouviu a notícia, ela sofreu um aborto de um menino. Henry arrumou uma nova amante, Jane Seymour, e tramou livrar-se de Anne. O apoio dos membros da família Boleyn que atuavam no Conselho Privado para uma aliança com a França os posicionou contra o poderoso ministro Thomas Cromwell, que favorecia uma aproximação

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com o Império Sacro Romano. A inclinação do rei à proposta de Cromwell enfraquecia a posição dos Boleyn e levava seus rivais na corte a trabalhar para a execução de Anne, em lugar de conseguir uma segunda anulação. Em maio de 1536, George Boleyn, o irmão de Anne, e mais cinco homens foram presos, acusados de adultério traiçoeiro por ter relações com a rainha. Anne também foi presa, acusada de adultério traiçoeiro e incesto. As acusações eram fraquíssimas, mas todos foram condenados à morte. Em 17 de maio, os homens foram executados e, em 19 de maio, Anne também foi morta. Um dia depois, Henry VIII noivou com Jane Seymour, casando-se com ela dez dias mais tarde. Em 12 de outubro de 1537, nasceu o tão desejado filho, Edward, mas o parto foi muito difícil e Jane Seymour faleceu de complicações pós-natais em 24 de outubro. Cromwell, agora earl de Essex, tratou de encontrar uma nova esposa para o rei entre a nobreza continental e propôs Anne de Cleves, irmã do duque de Cleves, um principado que ocupava regiões na atual Holanda e Alemanha. O motivo político para o casamento, celebrado em 1539, foi a procura de um aliado contra um eventual ataque de algum país católico (França ou Espanha). No entanto, depois de apenas seis meses, Henry já tinha cansado da sua esposa alemã e arranjou mais um divórcio, alegando irregularidades nas negociações, já que Anne tinha sido noiva do filho do duque de Lorena, além do fato de que o casamento nunca foi consumado. Anne de Cleves não protestou e recebeu uma boa pensão. Ficou evidente que Henry estava enfatuado com a sobrinha do duque de Norfolk, Catherine Howard, de apenas 17 anos. As repercussões políticas para o todo-poderoso Thomas Cromwell eram graves, porque o tio da nova amante do rei era um de seus mais ferrenhos inimigos. A prisão e condenação à fogueira de três reformadores protestantes favorecidos de Cromwell por heresia tornou sua posição precária. Finalmente, Cromwell foi acusado de traição, pela venda ilegal de licença de exportação e concessão indevida de passaportes e cargos comissionados. Condenado, seus títulos e posses foram confiscados e ele foi executado em 28 de julho de 1540, o mesmo dia em que Henry se casou pela quinta vez, com Catherine Howard. Embora o rei estivesse encantado com sua jovem rainha, o casamento não durou. Catherine teve um caso com um jovem nobre,

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Thomas Culpeper, e mantinha como secretário Francis Dereham, com quem ela teve um namoro quando eram extraoficialmente noivos, antes de se casar com Henry. Quando a corte soube do antigo caso da rainha com Dereham, o rei não estava e o arcebispo de Canterbury foi encarregado de investigar. Ao confirmar a veracidade da acusação, o rei não quis acreditar e somente aceitou os fatos após saber da confissão de Dereham. Curiosamente, Catherine não mencionou o noivado para se defender das acusações de adultério, já que o contrato anterior teria invalidado seu casamento com Henry. Em lugar disso, ela insistiu que Dereham a tinha forçado a ter uma relação adúltera com ele. Dereham revelou o caso de Catherine com Culpeper e os três foram executados em 1542. O sexto e último casamento de Henry VIII foi com Catherine Parr, uma viúva nobre e rica, que já havia se tornado viúva três vezes. Ela conseguiu aproximar o rei a suas duas filhas, Mary e Elizabeth, e conseguiu que ele as incluísse na sucessão, depois do seu irmão menor, Eduardo, Príncipe de Gales. Reformadora religiosa favorável ao protestantismo, Catherine Parr discutia com seu marido sobre questões relacionadas ao clero, embora, quando os inimigos dela tentaram conseguir sua condenação por heresia, ela respondeu dizendo que o objetivo dos argumentos era sempre distrair o rei das fortes dores que sofria devido a uma lesão ulcerada na perna provocada por um acidente em uma justa. No final da sua vida, Henry engordou muito, medindo 1,40 m pela cintura. Ele sofreu um enfraquecimento muscular, o que o fez ser levantado e transportado por máquinas. Ele também sofria distúrbios de personalidade incluindo paranoia e depressão, agravadas pela dor da perna, erupções cutâneas causadas por furúnculos dolorosos cheios de pus, além de gota. Ele morreu com 55 anos, em 28 de janeiro de 1547. Sua sexta esposa, Catherine Parr, chegou a se casar novamente. Ela teve um papel ativo na formação dos três filhos de Henry e influenciou o protestantismo defendido por Edward VI e Elizabeth I.

Edward VI O terceiro filho de Henry VIII com sua terceira esposa, Jane Seymour, Edward VI (1537-1553), tinha apenas nove anos de idade quando ele foi coroado em fevereiro de 1547. Como o rei era muito novo para governar, um conselho tutorial foi constituído, presidido por seu tio, Edward Seymour, o earl de Herford, que

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convenceu os outros membros do conselho regente a nomeá-lo Lord Protector of the Realm (“Lorde Protetor do Reino”). Os membros do conselho aproveitaram-se de uma cláusula no testamento de Henry VIII para se beneficiarem, concedendo a si próprios títulos e terras: Edward Seymour se tornou o duque de Somerset e seu irmão, Thomas, recebeu o título de duque de Warwick. Seymour convenceu o rei a assinar um documento que lhe deu o poder de nomear os membros do Conselho Privado e convocá-lo quando quisesse, podendo governar sem consultá-lo. Esse comportamento ditatorial alienou muitos conselheiros, inclusive seu próprio irmão, Thomas, que tentava constantemente minar a influência de Somerset, incentivando o jovem rei a assumir seus poderes plenos, apesar de receber um título, uma posição no Conselho Privado e o cargo de Lord Admiral (“Lorde Almirante”) de seu irmão. Thomas Seymour se rebelava contra o Lord Protector, mas acabou sendo preso por invadir a casa onde o rei morava à noite com uma pistola carregada, provavelmente em uma tentativa de levar Edward VI do poder do Lord Protector. Acusado de fraude fiscal, entre outras coisas, Thomas Seymour foi condenado sumariamente à morte. Somerset declarou guerra à Escócia e conseguiu várias vitórias, ocupando o país até Dundee, no centro-leste. Porém, o custo de manter seus grandes exércitos era exorbitante e ele foi obrigado a abandonar as conquistas em 1549, quando os franceses atacaram a cidade de Boulogne, ocupada pelos ingleses desde as campanhas de Henry VIII. Por estar fora do reino em campanha, o final do governo do duque de Somerset foi marcado por rebeliões e levantamentos regionais do povo contra os abusos da classe proprietária. Em particular, o novo costume de cercar os antigos pastos comuns (enclosure) – em geral com o objetivo de criar ovelhas, cuja lã era muito valiosa –, provocava protestos uma vez que os colonos perdiam o lugar de pasto dos próprios animais, já que não costumavam possuir terrenos suficientemente grandes para isso. Finalmente, os demais conselheiros cansaram dos métodos autocráticos do protetor Somerset, insistindo que o poder que ele exercia lhe fora concedido por eles e não pelo testamento do antigo rei. Somerset foi deposto e a presidência do conselho regente foi tomada por John Dudley, earl de Warwick, em 1551, brevemente autoproclamado duque de Northumbria. Quando Somerset foi solto, ele foi convidado a um lugar no conselho novamente, mas ele tramou derrubar a presidência de Dudley. O complô foi descoberto e Edward Seymour foi executado em 1552.

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Edward foi o primeiro rei inglês criado como protestante. Foi durante seu breve reinado que a Igreja Anglicana foi estabelecida. O celibato clerical foi abolido, assim como a missa. O inglês foi decretado a língua das cerimônias e da liturgia, e um novo livro de orações, The Book of Common Prayer, escrito pelo arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer, foi publicado em 1549 e continha todos os ofícios divinos e orações formais da nova Igreja. A Lei de uniformidade (1548/49) decretou que o livro de Cranmer fosse o único texto de rituais litúrgicos a ser utilizado no reino. Com o teatro de Shakespeare e a Bíblia de King James, o Book of Common Prayer teria uma influência enorme sobre a língua inglesa como fonte de modelos, expressões e provérbios.

Mary I Em 1553, Edward VI ficou doente e faleceu. Ele tinha nomeado sua prima, Jane Grey, a sobrinha do duque de Northumberland, sua herdeira, provavelmente pelo fato de ela ser protestante, e o jovem rei temia que sua irmã maior tentasse desfazer a Reforma Religiosa que ele tinha supervisionado. Para conseguir isso, porém, Edward foi aconselhado que suas duas meias-irmãs teriam de ser deserdadas, ainda que a menor, Elizabeth, fosse protestante. A decisão de Edward em nomear Jane Grey foi contra a Terceira Lei da Sucessão de 1542, na qual Henry VIII estipulou que todos seus filhos que foram legitimados poderiam herdar o trono. No entanto, Lady Jane Grey reinou apenas nove dias, antes de Mary Tudor (1515-1558), a mais velha dos filhos de Henry VIII, reunir seus apoiadores e depor Jane Grey. O líder da facção que apoiava Jane Grey, o duque de Northumberland, foi executado. Jane Grey e seu marido, Guildford Dudley, foram apenas encarcerados inicialmente, mas, depois da rebelião dos Wyatt em 1554, contra o casamento de Mary e o futuro Felipe II da Espanha, o casal foi executado também, por representar um potencial foco de descontentamento com a rainha Mary. Mary era católica convicta e uma das primeiras ações realizadas foi tentar reverter os efeitos da Reforma Religiosa. Em 1554, Mary se casou com Felipe II da Espanha, sobrinho do imperador do Sacro Império Romano. O casamento não era popular na Inglaterra. Os membros do Conselho Privado temiam que a Inglaterra fosse reduzida a uma dependência dos Habsburgos, a família que dominava a Península Ibérica e o Sacro Império Romano. O povo receava o impacto das novas Reformas Religiosas e desconfiava

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de um príncipe estrangeiro. No decorrer do restabelecimento do catolicismo, quase 300 protestantes foram queimados vivos como hereges e várias centenas mais escolheram o exílio durante seu reinado. Mary morreu em 1558, sem filhos.

Elizabeth I O reinado de Elizabeth I é considerado uma espécie de idade de ouro em muitos aspectos culturais que envolvem a língua inglesa. Foi durante esse tempo que houve um florescimento especialmente grande nas artes literárias, por exemplo, o teatro de Christopher Marlowe e William Shakespeare, a poesia de Sir Philip Sidney, Edmund Spenser, Sir Walter Raleigh, entre vários outros. A impressão quanto a tal exuberância linguística é de que se trata da maturação da Renascença inglesa no que diz respeito ao vernáculo. Se o início do período nos reinados de Henry VII e VIII envolvia o pensamento sofisticado de Thomas More e os seguidores de Desiderio Erasmo de Roterdã (1467-1536), a era elizabetana manifesta a produtividade e criatividade que surgem quando os aspectos renascentistas já estavam razoavelmente divulgados e acessíveis ao público. Apesar de ser um homem cultíssimo, Thomas More lutava em vão para deter por censura a enxurrada de textos – livros, tratados, panfletos – sobre assuntos religiosos heterodoxos que entravam no país pelas imprensas continentais (GUY, 1984, p. 242). O reinado também é associado com a vitória naval sobre a Armada Invencível espanhola em 1588 e as viagens de corsários como John Hawkins, Richard Grenville, Walter Raleigh, e especialmente Francis Drake, que chegou a circum-navegar o globo. O investimento em atividades marítimas levaria ao envolvimento inglês no tráfico de escravos africanos para as Américas, que também foi iniciado nesse tempo. Embora baseado em uma prática que atualmente é considerada totalmente inaceitável, esse Comércio Triangular atlântico traria grande prosperidade para muitas cidades litorâneas britânicas nos séculos seguintes (veja Unidade 4). Mercadorias fabricadas na Europa foram vendidas no continente africano para comprar escravos, que eram revendidos nas Américas para comprar os produtos agrícolas da região (pau-brasil, açúcar, fumo, algodão etc.) e então vender nos mercados europeus. Do ponto de vista das controvérsias religiosas que dominavam a política internacional do período, a atitude razoavelmente

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tolerante da Igreja Anglicana, tanto com os católicos quanto com as denominações protestantes mais radicais, permitia certa estabilidade social. O governo de Elizabeth I valorizava mais a lealdade e o bom serviço ao regime que a aderência estrita a determinada doutrina, sem querer dizer que os inconformados tenham sido tratados bem sempre. A legislação penalizava os que não confessavam o anglicanismo. No entanto, sob outra perspectiva, o reinado de Elizabeth foi um tempo de problemas socioambientais (com fome e doenças), embora essas dificuldades não chegassem a derrubar os fundamentos da ordem social, como ocorreu no século XIV com a Peste Negra, de acordo com Guy (1984, p. 223). O mesmo autor observa, por exemplo, que as ondas de peste que provocaram a “grande mortandade” ao longo da segunda metade do século XIV reduziram a população da Inglaterra e de Gales de 4 a 5 milhões a 2,5 milhões, aproximadamente. A recuperação foi muito lenta. Em 1525, mais de 100 anos depois, a Inglaterra (sem Gales) ainda não contava mais de 2,25 milhões de habitantes. Nos 75 anos seguintes, contudo, a população explodiu, chegando a quase o dobro (aproximadamente 4,1 milhões) na Inglaterra. Em Gales, entre 1500 e 1600, a população cresceu de 210.000 para 380.000. A explosão demográfica do século XVI trouxe grandes problemas sociais. Enquanto no século XV foi reduzida a exploração de serviços diretos na lavoura das terras senhoriais, substituídos por serviços pagos em dinheiro, havendo uma queda nos preços pela demanda reduzida e um aumento de salários por falta de trabalhadores, o século XVI logo entrou em uma espiral de inflação, fome, uma queda vertiginosa de renda e um brusco aumento concomitante de preços e aluguéis. Inquilinos que não podiam pagar os novos aluguéis eram despejados; chácaras e fazendas menores eram amalgamadas para reduzir custos, e as terras marginais mais pobres e os antigos pastos comuns eram cercados para fazer pastagens para a rentável criação de ovelhas (GUY, 1984, p. 224-225). O desemprego e a inflação de preços eram as maiores causas de miséria. Apesar de os preços altos para produtos agrícolas estimularem a produtividade entre os fazendeiros, o interesse por conseguir os melhores preços os levava a vender seus produtos nos mercados mais caros nas cidades, que cresciam com o influxo da população rural, antes de distribuí-los nos distritos rurais para facilitar a

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subsistência. Os próprios mercados, às vezes, não davam conta da pressão populacional, sobretudo nos anos de colheita ruim por mau tempo ou epidemia. Além disso, como a população não parava de crescer, os salários permaneciam baixos, já que não faltava gente que precisasse trabalhar. Os campesinos, despejados pelos aluguéis altos e o cerramento das terras comuns, migravam para as cidades na esperança de encontrar melhores condições de trabalho. O movimento populacional também impactava os números de indigentes no crime e dos itinerantes (GUY, 1984, p. 225-226). No que diz respeito à linguagem, esse momento de migração intrarregional foi importante porque o deslocamento de pessoas acarreta fluxo de variedades, gerando contato e, assim, transferências de traços e reconfigurações de gramáticas nas gerações seguintes potencialmente expostas a elementos advindos de variedades de lugares distantes. Em particular, a capital Londres vivia ondas de migração de diversas áreas dialetais, como East Anglia (Leste: condados de Essex, Suffolk, Norfolk, Bedfordshire, Hertfordshire, Cambridgeshire), dos condados do Sudeste (Kent e Sussex) e da ampla região Centro-leste. Na corte dos monarcas da dinastia Tudor, ouviam-se os sotaques e dialetos mais variados, já que a linguagem da classe governante ainda não estava padronizada. Drake, Raleigh e Hawkins falavam variedades do Sudoeste; o sotaque de Shakespeare certamente teria revelado sua origem em Warwickshire no Centro-oeste; Cardeal Wolsey teria indicações da sua origem na cidade de Ipswich em Suffolk. Os cortesãos eram tipicamente multilíngues. Uma boa educação renascentista incluía, no mínimo, o aprendizado de latim e francês. Muitos também sabiam italiano, espanhol, holandês/flamengo e alguns sabiam alemão. Os mais eruditos dominavam o grego clássico e noções de hebraico. As línguas vernáculas das regiões celtas – o gaélico irlandês, o galês e o cornualhês – também eram faladas por alguns. Emissários e embaixadores de outros reinos também frequentavam a corte com seus séquitos e certamente suas línguas eram ouvidas. No longo prazo, as políticas cautelosas e estabilizadoras favorecidas por Elizabeth durante seu reinado gradualmente aumentavam uma série de tensões que terminaram na eclosão da Guerra Civil entre Charles I e os deputados puritanos em 1642. Os problemas religiosos iam crescendo desde o reinado de

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Henry VIII. O catolicismo nunca foi eliminado e, portanto, sempre existia um risco para a coroa inglesa de uma conspiração ser promovida pelo papado e as grandes potências católicas, como Espanha ou França. O fato de a conquista da Irlanda ter sido tão demorada e violenta resultou na impossibilidade de implementar a Reforma Religiosa de maneira generalizada, tal como os Tudor o gostariam. Por esse motivo, a Irlanda deixava uma porta dos fundos entreaberta, onde haveria sempre simpatizantes da causa católica. Por outro lado, os aspectos conservadores da Igreja Anglicana alienavam os protestantes mais rigorosos, criando outra frente de ameaças à estabilidade do reino. A questão das finanças reais nunca foi solucionada de forma satisfatória. Os altos custos de um estado pré-moderno não podiam ser mantidos por um sistema de tributação medieval, mas nenhum monarca Tudor enfrentou a necessidade de abrir novas fontes de renda de forma séria, com a exceção do fundador da dinastia, Henry VIII. Qualquer campanha militar esvaziava os cofres de tal maneira que o Estado corria sérios riscos de quebrar. O fato de o rei arrecadar impostos sem pedir a votação do parlamento foi outra reclamação dos deputados antimonarquistas sob os reis Stuart.

Saiba mais A dinastia dos Stuart A grafia mais usada atualmente, Stuart, é uma forma afrancesada de Steward em inglês ou Stiubhard, em gaélico (todos pronunciados aproximadamente “stiúart”), que Mary I (r. 1542-1567) adotou (ela foi criada em exílio na França). A família tinha origem normanda e era detentora do importante cargo administrativo de High Steward (“Alto Mordomo Real”) da Escócia desde o século XII. O primeiro rei da Escócia da linhagem foi Robert II (r. 1371-1390), que enfrentou pressões enormes de Edward III, rei da Inglaterra, a entregar o trono. Nove monarcas da dinastia reinaram na Escócia – Robert III (1390-1406), James I (1406-1437), James II (1437-1460), James III (1460-1488), James IV (1488­‑1513), James V (1513-1542), Mary I (1542-1567) – antes da união das coroas da Escócia e da Inglaterra na pessoa de James VI da Escócia, que se tornou James I da Inglaterra, ao herdar o trono da sua tia, Elizabeth I da Inglaterra, em 1603. Depois da união das coroas, a dinastia dos Stuart contribuiu com mais seis monarcas: James I (r. na Escócia desde 1567, r. na Inglaterra desde 1603-m. 1625), Charles I (r. 1625-1649), Charles II (r. 1660-1685), James II (da Inglaterra)

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e VI (da Escócia) (r. 1685-1689), Mary II (r. 1689-1694) em conjunto com seu marido holandês William, príncipe de Orange (William III da Inglaterra e II da Escócia) (m. 1702), e Anne (r. 1702-1714). Em 1707, os dois países (a Escócia e a Inglaterra, com seus domínios de Gales e Irlanda) foram oficialmente unificados em um estado, o Reino Unido da Grã-Bretanha.

James I Em termos do uso da língua inglesa, o reinado de James I continuou na mesma situação do final do reinado de Elizabeth I. Na área das letras, na Inglaterra, os dois nomes de maior renome ainda eram Shakespeare e Ben Jonson. O poeta John Donne e o pensador e cientista Francis Bacon também viveram os períodos elizabetano e jacobino. Os poetas chamados de “metafísicos” que se aglomeravam de forma pouco sistemática ao redor da pessoa de Jonson foram característicos da época, com seus temas centrais sobre a mortalidade e a corrupção dos deleites do mundo. Antes de assumir o trono da Inglaterra, James tinha escrito um tratado sobre a tradição poética escocesa, Reules and Cautelis (Regras e cuidados), em 1585, quando ele tinha apenas 19 anos. O jovem rei fazia parte de um grupo de poetas denominado como a “Banda de Castália”, cujo mais eminente membro foi Alexander Montgomerie (c. 1550-1598). Mais de 100 das obras de Montgomerie sobrevivem, das quais as mais renomadas são a longa alegoria The Cherrie and the Slae (A cereja e o abrunho) e sua coleção de sonetos e poemas cortesãos públicos, que estão entre os melhores exemplares do gênero produzido na Escócia. Em termos políticos, James estimulava relações entre a Inglaterra e a Espanha, sem atrito com os espanhóis, quase conseguiu contrair o matrimônio de seu filho Charles com a infanta Maria Ana. O casamento nunca ocorreu porque a princesa espanhola não gostou de Charles e ele recusou renunciar sua fé anglicana para o catolicismo. O “partido espanhol”, como o projeto era conhecido, não era popular, pois uma das condições em que os espanhóis insistiam foi a revogação da legislação anticatólica, que obrigava todos os não conformistas a jurar que o papa não podia exercer nenhum poder sobre o rei. James se mantinha em uma posição razoavelmente tolerante com os católicos ingleses, pensando que eles poderiam ser seus aliados contra as autoridades anglicanas

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estabelecidas. A atitude de James com a comunidade católica começou a mudar depois de uma série de conspirações contra sua pessoa. Além do “Complô principal” – que propôs substituir James e sua família por Arabella Stuart, prima de segundo grau de Elizabeth I –, e o “Complô secundário”, uma tentativa de sequestro, a agitação católica culminou com a “Conspiração da pólvora” (Gunpowder plot), que tentou explodir o rei e seu parlamento em 1605. O ex-soldado, Guido Fawkes, foi capturado na véspera da abertura do parlamento no porão de uma casa vizinha, que projetava debaixo da Câmara dos Lordes do Palácio de Westminster, com 36 barris de pólvora e uma pila de lenha. Quatorze conspiradores foram executados. Durante seu reinado, James sofria pressões repetidas vezes de grupos protestantes mais radicais para reprimir os católicos com mais brutalidade e para implementar reformas mais rigorosas na Igreja Anglicana. Também acabou se desentendendo com a Igreja Presbiteriana na Escócia, com tentativas de reintroduzir bispos e de aproximar as igrejas das duas nações em questões de doutrina, o que desagradou muitos escoceses. Esse legado causaria problemas na Escócia para seu filho e netos. O outro grande evento religioso durante o reinado de James I foi a publicação da edição “autorizada” da Bíblia, em 1611 (veja mais adiante). Junto com o dicionário de Doutor Johnson e o teatro de Shakespeare, a Bíblia do rei James era um dos fundamentos do cânone literário em inglês. Outro fator que se tornaria muito relevante posteriormente foi o estabelecimento de colônias na América do Norte e no Caribe. Em 1607, Jamestown foi fundada na Virgínia pela chamada Companhia de Virgínia (também conhecida como a Companhia de Londres. Veja Unidade 4); em 1610, a Sociedade dos Comerciantes Aventureiros estabeleceu uma comunidade permanente na Terra Nova; e em 1612, a Ilha de São Jorge nas Bahamas foi colonizada, também pela Companhia de Virgínia. (Veja também Unidade 4). Em 1664, a antiga colônia holandesa de Nova Amsterdã foi ocupada pelos ingleses e renomeada como New York. Junto com a Província de New York, veio a província da Nova Suécia (atualmente, Delaware), que os holandeses tinham conquistado. A colonização escocesa da Terra Nova durou de 1629 a 1632 e o malfadado projeto de estabelecer uma colônia na península de Darién (atual Panamá) em 1695 gerou uma crise financeira no país

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que contribuiu de forma significativa à união política da Escócia e da Inglaterra em 1707, já que o governo inglês ofereceu pagar as dívidas contraídas pelo governo escocês que o tinha levado praticamente à bancarrota.

Charles I Em termos linguísticos, o reinado de Charles I é interessante por nele ter ocorrido as guerras dos panfletários que se tornaram muito evidentes no contexto das preliminares da Guerra Civil Inglesa (1642-1651). O uso da imprensa móvel crescia constantemente desde a chegada da tecnologia na Inglaterra em 1476, trazida por William Caxton dos Países Baixos. A facilidade de produzir grandes quantidades de textos iguais, a um custo relativamente baixo, criou problemas em como controlar a produção impressa e a difusão de ideias não desejadas por serem consideradas heréticas ou subversivas de alguma outra maneira. Febvre e Martin (1976) estimam que, até 1500, 20 milhões de cópias de livros tinham sido produzidas, e até 1600 a quantidade aumentou quase dez vezes para 150 a 200 milhões cópias (FEBVRE; MARTIN, 1976). As controvérsias religiosas do século XVI criaram um ambiente muito propício para a publicação. Ingleses exilados católicos e protestantes utilizavam as imprensas continentais, em Flandres ou Genebra, para divulgar suas ideias. No contexto do conflito entre o rei e os não conformistas puritanos, e durante o período da restauração da monarquia depois de 1660, a imprensa foi uma arma que todos exploravam. A queda de Charles I na Guerra Civil com o parlamento resultou da impopularidade da nomeação do favorito real, o duque de Buckingham, como comandante das medidas militares no continente europeu no contexto da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Já impopular com a nobreza por explorar o monopólio de acesso ao rei, deu-se o fracasso da campanha de Buckingham para ajudar os rebeldes protestantes franceses na cidade de La Rochelle (apesar do apoio geral à campanha em si) em 1627. A resposta dos deputados no parlamento foi de instaurar um processo de impeachment contra Buckingham. O rei reagiu à ameaça de seu favorito com a dissolução do parlamento, uma medida que aumentou a impressão de que ele não queria o escrutínio parlamentar para seu governo, uma afronta aos direitos tradicionais da pequena nobreza. Além disso, sem parlamento, era impossível conseguir a

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concessão de impostos, o que impactou negativamente nas finanças do reino. O novo parlamento, convocado em 1628, mostrou-se ainda mais intransigente que o antigo. Os deputados redigiram a Petição de direitos, em que eles estimulavam os limites que existiam ao poder real, citando a Magna Carta assinada por John em 1215 (veja Unidade 2). Charles consentiu aos pedidos da petição, porque precisava do dinheiro que os deputados lhe votariam. Devido aos problemas com o parlamento, Charles promoveu sua dissolução e governou sem consultar o parlamento durante a maior parte da década seguinte, sem convocar os deputados. Isso significa que, durante esse período, ele não recebia nenhum subsídio parlamentar e conseguia fundos por explorar leis antigas para multar as pessoas. Outra fonte de renda era explorar a ameaça de uma invasão em 1635 para obrigar os condados não litorâneos a pagarem uma taxa supostamente para a construção de navios. Tais impostos irritavam a população, que considerava as medidas ilegais, uma vez que só teriam funcionado para manter os custos do rei se Charles evitasse um confronto militar. Por esse motivo, ele efetivamente encerrou a atuação da Inglaterra na Guerra dos Trinta Anos. O programa de padronização religiosa liderado pelo arcebispo Laud de acordo com o modelo do High Anglicanism (“anglicanismo superior”), uma variante da denominação que estava mais suntuosa, incomodava muitos seguidores das confissões mais estritas, por se aproximar dos rituais católicos. Temiam que Charles pretendesse se converter ao catolicismo da rainha francesa, Henrietta Maria. Também foram reintroduzidas as multas aos protestantes não anglicanos se não frequentassem as igrejas aos domingos, o que provocou ainda mais descontentamento entre essa classe importante. Quando três membros da pequena nobreza reclamaram publicamente em panfletos das mudanças na observância religiosa, eles foram condenados a terem as orelhas decepadas, uma punição considerada especialmente humilhante para um gentil-homem. As mudanças religiosas que o rei quis impor na Escócia em 1639 não foram aceitas pela população, o que provocou uma rebelião que ficou conhecida como a “Guerra dos Bispos”, sendo o motivo para a luta a introdução de um novo livro dos ofícios baseado no Book of Common Prayer (Livro de orações comuns) anglicano, e um aumento no número de bispos introduzidos por

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James I em uma igreja que defendia o presbiterianismo, ou seja, sem bispos. A “Guerra dos Bispos” na Escócia escalou em 1640 uma série de conflitos localizados na Inglaterra, Irlanda e Escócia conhecidos como a Guerra dos Três Reinos. Os problemas políticos de Charles pioraram rapidamente depois que ele convocou o parlamento para conseguir uma concessão de impostos na Inglaterra para financiar uma campanha na Escócia. Os deputados aproveitaram-se da fraqueza do rei para reivindicar suas reclamações e tentaram vincular a concessão do subsídio com a reversão das práticas de arrecadação irregular e a política religiosa. Furioso pelo que considerava um desrespeito a sua pessoa, Charles dissolveu a assembleia depois de apenas algumas semanas – por isso ficou conhecido como “o parlamento breve” – e resolveu lutar contra os escoceses de qualquer maneira. O resultado foi uma derrota contundente e a invasão do norte da Inglaterra pelo exército escocês, que exigia pagamento diário para não avançar para o sul. Se o rei não pagasse, eles ameaçavam tomar o valor faltante por meio do saque. A situação estava desastrosa para Charles: como rei da Inglaterra, ele precisava do dinheiro do parlamento para manter um exército e resistir aos escoceses, mas, como ele também era rei da Escócia, ele precisava pagar o exército ocupante! Não houve outra opção senão convocar novamente o parlamento inglês, o que ocorreu em novembro de 1640. O novo parlamento se mostrou ainda mais recalcitrante que o anterior. Os deputados passaram leis que obrigavam sua convocação pelo menos uma vez a cada triênio, mesmo que o rei não os chamasse, e o rei não podia dissolvê-lo sem o consentimento dos deputados, mesmo que o prazo de três anos se passasse. Qualquer tributação proposta pelo rei precisava do aval parlamentar, e o parlamento podia censurar os ministros reais. As cortes da Câmara Estrelada e da Alta Comissão foram abolidas, por possibilitarem julgamentos sem júri, sem consulta e sem direito à defesa. Além dessas medidas que fortaleciam o parlamento, tornando-o mais independente do monarca, que viu seus poderes diminuírem, os deputados aprovaram várias leis anticatólicas e tentaram limitar ou desfazer o avanço do anglicanismo superior. Finalmente, eles publicaram um “protesto de lealdade” ao rei, culpando seus conselheiros pelos problemas do reino. Rumores de que o earl de Strafford tinha sugerido que o rei trouxesse o exército irlandês para reprimir a população inglesa

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provocaram seu processamento. Quando foi comprovado que Strafford, de fato, tinha proposto uma intervenção militar contra o parlamento, ele foi condenado por attainder, uma pena que não precisava dos procedimentos legais normais. O rei, porém, recusou-se a assinar o mandato de execução de seu principal conselheiro. Temendo que a situação terminasse em guerra, Strafford convenceu Charles a reconsiderar sua posição, para o bem da sua família, e o rei assentiu. Strafford foi executado em maio de 1641. A morte de Strafford não resolveu a crise política. Os deputados puritanos receavam a imposição do anglicanismo ou, pior ainda, uma reversão ao catolicismo, e o fim do parlamentarismo em uma tirania absolutista. O partido monarquista ressentia as exigências dos parlamentares e a maneira pouco respeitosa de apresentá-las. Em 1641, os católicos irlandeses, temendo mais repressão pelo governo protestante, levantaram-se em uma guerra civil sangrenta. Na Inglaterra, os boatos corriam entre os puritanos de que o rei favorecia os católicos e o que ocorria na Irlanda poderia se repetir lá. Em janeiro de 1642, Charles, acompanhado por aproximadamente quatrocentos soldados, foi à Câmara dos Comuns no Palácio de Westminster para arrestar cinco deputados acusados de traição. O presidente da Câmara recusou-se a entregar os deputados procurados, enfatizando sua lealdade ao parlamento antes de ser servidor do rei. Poucos dias depois, Charles deixou Londres rumo ao norte, procurando apoio, e as cidades iam se declarando a favor do partido real ou favorável ao parlamento. Em agosto de 1642, Charles levantou a bandeira real em Nottingham em uma chamada a todos os súditos para que comparecessem à defesa do rei. A Guerra Civil Inglesa ocorreu em três fases, a primeira, de 1642 a 1648, em que as maiores batalhas ocorreram terminando com a captura de Charles; de 1648 a 1649, os exércitos do parlamento combateram vários levantamentos monarquistas pelo país e, a terceira fase, de 1649 a 1651, principalmente na Irlanda, em que os ingleses subjugaram a aliança dos católicos e monarquistas com muita violência. Para combater as forças reais (tradicionalmente conhecidas como cavaliers, “cavalheiros”), o parlamento criou e treinou um exército profissional, o New Model Army (“Exército Novo”) em 1645. Os soldados parlamentaristas são conhecidos tradicionalmente como roundheads (“cabeças redondas”), porque eles usavam um corte de cabelo curto, diferentemente do cabelo comprido

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dos cavaliers. O comandante supremo do exército era o Lorde General, Thomas Fairfax. A cavalaria do parlamento era comandada por Oliver Cromwell, o Tenente-General (vice-comandante), e recebeu o apelido de ironsides (“costas de ferro”), por seu comandante, cujo apelido era Old Ironsides. Em 1648, a maioria dos apoiadores do rei tinha jurado manter a paz. Portanto, o tratamento dos líderes vencidos foi especialmente severo, já que eles eram tidos como perjurados. Devido a seu papel na instigação das insurreições do segundo período da Guerra Civil, que incluiu uma tentativa de negociar uma invasão escocesa da Inglaterra para libertá-lo, o parlamento tinha dúvidas se Charles deveria voltar ao trono. Quando o exército soube que o parlamento ainda cogitava manter Charles como rei, os generais marcharam para Londres e se instalaram ao redor da Câmara. Então houve a “Purga de Pride”, realizada pelo regimento do coronel Thomas Pride, em que 45 deputados foram presos, tendo sido barrada a entrada de mais 146, deixando apenas 75 entrarem. Sob forte pressão dos militares, os 75 deputados restantes desse rump parliament (literalmente, “rabo do parlamento”) resolveram formar um tribunal de três juízes e 150 comissários para julgar o rei na acusação de traição. O chefe do exército, Fairfax, era um moderado que favorecia uma monarquia constitucional. Ele se recusou a continuar participando nas negociações. O tribunal dos comissários, dos quais apenas 63 compareceriam ao processo, condenou o rei à morte em 27 de janeiro de 1649, por tirano, traidor, assassino e inimigo do povo inglês, embora ele não reconhecesse a autoridade do tribunal para proceder contra ele, devido à ausência de uma autorização real. Charles recusou declarar-se culpado ou inocente, alegando que o rei recebia sua autoridade de Deus e, portanto, estava acima de qualquer lei e incapaz de errar. O poder do tribunal parlamentarista, Charles sustentou, originava apenas força de armas, mas carecia de qualquer legitimidade. Não adiantou. Em 30 de janeiro 1649, Charles I foi executado. A morte do rei conduziu ao domínio total do exército. Fairfax se demitiu do cargo. Isso permitiu que Cromwell assumisse o controle do exército, o grupo político mais poderoso no tempo pós-guerra. O governo ficou nas mãos de Cromwell, que presidia o Conselho de Estado. Em 1650, Charles, filho do rei morto, foi proclamado rei na Escócia, e voltou da França tentando retomar a Inglaterra. O exército de Charles II foi derrotado finalmente pelo

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New Model Army na batalha de Worcester em 1651. O “rabo do parlamento” aboliu a monarquia, a Câmara dos Lordes (a segunda Câmara do parlamento), e declarou a Inglaterra uma república (Commonwealth). O episcopado da Igreja Anglicana foi reduzido e várias leis foram passadas para regular a vida moral das pessoas: os teatros foram fechados, a observação religiosa era obrigatória aos domingos. Um ato relevante para a língua inglesa foi a generalização do vernáculo nos tribunais e na jurisprudência em geral, em lugar de francês e latim, que eram meios importantes anteriormente. Em 1653, Cromwell dissolveu o rabo do parlamento, apesar de não ter recebido o consentimento da Câmara, portanto, violando a Lei Trienal que determinava que a dissolução da Câmara dos Comuns tinha de ocorrer com o assentimento dos deputados, precisamente uma das reclamações do “Parlamento Longo” de 1641 contra o poder do antigo rei de convocar e demitir as assembleias à vontade. O “rabo” foi substituído pelo “Parlamento do Esqueleto” (Barebones Parliament), cujos membros foram nomeados pelo exército em uma tentativa de controlar os deputados, cujas opiniões refletiam os partidos entre os militares: aproximadamente quarenta radicais (que queriam abolir qualquer papel do estado em questões religiosas), uns 60 moderados, e por volta de 40 conservadores (favoráveis à manutenção do status quo, já que a Lei Consuetudinária contemporânea defendia os interesses da pequena nobreza). Um deputado da classe popular era o comerciante batista Praise-God Barebone (literalmente, “Louva-Deus Esquelético”), cujo nome curioso passou a ser a alcunha da instituição. Cromwell desejava que o novo parlamento legislasse para redigir uma constituição reformadora para a jovem república. Infelizmente, os deputados não tinham as habilidades jurídicas nem a experiência política para realizar a tarefa que Cromwell e o Conselho do Exército lhes concederam. Depois de alguns meses de debates improdutivos, Cromwell dissolveu o “Parlamento do Esqueleto” e foi nomeado Lorde Protetor. Os anos do protetorado de Cromwell viram a guerra vitoriosa contra os holandeses (1652-1654), que fortaleceu a posição marítima da Inglaterra. A ilha da Jamaica foi conquistada da Espanha em 1655, e as “plantações” de colonizadores protestantes no norte e leste da Irlanda continuaram, e em 1655-1656 os judeus, que foram expulsos da Inglaterra durante o reinado de Edward I, tiveram permissão para voltar depois de 350 anos. O objetivo dessa

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medida foi atrair os importantes comerciantes judeus de Amsterdã e outras cidades holandesas para Londres para estimular negócios com as colônias espanholas e portuguesas no Caribe e na América do Sul. Grupos de puritanos ou pessoas contrárias à república emigravam para as várias colônias norte-americanas: Virgínia, Maryland, Rhode Island, Connecticut, Massachusetts. Barbados era outro destino frequente para os inimigos da república. Quando Cromwell morreu em 1658, ele nomeou seu filho Richard como Lord Protector. Sem o apoio do exército, que sempre respaldara as decisões de seu pai, sem a influência política para administrar o parlamento, e com pouca base entre os governantes, o protetorado de Richard não foi um sucesso. Os parlamentares retomaram o poder e no Conselho de Estado Richard passou a ser irrelevante para o governo do país. Em 1660, depois de um período de negociações lideradas pelo general George Monck, Charles II emitiu a Declaração de Breda (ele estava nos Países Baixos nesse momento de seu exílio) na qual ele perdoou os envolvidos na execução de seu pai e garantiu a liberdade religiosa, a manutenção dos direitos do parlamento, e a proteção de quaisquer posses adquiridas durante o período do interregno. Monck usou seu poder militar para obrigar o rabo do parlamento a admitir os deputados excluídos em 1648 na Purga de Pride. O parlamento reconstituído se dissolveu e houve eleições gerais. A convite do novo parlamento, portanto, Charles II, que já era reconhecido na Escócia, regressou à Inglaterra e foi coroado em 1661. Abrindo o período conhecido como a Restauração.

Charles II A Restauração da monarquia sob Charles II (1660-1685) abriu com prisão, execução e exílio de muitos dos comissários que haviam assinado a sentença de morte contra Charles I. Culturalmente, foi um tempo de inovação científica, por exemplo, a fundação da Royal Society com importantes membros, como Robert Boyle, Robert Hook e Sir Isaac Newon, além da construção do Observatório Real. O centro da cidade de Londres foi reconstruído depois da destruição com o Grande Incêndio de 1666, pelo arquiteto Sir Christopher Wren, incluindo a Catedral de São Paulo. A era é famosa pelo hedonismo da vida na corte, porém, aflita por diversos problemas, em geral de natureza religiosa. Os teatros reabriram. A Restauração corresponde com o final da vida dos grandes poetas não conformistas, como John Milton, autor de Paradise Lost e

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Daniel Defoe, autor de Robinson Crusoé. Do lado anglicano, há o ensaísta satírico e poeta anglo-irlandês, Jonathan Swift, que escreveu As viagens de Gulliver. John Wilmot, earl de Rochester e um célebre libertino, descreveu o rei nos seguintes termos: We have a pretty witty king, Whose word no man relies on. He never said a foolish thing, And never did a wise one.

Temos um rei bonito e espirituoso, Em cuja palavra ninguém confia. Ele nunca disse nenhuma coisa tola, E nunca fez nada sábio.

Quando ouviu o poema satírico, diz-se que Charles respondeu que era a verdade, porque ele era o autor de suas próprias palavras, mas “suas” ações eram na verdade as ações de seus ministros! As autoridades queriam reforçar a posição da Igreja Anglicana contra a percebida ameaça constante do catolicismo e os extremismos dos puritanos. No entanto, Charles II favorecia uma política de tolerância razoável em assuntos confessionais. Sua política externa levou a guerras contra as Províncias dos Países Baixos e Espanha, em uma aliança com Portugal (a rainha, Catarina de Bragança, era portuguesa). A afinidade dos membros da dinastia Stuart para o catolicismo, devido às suas esposas e ao longo período exilados na corte francesa, ou em Bruxelas ou Haia. Charles II se converteu ao catolicismo quando estava prestes a morrer e a questão da sucessão foi complicada pelo fato de que seu herdeiro era seu irmão James (II da Inglaterra, VII da Escócia), que havia se convertido ao catolicismo. A preocupação crescia entre a nobreza e a hierarquia anglicana pelo possível retorno à instabilidade e persecuções do reino de Mary I. Por essa razão, o breve reinado (1685-1688) de James deu origem a várias dificuldades constitucionais que afetaram o reinado da dinastia seguinte, os Hanoverianos.

James II Em 1688, nasceu James Edward Francis Stuart, filho de James II e sua segunda esposa, Maria de Modena. O fato que o rei mudou a ordem de sucessão ao trono para favorecer o filho da sua rainha católica em lugar de suas meias-irmãs maiores protestantes, Mary e Anne, preocupou os governantes. Atuando para proteger sua fé protestante anglicana, a classe política se rebelou: James foi deposto e fugiu para a França. O parlamento convidou sua filha Mary, que era

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casada com o príncipe protestante holandês, William de Orange, a assumirem o trono na “Gloriosa Revolução”. Em vários momentos, James II, seu filho James e seu neto Charles tentariam retomar a coroa, mas nunca conseguiram. Suas atividades teriam graves consequências para a história da Escócia e da Irlanda no início do período moderno. O reinado em conjunto de William III e Mary II viu diversos envolvimentos militares no continente europeu, em geral dirigidos contra a França. Na Irlanda, a vitória de William III sobre James II na Batalha do rio Boyne assegurou a ascendência protestante no governo da Irlanda. Em 1707, durante o reinado da rainha Anne, a Inglaterra e a Escócia foram unificadas oficialmente em um país, o Reino Unido da Grã-Bretanha.

História interna: mudanças estruturais O período pré-moderno é o momento durante o qual os fundamentos da língua que reconhecemos hoje como inglês começaram a se consolidar. A língua anglo-saxônica não é facilmente acessível aos anglófonos modernos sem estudo prévio, e a linguagem dos escritores medievais, embora haja muito mais paralelos, ainda custa a ser entendida, pelo distanciamento estrutural e pelos fatores da grafia. No entanto, a literatura da época pré-moderna faz parte do cânone da língua inglesa, por exemplo, as peças e os sonetos de William Shakespeare, o teatro de Marlowe e Ben Johnson, a poesia de John Dunne, a Bíblia do Rei James, o Paraíso Perdido de Milton, a prosa de Swift, Defoe e o dicionário de Johnson, constituem as bases da literatura inglesa, justamente pelo fato de essas obras não apresentarem tantas dificuldades para o leitor moderno, principalmente no que diz respeito ao léxico e à sintaxe. No entanto, a inteligibilidade maior dos textos pré-modernos, do ponto de vista dos falantes modernos, não quer dizer que a língua pré-moderna não tenha sofrido diversas mudanças durante seus três séculos de duração. De fato, é precisamente nesse momento que algumas das transformações mais marcantes surgiram.

Fonologia Quanto ao sistema sonoro da língua inglesa, podemos dizer que foi o aspecto da língua que mais mudou durante o período pré-moderno. A evolução fônica está mais evidente nas complexidades

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do sistema ortográfico do inglês, notório quanto à aparente falta de vinculação entre as letras utilizadas e a fonologia. Entretanto, grande parte das diferenças gráficas que são mantidas entre palavras homófonas, por exemplo, laud “louvar”, “elogiar” e lord “senhor”, “lorde” (/lɔ(r)d/); meet “encontrar” e meat “carne” (/mi:t/); wright “artesão”, “fabricante”, write “escrever”, e right “direito” (/rajt/), refletem diferenças de pronúncia que existiam no início do período pré-moderno. Da mesma maneira, as diferentes vogais em blood “sangue” /blʌd/, food “comida” /fu:d/ e good “bom” /gʊd/, são escritas da mesma maneira (ou seja, com oo) porque, nos tempos pré-modernos, as três palavras continham a mesma vogal, a qual se diversificou posteriormente. O impacto da fonologia pré-moderna precoce sobre a grafia do inglês é considerável, porque foi justamente durante esse momento histórico que as normas para representar a língua na escrita começavam a se fixar, depois da intensa variabilidade da Idade Média. Embora a padronização ortográfica não tenha ocorrido até o século XVIII, ou seja, bem no final da época sob investigação nesta unidade, as grafias que acabaram sendo selecionadas e consagradas nas gramáticas e nos dicionários tinham começado a se estabelecer socialmente como as consideradas “corretas” alguns séculos antes.

A grande mutação vocálica O principal evento que durou toda a extensão do período pré-moderno para desenvolver-se, passando por várias fases intermediárias, foi a mudança conhecida como a Grande mutação vocálica (Great Vowel Shift). Nessa mudança, a realização dos vinte fonemas vocálicos (7 vogais longas, 6 vogais breves e 7 ditongos) sofreu várias alterações, algumas das quais podem ser caracterizadas como uma mudança em cadeia – uma mudança que cria as condições para a ocorrência da mudança seguinte, e assim por diante. Na fase inicial, provavelmente em 1400, no dialeto do centro-sudeste usado nas imediações de Londres, as 7 vogais longas eram: /i:/, /e:/, /ɛ:/, /a:/, /ɔ:/, /o:/ e /u:/. Em termos fonéticos, a qualidade dessas vogais era muito próxima à pronúncia de i, ê, é, a, ó, ô, u em português, isso é [i e ɛ a ɔ o u] no alfabeto fonético internacional, com o fator adicional de que a articulação dessas vogais durava mais tempo (é isso que os dois pontos indicam). No inglês moderno, o resultado da Grande mutação vocálica, as correspondências entre esses fonemas medievais são as seguintes:

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/i:/: [i:] = [aj], por exemplo, child “criança”, fly “voar”, tide “maré”, pie “torta”, mice “ratos”. /e:/: [e:] = [ij], por exemplo, seed “semente”, field “campo”. /ɛ:/: [ɛ:] = [ij], por exemplo, bead “conta”, seat “assento”, complete “completar”, “completado”. /a:/: [a:] = [ej], por exemplo, name “nome”, make “fazer”, lame “coxo”, “manco”. /ɔ:/: [ɔ:] = [ǝʊ], por exemplo, boat “barco”, hope “esperar”, “esperança”, so “assim”, foe “inimigo”, both “ambos”. /o:/: [o:] = [u:], por exemplo, food “comida”, goose “ganso”, who “quem”, move “mover(-se)”. /u:/: [u:] = [aw], por exemplo, house “casa”, mouse “rato”, how “como”.

Repare como todas as pronúncias modernas são ditongos. Observe também que o segundo e o terceiro fonemas se fundiram em um único fonema, representado pela pronúncia [ij]. É devido a essa mudança que os nomes das letras a e i o u em inglês atualmente são [ej], [ij], [aj], [ǝʊ] e [ju:], respectivamente. Os resultados modernos da Grande mutação vocálica não surgiram de imediato, mas progrediram lentamente em uma série de etapas. Todos os fonemas vocálicos adotaram novas articulações mais fechadas (a altura da língua subiu), com a exceção das duas vogais mais altas, /i:/ e /u:/, que foram convertidas em ditongos primeiro, por volta do ano 1500 (BARBER, 1997, p. 106). Como esses dois fonemas não eram mais representados por vogais puras, não era problemático para a manutenção dos pares mínimos, se a pronúncia fonética daquelas vogais médio-altas /e:/: [e:] e /o:/: [o:] se realizasse de forma mais fechada que anteriormente, ou seja, como [i:] e [u:] respectivamente, já que os antigos alofones de /i:/ e /u:/ tinham passado para [ıi] e [ʊu] e, depois, para [ǝj] e [ǝw], respectivamente. Podia-se dizer [tri:] para tree “árvore” (antes [tre:]), porque o antigo [tri:] try “tentar” já era pronunciado [trıi] ou [trǝj]. Não havia nenhum risco de confundir os dois membros do par mínimo try e tree. A pronúncia mudou, mas as palavras continuavam distintas. Os contrastes fonêmicos não mudaram, mas os fones que os representavam na fala eram diferentes: /i:/: [i:] > /i:/: [ıi], /u:/: [u:] > /u:/: [ʊu], /e:/: [e:] > /e:/: [i:], /o:/: [o:] > /o:/: [u:].

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Fique atento Fonemas, fones e alofones Os sons fonéticos, fones, que servem para discriminar significados, são denominados fonemas da língua. Identificamos fonemas de uma língua aplicando testes de comutação. Isto é, procuram-se palavras distinguidas por uma diferença de apenas um som. Tais palavras são conhecidas como pares mínimos, por exemplo, ver e vir em português, distinguidas pelo contraste fonêmico /i/-/e/, ou /b/-/l/-/m/ em bata, lata, mata, ou em aba, ala, ama etc. Sons que têm articulações diferentes, porém, não contrastam palavras, são alofones, elementos do mesmo fonema, por exemplo, tia e dia, em português brasileiro, podem apresentar a pronúncia [′tʃi.ǝ] ou [′ti.ǝ], [′dʒi.ǝ] ou [′di.ǝ], dependendo da origem geográfica do falante, mas essa troca de [tʃ] e [t] ou [dʒ] e [d] não exerce nenhuma influência sobre o significado: uma “[′tʃi.ǝ]” é uma “[′ti.ǝ]”. Portanto, dizemos que, nas variedades do PB em que essa alternância ocorre, [tʃ] e [t] são alofones (variantes fonéticas) do fonema /t/, como [dʒ] e [d] são do fonema /d/. Dizemos que os fonemas contrastam (/t/ vs. /d/, vs. /k m r s z l e o a i/ etc.). No entanto, em termos articulatórios, os fones que representam esses fonemas /t d/ não são distintivos. Além disso, as variações entre os dois alofones de cada fonema são previsíveis: a articulação é condicionada pela presença ou ausência do som [i] imediatamente depois (o som/fone [i], não a letra i, pois, para muitos brasileiros, bate é pronunciado [′ba.tʃi] ou [′ba.tʃı], apesar da grafia). A ocorrência de fonemas, conforme a teoria, não é previsível; sua distribuição é teoricamente livre. Desse modo, podemos dizer que [t] e [tʃ] são os dois alofones que representam a unidade de som abstrata /t/, o fonema, na fala. Eles fazem o mesmo trabalho, embora não sejam foneticamente idênticos: [t] contrasta com [d] antes de vogais médias e baixas e [tʃ] contrasta com [dʒ], antes de [i]. Contudo, não é possível distinguir duas palavras opondo [t] com [tʃ] ou [d] com [dʒ], porque, no sistema fonológico do português brasileiro, esses pares são apenas “variantes” do mesmo fonema: /t/ ou /d/, como vimos no caso de dia e tia, cuja substituição acarreta uma mudança de significado.

Da mesma maneira que /e:/: [e:] > /e:/ [i:] e /o:/: [o:] > /o:/: [u:], uma vez que os alofones dos fonemas /i:/ e /u:/ tinham passado para ditongos, quando as vogais média-altas desenvolveram seus alofones altos, [i:] e [u:], respectivamente, surgiu a possibilidade de alçar os alofones dos fonemas médio-baixos /ɛ:/ e /ɔ:/ de [ɛ:] para [e:] e de [ɔ:] para [o:] também, sem pôr em risco os pares mínimos associados a esse contraste fonêmico. Portanto, ao longo do século XVI,

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boat “barco” e meat “carne” mudaram de [′bɔ:t] para [′bo:t] (pense: “bóót” > “bôôt”) e [mɛ:t] “méét” > [me:t] “mêêt”. Novamente, o alçamento inconsciente dos alofones das vogais média-baixas abriu mais espaço para a articulação de /a:/. Originalmente pronunciado [a:], no início do século XVI, houve uma pequena subida para [æ:], que continuou a se alçar, chegando a [ɛ:] por volta de 1600. Lembre-se de que /ɛ:/: [ɛ:] já tinha subido para [e:], de modo que não havia nenhum problema de homofonia, ou seja, mate “camarada”, “chapa” /ma:t/: [ma:t] > /ma:t/: [mæ:t] > /ma:t/: [mɛ:t] não era igual a meat “carne” /mɛ:t/: [me:t], nem a meet “encontrar” /me:t/: [mi:t]. No século XVII, novas mudanças ocorreram nas vogais longas, continuando o processo da grande mutação vocálica. O alofone de /ɛ:/: [e:] subiu ainda mais, tornando-se igual ao alofone de /e:/: [i:]. Nesse caso, o fonema vocálico mais alto não tinha subido, e, com a equivalência total entre seus alofones (agora os dois eram [i:]), /ɛ:/ e /e:/ deixaram de ser distintivos. Ou seja, a língua perdeu um contraste fonêmico: sea “mar” e see “ver”, meet “encontrar” e meat “carne” tornaram-se homófonos ([si:] e [mi:t]). À época de Shakespeare, essas palavras eram diferenciadas: [se:] “mar” e [si:] “ver”, [me:t] “carne” e [mi:t] “encontrar”. Nesse mesmo período, /a:/: [ɛ:] também respondeu a maior liberdade fonética e alçou seu alofone para [e:], ou seja, gate “portão” foi de [gɛ:t] para [ge:t]. Em meados do século XVII, algumas variedades do inglês não tinham alçado o [e:] de /ɛ:/ para [i:] (essa mudança era popular, já que as classes mais altas resistiam em adotá-la). Portanto, quando /a:/ foi de [ɛ:] para [e:], os dois fonemas /a:/ e /ɛ:/ coalesceram: mate e meat eram homófonos. Que essa pronúncia gozava de prestígio da segunda metade do século XVII ao início do século XVIII, fica evidente nas rimas na poesia dos grandes poetas da época, como John Dryden, que rimou make “fazer” e speak “falar”, que, atualmente, são [mejk] e [spijk], mas, naquele tempo, eram [me:k] e [spe:k]); Alexander Pope rimou shade “sombra” e mead “prado” [ʃe:d] e [me:d] (atualmente, [ʃejd] e [mi:d]); e Jonathon Swift rimou case [kejs] “caixa”, “caso” e peace [pe:s] “paz” (atualmente, [ke:s] e [pi:s]). O sotaque que fusionou /a:/ e /ɛ:/, porém, não é aquele do qual os sotaques do inglês padrão atual descendem. A grande maioria dos sotaques ingleses modernos exibe a fusão dos fonemas medievais /e:/ e /ɛ:/: os alofones dos dois coincidiram em [i:], ou seja, see “ver” e sea “mar”, meet “encontrar” e meat

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“carne”, been “sido” e bean “feijão”, são pares de homófonos. Entre aproximadamente 1650 e 1750, os dois sistemas, mate = meat e meet = meat, estavam em concorrência. Sabemos disso porque, além do tipo de rima mate = meat, em Dryden, encontramos speak “falar” rimado com seek “procurar” (i.e., [spi:k], [si:k]); na poesia de Pope, há scene “cenário” rimando com green “verde” ([si:n] vs. [gri:n]) e conceive [konsi:v] / believe [bǝli:v]. A natureza da competição entre esses sotaques provavelmente tenha algo a ver com a mobilidade social (BARBER, 1997, p. 108). À medida que membros bem-sucedidos das classes populares conseguiam entrar nas camadas sociais mais altas, é possível que alguns traços da sua fala, como a fusão de /e:/ e /ɛ:/, tenham ganhado prestígio e se difundido entre a classe média-alta, porque até meados do século XVIII o sotaque meet = meat predominava. Apenas um punhado de palavras modernas ainda apresenta a relíquia da pronúncia anterior, por exemplo, break “quebrar” [brejk], great “grande” [grejt], steak “filé” [stejk]. O [ej] dessas palavras exibe o resultado da fusão de /a:/ e /ɛ:/ medievais em [e:] (ou seja, mate = meat), porque, posteriormente, esse [e:] foi convertido em um ditongo [ej], ou seja, hoje, great “grande” [grejt] rima com mate “chapa”, “camarada” [mejt] e não com meat “carne” [mi:t]. Quadro 3.1  Mudanças cronológicas nas vogais longas pela grande mutação vocálica.

Inglês

Inglês padrão

Inglês pré-moderno

medieval

Etapa 2 Fonema +

Etapa 1

(surgem no séc.

alofone

(séc. XVI)

XVI; comuns até 1600)

/i:/: [i:]

[tǝjd]

[tǝjd]

/e:/: [e:]

[gri:n]

/ɛ:/: [ɛ:]

[mɛ:t]

/a:/: [a:]

[mæ:k]

moderno Etapa 3

(surgem ao longo do séc. XVII; majoritário até 1700)

“Received

Grafia

Pronunciation”

moderna

(inglês britânico meridional culto)

[tajd]

/tajd/

tide

[gri:n]

[gri:n]

/gri:n/

green

[me:t]

[me:t] ~ [mi:t]

/mi:t/

meat

[mɛ:k]

[me:k]

/mejk/

make

/ɔ:/: [ɔ:]

[bɔ:t]

[bo:t]

[bo:t]

/bǝʊt/

boat

/o:/: [o:]

[fu:d]

[fu:d]

[fu:d]

/fu:d/

food

/u:/: [u:]

[hǝws]

[hǝws]

[haws]

/haws/

house

Fonte: adaptado de Barber (1997, p. 108).

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Mudanças nas vogais breves As vogais breves mudaram pouco em comparação com as longas. Os seis fonemas medievais eram /i/ – /ɛ/ – /a/ – /ɔ/ – /ʊ/ – /ǝ/ (o último apenas em sílabas átonas). Em termos de suas realizações fonéticas, havia: 1. /i/: [ı], como no inglês moderno, escrito i ou y, por exemplo, pin “alfinete”, sit “sentar(-se)”, symbol “símbolo”. Esse som corresponde aproximadamente ao -e final em português brasileiro, por exemplo, mate, bate, hoje, que é menos tenso que i; 2. /ɛ/: [ɛ] era um pouco mais aberto que em RP (inglês britânico meridional culto) moderno, sofrendo um pequeno alçamento, que o aproximou a [e]. Algumas variedades mantêm a vogal aberta original, por exemplo, no norte da Inglaterra; outras variedades a fecharam ainda mais, como no inglês australiano e neozelandês, em que é quase [ı]. Essa vogal era escrita com e, como ainda é hoje. 3. /a/: [a] também sofreu alçamento para [æ], possibilitado pela subida na articulação de /ɛ/. Essa mudança provavelmente foi completada pelo começo do século XVII. A letra a era usada para representá-lo. 4. /ɔ/ medieval era [ɔ], como ó em português, mas foi baixado para [ɒ] durante o século XVII. 5. /ʊ/: [ʊ] era escrito com u na maioria dos casos, por exemplo, cut “cortar”, pull “puxar”, mas, às vezes, com o, como em wolf “lobo” e son “filho”, quando havia risco de “confusão de traços mínimos” (veja também Unidade 2). No século XVII, porém, /ʊ/ sofreu uma fissão, ou seja, dividiu-se em dois fonemas diferentes. Essa mudança encerrou um período no século XVI em que o fonema medieval apresentava dois alofones. O fone [ʊ] original permaneceu em alguns contextos, em geral antes de [l], ou depois de [w b p f] (fones labiais), por exemplo, bull “touro”, bush “arbusto”, full “cheio”, pudding “sobremesa”, “doce” e wolf “lobo”, e uma inovação, [ʌ] (coloque sua boca na posição de e desarredonde seus lábios). Finalmente, no século XVII, [ʌ] começou a contrastar com [ʊ], especialmente quando a vogal breve era o resultado de um abreviamento de [u:], criando pares mínimos, por exemplo, look [lu:k] “olhar” > [lʊk] versus luck [lʊk] “sorte” > [lʌk], convertendo [ʌ] de alofone em fonema /ʌ/, ou seja, com o par mínimo /lʌk/ versus /lʊk/. A grafia de look revela a origem da sua vogal (/o:/: [o:]

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medieval, que subiu para [u:] na grande mutação vocálica e depois ficou breve: [ʊ]). Esse contraste entre [ʊ] e [ʌ] não ocorreu em todos os dialetos ingleses. No norte da Inglaterra, ainda existe apenas um fonema, ora /ʊ/, ora /ʌ/, dependendo da região. O fato de que o surgimento de /ʌ/ foi tardio explica por que não existe uma convenção padrão para representar esse fonema na escrita de uma maneira diferente de /ʊ/. 6. /ǝ/ era uma vogal breve e átona (parecida foneticamente com o a em final de pata em PB), que surgiu da redução fonética de todas as outras vogais breves quando não recebiam o acento. Por isso, as grafias variam tanto para esse som: a e o u, por exemplo, father “pai”, about “sobre”, “ao redor de”, obey “obedecer”, submit “submeter”. /ı/, contudo, nunca gerava [ǝ] em contextos átonos e, no século XV, até existia a tendência inversa de trocar /ǝ/ por /ı/ na primeira sílaba de palavras, por exemplo, before “antes”, embark “embarcar”, eleven “onze”, select “selecionar”, em que o e representa /ı/. Ainda há bastante variação entre a distribuição desses fonemas, porém, antes de /r/, /ǝ/ sempre sobrevive, por exemplo, father “pai” e permit “permitir”. Quadro 3.2  Principais mudanças no sistema de vogais breves desde o inglês medieval pelo inglês pré-moderno.

Inglês

Inglês pré-moderno

medieval

Inglês moderno padrão

Etapa 2

Etapa 3

Valor fonêmico e fonético

Fonema +

Etapa 1

(surgem no séc.

(surgem ao longo

alofones

(séc. XVI)

XVI; comuns até

do séc. XVII;

/ı/: [ı]

[ʃıp]

1600) [ʃıp]

majoritário até 1700) [ʃıp]

/ɛ/: [ɛ]

[hɛdʒ]

[hɛdʒ]

[hɛdʒ]

/hɛdʒ/: [hɛdʒ]

/a/: [a]

[hat]

[hæt]

[hæt]

/hæt/: [hæt]

/ɔ/: [ɔ]

[dɔg]

[dɔg]

[dɒg]

/dɒg/: [dɒg]

/ʊ/: [ʊ]

[pʊt] [kʊt]

[pʊt] [kʊt, kʌt]

[pʊt] [kʌt]

/pʊt/: [pʊt] /kʌt/: [kʌt]

[′bɛtǝr]

[′bɛtǝr]

[′bɛtǝr]

/′bɛtǝ/: [′bɛtǝ]

[-ıd, -ǝd]

[-ıd, -ǝd]

[-ıd, -ǝd]

/-ǝd/: [-ıd, -ǝd]

em sotaque “RP” (inglês

Grafia moderna

britânico meridional culto) /ʃıp/: [ʃıp]

/ǝ/: [ǝ]

ship “barco” hedge “cerca-viva” hat “chapéu” dog “cachorro” put “colocar” cut “cortar” better “melhor” -ed “tempo passado”

Fonte: adaptado de Barber (1997, p. 111).

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Ditongos Os fonemas dos ditongos também sofreram várias modificações ao longo do período pré-moderno. O Quadro 3.3, a seguir, apresenta as principais mudanças. Quadro 3.3  Principais evoluções nos ditongos ingleses desde o período medieval.

Inglês pré-moderno Fonema medieval

Etapa 1 (séc. XVI)

Etapa 2

Etapa 3

(surgem

(surgem ao longo

no séc. XVI;

do séc. XVII;

comuns até

majoritário até

1600)

1700)

Pronúncia moderna em RP

Grafias modernas e exemplos

ew, ue, u, uCe (ieu, iew): new “novo”, blew “soprou”, /iw/

[viw]

[viw]

[vju:]

/ju:/, /u:/

hue “coloração”, true “verdadeiro”, use “usar”, lute “alaúde”, suit “terno” (adieu “adeus”, view “vista”) ew (eu, eau):

/ɛw/

[fɛw]

[fiw]

[fju:]

/ju:/, /u:/

dew “orvalho”, shrewd “astuto” (neuter “neutro”, beauty “beleza”) au, aw:

/aw/

[kawz]

[kɒ:z]

[kɒ:z]

/ɔ:/

cause “causa”, “causar”; law “lei”, “direito” ai, ay, ei, ey:

/aj/

[dɛj]

[dɛ:]

[de:]

/eı/

nail “prego”, day “dia”, eight “oito”, whey “soro de leite” ou, ow:

/ɔw/

[lɔw]

[lɔ:]

[lo:]

/ǝʊ/

soul “alma”, know “saber”, “conhecer”

/ɔı/

[dʒɔj]

[dʒɔj]

[dʒɔj]

/ʊj/

[bʊjl]

[bʊjl]

[bajl]

oi, oy: noise “barulho”, royal “real” /ɔj/

oi, oy: boil “ferver”, destroy “destruir”

Fonte: adaptado de Barber (1997, p. 112, 116).

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O inglês pré-moderno

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A influência de /r/ sobre as vogais Uma causa de muitas mudanças no sistema vocálico do inglês pré-moderno era a consoante /r/. No inglês antigo e durante o período medieval, é provável que esse fonema tenha sido realizado por fones vibrantes (vibrante simples [ɾ], como o r intervocálico em para em PB, ou depois de alguma outra consoante em início de sílaba, como branco ou atrás, ou uma vibrante múltipla [r], como r- ou –rr- em espanhol, ou em alguns variedades regionais do PB). Naturalmente, na maioria das variedades inglesas, /r/ é [ɹ], um aproximante alveolar – em que a lâmina da língua sobe em direção à arcada alveolar, mas não chega a encostar nela. Originalmente, o fonema /r/ era pronunciado em todas as posições, antes e depois de vogais e consoantes em final e começo de sílaba. Pelo final do século XVI e até o meio do século XVII, contudo, as vogais /ı ɛ ʊ/ seguidas por /r/ sofreram uma mudança fonética para [ǝ] quando o /r/ vinha antes de uma consoante ou em final de palavra, ou seja, bird [bırd] “pássaro”, herb [ɛrb] “herva”, curse [kʊrs] “maldizer” > [bǝrd], [ǝrb], [kǝrs]. Essa mudança possibilitou a presença de [ǝ] em sílabas tônicas e gerou contrastes fonêmicos, por exemplo, com /ı/ e /ʊ/. O fonema rótico também influenciou a duração dos reflexos pré-modernos das vogais medievais /a/ e /ɔ/, de modo que yarn “fio” passou de /jærn/: [jaɾn] para [ja:ɾn], e corn “trigo” foi de /kɒrn/: [kɒɾn] para [kɒ:ɾn]. Nenhuma dessas mudanças fonéticas afetou as vogais que precediam um /r/ intervocálico. Várias palavras inglesas apresentam variantes em que os sons descendentes de /ɛr/ e /ar/ medievais (/ɜː/ e /ɑ:/) trocam com frequência durante o período pré-moderno, por exemplo, clerk “funcionário”, “amanuense”, certain “certo”, herd “manada”. Em geral, apenas uma variante sobrevive na língua moderna, mas, às vezes, as duas continuam, normalmente com alguma diferença de significado, por exemplo, person “pessoa” e parson “vicário”. Em Shakespeare, há rimas entre palavras grafadas com a e com e, por exemplo, departest “partes” / conuertest “convertes”, art “és” / conuert “converte” etc. Em outros casos, a presença de /r/ seguindo uma vogal fez que ela não evoluísse como esperado. Por exemplo, boat “barco” e boar “javali” compartilhavam a mesma vogal [ɔ:] na Idade Média. No entanto, a vogal em boat sofreu alçamento para [o:] e depois tornou um ditongo para [ǝʊ]; boar

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Gramática histórica da língua inglesa

ainda exibe a mesma vogal que a língua medieval [ɔ:]. A mesma diferenciação ocorreu em meat “carne” e bear “urso”, em que a primeira exibe [ɛ:] > [e:] > [ej], enquanto bear continua com a vogal média-baixa. Hare “lebre” experimentou alçamento de [a:] > [æ:] > [ɛ:], enquanto a vogal tônica em make “fazer” percorreu toda a sequência histórica: [a:] > [æ:] > [ɛ:] > [e:] > [ej]. Essa capacidade de /r/ pós-vocálico de, digamos, congelar certas mudanças, levou os fonemas medievais /ɛ:/, /a:/ e /ai/ a se fusionarem em /ɛ:/ (ingl. mod., /ɛǝ/) criando uma série de homófonos, por exemplo, pair “par”, pare “aparar” e pear “pera”. Como as grafias revelam, as vogais medievais eram distintas, depois, /ai/: [ai] > [æi] > [ɛi] > [ɛ:], /a/: [a:] > [æ:] > [ɛ:] e /ɛ:/ : [ɛ:], convergiram, não progredindo para [ei] ou [i:], pela presença de /r/. Quadro 3.4  Diversas influências de /r/ sobre a vogal que precede.

Inglês pré-moderno

Fonema medieval

Etapa 1

Etapa 2

Etapa 3

/ɛr/

[ɛɾb]

[ǝɹb]

/ır/

[bıɾd]

[bǝɹd]

/ʊr/

[kʊɾs]

/ar/

[jaɾn]

/ɔr/

Pronúncia RP

Grafia moderna

[ǝɹb]

/hɜ:b/

herb “erva”

[bǝɹd]

/bɜ:d/

bird “pássaro”

[kʊɹs]

[kǝɹs]

/kɜ:s/

curse “maldizer”

[jaɹn]

[ja:ɹn]

/jɑ:n/

yarn “fio”

[kɔɾn]

[kɒɹn]

[kɒ:ɹn]

/kɔ:n/

corn “trigo”

/i:r/

[fǝjɾ]

[′fǝj.ǝɹ]

[′faj.ǝɹ]

/′fajǝ/

fire “fogo”

/e:r/

[pi:ɾ]

[′pi:.ǝɹ]

[′pi:.ǝɹ]

/pıǝ/

peer “perscrutar”

/ɛ:r/

[bɛ:ɾ]

[bɛ:ɹ]

[bɛ:ɹ]

/bɛǝ/

bear “urso”

/a:r/

[fæ:ɾ]

[fɛ:ɹ]

[fɛ:ɹ]

/fɛǝ/

fare “passagem”, “alimento”

/ajr/

[pɛjɾ]

[pɛ:ɹ]

[pɛ:ɹ]

/pɛǝ/

pair “par”

/ɔ:r/

[mɔ:ɾ]

[mɔ:ɹ]

[mɔ:ɹ]

/mɔǝ/, /mɔ:/

more “mais”

/o:r/

[mu:ɾ]

[mu:ɹ]

[mu:ɹ], [mɔ:ɹ]

/mʊǝ/, /mɔǝ/, /mɔ:/

moor “pântano”

/u:r/

[flǝʊɾ]

[′flǝʊ.ǝɹ]

[′flɑʊ.ǝɹ]

/flɑʊ.ǝ/

flour “farinha”, flower “flor”

Fonte: adaptado de Barber (1997, p. 121).

Mudanças no sistema de consoantes Diferente das vogais, o sistema de consoantes mudou pouco ao longo do período pré-moderno. Barber (1997, p. 124) identifica os seguintes fonemas consonantais no repertório da língua no começo do período:

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O inglês pré-moderno



Oclusivas: Labial – /p/ /b/. Alveolar – /t/ /d/. Velar – /k/ /g/.



Africadas: Alvéolo-palatal – /tʃ/ /dʒ/.



Fricativas: Labiodental – /f/ /v/. Interdental – /θ/ /ð/. Alveolar – /s/ /z/. Palatal – /s/. Glotal – /h/.



Soantes: Líquida – /l/ /r/. Nasal – /m/ /n/. Semivogal – /j/ /w/.

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Ao repertório medieval, dois fonemas foram acrescentados durante o período pré-moderno: um nasal velar, /ŋ/, e uma fricativa palatal, /ʒ/. O nasal velar surge a partir de um alofone nasal velar do fonema /n/. Esse alofone aparecia sempre antes dos sons velares [k g], por exemplo, sing “cantar” /sıng/: [sıŋg], thank /θænk/: [θæŋk] “agradecer”. Por volta de 1600, o /g/ final desapareceu, fazendo que [ŋ] e [n] entrassem em contraste em pares mínimos, por exemplo, sin “pecado” /sın/: [sın] versus sing /siŋ/: [sıŋ]; run “correr” /rʊn/: [rʌn] versus rung “degrau de escada de mão” /rʊŋ/: [rʌŋ]. Essa mudança ocorreu precocemente nos dialetos medievais orientais e na fala popular londrina, mas ainda hoje, no centro-oeste e centro da Inglaterra, é possível ouvir [sıŋg], [rʊŋg]. Outro acréscimo fonológico, /ʒ/, surgiu da assimilação (aproximação articulatória) do grupo [zj] + vogal, no século XVII. Por exemplo, vision “vista” era pronunciado [′vizjǝn] no século XVI. Em meados do século XVII, a fricativa alveolar sonora e a semivogal palatal coalesceram foneticamente, produzindo [ʒ], que compartilha os traços articulatórios dos dois sons ancestrais, gerando [′vıʒǝn]. Outros contextos, além de -sion, incluíam palavras

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com [ju:] como measure “medida” e pleasure “prazer”. O novo som encaixava bem no repertório fonológico existente, porque podia servir como par sonoro da fricativa palatal surda /ʃ/, que até então estava sem correspondente sonoro, diferente da maioria das consoantes da língua. Outras alterações no quadro fonológico das consoantes envolviam perdas de fonemas total ou parcialmente em certas posições. Um caso é o fonema /h/, que exibia três alofones: [h] em início de sílaba, [ç] depois de vogais anteriores em final de palavra e antes de /t/, e [x] depois de vogais posteriores em final de palavra e antes de /t/. As grafias de daughter “filha”, eight “oito”, high “alto”, rough “áspero”, through “por” e thought “pensou” indicam a antiga presença de /h/ não inicial com gh. Os dialetos orientais já tinham perdido [ç] e [x] em todas as posições; [h] continuava em início de sílaba. Nos outros dialetos, entretanto, os três alofones persistiam até o século XVI. Ou seja, eight era [ɛjçt] e thought [θɔʊxt]. Até o século XVII, as variantes sem /h/ passaram a dominar. Nos dialetos orientais que perderam /h/ cedo, uma das consequências da queda da fricativa glotal foi o alongamento compensatório da vogal que precedia esse fonema, de modo que [ʊx] e [ıç] > [u:] e [i:], respectivamente: drought “seca” [drʊxt] > [dru:t] e light “luz” [lıxt] > [li:t]. Por serem longas, as vogais passaram a ser articuladas como ditongos, de acordo com as mudanças da grande mutação vocálica, produzindo as pronúncias modernas, [lajt] e [drawt]. Algumas palavras em inglês moderno exibem /f/ escrito com gh, por exemplo, draught “corrente de ar”, laugh “rir”. Essas pronúncias são originárias de outros dialetos ingleses que penetraram a linguagem da capital antes de aproximadamente 1625 (BARBER, 1997, p. 126). O período pré-moderno viu a perda de vários grupos consonantais em início de palavra, como /kn-/, /gn-/ > /n/, por exemplo, knight “cavalheiro” /najt/, gnat “pium” /næt/; /wr-/ > /r-/, por exemplo, write “escrever” /rajt/; /hw-/ > /w/, tornado witch “bruxa” e which “qual” homófonos. Outra mudança que afetou a língua foi a perda de /r/ antes de consoantes ou em final de palavra, por exemplo, board “tábua” [bɒɹd] > [bɒ:d], stair “escada” [stɛ:ɹ] > [stɛ:], art “arte” [ɑ:ɹt] > [ɑ:t]. A queda de /r/ foi um fenômeno dos dialetos do centro-leste e leste ao redor de Londres, no século XVIII. Com esta mudança, as vogais que precediam o /r/ sofreram um processo de alongamento

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compensatório – depois de perder algum fonema, outro fonema adjacente altera sua alofonia para incluir um fone longo, de modo a manter a mesma duração da palavra, apesar de ter perdido um segmento. Por exemplo, board “tábua” /bɒrd/: [bɒɹd] > /bɒd/ [bɒd] > [bɒ:d]. Apesar de perder o /r/ pós-vocálico, a duração da palavra não alterna, porque a vogal /ɒ/: [ɒ] é alongada para [ɒ:].

Morfossintaxe Na área da gramática, várias mudanças ocorreram ao longo do período pré-moderno. No entanto, em sua maioria, não constituem evoluções tão marcantes quanto os processos que atingiram o sistema fonológico. Nesta seção apresentaremos algumas das principais mudanças que ocorreram nos subsistemas morfológico e sintático do inglês ao longo do período pré-moderno. Cabe advertir, porém, que a separação desses dois conjuntos não é absoluta; haverá vários momentos em que alterações em uma área acarretarão modificações na outra.

Substantivos Quanto aos substantivos, podemos dizer que na época pré-moderna o paradigma de três formas se instaurou definitivamente. Sendo estas (1) uma forma básica, (2) o plural e (3) uma forma possessiva. Na maioria dos casos, o plural básico e o possessivo são idênticos em termos da sua estrutura fonológica, por exemplo, (1) girl “menina”, (2) girls “meninas”, e (3) girl’s ~ girls’ “da menina” ~ “das meninas”, ou seja, (1) /′gǝrl/, (2 e 3) / gǝrls/ (observe: na grafia contemporânea, o uso convencional ou não do apóstrofo para distinguir plural simples e singular e plural do possessivo não existia ainda. É importante também explicar como a organização morfológica é representada, já que não corresponde às convenções para transcrever a fonética e a fonologia. Ao indicarmos a morfologia, transcrevemos {girl-}+{-Ø}, {girl}+{-s}, em que o fonema /-s/ é ambíguo, porque pode representar ou o morfema do plural, ou o morfema do possessivo. Apenas alguns substantivos são livres dessa ambiguidade, como woman (base sing.) – woman’s (poss. sing.) – women (base pl.) – women’s (poss. pl.).

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Fique atento Como identificar morfemas Uma transcrição morfológica costuma aparecer entre chaves, por exemplo, {3a sing., masc.} e os diferentes morfemas (unidades mínimas de significado) são separados pelo caractere , com hífens expressando os pontos de contato, por exemplo, {am-}+{-e-}+{-mos} = amemos, {menin-}+{-a-}+{-s} = meninas. Os morfemas são as unidades linguísticas às quais podemos atribuir um mesmo significado, por exemplo, {-mos} em um verbo expressa sempre “primeira pessoa do plural” (nós ...-mos); o {-s} de meninas expressa “plural”. Podemos afirmar isso porque, ao aplicarmos um teste de comutação, como no caso da detecção de fonemas a partir dos alomorfes, se trocarmos uma forma por outra, enquanto mantemos o restante idêntico, o significado mudará de maneira sistemática. Por exemplo, substituir {am-} por {danç-} muda o tipo de ação de “amar” para “dançar”; ao trocar {-s} por {-mos} ou {-m}, mudamos de pessoa (“2a p. sing.”, “1a p. pl.”, “3a p. pl.”, respectivamente). Se alteramos a vogal temática em am+{-e-}+mos para am+{-a-}+mos, afetamos o modo do verbo, que passa de subjuntivo (= “vamos amar”, “eles querem que amemos”) para indicativo (= “amamos”), isto é, de algo desejado, porém, apenas potencial, irreal, para um significado de afirmação, de concretude. Se trocarmos {-s} por {-ste}, reconhecemos uma mudança no tempo do verbo, de presente para passado (amas versus amaste) – embora veja a continuação sobre o que realmente está indicando o passado. Às vezes, algumas formas do morfema variam sob determinadas circunstâncias, como os fonemas são manifestados por diferentes alofones em diferentes ambientes. Em tais casos, falamos que o morfema apresenta alomorfes (variantes contextuais), por exemplo, no pretérito perfeito, o paradigma é amei – amaste – amou – amamos – amastes – amaram. A vogal temática, aquela que marca qual é a classe de conjugação do verbo (amar tem /a/, porque é da primeira conjugação), é a vogal /a/ na maioria das pessoas: amaste, amamos, amastes, amaram. Na primeira e terceira pessoas do singular (amei e amou), porém, deparamos com /e/ e /o/, que correspondem ao /a/ nas demais pessoas (os morfemas marcadores de pessoa são {-i} e {-u}, respectivamente). Consequentemente, dizemos que o morfema que indica que um verbo pertence à primeira classe conjugativa {-1a conjug.-} exibe três alomorfes: /-a-/ como padrão, /-e-/ antes de /i/, e /-o-/ antes de /u/. Se trocarmos /a/ por /e/, podemos mudar do modo indicativo para o subjuntivo. Para identificar morfemas, dependemos de contrates de forma e significado. Portanto, é preciso observar que, em alguns paradigmas, existem correspondências entre morfemas patentes (que têm uma forma fonológica) e outros que são latentes (não têm forma fonológica). Isto é, existe um tipo de morfema que é “invisível”, que ocorre quando encontramos uma alternância significante

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entre algo e nada. Como essa ausência de fonemas transmite algum significado, trata-se de um morfema, o morfema zero. Por exemplo, no paradigma do tempo presente, temos: Amo – amas – ama – amamos – amais – amam. Bebo – bebes – bebe – bebemos – bebeis – bebem. Durmo – dormes – dorme – dormimos – dormis – dormem. Em todas as conjugações podemos perceber diversos morfemas de pessoa: -o, -s, -mos, -is, -m; há várias vogais temáticas: -a-, -e-, -i- (embora na segunda e na terceira conjugação, observamos alomorfia de /e/ em tu, ele, eles e /i/ para nós, eles), e podemos notar as raízes lexicais {am-}, {beb-}, {dorm-} (observe: /durm-/ na primeira pessoa é outro alomorfe, nessa ocasião na raiz). Contudo, consta que na terceira pessoa (ama, bebe, dorme) não existe nenhuma forma explícita para exibir essa pessoa. As vogais /a/, /e/, /e/ são as manifestações da vogal temática. No entanto, essa ausência é significante: ela indica que o verbo está na terceira pessoa do tempo presente. É esse vazio que ainda consegue assinalar algo que os linguistas denominam como morfema zero, representado por {Ø}. Consequentemente, quando escrevemos a estrutura morfológica de uma forma como come, é preciso listar o morfema zero, ou seja, come é {com-}+{-e-}+{-Ø}. Estritamente, é necessário adicionar ainda outro morfema zero a come, como também é preciso para bebo e outras formas do tempo presente, porque nessas formas verbais não há indicação explícita de tempo. Vejamos com um verbo no tempo pretérito imperfeito – caminhávamos –, aqui podemos desmembrar os morfemas em: {caminh-}+{-a-}+{-va-}+{-mos} (raiz + vogal temática + tempo [pret. imp.]. + pessoa [1a pl.]). Se comparamos a estrutura com caminhamos, fica evidente que não há nenhum marcador explícito de tempo para o presente: Raiz

V.T. Temp. Núm. + pess.

{caminh-}+{-á-}+{-va-}+{-mos} = 1a pl. pret. imp. do indic. (1a conjug.) {caminh-}+{-a-}+{-Ø-}+{-mos} = 1a pl. pres. do indic. (1a conjug.) {caminh-}+{-e-}+{-Ø-}+{-mos} = 1a pl. pres. do subj. (1a conjug.) {caminh-}+{-Ø-}+{-Ø-}+{-o}

= 1a sing. pres. do indic. (1a conjug.)

{caminh-}+{-e-}+{-Ø-}+{-i}

= 1a sing. pret. perf. do indic. (1a conjug.)

{caminh-}+{-a-}+{-sse-}+{-m}

= 3a pl., imperf. do subj. (1a conjug.)

{caminh-}+{-a-}+{-Ø-}+{-Ø}

= 3a sing. pres. do indic. (1a conjug.)

{beb-} +{-e-}+{-sse-} + {mos} = 1a pl., imp. do subj. (2a conjug.)

A esmagadora maioria dos substantivos formava o morfema do plural com /-es/, escrito -es ou –s, por exemplo, boy(e)s “meninos”, cats ~ cattes “gatos”, dogs ~ dogges “cachorros”.

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Inicialmente, esse morfema do plural exibia um alomorfe: /-ǝs/. Barber (1997, p. 144) explica que, por volta de 1300, o /ǝ/ foi elidido, especialmente em palavras com três sílabas ou mais, por exemplo, hunteres “caçadores” /′hʊntǝrǝs/ > /′hʊntǝrs/, mas kinges /′kıngǝs/ “reis” > /′kıngǝs/ ‒ ou seja, surgiu um novo alomorfe do plural, /-s/. Ao longo do século XIV, contudo, o alomorfe /-ǝs/ foi transformado em /-ǝz/ por uma mudança que vozeou todas as fricativas surdas em final de palavra. Desse modo, quando o shwa foi elidido no século XV, surgiram dois modos de formar o plural, um com /-z/ (< /-ǝz/ < /-ǝs/) e um com /-s/ (< /-ǝs/), por exemplo, hunters /′hʊntǝr/+/-s/, mas kings /′kıng/+/-z/ (o marca a divisão entre os morfemas). No século XVI, o sistema morfológico foi reorganizado de modo que /-s/ aparecia depois de consoantes surdas, por exemplo, cattes, cats /kæts/, e /-z/ era usado depois de consoantes sonoras, por exemplo, dogges, dogs /dɒgz/. Quando uma palavra terminava em /s z ʃ ʒ tʃ dʒ/, a vogal /ǝ/ ~ /ı/ ficou, para facilitar a articulação, por exemplo, lasses “meninas” /′læsǝz/, mazes “labirinto” /′mɛ:zǝz/, bushes “arbustos” /′bʊʃǝz/, watches “vigia” /′watʃǝz/, judges “juízes”, “julga” /′dʒʊdʒǝz/ (são comuns grafias com i ou y em tais palavras, por exemplo, horsis ~ horsys /′hɔrsız/ (ingl. mod. horses, em que /-ız/ e /-ǝz/ ocorrem, dependendo da variedade regional do falante), o que revela que /-ız/ era frequente (BARBER, 1997, p. 144).

Exemplos Algumas palavras em inglês que hoje são singulares, por exemplo, dice “dado” e bodice “corpete”, eram originalmente formas plurais das palavras die “dado” e body “corpo” e, por extensão, “parte de cima de um vestido”. A expressão inteira era a pair of bodies “dois corpos”, ou seja, a parte da frente e de trás do corpete. Como os dados e as partes do corpete geralmente ocorrem, pelo menos, em pares, com o tempo, os falantes perderam o sentido de que se tratava de plurais e, por conseguinte, passaram a usar bodice /′bɒdıs/ como singular e /′dǝjs/ como indistinto por número (one dice, two dice, three dice “um dardo”, “dois dardos”, “três dardos”), de modo que não sofressem as mesmas mudanças fônicas que os demais plurais. Reparem como a última fricativa ainda é surda (/s/). Bodice até ganhou um novo plural regular com /-ız/: bodices /′bɒdısız/. O plural de “body” é “bodies” /bɒdiz/, com /z/. Outras palavras cuja história é interessante são pea “ervilha”, cherry “cereja” e sherry “xerez”. As formas antigas eram pease /pi:s/, cherrise /tʃɛriz/ (um

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empréstimo do francês, cerise) e sherris (empréstimo do espanhol xerez, ou seja, vinho fortificado da cidade espanhola de Jerez de la Frontera). Quando o sistema de marcar o plural se estabilizou, essas palavras soavam como se fossem plurais, porque terminavam em /-ız/. Portanto, os falantes criaram novos singulares, “tirando” o que eles acreditavam ser o morfema do plural, e produzindo pea /pi:/, cherry /tʃɛrı/ e sherry /ʃɛrı/!

Outra classe de plurais em inglês envolve um morfema zero, por exemplo, one sheep “uma ovelha”, two sheep “duas ovelhas”, three deer “três cervos” (observe: um pirex, dois pirex ou cinco alferes, nove ourives, doze ônibus, em português). Na Idade Média e no período pré-moderno, existiam mais substantivos desse tipo, por exemplo, winter “inverno(s)”, lamb “cordeiro(s)”, year “ano(s)”, horse “cavalo(s)”. Por outro lado, várias palavras que hoje são do tipo zero eram plurais normais antigamente, por exemplo, pike : pikes “lúcio” > pike : pike, salmon : salmons “salmão” > salmon : salmon, trout : trouts “truta” > trout : trout. Além do possessivo com {-es}, era mais comum uma estratégia que indicava a relação possessiva por simples justaposição, por exemplo, Friar Lawrence cell “a cela do Frade Lourenço” (em Romeu e Julieta, Ato 2, cena 5), versus my poore Fathers body “o corpo do meu pobre pai” (em Hamlet, Ato 1, cena 2). Ainda outra forma de indicar o possessivo era com o adjetivo possessivo his (e raramente her, com mulheres), por exemplo, a sea-fight ‘gainst the Count his gallies “Uma batalha marinha contra as galeias do Conde” (em Twelfth Night, Ato 3, cena 3), Lucilla her company “a companhia da Lucília” (em Euphues: The Anatomy of Wit de John Lyly), como nos mostra Barber (1997, p. 146). Essas formas his /ız/ e her /ǝr/ são antiquíssimas, tendo origens nos pronomes do inglês antigo. A forma his, portanto, quando átona, soava como o sufixo /-ǝz/ ~ /-ız/ do possessivo. Esse provavelmente seja o motivo para as grafias Mrs Sands his maid para “a criada da senhora Sands”, quando Mrs Sands é uma mulher e o possessivo para o feminino é “her” (OXFORD ENGLISH DICTIONARY, 1607 apud BARBER, 1997, p. 146), ou seja, equivalente a Mrs Sands’s maid na ortografia moderna.

Adjetivos Até o final do século XV, todas as flexões de caso tinham sido eliminadas dos adjetivos. No uso, a principal diferença entre o

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Gramática histórica da língua inglesa

uso pré-moderno e o atual de adjetivos envolve a expressão dos graus de comparação: feliz [grau neutro] – mais/menos feliz [grau comparativo de superioridade/inferioridade] – o mais/menos feliz [grau superlativo de superioridade/inferioridade]. Em inglês moderno, a formação dos graus com -er (comparativo) e -est (superlativo) tende a ser em palavras de até duas sílabas, ou more ..., most ... geralmente em palavras de três sílabas ou mais. Por exemplo, happy > happier > happiest (“feliz”, “mais feliz”, “o mais feliz”), long > longer > longest (“comprido”, “mais comprido”, “o mais comprido”), tall > taller > tallest (“alto”, “mais alto”, “o mais alto”), versus massive > more massive > most massive (“massivo”, “mais massivo”, “o mais massivo”), uncomfortable > more uncomfortable > most uncomfortable (“incômodo”, “mais incômodo”, “o mais incômodo”). Na linguagem pré-moderna, essas duas alternativas estavam praticamente em distribuição livre, e muitas vezes é possível encontrar as duas técnicas aplicadas simultaneamente, por exemplo, This was the most unkindest cut of all “Esse foi o corte mais cruel de todos” (Shakespeare, Julius Caesar, Ato 3, Cena 2). John Lyly escreve delicatest “o mais delicado” (ingl. mod., most delicate), e o famoso escritor de panfletos elisabetano, Thomas Nash, escreveu magnificentest “o mais magnífico” (ingl. mod., most magnificent). Por outro lado, os Ben Jonson e Shakespeare escreveram fitter e more fit (“mais conveniente), sweeter e more sweet (“mais doce”), enquanto a língua moderna prefere sempre a primeira variante do par.

Sistema pronominal Talvez a mudança mais marcante no sistema pronominal seja a perda da distinção entre o singular e plural na segunda pessoa: thou – thee – thine – thy e ye – you – yours – your. Os motivos para a substituição de ye por you não são claros, mas Barber (1997, p. 148) propõe que um fator relevante na extensão do acusativo seja a semelhança sonora com thou no singular: /θow/ e /jow/, respectivamente. As primeiras evidências da troca datam do século XIV, mas a generalização de you ocorreu depois de 1540. Sir Thomas Elyot (b. circa 1490) e a tradução do Novo Testamento de William Tynedale distinguem ye e you como antigamente, mas Roger Ascham (b. 1515) mistura as duas formas no nominativo,

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com you predominante no acusativo, um uso comum no último terço do século XVI. Até os tempos de Shakespeare (1564-1616), you estava estabelecido para o sujeito, com ye como uma variante menos comum. Nesse mesmo período, ye começa a surgir para o acusativo também, revelando a perda de distinção entre os dois casos nos pronomes da segunda pessoa do plural, que é completada no século XVII, e a eliminação de ye em qualquer função é concluída até o fim desse século (BARBER, 1997, p. 149). Quadro 3.5  Mudanças no sistema pronominal durante o período pré-moderno.

Os pronomes pessoais e os adjetivos possessivos, c. 1500. Caso

Número Pessoa

Singular 1

2

Nom.

I

thou

he

Acus.

me

thee

him

a

a

Plural

a

3 m.

3 f.

3 n.

1

she

hit, it

we

ye

they

her

hit, it, him

us

you

them, hem

a

a

a

2a

3a (m.f.n.)

Poss.

mine

thine

his

hers

his

ours

yours

theirs

Dat.

my, mine

thy, thine

his

her

his

our

your

their

Os pronomes pessoais e os adjetivos possessivos, c. 1600. Caso

Número Pessoa

Singular

Plural

1

2

3 m.

3 f.

3 n.

1

2a

3a (m.f.n.)

Nom.

I

thou

he, ’a

she

it, ’t

we

you (ye)

they

Acus.

me

thee

him

her

it, ’t

us

you (ye)

them, ’em

a

a

a

a

a

a

Poss.

mine

thine

his

hers

his

ours

yours

theirs

Dat.

my (mine)

thy (thine)

his

her

his, it

our

your

their

Os pronomes pessoais e os adjetivos possessivos, c. 1700. Caso

Número Pessoa Nom.

Singular

Plural

1

2

3 m.

3 f.

3 n.

1

2a

3a (m.f.n.)

I

you

he

she

it

we

you

they

a

a

a

a

a

a

Acus.

me

you

him

her

it

us

you

them, ’em

Poss.

mine

yours

his

hers

its

ours

yours

theirs

Dat.

my

your

his

her

its

our

your

their

Fonte: adaptado de Barber (1997, p. 148, 152, 157).

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Por motivos de espaço, o Quadro 3.5 exibe apenas algumas variantes gráficas para os pronomes (as mais modernas). A segunda pessoa do singular era escrita thow, the, thyn(e) com frequência. Nos demais pronomes, podemos indicar o surgimento de it e its para o neutro, substituindo hit e his, que encontramos na Bíblia de King James na frase (Mateus 5:13): [...] if the salt haue lost his sauour, wherewith shall it be salted? “[...] e se o sal está insípido, com que se há de salgar?”. Observe também as formas alternativas da terceira pessoa do singular do masculino e do plural (’a e ’em), ainda comuns na linguagem não padrão, especialmente ’em. No caso de ’em, é provável que seja uma relíquia dos pronomes anglo-saxônicos para o caso acusativo da terceira pessoa do plural hem, que foi substituído pelo empréstimo escandinavo them (veja Unidade 2). Ao longo do século 1700, o pronome ancestral para a segunda pessoa do singular era substituído pelo pronome da segunda pessoa do plural. Isso eliminou a distinção entre thou, como o pronome de intimidade, e ye/you como o pronome honorífico (como você versus o senhor, a senhora) que existia antes, provavelmente sob a influência do francês tu e vous. Ye/you era a forma usada por inferiores sociais a pessoas hierarquicamente superiores (o criado ao patrão, os filhos aos pais, plebeus a nobres, ao rei). Inversamente, o superior social usava thou para se dirigir a seus inferiores sociais. As camadas sociais mais baixas tendiam a usar thou entre si, enquanto as classes mais altas se referiam como ye/you como a forma neutra, porém, respeitosa. Se eles queriam expressar intimidade, por exemplo, entre um casal ou amigos próximos, podiam dizer thou. O uso de thou para alguém da mesma classe ou para um superior podia constituir um insulto. Por exemplo, em Twelfth Night de Shakespeare (Ato 3, cena 2), quando Sir Andrew Aguecheek está preparando uma carta para desafiar seu rival, Sir Toby Belch lhe diz: [...] if thou thou’st him some thrice, it shall not be amiss, “[...] se tu o tuteares umas três vezes, não será inoportuno”. Até 1600, you tornara-se a forma usual para qualquer interlocutor com um mínimo de pretensão à cortesia. Thou implicava relações sociais ou emocionais especiais, como as reações das pessoas das classes superiores ao costume dos igualitários quakers de se dirigir a todos com thou (BARBER, 1997, p. 154-157; CRYSTAL, 1995, p. 71).

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Ao longo do período, o sistema ternário tradicional de pronomes/adjetivos demonstrativos this/these – that/ those – yon(der) (“este” / “estes” – “esse”/ “esses” – “aquele”/ “aqueles” [visíveis]) perde o terceiro membro para gerar o sistema binário atual de this/ these versus that/those. Yon era o membro fraco desse grupo, porque o contexto de uso era mais restrito, pois era utilizado apenas para apontar algo distante do falante e do ouvinte, porém visível, uma função que foi tomada por that/those.

Sistema verbal Ao longo do período pré-moderno, o sistema verbal da língua inglesa passou por várias mudanças que o aproximaram do sistema moderno. Houve uma redução de algumas formas, principalmente da segunda pessoa do singular, devida à eliminação do pronome thou por you. Também ocorreram mudanças em termos das classes conjugativas, às quais certos verbos pertenciam. Além disso, surgiu um remodelamento do sistema verbal em que o antigo modo subjuntivo foi gradualmente substituído por construções perifrásticas com os verbos modais. Quadro 3.6  O sistema verbal por volta de 1500.

“carregar”

“da”

“andar”

“cortar”

“encontrar”

“ter”

1. Base

beare

giue

walk

cutte

meete

haue

2. 2 p. sing. (thou)

bear(e)st

giu(e)st

walk(e)st

cutt(e)st

meet(e)st

hast

3. 3a p. sing.

beareth

giueth

walketh

cutteth

meeteth

hath

4. + aux. = progressivo.

bearing

giuing

walking

cutting

meeting

hauing

a

5. passado/irreal

bare

gaue

walked

cutte

mette

hadde

6. passado + 2a p. sing.

bar(e)st

gau(e)st

walkedst

cutt(e)st

mett(e)st

hadst

borne

giuen

walked

cutte

mette

hadde

7. particípio + aux. = pret. perf.; voz passiva

Fonte: adaptado de Barber (1997, p. 165).

Das sete formas verbais exibidas no Quadro 3.6, quatro (2, 3, 5 e 6) sempre são finitas – ou seja, sempre levam marcadores de tempo, modo, número e pessoa –, e duas (6 e 7) são não finitas – sem os marcadores de tempo etc. A forma básica pode ser finita, por exemplo, they beare “eles carregam”, ou não finita, por exemplo,

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to beare “carregar”. Os números 5 e 6 indicam tempo passado. Observem que 1, 5 e 7 são idênticos em cutte “cortar” (ingl. mod., cut), e em quatro dos sete verbos citados, as formas 5 e 7 são iguais (walk, cutte, meet, haue). O único verbo na língua desta fase pré-moderna que não segue esse padrão de, essencialmente, sete formas verbais básicas é o verbo to be “ser”, que exibe mais formas em seu paradigma: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10.

base: be. 1a p. sing. presente: am. 3a p. sing.: is. gerúndio: being. 1a, 3a p. sing. passado: was. 1a, 2a, 3a pl. passado: were. particípio: been. 1a, 2a, 3a pl. presente: are (arne). 2a p. sing. presente: art ~ beest. 2a p. sing. passado: wast ~ wert.

-es e -eth na terceira pessoa do singular A substituição de thou por you gradualmente eliminou a desinência da segunda pessoa do singular em -(e)st e as formas alternativas de to be. A flexão -eth da terceira pessoa do singular concorria com outra variante morfológica, chegada do norte, com três alomorfes: /-s/ (depois de consoantes surdas), /-z/ (depois de consoantes sonoras) e /-ǝz/ ~ /-ız/ (depois de fricativas e africadas). A grafia -eth foi incluída na seminorma escrita da chancelaria, pois a variante setentrional não chegara ainda no sul no final da Idade Média. No entanto, {-ǝs} continuava a crescer durante todo o reinado da dinastia dos Tudor, até aparecer na mesma frequência que {-ǝθ} nos textos do final do século XVI (BARBER, 1997, p. 166), embora o uso oral certamente fosse mais frequente ainda que no meio conservador da escrita. Sabemos, por exemplo, que em 1500 {-ǝs} já era comum na fala popular de Londres (BARBER, 1997, p. 167) e, por 1600, comentários contemporâneos que permitem entrever que, embora ainda se escrevesse -eth, a pronúncia mais frequente era /-es/. Gradualmente, {-ǝs} substituía {-ǝθ} ao longo do século XVII, resistindo mais tempo nos verbos auxiliares, como doth “faz”, hath “tem”, e entre os outros mais frequentes, por exemplo, saith “diz”.

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Um plural em -es Um fenômeno no paradigma verbal que surgiu no período pré-moderno, entretanto não perdurou para a língua padrão moderna, foi o uso de {-ǝs} como indicador de plural. Por exemplo, em The Tempest (Ato 3, cena 3), o velho conselheiro Gonzalo diz: By’r lakin, I can goe no further, Sir, / My old bones akes, ... (“Por nossa Senhorinha, não consigo andar mais, Senhor, / Meus velhos ossos doem”). Repare que o verbo está no plural (“doem”), mas a forma verbal termina em -es. Historicamente, a desinência do plural com {-ǝs} é da região setentrional, mas ocorre com certa frequência durante o século XVI, como evidenciam esses outros exemplos em outras obras de Shakespeare: These high wilde hilles, and rough vneeuen waies, Drawes out our miles, and makes them wearisome.1 Richard II (Act 2, Scene 3). Untimely stormes, makes men expect a Dearth2 Richard III (Act 2, Scene 3). The great man downe, you mark his favourites flies, The poore aduanc’d, makes Friends of Enemies.3 Hamlet (Act 3, Scene 2).

É interessante notar que o primeiro exemplo é uma fala de um personagem do norte: o duque de Northumberland. O uso não é restrito a Shakespeare, e os personagens que empregam o morfema não são das classes populares, indicando que, embora minoritária, a forma gozava de certo prestígio. Depois, porém, na primeira metade do século XVII, o plural em {-ǝs} desaparece rapidamente. Não há ocorrências nas obras dos poetas John Milton e John Dryden, por exemplo, que escreviam na segunda metade do século XVII, mas ainda aparece em diálogos, com personagens que falam dialetos rústicos ou em falas vulgares. O morfema sobrevive até hoje em variedades regionais não padrão. 1 “Esses morros altos e desertos e os caminhos irregulares e duros, / Prolongam nossa viagem e tornam-na cansativa.” 2 “Tempestades fora de estação levam os homens a temer escassez.” 3 “O grande homem caído, repare como seus favorecidos fogem, / O pobre levantado, faz amizades com inimigos.”

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Verbos fracos e verbos fortes Outra área do sistema verbal em que houve mudanças é nas classes dos verbos fracos e fortes. Já existia uma tendência para verbos fortes (os que modificam a vogal da raiz para indicar diferenças de tempo e função, por exemplo, run – ran – run, sing – sang – sung etc.) se converterem em verbos fracos. Por exemplo, no inglês antigo, os verbos brew “infusar”, “fermentar”, fare “passar bem/mal”, fold “dobrar”, help “ajudar”, melt “derreter”, seethe “ferver”, starve “morrer” (depois, “morrer de fome”), suck “chupar” e sup “sorver” eram fortes. Até a época pré-moderna, esses verbos tinham passado a integrar a classe dos verbos fracos. Por outro lado, alguns poucos verbos fracos foram realocados entre os paradigmas fortes no século XVI, por exemplo, dig “cavar” (dig : digged > dig : dug), spit “cuspir” (spit : spitted > spit : spat), stick “espetar” (stick : sticked > stick : stuck). No período pré-moderno, verbos que eram fortes em inglês antigo atualmente são fracos, e tendiam a exibir várias formas, por exemplo, climb “escalar”: climbed ~ clomb ~ clamb, delve “cavoucar”: delved ~ dolve, help “ajudar”: helped ~ holp, melt “derreter”: melted ~ molte, swell “encher”: swelled ~ swole (a primeira forma do pretérito que existe na língua moderna). Ainda outros verbos, fortes em inglês antigo e moderno, vacilavam entre as duas classes na era pré-moderna, por exemplo, shake “sacudir”: shook ~ shaked, cling “agarrar”: clung ~ clinged, drive “conduzir”, “dirigir”: drove ~ drave ~ drived, grind “moer”: ground ~ groond ~ grinded, shine “brilhar”: shone ~ shoon ~ shined, run “correr”: ran ~ run ~ ron ~ runned. Os particípios também variavam entre formas fortes e fracas, por exemplo, help: holp ~ holpen (forte) versus helped ~ holped (fraco) para “ajudado”. O modo subjuntivo No inglês pré-moderno, o indício de que um verbo está no modo subjuntivo e não no indicativo é quando a segunda ou terceira pessoa do singular não está flexionada, e encontramos apenas a forma-base. Exemplificamos o fenômeno do Novo Testamento de William Tynedale, publicado em 1525:

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Agre with thyne adversary quicklie / whyls thou art in the waye with hym / lest that adversary deliver the to the iudge / and the iudge delivre the to the minister / and then thou be cast into preson. I say vnto the verily: thou shalt not come out thence till thou have payed the vtmost farthinge.4

Repare que as palavras grifadas no trecho não são delivereth/ delivers (“entrega”), thou art (“és”), thou hast (“tens”). Tal como em português, no inglês antigo e medieval, o modo subjuntivo servia para expressar noções em que havia elementos de desejo, dúvida ou hipótese, necessidade, ordem ou vontade, por exemplo, “você vai” (indic.) versus “quero que você vá” (subj.), “ela está em casa” (indic.) versus “talvez ela esteja em casa”, “você vem” (indic.) versus “é preciso que você venha”, “você come” (indic.) versus “peço que você coma” (subj.). Na língua moderna, o modo subjuntivo praticamente desapareceu. Apenas algumas frases feitas arcaicas mantêm traços dele, por exemplo, if need be “se for preciso”, if I were you “se eu fosse você”. É muito comum, hoje, ouvir pessoas dizerem if I was you (lit., “se eu era você”). As relíquias do subjuntivo sobrevivem em formas do verbo to be “ser”. O motivo dessa permanência é, em parte, porque esse verbo apresentava mais formas subjuntivas do que os demais verbos, por exemplo: Pres. indic. I am, thou art, he/she/it is, we, you ~ ye, they are. Pres. subj. I be, thou beest, he/she/it be, we/ye ~ you/they be. Pret. indic. I was, thou wast ~ wert, he/she/it was, we, you ~ ye, they were. Pret. subj. I were, thou were ~ wast ~ wert, he/she/it were, we, you ~ ye, they were. Como em português, em inglês medieval e pré-moderno o subjuntivo podia expressar desejos, quando aparecia em orações principais, por exemplo:

4 “Pactua com teu adversário depressa / enquanto tu ainda estás de boa com ele / com receio de que esse adversário te entregue ao juiz / e que o juiz te entregue ao pastor / e então tu serás atirado na prisão. Em verdade, digo-te: tu não sairás dali até que tiveres pago a última moedinha.”

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Though not by Warre, by Surfeit dye your King, As ours by Murther, to make him a King. Edward thy Sonne, that now is Prince of Wales, Dye in his youth, by like vntimely violence. Thy selfe a Queene, for me that was a Queene, Out-liue thy glory, like my wretched selfe.5 Richard III (Act 1, Scene 3)

Tal como em português, os desejos na maldição da rainha Margarete são expressos mediante o subjuntivo, hoje substituído pelo uso do verbo modal may (BARBER, 1997, p. 171-172). Os verbos auxiliares modais Embora ainda no futuro, já que no inglês pré-moderno o modo subjuntivo estava vigoroso, o grande beneficiário gramatical da diminuição do uso do modo subjuntivo no verbo será uma classe de verbos auxiliares que cresceu bastante durante o período pré-moderno, os modais. No final da fase medieval, existiam doze verbos auxiliares modais: can e couth, dare e durst, may e might, mote e must, shall e should, will e would. Esses auxiliares diferem dos verbos auxiliares “primários”, be, do e have, cuja função era mais ligada a distinções gramaticais de tempo, voz e modo. Em 1500, couth /ku:ð/ já era arcaico; a pronúncia típica era /ku:d/ coud. A grafia could surge na primeira metade do século XVI (BARBER, 1997, p. 177), por analogia com a grafia de would e should. O l nunca existiu na pronúncia! Will /wıl/ concorria com as variantes wull /wʊl/ e woll /wɒl/. Will e would já apresentavam as formas reduzidas /l/ e /d/, que aparecem quando a palavra é átona. Um fator que separava os auxiliares modais dos demais verbos era a ausência de to quando esses verbos aparecem com outro verbo lexical, por exemplo, I ought crave pardon “eu devo suplicar perdão” (BARBER, 1997, p. 177). Outro fator era a falta do morfema flexional{-eth} ou {-es} na terceira pessoa do singular, por exemplo, he can, she will, e não he cans, she wills (quando 5 “Embora não por Guerra, [que] de Excesso morra seu Rei, / Como o nosso por Assassinato, para tornar Rei a esse. / [Que] Eduardo, seu filho, que é Príncipe de Gales agora, / Como Eduardo, nosso filho, que era Príncipe de Gales, / Morra ainda jovem, por violência igualmente inoportuna. / [Que] tu mesma uma Rainha, como eu que era Rainha, / Sobreviva tua glória, como eu mesma, desditosa.”

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essa última forma ocorre, é do verbo lexical will “determinar”, “desejar”, e não do auxiliar). Os modais não têm infinitivo, nem gerúndio. A segunda pessoa do singular flexionava-se com {-(ǝ) st}, por exemplo, canst, coud(e)st, may(e)st etc., com a exceção de must e durst, que já terminavam em /-st/. Shall e will também exibiam formas ligeiramente variadas: thou shalt e thou wilt. Originalmente, os doze verbos formavam pares distinguidos por tempo (presente vs. passado), por exemplo, can – coud, will – would, dare – durst, shall – should etc. Essa simetria acabou quando mote desapareceu, deixando must sem par. A perda de mote provavelmente ocorreu porque seu significado de “possibilidade” ou “permissão” era duplicado por may. No século XVI, need “precisar” ganhou função modal (como precisar em português). Ought, originalmente o passado de to owe “dever” (mais um paralelo entre os sistemas em inglês e português), desenvolveu funções modais também com o sentido de “devia”, no século XVI. Portanto, nessa altura do período pré-moderno, existiam dez auxiliares modais em cinco pares e três individuais: can – could, dare – durst, may – might, shall – should, will – would, must, need, ought.

Sintaxe Na área da sintaxe, os auxiliares modais também participavam em algumas mudanças na ordem de palavras ou de construções, mas a principal mudança foi o crescente uso de do “fazer” como verbo auxiliar em perguntas e afirmações. Por exemplo, em inglês moderno, o uso de do está estritamente regulado: é possível dizer he does know e he did know (“ele sabe”, “ele sabia”), mas não pode aparecer quando há outro auxiliar modal, ou seja, he does may see ou she does have sung não são possíveis. Na língua moderna, quando não há outro auxiliar, é preciso incluir do em negações (I do not know them “Eu não os conheço”) e em quase todas as perguntas (Do you know him? “Você o conhece?”). Em afirmações positivas, porém, o uso de do é opcional e, quando ocorre, recebe ênfase prosódica e funciona para destacar a ação verbal: I do know him! (algo como: “Eu conheço ele sim!”). Diferente do inglês moderno, a língua pré-moderna formava perguntas e negações sem do com regularidade, e a presença de do em uma sentença afirmativa positiva não indicava nenhuma ênfase. Barber (1997, p. 193) exemplifica a flexibilidade da língua

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pré-moderna nesse respeito com vários exemplos tirados das peças Richard III e Henrique IV, Parte II, de Shakespeare:

Perguntas positivas com e sem do: How do’st thou feele thy selfe now? (“Como você se sente agora?”) Wherefore do you come? (“Por que você vem?”) Why lookes your Grace so heauily to day? (“Por que sua Alteza parece tão carregado hoje?”) How cam’st thou hither? (“Como você veio até aqui?”)



Perguntas negativas com e sem do: Awak’d you not in this sore Agony? (“Você não acordou com essa dor terrível?”) Did not goodwife Keech the Butchers wife come in then, and call me gossip Quickly? (“E a Nhá Bacon, a esposa do açougueiro não entrou nesse momento e me chamou de “Fofoqueira Célere?”)



Negativos com e sem do: O do not slander him. (“Ó, não o calunies.”) He sends you not to murther me for this. (“Ele não te enviou para assassinar-me por isso.”) Beleeve him not. (“Não creia nele.”)



Afirmações com e sem do: Who from my cabin tempted me to walk. (“Quem me persuadiu sair a pé da minha cabana.”) It makes a man a Coward ... it accuseth him ... it checkes him ... it detects him. (“Isso faz um covarde de um homem ... acusa-o ... detém-no ... descobre-o.”) Where eyes did once inhabit. (“Onde olhos antigamente habitavam.”) Your eyes do menace me. (“Seus olhos me ameaçam.”) And that same vengeance doth he hurle on thee. (“E essa mesma vingança ele joga em você.”)

É durante o período pré-moderno que os sistemas de regras sintáticas que regulam o uso de do se desenvolveram. Gradualmente, entre o século XVI e XVII, do tornou-se normal em sentenças interrogativas e negativas e caiu em desuso em sentenças declarativas, a não ser que alguma ênfase era precisa.

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Gráfico 3.1  Porcentagem de “do” como verbo auxiliar em sentenças interrogativas e negativas ao longo do período pré-moderno e o breve uso de “do” em sentenças declarativas afirmativas.

% 90 80 70

Perguntas negativas Perguntas afirmativas Sentenças declarativas

60 50

negativas Sentenças declarativas

40

afirmativas

30 20 10 1500

1600

1700

Fonte: adaptado de Barber (1997, p. 195).

Léxico O período pré-moderno foi um momento de grande enriquecimento lexical para a língua inglesa. Se as principais fontes de empréstimos tinham sido o francês e, em um segundo lugar distante, o latim durante a Idade Média, o novo florescimento da cultura clássica que ocorreu durante a Renascença tornou as línguas clássicas uma fonte riquíssima de novos vocábulos. A crescente tendência para traduzir textos das línguas clássicas para o vernáculo levava os tradutores a importar muitíssimos termos do grego antigo e do latim, quando eles sentiam que uma palavra equivalente adequada faltava no inglês. Além disso, outras línguas vernáculas contribuíram com muitos vocábulos, especialmente o italiano, o espanhol e, como sempre, o francês. As investigações científicas de Galileu e Copérnico, entre muitos outros, criaram a necessidade de novas palavras para se referir aos fenômenos sendo descobertos, tal como o contato com outras culturas “exóticas” e suas línguas no Novo Mundo, na Índia e no Oriente.

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Um exemplo clássico da atitude entre os letrados renascentistas ingleses para melhorar a língua da nação e, principalmente, da corte, por meio da introdução de novos vocábulos é o prefácio de The Governour (O Governador) de 1531, escrito por Sir Thomas Elyot, ministro, poeta e estudioso. O objetivo do livro, dedicado ao rei Henrique VIII, era um programa para formar os que futuramente serviriam na corte. I late considering (most excellent prince and myne onely redoughted soveraigne lorde) my dutie that I owe to my naturall contray with my fayth also of aliegeaunce and othe [...] I am (as Gode juge me) violently stered to devulgate or sette fourth some part of my studie, trustyng therby tacquite me of my dueties to God, your hyghnesse, and this my contray. Wherfore takinge comfort and boldenesse, partly of your graces moste benevolent inclination towarde the universall weale of your subjectes, partly inflamed with zele, I have now enterprised to describe in our vulgare tung the fourme of a juste publike weale: [...] Which attemptate is nat of presumption to teache any persone, I my selfe havinge moste nede of teachinge: but onely to the intent that men which wil be studious about the weale publike may fynde the thinge therto expedient compendiously writen. And for as moch as this present boke treateth of the education of them that hereafter may be deemed worthy to be governours of the publike weale under your hyghnesse [...] I dedicate it unto your hyghnesse as the fyrst frutes of my studye, verely trustynge that your most excellent wysedome wyll therein esteme my loyall harte and diligent endeavour [...] Protestinge unto your excellent majestie that where I commande herin any one vertue or dispraise any one vice I meane the generall description of thone and thother without any other particular meanyinge to the reproche of any one person. To the which protestation I am now e dryven throughe the malignite of this present tyme all disposed to malicious detraction [...] (BAUGH; CABLE, 1994, p. 209-210).6 6 “Eu, tendo considerado ultimamente, (o mais excelente príncipe e meu único e formidável senhor soberano) meu dever que devo a meu país de nascimento com a minha fé também de lealdade e outr[...] Sou (que Deus me julgue) conduzido impetuosamente a divulgar ou apresentar alguma parte de meus estudos, confiante nisso de me quitar meu dever a Deus, a vossa alteza e a este país meu. Portanto, tomando consolo e confiança, em parte da disposição muito benevolente da vossa mercê, para com a prosperidade universal de vossos sujeitos, [e] em parte exaltado por zelo, eu me aventurei a descrever na nossa língua vulgar a forma de um órgão político público [e] justo: [...] Tal tentativa não é pela presunção de ensinar a nenhuma pessoa, eu mesmo havendo a maior necessidade de instrução: mas, apenas pela intenção de que os

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Todas as palavras grifadas nesse texto são inovações nos tempos de Elyot. As palavras education e dedicate (“educação”, “dedicar”) são as primeiras atestações na língua inglesa e duas outras – esteme (= ingl. mod., esteem “estimar”) e devulgate (“divulgar”)  – apareceram pela primeira vez com esse significado apenas no ano anterior (BAUGH; CABLE, 1994, p. 210). Ainda outras (benevolent, enterprise, studious, endeavour, protest, reproach, malignity), embora atestadas anteriormente, não estavam generalizadas. Muitos escritores adotavam o empreendimento de enriquecer a língua com empréstimos com entusiasmo e alguns abusavam das novas alternativas lexicais para exibir sua cultura e conhecimento superiores. Por outro lado, um movimento oposto criticava a importação de empréstimos como “corrupção” da língua inglesa e, principalmente, objetavam ao uso de empréstimos que eles consideravam desnecessários por haver palavras nativas adequadas ou por serem pouco claros. Os críticos dos empréstimos cultos chamavam essas novas expressões de inkhorn terms (“palavras de tinteiro”). Sir Thomas Cheke declarou-se para os puristas em uma carta que escreveu a Sir Thomas Hoby, tradutor de O livro do cortês de Baldassare Castiglione (publicado em Veneza em 1528) em 1561: I am of the opinion that our own tung shold be written cleane and pure, unmixt and unmangeled with borrowing of other tungs, wherein if we take not heed by tijm, ever borrowing and never payeng, she shall be fain to keep her house as bankrupt. For then doth our tung naturallie and praisablie utter her meaning, when she bourroweth no counterfeitness of other tungs to attire herself withall, but useth plainlie her own, with such shift, as nature, craft, experiens and folowing of homens que forem estudiosos acerca da prosperidade pública possam encontrar o tema oportuno e concisamente escrito. E na medida em que esse livro se trata da educação daqueles que posteriormente forem julgados merecidos de serem governadores da prosperidade pública sob vossa alteza [...] eu o dedico a vossa alteza como os primeiros frutos dos meus estudos, confiando verdadeiramente em que vossa mais excelente sabedoria, por isso, estimará meu coração leal e [meu] empenho diligente [...]. Protestando a vossa excelente majestade que onde eu comendo aqui qualquer virtude ou desaprovo de qualquer vício, quero dizer a descrição geral da primeira e do outro, sem nenhum outro significado específico para censurar qualquer pessoa em particular. A tal protesto eu sou conduzido pela perversidade destes tempos atuais, tão dispostos a detração maliciosa [...].”

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other excellent doth lead her unto, and if she want at ani tijm (as being unperfight she must) yet let her borow with such bashfulness, that it mai appeer, that if either the mould of our own tung could serve us to fascion a woord of our own, or if the old denisoned wordes could content and ease this neede, we wold not boldly venture of unknowen wordes (BAUGH; CABLE, 1994, p. 212).7

Os ataques direcionados aos inovadores eram frequentes e, muitas vezes, eram violentos. Such men therfore, that in deede are archdoltes, and woulde be taken yet for sages and philosophers, maie I not aptlie calle theim foolelosophers? For as in this behalfe I have thought good to borowe a littell of the Rethoriciens of these daies, who plainely thynk theim selfes demygods, if lyke horsleches thei can shew two tonges, I meane to mingle their writings with words sought out of strange langages, as it it were alouely thyng for theim to poudre theyr bokes with ynkehorne termes, although perchaunce as unaptly applied as a gold rynge in a sowes nose. That and if they want suche farre fetched vocables, than serch they out of some rotten Pamphlet foure or fyve disused woords of antiquitee, therewith to darken the sence unto the reader, to the end that who so understandeth theim maie repute hym selfe for more cunnyng and litterate: e who so doeth not, shall so much the rather yet esteeme it to be some high mattier, because it passeth his learning. Sir Thomas Chaloner, em sua tradução ao inglês de 1549 de O elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam (BAUGH; CABLE, 1994, p. 213).8 7 “Eu sou da opinião de que a nossa língua deveria ser escrita de forma limpa e pura, sem mistura e mutilação por empréstimos de outras línguas, pelos quais, se não tivermos cuidado, com o tempo, sempre tomando emprestado e nunca pagando, ela será obrigada a manter a sua casa como bancarrota. Pois, [é] então que a nossa língua enuncia seu significado natural e louvavelmente, quando ela toma emprestada nenhuma falsificação de outras línguas com o qual se vestir, mas usa simplesmente sua própria [roupa], com tal troca a qual a natureza, a arte, a experiência e o seguir de outra [qualidade] excelente puder conduzi-la; e se ela sentir falta em determinado momento (como, sendo imperfeita, ela terá necessidade), deixem, contudo, que ela tome emprestado com tanto acanhamento que pareça que, se ora o molde da nossa própria língua tivesse podido servir-nos para adaptar uma palavra nossa própria, ora se as palavras de antigamente tivessem conseguido satisfazer e aliviar tal necessidade, nós não teríamos apostado em palavras desconhecidas.” 8 “Tais homens, portanto, que em [suas] ações são grandes tolos, e gostariam de ser considerados sábios e filósofos, não posso chamá-los apropriadamente de “tol-ósofos”? Logo, nesse repeito eu pensei de bom tamanho tomar emprestado um pouco dos retóricos desses dias, os quais, evidentemente, se acham semideuses, se, como sanguessugas desmesuradas, podem mostrar duas línguas; quero dizer, [que] misturam suas escritas com palavras caçadas de lín-

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Os inovadores reagiam a seus críticos, apontando para a longa história de empréstimos na língua inglesa e enfatizavam que as próprias línguas clássicas também tinham realizado exatamente o mesmo em seu tempo. Eles argumentavam que a estranheza que as novas palavras causavam acabaria desaparecendo no decorrer do tempo, à medida que as pessoas se familiarizassem. O gramático e ortógrafo, Thomas Mulcaster, expressou esse sentimento de moderação e de costume assim: [...] make the thing familiar if it seme to be strange. For all strange things seme great novelities, and hard of entertainment at their first arrivall, till theie be acquainted: but after acquaintance theie be verie familiar, and easie to entreat ... Familiaritie and acquaintance will cause facilitie, both in matter and in words.9

Desse modo, embora em seu auge em meados do século XVI, a rejeição dos “termos de tinteiro” tinha passado até o final do reinado de Elisabeth I. Apenas o abuso da prática de tomar emprestado palavras de outras línguas pelo pedante ou pelo amador exagerado. Tantos desses vocábulos entraram na língua e ficaram até hoje, sendo tão enraizados que é difícil pensar que, para os elisabetanos, tais palavras eram inovações suspeitas que provocavam espanto e estranhamento. Por exemplo, quando Sir Thomas Elyot quis discutir o conceito de “democracia”, ele se expressou da seguinte maneira: “This manner of governaunce was called in Greke democratia, in Latine popularis potentia, in Englisshe ‘the rule of the comminaltie’” (“Este modo de governar era chamado em grego de democratia, em latim, de popularis potentia, em inglês, de ‘o governo da comunalidade’”). Ou seja, se a única maneira de que dispunha para se referir a esse conceito era a perífrase trambolha, não seria mais elegante e eficiente adotar a palavra guas estranhas, como se fosse algo bonito maquiarem seus livros com “termos de tinteiro”, apesar de eventualmente tão mal empregados quanto um anel de ouro no focinho de uma porca. Assim [é], e, se querem vocábulos trazidos à força, então eles procuram em algum panfleto podre quatro ou cinco palavras da antiguidade, com as quais pretendem ofuscar o sentido para o leitor, a fim de que, quem quiser que os compreender, possa gloriar-se de muito inteligente e instruído, e quem quiser que não [os entenda], ainda mais o valha por achá-lo uma questão profunda, porque ultrapassa seu entendimento.” 9 “[...] fazem a coisa familiar se ela está estranha. Porque toda coisa estranha parece grande novidade e, difícil de curtir quando recém-chegada, até que ela for conhecida: mas, após conhecida, elas são muito familiares e fáceis de tratar. [...] Familiaridade e conhecimento causarão facilidade, tanto em conteúdo e em palavras.”

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original? Outro exemplo é “all manner of lerning, which of some is called the ‘world of science’, of other the ‘circle of doctrine’, which is in one word of Greke, encyclopedia” (“todo tipo de conhecimento, que por alguns é chamado o ‘mundo da ciência’, por outros o ‘círculo da doutrina’, que é em uma só palavra grega, enciclopédia”). Gráfico 3.2  Proporção de novos itens lexicais que entravam na língua por século. 7.000 6.000 5.000 4.000 3.000 2.000

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Fonte: adaptado de Crystal (1995, p. 72).

As palavras que entravam na língua durante o período pré-moderno, especialmente até o século XVII, eram principalmente das classes gerais: verbos, nomes, adjetivos. Baugh e Cable (1994, p. 218) apresentam uma seleção avulsa de tais empréstimos:

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Substantivos – allurement “encantamento”, allusion “alusão”, anachronism “anacronismo”, atmosphere “atmosfera”, autograph “autógrafo”, capsule “cápsula”, denunciation “denunciação”, dexterity “destreza”, disability “inabilidade”, disrespect “desrespeito”, emanation “emanação”, excrescence “excrescência”, excursion “excursão”, expectation “expectativa”, halo “halo”, inclemency “inclemência”, jurisprudence “jurisprudência”.

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Adjetivos – abject “abjeto”, agile “ágil”, appropriate “apropriado”, conspicuous “conspícuo”, dexterous “destro”, “hábil”, expensive “caro”, external “externo”, habitual “habitual”, hereditory “hereditário”, impersonal “impessoal”, insane “insano”, jocular “jocular”, malignant “maligno”. Verbos – adapt “adaptar”, alienate “alienar”, assassinate “assassinar”, benefit “aproveitar”, consolidate “consolidar”, disregard “desconsiderar”, emancipate “emancipar”, eradicate “erradicar”, erupt “irromper”, excavate “escavar”, exert “exercitar”, exhilarate “recrear”, “divertir”, exist “existir”, harass “assediar”, meditate “meditar”.

A contribuição das línguas clássicas era especialmente grande na área dos verbos. A maioria das palavras na lista vem do latim, mas algumas foram tomadas pelo próprio latim da língua grega, por exemplo, anachronism, atmosphere, autograph. Existem outras desse tipo, por exemplo, antipathy “antipatia”, antithesis “antítese”, caustic “cáustico”, chaos “caos”, chronologia “cronologia”, climax “clímax”, crisis “crise”, critic “crítico”, dogma “dogma”, emphasis “ênfase”, enthusiasm “entusiasmo”, epitome “epítome”, parasite “parasita”, parenthesis “parêntese”, pathetic “patético”, pneumonia “pneumonia”, scheme “esquema”, skeleton “esqueleto”, system “sistema”, tactics “tática”. O fato de que a maioria desses termos é parecida na forma e no significado em inglês e em português é porque eles têm a mesma fonte (latim e grego renascentista). A grande maioria das palavras gregas que entraram no inglês antes dos tempos modernos veio por meio do latim ou do francês, embora alguns vocábulos, por exemplo, anonymous “anônimo”, catastrophe “catástrofe”, criterion “critério”, ephemeral “efêmero”, idiosyncracy “idiossincrasia”, lexicon “léxico”, ostracize “condenar ao ostracismo”, “banir”, “exilar”, polemic “polêmica”, tantalize “tantalizar”, thermometer “termômetro, são empréstimos diretos do grego, via os novos estudos sobre essa língua na Renascença (BAUGH; CABLE, 1994, p. 219). Algumas palavras, entraram sem nenhuma alteração, por exemplo, climax, appendix, epitome, exterior, delerium, axis (iguais à forma latina). Outras palavras sofreram algumas alterações para naturalizá-las à fonologia e à morfologia do inglês, por exemplo, conietural+is > conjectural “conjetural”, consult+are > consult “consultar”, exclusion+em > exclusion “exclusão”. Às vezes, as desinências latinas foram adaptadas: conspicu+us >

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conspicu+ous, extern+us > extern+al. A desinência -tas foi substituída por -ty, porque o inglês já tinha tantas palavras de origem francesa em que o -tatem do acusativo latino tinha evoluído naturalmente para -té, por exemplo, securitatem > sûrté “segurança”. Exemplos incluem: brevitas > brevity “brevidade”, securitas > security. O mesmo valia para as palavras latinas terminadas em -antia e em -ancia > -ance ~ -ancy, -ence ~ -ency, ou adjetivos em -bilis > -ble. Outros verbos ingleses foram produzidos do particípio, por exemplo, exterminate “exterminar”, regulate “regular”, create “criar”, consolidate “consolidar” < exterminatus, regulatus, creatus, consolidatus. Tal uso do particípio latino com a base para derivar verbos seguia a prática comum em inglês de formar verbos a partir de adjetivos, sendo que o particípio latino (como em português), muitas vezes, pode ter a função de adjetivo, por exemplo, as práticas consolidadas. Das línguas dominantes na Europa no século XVI, notavelmente, do francês, do espanhol e do italiano, o inglês tomou diversos empréstimos:





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Do francês – alloy, ambuscade “emboscada”, bigot “preconceituoso”, bizarre “bizarro”, bombast “canhão” > “bombástico”, “arrogância”, chocolate “chocolate” (< espanhol < nauátle), comrade “camarada”, detail “detalhe”, duel “duelo”, entrance “entrada”, essay “ensaio”, explore “explorar”, genteel “gentil”, mustache “bigode”, naturalize “naturalizar”, probability “probabilidade”, progress “progresso”, shock “choque”, surpass “sobrepujar”, “ultrapassar”, talisman “talismã”, ticket “bilhete”, “ingresso”, tomato “tomate” (< espanhol < nauátle). Do italiano – algebra “álgebra” (< árabe), balcony “sacada”, “varanda”, cameo “camafeu”, capricio “capricho”, cupola “cúpula”, design “desenho”, granite “granito”, grotto “gruta”, piazza “praça”, portico “pórtico”, stanza “estância”, “estrofe”, stucco “estuque”, trill “trilo”, “trêmulo”, violin “violino”, volcano “vulcão”. Do italiano via francês – battalion “batalhão”, bankrupt “bancarrota”, bastion “bastião”, brigade “brigada”, brusque “brusco”, carat “quilate”, cavalcade “cavalgada”, charlatan “charlatão”, frigate “fragata”, gala “gala”, gazette “gazeta”, grotesque “grotesco”, infantry “infantaria”, parakeet “papagaio”, “periquito”.

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Do espanhol ou português – alligator “jacaré” (< el lagarto), anchovy “anchova”, apricot “damasco” (< albaricoque < árabe), armada, armadillo “tatu”, banana (< mande [África Ocidental]), barricade “barricada”, bastion “bastião”, bilbo “espada” (< Bilbao), bravado “bravura”, brocade “brocado”, canibal (< caribe), canoe “canoa” (< taíno [aruaque]), cedilla “cedilha”, cocoa “cacau” (< nauátle [uto-asteca]), corral “curral”, desesperado, embargo, hammock “rede” (< taíno [aruaque]), hurricane “furação” (< huracán < taíno [arauaque]), maize “milho” (< maíz < taíno [aruaque]), mosquito, mulatto, negro, peccadillo “pecadilho”, potato “batata” ( to channel “canalizar” (v.), invincible “invencível” (adj.) > invincible “o/um invencível” (subst.), dizzy “vertiginoso”, “atordoado” (adj.) > to dizzy “atordoar” (v.).

Ortografia, gramáticas e dicionários Ortografia A preocupação com questões ortográficas começou a surgir seriamente no século XVI. O primeiro texto que ainda sobrevive sobre o tema foi publicado em 1558 e tem o título de An ABC for Children (Um ABC para crianças). Esse texto possui poucas páginas, das quais várias são dedicadas à questão de “preceitos

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de uma vida boa”, porém, algumas regras gerais são apresentadas, por exemplo, o uso de vogal + C + e para indicar uma vogal longa, ou seja: /mæ:d/ made, /rǝıd/ ride, /ho:p/ hope. Trabalhos subsequentes focavam a variabilidade de maneiras de representar os sons da língua e propunham novas convenções ortográficas que tornariam a escrita essencialmente fonética, por exemplo, Dialogue concerning the Correct and Emended Writing of the English Language (Diálogo sobre a escrita correta e emendada da língua inglesa) de Thomas Smith (1568). A proposta de Smith era a de aumentar o número de letras no alfabeto para 34 e indicar as vogais longas. A ideia não prosperou, além disso o fato de que Smith redigiu seu livro em latim certamente não ajudou a divulgar seu programa. Em 1569, John Hart publicou An Orthographie (Uma ortografia), seguido um ano depois por A Method or Comfortable Beginning for All Unlearned, Whereby They May Bee Taught to Read English (Um método ou começo cômodo para todo iletrado, pelo qual eles podem ser ensinados a ler inglês). Hart propôs caracteres especiais para ch, sh, th, mas tampouco vingou. Em 1580, William Bullokar publicou o Booke at large, for the Amendment of Orthographie for English Speech, em que ele aventou que a maior dificuldade vivida pelos esquemas de Hart e Smith era a de eles não terem mantido nenhuma ligação com o sistema tradicional. Consequentemente, Bullokar não inventou novas letras, preferindo o uso liberal de diacríticos (acentos gráficos, apóstrofos etc.) escritos acima ou debaixo das letras. Se o sistema de Bullokar tivesse sido aceito, o inglês poderia ter adotado um sistema de acentos, como estava surgindo em francês no mesmo momento. No entanto, a intensidade de uso das marcas adicionais sub e sobrescritos fez que seu modelo não tenha tido aceitação entre o público letrado. O programa de reforma ortográfica mais bem-sucedido durante o século XVI foi o Elementarie (Elementar) de Thomas Mulcaster de 1582. Professor do grande poeta elizabetano, Edmund Spenser (1552/1553-1599), autor do épico alegórico The Faerie Queene (A rainha das fadas). A grande vantagem da proposta de Mulcaster era sua moderação: ele percebia claramente a impossibilidade de regularizar a grafia com base na fonética, porque as letras eram incapazes de capturar toda a diversidade dos sons, e porque as revisões necessárias para implementar tal ortografia fonética seriam muito radicais. Além disso, as pronúncias mudavam

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constantemente no espaço e no tempo. A ideia de Mulcaster era, portanto, refinar o sistema tradicional herdado, eliminando os piores excessos, porém, reconhecendo que certa variabilidade nos valores fonéticos das letras era inevitável (BAUGH; CABLE, 1994, p. 207): The use & custom of our cuntrie hath allreadie chosen a kinde of penning wherein she hath set down hir religion, hir lawes, hir privat and publick dealings [...] I will therefor do my best to confirm our custom in his own right, which will be easilie obtained where men are acquainted with the matter allreadie and be verie glad to see wherein the right of their writing standeth.10

Alguns dos princípios defendidos por Mulcaster incluíam:

O abandono de letras consideradas “supérfluas”. Por exemplo, não há nenhuma vantagem em escrever grubb e ledd para “cavoucar” e “conduziu”, quando grub e led podem fazer o mesmo trabalho. No entanto, quando as letras mudas servem para alguma função, elas deveriam ser preservadas, por exemplo, em fetch “buscar” ou scratch “coçar”, em que o reforça o valor de africada (/tʃ/), já que o dígrafo ch é ambíguo entre /tʃ/, por exemplo, church “igreja”, /k/ (em empréstimos do grego ou do hebraico, por exemplo, charisma “carisma”, Enoch “Enoc”), ou /ʃ/ (em empréstimos do francês, por exemplo, chivalry “cavalheirismo”). Letras para consoantes podem ser duplicadas apenas quando ocuparem sílabas ortograficamente diferentes, por exemplo, writ-ten /rı.tǝn/ “escrito”, sup-ping /sʌ.pıŋ/ “ceando”, “bebericando”, e quase nunca em final de palavra, a não ser que seja , por exemplo, tall “alto”, generall “geral” (ingl. mod., general). Palavras terminadas em /s/ são escritas com , por exemplo, glasse “vidro”, confesse “confessar” (ingl. mod., glass, confess). 10 “O uso e o costume do nosso país já escolheram um tipo de grafia na qual depositaram sua religião, suas leis, seus negócios privados e públicos [...] Eu tentarei, portanto, fazer o máximo para confirmar nosso costume por seus próprios méritos, os quais serão determinados facilmente onde quer que os homens já conheçam o tema e onde quer que estiverem muito felizes de ver em que ponto a correção do seu escrever fica.”

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Um final depois de uma consoante é uma das maneiras de indicar uma vogal longa, por exemplo, made /mɛ:d/ ~ /me:d/ “fiz”, “fez” versus mad /mæd/ “louco”, strip /strıp/ “despir-se”, “faixa” versus stripe /straip/ “listra”, ou uma fricativa sonora (especialmente /v/ e /z/), por exemplo, deceive /dı′se:v/ “enganar”, wise /wǝiz/ “sábio”, love /lʌv/ “amor”. final também é incluído em palavras terminadas em /-ai/, /-ei/ e /-i/, por exemplo, daie “dia” (ingl. mod., day), maie “ser possível/admissível” (ingl. mod., may), trewlie “verdadeiramente” (ingl. mod., truly), safetie “segurança” (ingl. mod., safety). Contudo, quando a vogal final é tônica, a grafia deveria ser , por exemplo, defy /dı′fai/ “desafiar”, “afrontar”, deny /dı′nai/ “negar”, cry /′krai/ “gritar”. Outro ponto importante para o sistema de Mulcaster era a regularidade analógica: se escrevemos hear para /he:r/ “ouvir” (ingl. mod., /hi:r/, /hiǝ/), assim, deveríamos escrever igualmente fear “medo”, “temer” e dear “caro”, porque são pronunciados com a mesma vogal. No entanto, insistir em grafias analógicas por motivos de som não deveria predominar sobre uma grafia consagrada pelo uso que não respeite tal igualdade, por exemplo, where /ẘɛ:r/ “onde”, there /ðe:r/ “aí”, “ali” versus here /he:r/ “aqui” (ingl. mod., /wɛǝ/ ~ /wɛr/, /ðɛǝ/ ~ /ðɛr/ versus /hiǝ/ ~ /hir/). O axioma que guiava a reforma de Mulcaster era de adotar apenas uma grafia entre as várias existentes para cada palavra e ser consistente, em lugar de escrever where, wher, wheare, whear, were, whair para /ẘɛ:r/. Foi por esse motivo que Mulcaster incluiu uma tabela geral em seu livro, no qual ele recomendou grafias para 7.000 das palavras mais comuns.

É difícil avaliar o impacto que as ideias de Mulcaster tiveram na evolução da ortografia do inglês. Nem sempre suas propostas foram adotadas e, embora escritores e comentaristas posteriores concordassem com seus modelos em linhas gerais e os seguissem na prática, isso pode ter ocorrido porque as tendências já andavam nessa direção antes de seu livro e teriam resultado no mesmo sistema, ainda que o Elementarie nunca tivesse sido publicado. De qualquer forma, até aproximadamente 1650, a maioria das grafias estava razoavelmente consolidada.

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Gramáticas e dicionários Se os anos entre 1500 e 1650 foram um período de intensa inovação lexical, o período seguinte, entre 1650 e 1800, foi um tempo de tentativas de regular a língua inglesa. O período entre 1530 e a restauração da monarquia em 1650 experimentou uma mudança lexical em uma escala nunca antes vista na língua. Além do vertiginoso crescimento do vocabulário por empréstimos e derivações, havia muita mudança semântica, em que palavras ganharam, perderam ou alteraram seu significado (CRYSTAL, 1995, p. 72). Tais modificações no sentido das palavras eram notadas especialmente entre redatores e editores de textos religiosos. Por exemplo, os revisores do Book of Common Prayer (Livro de Oração Comum), em 1660, observaram que a maioria das alterações que fizeram na edição de 1552 ocorreu “para a expressão mais correta de palavras ou de frases de uso antigo em termos mais apropriados para a atualidade” (CRYSTAL, 1995, p. 72). A rapidez com que as mudanças ocorriam provocava preocupação entre os letrados. Até o final do século XVII, vários autores e comentaristas se posicionaram contra o que eles consideravam a evolução desenfreada e caótica da língua e a favor de alguma espécie de regulação. Em 1672, em The Defence of the Epilogue (A defesa do epílogo), o primeiro poeta laureado da Inglaterra, John Dryden, reclamou contra aquelas pessoas “que corrompem o nosso idioma inglês, misturando-o excessivamente com o francês”, observando ainda em seu Discourse concerning Satire (Discurso acerca de sátira), de 1693, que “não possuímos ainda nenhuma prosódia, sequer um dicionário passível, nem uma gramática, e a nossa língua é, por conseguinte, de certa maneira, bárbara” (BAUGH; CABLE, 1994, p. 252). O principal problema que assolava os letrados do século XVIII era a falta de padrões, modelos e regras prescritivas para determinar a correção da sua linguagem. Em 1731, Thomas Stackhouse encapsulou essa preocupação da seguinte maneira: “escrevemos a esmero, antes que por alguma regra fixa e declarada, e cada um forma seu discurso, ora conforme seu humor e capricho, ora a professar alguma imitação cega e servil” (BAUGH; CABLE, 1994, p. 252). O cofundador da revista de pouca duração, porém, influente, The Spectator, Joseph Addison, atacou as convenções ortográficas e a pronúncia em um artigo publicado em 4 de agosto de 1711,

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em que ele destacou o “entupimento por consoantes” que resultava da elisão de vogais em desinências como , por exemplo, cry’d para cried ~ cryed “gritou”, lov’d para loved “amou”, “amado”, contrações como can’t, mayn’t “não pode” para may not e wo’n’t “não vai” para will not, além de diversas outras abreviações populares. Daniel Defoe queixou-se da proliferação de palavrões e xingamentos em An Essay Upon Projects, de 1697, em que o autor de Robinson Crusoé propôs que o estabelecimento de uma academia para a língua inglesa, como existia para o francês (a Académie française, fundada em 1635 pelo Cardeal de Richelieu), e para o italiano (Accademia della Crusca, estabelecido em Florença em 1583), eventualmente seria uma solução para os males de que o inglês sofria. I would therefore have this society wholly composed o gentlemen, whereof twelve to be of the nobility, if possible, and twelve private gentlemen, and a class of twelve to be left open for mere merit, let it be found in who or what sort it would, which should lie as the crown of their study, who have done something eminent to deserve it.11

Um dos fatores que motivava as propostas para fixar a língua inglesa definitivamente era o desejo entre escritores importantes da época de continuarem sendo inteligíveis para as gerações futuras, como os grandes escritores romanos e os da Grécia Antiga ainda o eram. A preocupação era expressa pelo ensaísta, panfleteiro, autor e comentarista social Jonathan Swift: “como, então, qualquer homem, que tenha certo gênio para a história, igualará os melhores dos antigos, poderá enfrentar tal lide com coragem e alegria, se ele avalia ser lido com prazer durante pouquíssimos anos e, dentro de um século ou dois, será dificilmente compreendido sem um intérprete?”. Swift prossegue: “A fama dos nossos escritores está confinada em geral a essas duas ilhas [a Irlanda e a Grã-Bretanha] e é duro que seja limitada em tempo tanto como lugar pela variação incessante do nosso falar” (BAUGH; CABLE, 1994, p. 257). Ainda na segunda metade do século XVIII, quando a esperança de fixar a língua de forma definitiva tinha diminuído bastante, em 1756, o ator e educador Thomas Sheridan implorou 11 “Eu gostaria, portanto, que essa sociedade fosse composta inteiramente de gentis-homens, dos quais doze fossem da nobreza, se possível, e doze cavalheiros, e uma classe de doze a ser deixada aberta para simples mérito, que seja encontrada em quem ou de qual maneira se quiser, que deveria ficar como a coroa de seus estudos, quem tiver feito algo para merecê-lo.”

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ao quarto earl de Chesterfield, conhecido literato, que direcionasse sua influência para a fixação da língua nos seguintes termos: “Não deixe que nosso Shakespeare e nosso Milton se tornem, a dois ou três séculos daqui, o que Chaucer é atualmente: o estudo de alguns poucos antiquários estudiosos e, dentro de um ou dois milênios, vítimas de traças” (BAUGH; CABLE, 1994, p. 257). Quinze anos depois da proposta de Defoe, Swift, autor das Viagens de Gulliver, retomou a questão de uma academia no ensaio A Proposal for Correcting, Improving and Ascertaining the English Tongue (“Uma proposta para corrigir, melhorar e fixar a língua inglesa”) em 1712. Em sua proposta, enviada ao earl de Oxford, o chefe do governo da época, Swift criticou diversos aspectos da sociedade contemporânea: a libertinagem do regime restaurado, o desleixos dos nobres jovens, as abreviaturas utilizadas pelos poetas, as reformas ortográficas que pretendiam refletir a pronúncia e as gírias dos bacharéis. Para combater os maus que identificou, Swift recomendou: A free judicious Choice should be made of such Persons, as are generally allowed to be best qualified for such Work, without any regard to Quality, Party, or Profession. These, to a certain Number at least, should assemble at some appointed Time and Place, and fix on Rules by which they design to proceed [...] what I have most at Heart is, that some Method should be thought on for ascertaining and fixing our Language for ever, after such Alterations are made in it as shall be thought requisite. For I am of the Opinion, that it is better a Language should be not wholly perfect, than that it should be perpetually changing [...].12

A ideia de Swift não vingou, entretanto, foi fundada a Royal Society for the Promotion of Natural Knowledge (Sociedade Real para a promoção da Ciência Natural) em 1660. Um comitê de 22 membros foi convocado, entre eles, o poeta laureado John Dryden, o célebre diarista John Evelyn, o eclesiástico Thomas Sprat e o político e poeta Edmund Waller, para delinear o embasamento linguístico de um estilo claro e objetivo, que acreditavam ser benéfico ao desenvolvimento da ciência. O comitê durou pouco e não 12 “Uma escolha livre e ponderada deveria ser realizada por tais pessoas que são consideradas largamente as mais bem qualificadas para tal projeto, ignorando sua classe, partido ou ocupação. Aquelas, pelo menos até certo número, deveriam se reunir em alguma hora e lugar, para determinar regras, em conformidade com as quais eles pretendem proceder [...] o que tenho principalmente em mente é que se deveria refletir sobre algum método para verificar e fixar o nosso idioma para sempre, depois de terem realizado quantas modificações que julgarem necessárias. Porque sou da opinião de que é melhor que uma língua não seja perfeita, que ela ficar mudando toda hora [...].”

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chegou a um consenso sobre os critérios precisos para alcançar seu objetivo –, tendo sido então o mais próximo que a Inglaterra chegou a estabelecer uma academia da língua. Se a ideia de estabelecer uma academia para regular a língua inglesa foi fadada ao fracasso, a produção de um dicionário deu-se em 1755 pelo célebre “Doutor” Samuel Johnson (1709-1784). O conceito de dicionário já existia na Inglaterra, mas eram sempre bilíngues, entre inglês e outra língua estrangeira. Não havia dicionários monolíngues para a língua inglesa. O dicionário de Johnson não foi o primeiro feito para a língua inglesa. Já em 1582, o reformador ortográfico Richard Mulcaster (já mencionado nesta unidade) observara que “it were a thing verie praiseworthie [...] if som one well learned and laborious a man wold gather all the words we vse in our english tung [...] into one dictionarie” (“seria uma coisa muito louvável [...] se algum homem bem instruído e trabalhador coletasse todas as palavras que usamos em nossa língua inglesa [...] em um dicionário”). Apesar de sentirem falta de um dicionário e de haver modelos para outras línguas (por exemplo, o Vocabolario degli Accademici della Crusca, que foi revelado em 1611, e o primeiro dicionário da Academia francesa que surgiu em 1694), na Inglaterra e na Escócia, apenas algumas listas que explicavam o significado de certas “palavras difíceis” foram produzidas, como A Table Alphabeticall of Hard Words (Uma tabela alfabética de palavras difíceis) de Robert Cawdrey (1604), com 120 páginas, que contava aproximadamente 3.000 termos. Em 1616, o reformador ortográfico John Bullokar (também mencionado nesta unidade) publicou seu English Expositor e, em 1623, o English Dictionarie de Henry Cockeram surgiu. Esses dois livros passaram por várias edições. A prática, contudo, era de tratar apenas das palavras consideradas menos compreensíveis, como o Glossographia; or a dictionary for interpreting the hard words of whatsoever language, now used in our refined English tongue (Glossografia; ou um dicionário para interpretar as palavras difíceis de qualquer língua empregadas atualmente em nossa refinada língua inglesa) de Thomas Blount em 1656 (c. 11.000 entradas), e seu principal concorrente, o New World of Words (Novo Mundo de palavras) de Edward Phillips (1658), com aproximadamente 20.000 entradas, muitas das quais eram copiadas do Glossographia. O plágio de Phillips provocou uma acirrada disputa pública entre ele e Blount, que ficou enfurecido também pelo New World of Words vender muito mais que sua

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Glossographia, em parte devido ao fato de que Phillips era sobrinho do famosíssimo poeta John Milton (falaremos mais sobre esse autor no próximo tema). O primeiro dicionário cujo objetivo pretenso era listar todos os vocábulos na língua, em lugar de esclarecer o significado das palavras rebuscadas, apareceu quase um século e meio depois da observação de Mulcaster sobre a utilidade de um dicionário desse tipo. Em 1721, Nathaniel Bailey publicou seu Universal Etymological English Dictionary. Já o Dictionary of the English Language de Johnson (1755) foi publicado em dois volumes. E fora o resultado de um esforço enorme, pois o autor trabalhou quase sem ajuda durante sete anos para compilar 40.000 definições, exemplificadas nos mais conceituados autores da língua inglesa desde os tempos de Elizabeth I. Dr. Johnson escreveu o seguinte no Prefácio do Dictionary: When I took the first survey of my undertaking, I found our speech copious without order, and energetick without rules: wherever I turned my view, there was perplexity to be disentangled, and confusion to be regulated [...] Having therefore no assistance but from general grammar, I applied myself to the persual of our writers; and noting whatever might be of use to ascertain or illustrate any word or phrase, accumulated in time the materials of a dictionary, which, by degrees, I reduced to method [...].13

Embora o dicionário de Johnson incluísse menos palavras que o de Bailey, o tratamento lexicográfico era superior, principalmente pela abrangência da seleção de palavras e pela abundante exemplificação, embora seletiva, sendo mais da metade das quase 116.000 citações de apenas seis autores, Shakespeare, Dryden, Milton, Addison, Bacon, Pope, e da Bíblia. Johnson optou por ilustrar os vocábulos com citações de autores já falecidos, “para evitar desvios por parcialidade”, em vez de eventualmente provocar opiniões sobre os méritos de escritores ainda vivos. 13 “Quando realizei a primeira inquirição do meu projeto, achei a nossa fala copiosa sem ordem e enérgica, sem regras: onde quer que dirigisse a vista, havia perplexidade para desembaraçar e confusão para regulamentar [...]. Assim, desprovido de qualquer auxílio, com a exceção daquele da gramática geral, dediquei-me a pesquisar em nossos escritores e, anotando o que pudesse ser de utilidade para determinar ou exemplificar qualquer palavra ou frase, acumulei no decorrer do tempo o material para um dicionário, o qual, aos poucos, eu reduzi a um método.”

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O método que Johnson desenvolveu para tratar as entradas respeitava o uso das suas fontes, em geral, para delinear os significados, embora ele não concordasse sempre com elas. As palavras selecionadas exibiam um recorte razoavelmente equilibrado do léxico do inglês, com formas corriqueiras e termos eruditos. Johnson escolhia apenas uma grafia e indicava a sílaba tônica com um acento no lema. Ele costumava indicar o tipo gramatical a que a palavra pertencia. Por outro lado, a obra apresentava várias deficiências. Por exemplo, algumas definições ficaram célebres pelo tratamento tendencioso do lexicógrafo (CRYSTAL, 1995, p. 74): LEXICOGRAPHER – a writer of dictionaries; a harmless drudge who busies himself in tracing the original and detailing the signification of words. EXCISE – a hateful tax levied upon commodities, and adjudged not by the common judges of property, but by wretches hired by those to whom excise is paid. OATS – a grain, which in England is generally given to horses, but in Scotland supports the people. PENSION – an allowance given to anyone without an equivalent. In England it is generally understood to mean pay given to a state hireling for treason to his country.14

Às vezes, as definições deixam bem claro de qual lado ficavam as ideias do escritor. A definição para a entrada “Imposto sobre consumo” provocou uma ameaça de processo por calúnia, e Johnson foi satirizado quando ele mesmo aceitou receber uma pensão do Estado! As inclinações políticas de Johnson ficam muito evidentes nas definições para os dois partidos políticos ingleses da sua época, os conservadores, conhecidos como “Tories”, e os liberais, cujo apelido era “Whig” (CRYSTAL, 1995, p. 74): 14 “LEXICÓGRAFO – um autor de dicionários; um burro de carga inofensivo, que se ocupa com a identificação da origem e em precisar o significado das palavras. IMPOSTO DE CONSUMO – um tributo odioso cobrado sobre as mercadorias e não avaliado pelos juízes usuais da propriedade, mas por miseráveis empregados por aqueles aos quais é pago o imposto. CEVADA – um grão, que na Inglaterra é dado geralmente aos cavalos, mas na Escócia alimenta o povo. PENSÃO – um subsídio dado a qualquer um que estiver sem renda. Na Inglaterra, entende-se por isso por via de regra o pagamento repassado a um mercenário para cometer traição contra seu país.”

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TORY – one who adheres to the antient constitution of the state and the apostolical hierarchy of the church. WHIG – a faction.15

O dicionário de Johnson foi um sucesso enorme, sendo um dos livros mais vendidos na Inglaterra na segunda metade do século XVIII. Sua influência sobre os hábitos linguísticos das classes letradas foi considerável. Na área da ortografia, grande parte das grafias que receberam a sanção do doutor – ele recebeu o título honorário de Trinity College, Dublin, em 1765, e da Universidade de Oxford em 1775 – perseverou para a língua moderna. Embora uma academia não tivesse sido estabelecida, boa parte das funções que tal instituição teria exercido foi realizada pelo dicionário, que proferia um modelo de correção fixa que serviu como ponto de referência. Tal como os dicionários, a produção de gramáticas da língua inglesa também aumentou consideravelmente ao longo do período pré-moderno. O interesse geral dos eruditos era pela fixação da língua, ainda que soubessem que em geral não seria possível impedir as mudanças definitivamente. A melhor alternativa à petrificação era definir um padrão de correção prescritivo que possibilitaria a determinação do grau de “correção” da linguagem.

Textos pré-modernos O período pré-moderno foi uma época de grande produtividade de textos literários e não literários. A explosão de criatividade e produção devia-se a três fatores principais: primeiro, a “libertação” do vernáculo para fins literários entre as camadas mais altas da sociedade inglesa, que crescia desde os tempos de Chaucer; segundo, os movimentos protoprotestantes, como os lollards, no século XV, e, mais tarde, o verdadeiro protestantismo (luterano, calvinista, anglicano etc.) que criticava as corrupções da Igreja medieval e reivindicava a acessibilidade às Sagradas Escrituras por meio de traduções do texto em latim; e terceiro, o uso da imprensa móvel, que possibilitava a produção rápida de grandes quantidades de textos de qualquer espécie por uma fração do custo de lavrar um manuscrito em pergaminho. 15 “TORY – alguém que defende a constituição antiga do Estado e a hierarquia apostólica da Igreja. WHIG – uma facção.”

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Em decorrência da maior eficiência e escala de produção, o custo de um livro caiu de forma dramática, tornando-os, se não propriamente baratos, acessíveis a pessoas da classe média-baixa: artesãos, comerciantes e fazendeiros menores. Com a acessibilidade de custo, ocorreu a ampliação das provisões educacionais, com a abertura de “escolas de gramática” (grammar schools), isto é, escolas onde se ensinava o latim, nas quais os filhos de quem pudesse pagar pelo professor podiam estudar.

Poesia e teatro elizabetanos Os escritores ativos durante os tempos da dinastia Tudor eram extremamente prolíficos e produziram muito em todos os gêneros: romances, peças, crônicas, traduções, músicas, tratados de filosofia, teologia e ciência, poesia épica e lírica, sobre temas profanos e sagrados. No entanto, os destaques linguísticos do período Tudor são a poesia dos cortesãos e o teatro popular. Existem ligações muito estreitas entre a produção propriamente elizabetana (1558-1603) e as primeiras gerações de autores jacobinos, sendo que a cultura dos dois períodos se sobrepõe consideravelmente. O impacto inicial da redescoberta da cultura clássica na Itália foi sentido mais na área dos estudos intelectuais sérios de Thomas More e seu círculo. A publicação de poesia artística no estilo renascentista não era sensível antes de 1557, quando Richard Tottel, um impressor londrino, publicou Songs and sonnets, written by the ryght honorable Lorde Henry Howard and others (WARD, 1965, p. 107). Atualmente conhecido como Tottel’s Miscellany (Miscelânea de Tottel), a obra contém 40 poemas do próprio Henry Howard, earl de Surrey, 95 de Sir Thomas Wyatt, 45 de Nicholas Grimoald, e mais 95 cujos autores não são confirmados, embora se saiba que contavam Thomas Churchyard, John Heywood, Sir Francis Bryan, Edward, duque de Someset, e Thomas, lorde Vaux. Além da importância social dos poetas publicados por Tottel, a coletânea é relevante porque foi uma das primeiras vezes que sonetos foram publicados em inglês e porque, em algumas de suas composições, Howard utilizava o estilo de verso branco (sem rima), que ele inventou (WARD, 1965, p. 107). Outra contribuição de Wyatt à poética inglesa foi a adaptação do modelo do soneto original, inventado pelo poeta italiano Petrarca, em que há 16

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versos de 10 sílabas, nos quais os primeiros 8 versos (o octeto) rimam a-b-b-a-a-b-b-a e os 6 versos seguintes (o sexteto) tratam de alguma mudança no tema e contêm duas ou três rimas alternadas, por exemplo, c-d-e-c-d-e, c-d-c-d-c-d ou c-d-e-d-c-e etc. No formato petrarquiano clássico, o soneto nunca termina com um par de versos rimados: a inovação de Wyatt foi de encerrar seus sonetos sempre desse modo, ou seja, a-b-b-a-a-b-b-a e depois c-d-d-c-e-e, ou similar. Este padrão foi adotado por Shakespeare e os outros poetas elizabetanos e fechava o soneto com uma prosódia mais decisiva, diferente do estilo italiano, em que o efeito sonoro é descrito como uma onda que chega a um crescendo no final do octeto e depois se retira suavemente durante o sexteto (WARD, 1965, p. 107-108): Forget not yet the tryed entent Of such a truthe as I have ment, My grete travayle so gladly spent Forget not yet.

Não se esqueça ainda da intenção posta à prova De tal verdade que eu demonstrei, Minha grande aflição, aguentada com tanta alegria Não se esqueça ainda.

Forget not yet when fyrst began The wery lyffe ye know synce whan, The sute, the seruys none tell can, Forget not yet.

Não se esqueça ainda de quando iniciou-se pela primeira vez A vida cansada que vós conheceis desde quando Do pedido, do serviço, ninguém pode contar, Não se esqueça ainda.

Forget not yet the gret asseys, The cruell wrong, the skornfull ways, The paynefull pacyence in denays, Forget not yet.

Não se esqueça dos grandes esforços, Da cruel injustiça, da maneira desdenhosa, Da paciência dolorida nas rejeições, Não se esqueça ainda.

Forget not yet, forget not thys, How long ago hathe ben and ys, The mynd that never ment amys, Forget not yet.

Não se esqueça, não se esqueça disso, Como antigamente era e é, A mente que nunca te quis mal, Não se esqueça ainda.

Forget not then thyn own aprovyd, The whych so long the hathe so lovyd, Whose stedfast fayth yet never movyd. Forget not this.

Não se esqueça ainda, pois, de vosso próprio comprovado, O qual por tanto tempo tanto te amou, Cuja fé constante até agora jamais mudou. Não se esqueça disso.

Se Wyatt é mais famoso pela abrangência da sua experimentação e pelos temas amorosos (ele foi o último amante de Anne Boleyn, antes que ela se tornasse objeto de afeição de Henry VIII),

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Henry Howard utiliza mais imagens da história e de mitologia clássica em sua poesia (WARD, 1965, p. 111-112), embora os dois fossem grandes admiradores de Chaucer. O estilo de Howard é mais suave e fluido que o de Wyatt, talvez porque o earl de Surrey era ainda menos respeitoso dos esquemas métricos italianos. Ele foi um dos principais contribuintes à evolução do soneto elizabetano clássico de três quartetos e uma copla rimada (a-b-a-b c-d-c-d e-f-e-f g-g). A seguir apresentamos uma passagem com a grafia modernizada da tradução da Eneida feita por Howard em verso branco decassilábico dividido em dois pentâmetros iâmbicos, que se tornou sua maior contribuição artística à poesia renascentista inglesa (WARD, 1965, p. 110-111): The Carthage lords did on their queen await; The trampling steed, with gold and purple decked, Fiercely stood chawing on the foaming bit. Then issued she, awaited with a train, Clad in a cloak of Tyre bordered full rich. Her quiver being behind her back, her tress Knotted in gold, her purple vesture eke Buttoned with gold [...].16

Observe como nos versos 1, 2, 4 e 6 o acento recai na segunda sílaba e todas as sílabas alternadas. Isto é, a métrica é um pé iâmbico regular (ênfase leve seguida por ênfase pesada, i.e., ˘ - ). Nos demais versos, o ritmo varia, sem abandonar o verso pentâmetro (de cinco pés do tipo ˘ - ), sem rima que constitui o padrão desse estilo. Outro ponto de nota é a hábil manipulação da posição da cesura (a pausa que separa o verso em duas metades). Em seus poemas em verso branco, é comum que a cesura recaia depois do segundo pé (a quarta sílaba), por exemplo, nos versos 1, 2, 4, 7 e 8. No entanto, a cesura está depois da quinta sílaba no verso 3 e depois da sexta no verso 5 (WARD, 1965, p. 112). A variação na posição da cesura é importante e revela o domínio do autor sobre sua composição, porque poetas menos hábeis tendiam a deixar a pausa recair sempre no mesmo ponto do verso, tornando o ritmo monótono e desinteressante. 16 “Os lordes de Cartago, aguardavam sua rainha; / O corcel empinador, adornado de ouro e purpúra, / Ficava ferozmente mastigando o freio espumejado. / Então, ela saiu, atendida por um séquito, / Vestida em uma capa de Tiro, com a borda muito rica. / Sua aljava ficava nas costas dela, seu cacho / Amarrado com ouro, sua roupa purpúra também / Abotoada com ouro [...].”

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O trecho a seguir é um texto de Henry Howard, earl of Surrey, retirado de The Lover Comforteth Himself with the Worthiness of his Love (O amante se consola com o mérito de seu amor). When ragyng loue with extreme payne Most cruelly distrains my hart: When that my teares, a floude of rayne, Beare witness to my wofull smart: When sighes haue wasted so my breath, That I lye at the poynte of death: I call to minde the nauye greate, That the Greekes brought to Troye towne: And how the boysterous winds did beate Their shyps, and rente their sayles adowne, Till Agamemnons daughters bloode Appeasede the goddes, that them withstode. And how that in those ten years warre, Full many a bloudye dede was done, And many a lord, that came full farre, There caught his bane (alas) to sone: And many a good knigh ouerronne, Before the Grekes had Helene wonne. Then think I thus: sith such repayre, So longe time warre of valiant men, Was all to winne a layde fayre: Shall I not learne to suffer then, And thinke my life well spent to be, Seruyng a worthier wight than she? Therefore I neuer will repend, But paynes contented stil endure. For like us when, rough winter spent, The pleasant spring straight draweth in vre: So after ragyng stormes of care Joyful at length may be my fare.

Quando o amor raivoso com dor extrema Muito cruelmente sequestra meu coração: Quando minhas lágrimas, uma dilúvio de chuva, Testemunham minha dor infeliz: Quando os suspiros gastaram tanto meu fôlego, Que eu jazo a ponto de morrer: Eu imagino a grande armada, Que os gregos levaram à cidade de Troia: E como os ventos tempestuosos flagelaram Seus navios, e atiraram rasgadas as velas, Até o sangue da filha de Agamemnon Apazigou os deuses, os quais eles contrariavam. E como, nesses dez anos de guerra, Muitíssimas façanhas sanguinárias foram feitas, E muitos senhores, que viajaram longe, Ali, deparou com sua ruína muito cedo: E muitos bons cavaleiros derrubados, Antes que os gregos ganhassem a Helena. Então, penso assim: De fato, tal conserto, Por tanto tempo guerra de homens valentes, Foi tudo para ganhar uma linda dama: Não aprenderei a sofrer, então, E achar minha vida bem empregada para estar Servindo outro homem mais meritório que ela? Portanto, jamais vou me arrepender, Mas, contente, dores ainda aguentar. Pois, como nós quando, o rude inverno exausto, A primavera agradável recolhe a ira: Assim, após tempestades violentas de preocupações Alegre com tempo poderá ser minha passagem.

Fonte: adaptado de Ward (1965, p. 112-113).

Outras antologias poéticas foram publicadas no período elizabetano, várias com títulos muito mais charmosos que o compêndio de Tottel, por exemplo, The Paradyse of Daynty Devises (O paraíso de invenções delicadas), de 1576; A Gorgious Gallery of Gallant Inventions (Uma galeria maravilhosa de invenções finas), de 1578; e Posie de Gilloflowers (Grinalda de flores

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ornamentais), de 1580. Apesar disso, nenhuma compilação alcançou o mesmo nível de interesse poético e a relevância para a história literária do inglês que a de Tottel. Outros poetas muito importantes do período foram Sir Philip Sidney (1554-1586), que escreveu Atrophell and Stella, The Arcadia e In defence of poesy, e Edmund Spenser (1552-1599), autor da vasta alegoria religiosa The Faerie Queene (A rainha das fadas), além de The Shepheardes Calendar, Astrophel (dedicado à memória de Sidney, morto lutando contra os espanhóis nos Países Baixos), Epithalamion, e o poema satírico Prosopopoia, ou Mother Hubbard’s Tale, entre várias outras obras poéticas. Figura 3.1 Trecho do poema Epithalamion.

Digai-me vós, filhas de negociante, vós visteis Tão bonita criatura na sua cidade antes, Tão doce, tão linda, e tão meiga como ela, Enfeitada da graça da beleza e abundância de [virtude, Seus bons olhos como safiras brilham [intensamente, Sua testa branco-marfim, Suas bochechas como maçãs que o sol [enrubesceu, Seus lábios como cerejas encantam os homens [a beijar, Seu busto parece uma tigela de creme sem [crosta, Seus peitos como lírios brotados, Seu pescoço nevoso tal como uma torre de [mármore, E todo seu corpo como uma festa de palácio, Ascendendo com muitos olhares grandiosos, Ao assento do honor e à alcova graciosa da [castidade. Por que ficais paradas, vós, virgens, atônitas, Para olhar nela, Enquanto esquecei-vos de cantar vossa antiga [canção, A que os bosques respondiam e vosso eco [ressoava. Fonte: Ward (1965, p. 127).

O teatro elizabetano continuava uma tradição que existia desde a Idade Média. As peças que sobrevivem desse período são majoritariamente sobre temas religiosos, realizadas dentro das igrejas em dias de festa de santo e em grandes ciclos de performances

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públicas organizados pelas corporações de artesãos. Esse teatro realmente público e popular representava as Miracle plays (“peças de milagres”) (CRYSTAL, 1995, p. 58) e as histórias clássicas favorecidas pelos eruditos renascentistas, como a peça dos artesãos parodiada por Shakespeare em A Midsummer Night’s Dream (Sonho de uma noite de verão). A segunda corrente dramática da época medieval eram as peças moralistas (morality plays), que personificavam as virtudes e os vícios cristãos, e constituíam uma linha mais culta do teatro medieval, não tendo os atrativos dos personagens das peças religiosas populares, exigindo um conhecimento dos intricados debates da filosofia escolástica para entendê-las bem. Tais dramas eram apresentados nos paços dos nobres, nos colégios e nas universidades, e nos casarões das corporações de negociantes por estudantes e jovens das classes superiores. Tal teatro erudito dos moralistas constituía uma experiência mais regrada e passiva para os espectadores, mais parecida com o contexto de uma peça moderna que com a interação imediata e a proximidade física entre o público e os atores no teatro de rua (WARD, 1965, p. 173-175). Entre o surgimento do teatro moralista e o estabelecimento do teatro profissional elizabetano e jacobino, havia o tempo intermediário dos interludes (“entreatos”), os quais surgiram como gênero tragicômico em dois atos que ocupavam o tempo entre um prato e outro em jantares e ceias cerimoniais (WARD, 1965, p. 176), por exemplo, Fulgens and Lucrece (Fulgêncio e Lucrécia) de Henry Medwall, capelão de cardeal Morton (c. 1495), ou The Four P. P. (Os quatro P) – os personagens são um peregrino (palmer), um vendedor de perdões (pardoner), um farmacêutico (pothecary = ingl. mod., apothecary) e um vendedor ambulante (peddlar) – de aproximadamente 1520, escrito por John Heywood (c. 1497-1580), músico da corte e casado com a sobrinha de Sir Thomas More, chanceler da Inglaterra. O tema da peça é uma competição entre os três primeiros personagens para determinar quem consegue contar a maior mentira, sendo o quarto, o vendedor, atuando como juiz.

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Figura 3.2  Capa do entreato Fulgens and Lucrece de c. 1520, escrito por John Medwall.17

Fonte: Culture Club/Getty Images.

17 Texto em ortografia moderna. Letras em itálico são expansões de abreviações. “Here is contained a goodly interlude of Fulgens, senator of Rome, Lucrece his daughter, Gaius Falminius, & Publius Cornelius, of the disputation of nobleness. & is divided in two parts, to be played at II times. Compiled by Master Henry Medwall, late chaplain to the right reverend father in God John Morton, cardinal & Archbishop of Canterbury.” Tradução: “Está aqui contido um agradável entreato sobre Fulgêncio, senador de Roma, Lucrécia, sua filha, Gaio Flamínio, & Públio Cornélio, sobre a discussão da nobreza. & é dividido em duas partes, para serem apresentadas em dois momentos. Compilado por mestre Henrique Medwall, antigo capelão do muito reverendo Padre em Deus, João Morton cardeal & arcebispo de Canterbury.”

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Em meados do século XVI, a moda no teatro eram as tragédias do dramaturgo romano Sêneca e as comédias de Plauto e Terêncio. O formato de cinco atos, prescrito pelo autor romano Horácio e seguido à risca por Sêneca com cenas repletas de declamações extravagantes e retórica pomposa, foi adotado. No entanto, os horrores e a violência extrema apenas reportada por Sêneca eram representados no palco pelos autores elizabetanos, como Kyd, Marlowe e Shakespeare, entre outros (WARD, 1965, p. 177). A primeira peça escrita no estilo de Sêneca foi Gorbaduc de 1562, escrita por Thomas Norton, que escreveu os primeiros três atos, e Thomas Sackville, earl de Dorset. Os dois eram sócios do Inner Temple, um dos inns of court, as associações de advogados, em cuja sala a peça foi realizada, diante de Elizabeth I. Norton e Sackville obedeceram as prescrições artísticas clássicas em tudo. Nenhum dos vários assassinatos reportados é representado. A peça é a primeira tragédia padrão inglesa e a primeira peça composta em verso branco. No entanto, a falta de ação a torna pouco interessante para um público moderno. A primeira comédia inglesa no estilo renascentista é Ralph Roister Doister (Ralph fanfarrão), de 1550, escrita pelo diretor do colégio de Eton, Nicholas Udall (1505-1556), em versos mal rimados por uma performance feita pelos alunos. A peça se trata de uma tentativa fracassada pelo herói do título, Ralph, instigado por seu amigo malandro Mathew Merrygreek (“Mateus Gregalegre”), de seduzir uma viúva, Christiane Custance (“Cristiane Constante”), que é noiva de Gawyn Goodluck (“Gavin Boaventura”), um comerciante que está de viagem. O autor seguiu o formato clássico de cinco atos, e é possível identificar alguns elementos dos dramaturgos cômicos romanos Plauto e Terêncio, mas o humor é mais contemporâneo (WARD, 1965, p. 178). A segunda comédia composta no novo estilo é Gammer Garton’s Needle (A agulha da Vó Garton), realizada em Christ’s College na Universidade de Cambridge, possivelmente por volta de 1566, mas eventualmente bem antes (WARD, 1965, p. 179). Não se sabe ao certo quem a escreveu. Alguns propõem William Stevenson, um professor do College, embora John Bridges seja indicado como autor em dois panfletos. Como Ralph Roister Doister, a peça está escrita em versos de rima imperfeita e segue as linhas do teatro clássico em termos da sua organização. Por outro

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lado, o tema e o temperamento do drama são mais próximos às farsas pouco elegantes da Idade Média. A peça conta a história jocosa da perda da agulha da Vó Garton e a descoberta de que está nas calças do lavrador Hodge. Outras peças do período inicial do teatro Tudor incluem a tragicomédia A lamentable tragedy [...] containing the life of Cambises, king of Persia (Uma tragédia lamentável [...] contendo a vida de Cambises, rei da Pérsia) de Thomas Preston (c. 1570), Supposes (Suposições) de George Gasgoine (1566), baseada em Gli Suppositi (1509) do célebre autor italiano Ariosto, sendo a primeira peça renascentista inglesa escrita em prosa; sua Jocasta foi a segunda tragédia inglesa composta em verso branco. John Lyly escreveu Campaspe (1580-1581) e Endemion: The Man in the Moon (1585), que foram assistidas por Elizabeth I. A época do teatro profissional é datada da primavera de 1576, quando James Burbage, um antigo carpinteiro e ator na companhia do earl de Leicester, concedeu o aluguel durante 21 anos de um terreno que ficava fora dos muros da cidade de Londres, a noroeste da cidade. Assistido por seu sogro, Burbage construiu um teatro de madeira que eles chamaram The Theatre (O teatro), o qual abriu ao público no outono do mesmo ano. O ingresso custava um, dois ou três pennies, dependendo do lugar comprado (em pé no descoberto, em bancos de madeira ou em camarotes, respectivamente). Nos anos seguintes, outros teatros foram construídos e abertos: The Curtain (A cortina) em 1577, no mesmo distrito e, depois disso, The Rose (A rosa) em 1587, The Swan (O cisne) por volta de 1594 no bairro de Bankside, em Southwark, na outra margem do rio Tâmisa da cidade. Burbage adaptou The Blackfriars (Os frades negros) em 1597, e seu filho Cuthbert construiu The Globe em 1599 com materiais garimpados do antigo The Theatre, e em 1600, William Henslowe construiu The Fortune (A fortuna) no bairro de Cripplegate para concorrer com o novo teatro de Burbage. A motivação para construir os teatros foi a proibição pelas autoridades municipais, provavelmente por medo da potencial desordem pública, de performances dramáticas nos pátios e quintais das tavernas.

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Saiba mais William Shakespeare O mais famoso de todos os dramaturgos elizabetanos, Shakespeare nasceu na cidade de Stratford-upon-Avon, no condado de Warwickshire. O filho mais velho a sobreviver de três meninos e quatro filhas de John Shakespeare, vereador municipal e fabricante de luvas, e Mary Arden, cuja família era de fazendeiros. Educado no colégio local, ele se casou com Anne Hathaway em 1582. O casal tivera três filhos: Susanna (n. 1583) e um casal de gêmeos, Hamnet e Judith, em 1585. Hamnet faleceu com 11 anos em 1596. Com a exceção de uma citação judicial em um processo de 1588­ ‑1589 em Londres, nada se sabe da vida de Shakespeare entre 1585 e 1592, quando ele reaparece em Londres, trabalhando no teatro, com várias peças performadas. Em 1594, ele era sócio em uma companhia de atores chamada The Lord Chamberlain’s Men (“Os Homens do Camareiro-Mor”), depois conhecida como The King’s Men, quando James I passou a patrocinar a companhia depois da morte de Elizabeth I em 1603. Suas atividades no teatro eram rentáveis, visto que, em 1597, ele comprou a segunda maior casa na cidade de Stratford. Em 1599, a companhia construiu o teatro The Globe. Em 1610, Shakespeare voltou a Stratford-upon-Avon, onde ele vivia como um gentil-homem rural, com frequentes viagens a Londres, até sua morte em 1616. A produção literária de Shakespeare foi considerável. Existem hoje 38 peças, 154 sonetos e 2 poemas narrativos longos, além de alguns poemas menores cuja autoria não está confirmada. Em suas primeiras peças, é possível detectar a influência de outros dramaturgos contemporâneos, como Christopher Marlowe, cujas peças Dido, Queen of Carthage, The Jew of Malta, Edward II, e Doctor Faustus influenciaram os temas em Antony and Cleopatra, The Merchant of Venice, Richard II e Macbeth, respectivamente. Em As You Like it, Shakespeare cita diretamente o poema Hero and Leander, de Marlowe, e, em certo momento, um personagem parece se referir ao assassinato de Marlowe em uma briga  devida ao pagamento de uma conta. Outras ligações entre Marlowe e Shakespeare aparecem em Hamlet e em Love’s Labour’s Lost. A Thomas Nashe é atribuído o primeiro ato de Henry VI, Part I; Shakespeare teria escrito o restante da peça e as outras partes da trilogia. Há uma teoria que o escritor Thomas Kyd, autor da peça mais popular do período elizabetano, The Spanish Tragedy, tenha composto um drama, atualmente perdido, parecido com o famosíssimo Hamlet, de Shakespeare, que se inspirou na obra perdida de Kyd. Outras peças de Shakespeare incluem: Titus Andronicus, The Comedy of Errors, Julius Caesar, Antony and Cleopatra, Love’s Labour’s Lost, The Taming of the Shrew,

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As You Like It, Twelfth Night, King John, Measure for Measure, Two Gentlemen of Verona, Coriolanus, King Lear, Measure For Measure, Romeo and Juliet, Othello, Henry IV (I, II e III), Richard III, Cymbeline, Timeon of Athens, Pericles Prince of Tyre, A Midsummer Night’s Dream, All’s Well That Ends Well, A Winter’s Tale, The Merry Wives of Windsor, The Tempest. Nas últimas peças que escreveu (Cardenio [perdido], Henry VIII, The Two Noble Kinsmen), Shakespeare colaborou com John Fletcher, que assumiu a posição de principal escritor para a companhia dos King’s Men, depois da morte de Shakespeare.

Shakespeare e a Bíblia King James Crystal (1995, p. 62) observa que todos os manuais sobre a história da língua inglesa concordam que as duas influências mais relevantes sobre a evolução da língua durante as últimas décadas da Renascença são a obra de William Shakespeare (1569-1616) e a Bíblia King James, publicada em 1611. É notável que Dr. Johnson escolheu essas fontes para a grande maioria das citações literárias para exemplificar o uso da língua em seu Dictionary of the English Language de 1755 (a outra influência preponderante na língua inglesa durante o período pré-moderno, situada no outro extremo cronológico). Ao debater a contribuição linguística desses dois monumentos literários, não queremos focar o mérito estético, mas antes o papel deles na constituição de um padrão de estilo e como registros do estado da linguagem daqueles tempos. Por exemplo, a passagem em que a palavra obscene “obsceno” ocorre na peça Richard II é longe de contar entre as citações mais conhecidas do Bardo. Por outro lado, é a primeira ocorrência da palavra na língua. Outros vocábulos e expressões, por exemplo, puppi-dogges (ingl. mod., puppy dogs “filhotes de cão”, “cães filhotes”), não podem ser o verdadeiro primeiro uso, porque certamente a expressão já existia na língua há algum tempo. O fato de estar registrado em King John (ato 2, cena 1) podia contribuir com a divulgação e a popularização, à medida que a fama e o conhecimento de Shakespeare cresciam. A influência de Shakespeare recai principalmente no léxico. Entre os termos atestados pela primeira vez nas obras de Shakespeare estão: accommodation “alojamento”, “acomodação”,

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assassination “assassinato”, barefaced “descarado”, countless “inumerável”, courtship “namoro”, “galanteio”, dislocate “deslocar”, dwindle “definhar”, “decrescer gradualmente”, “minguar”, eventful “acidentado”, “memorável”, fancy-free “desimpedido”, “despreocupado”, lacklustre “sem brilho”, laughable “ridículo”, premeditated “premeditado”, submerged “submergido” (CRYSTAL, 1995, p. 63). Por outro lado, muitas palavras que aparecem pela primeira vez em Shakespeare não sobreviveram até a modernidade. Aproximadamente um terço de seus neologismos latinos sofre esse destino, por exemplo, abruption “quebra repentina de uma parte de uma massa”, appertainments “pertences por direito”, cadent “cadente”, exsufflicate “inchado de ar”, “vazio”, persistive “persistente”, protractive “demorado”, “estendido”, questrist “quem busca, procura”, soilure “sujar”, “estar sujo”, tortive “torto”, ungenitured “impotente”, “sem genitais”, unplausive “sem aplauso”, “reprovar”, “censurar”, vastidity “imensidão” (CRYSTAL, 1995, p. 63). Ainda outra fonte de inovações explorada por Shakespeare é o composto hifenizado, por exemplo, arch-heretic “arqui-herege”, baby-eyes “olhos de bebê”, bare-pickt “esvaziado”, basilisco-like “como um basilisco”, canker-sorrow “cancro de tristeza”, faire-play “jogo limpo”, giant-world “mundo gigante”, halfe-blowne “meio podre”, heaven-moving “muito comovente”, ill-tuned “malsonante”, kindred-action “ato em família/clã”, o’re-look’d “inspecionado”, “passado por cima”, pale-visag’d “de cara pálida”, pell-mell “balbúrdia”, “desordenadamente”, sin-conceiving “engravidada fora do matrimônio”, smooth-fac’d “imberbe”, “jovem”, thin-bestained “pobre e manchado”, vile-concluded “mal concluído”, widow-comfort “porção do patrimônio herdada pela viúva” (CRYSTAL, 1995, p. 63). Outras expressões que se tornaram antológicas na língua inglesa e que surgiram pela primeira vez em Shakespeare são: What the dickens “que diabo!” (The Merry Wives of Windsor, III. ii). Beggars all description “supera todas as descrições” (Antony and Cleopatra, II. ii). A foregone conclusion “resultado sabido de antemão” (Othello, III. iii). In my mind’s eye “na minha imaginação/fantasia” (Hamlet, I. ii).

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It’s Greek to me “está como grego para mim” (Julius Caesar, I. ii). Salad days “os verdes anos da mocidade”, (Antony and Cleopatra, I. v). Play fast and loose “ser irresponsável e insincero com alguém” (Antony and Cleopatra, IV. xii). A tower of strength “um forte apoio” (Richard III, V. iii). To make a virtue of necessity “fingir gostar fazer o que é obrigado a fazer” (Pericles, I. iii).

Em 1611, o ano em que Shakespeare se aposentou do teatro, a “edição autorizada” da Bíblia foi publicada. A revisão da tradução da Bíblia foi solicitada ao novo rei James I durante sua viagem de Edimburgo para Londres, em 1603, por 750 reformadores anglicanos. O rei assentiu, e no ano seguinte um painel de 54 estudiosos universitários foi escolhido. Os tradutores foram divididos em seis “companhias”, cada uma encarregada da revisão de uma parte do livro. Eles foram instruídos a favorecer a tradução do Bishops’ Bible (Bíblia dos Bispos) – uma revisão de 1568 da “Bíblia Grande” de 1539 (a edição era, de fato, de tamanho vantajoso), a primeira bíblia protestante oficial da Inglaterra –, entretanto, poderiam consultar outras edições mais antigas da Bíblia (o que de fato ocorreu com frequência). A “Bíblia dos Bispos” também era conhecida como a “Bíblia de Cranmer”, porque o arcebispo Thomas Cranmer escreveu o prefácio. Uma cópia fora distribuída a cada paróquia do reino. Por sua vez, a Bíblia dos Bispos/Bíblia Grande foi baseada em uma revisão por Miles Coverdale da tradução da “Bíblia de Matthew” de 1537, a primeira Bíblia completa a ser impressa na Inglaterra. O nome vem da atribuição tradicional de autoria a Thomas Matthew, Chamberlain de Colchester. Na realidade, foi compilada por John Rogers, um amigo de John Tynedale (que traduziu o Novo Testamento em 1525 e o imprimiu; o primeiro texto vernáculo impresso em inglês, em Colônia). Coverdale fez sua própria tradução da Bíblia em 1535, baseado em uma tradução alemã, que foi impressa na Colônia, na Alemanha, sendo a primeira tradução completa em inglês.

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Figura 3.3 Comparação da linguagem da tradução do Novo Testamento de Tynedale de 1525 (revisada em 1532) e a versão da Edição Autorizada de 1611. Avalia-se que por volta de 20% do texto da Bíblia do rei James foi tomado diretamente da tradução de Tynedale. A proximidade entre as versões fica evidente neste extrato do Evangelho de S. Mateus (5.1-10).

Fonte: Crystal (1995, p. 59).

A tradução da “versão autorizada” é curiosa, porque foi feita por um comitê, o que não a tornou inferior por isso. Os grupos de tradutores consultavam-se bastante durante o processo e averiguavam as traduções mutuamente. Eles até escutavam a leitura em voz alta de seus textos para verificar a sonoridade das passagens. O resultado foi um texto excelente para a pregação. Foi a principal tradução inglesa da Bíblia até a segunda metade do século XX, quando versões mais modernas começaram a substituí-la. Na realidade, apesar do nome atribuído a essa Bíblia, nenhuma autorização real ou parlamentar ocorreu para sancionar seu uso. No entanto, na gravura no frontispício, está escrito que a

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Bíblia deve ser lida em todas as igrejas do reino. Por esse motivo, a influência da linguagem dessa Bíblia foi abrangente e profunda. A linguagem da “Edição autorizada” é conservadora. É distante da efervescência da linguagem de Shakespeare, mas este foi precisamente o objetivo dos tradutores: eles queriam melhorar um texto que eles já consideravam bom, ou juntar várias traduções boas para criar uma versão definitiva. Por essa razão, o léxico é reduzido (aproximadamente 8.000 palavras, menos que a metade do vocabulário das peças de Shakespeare). A gramática também é arcaica, porque os tradutores queriam conferir um estilo dignificado à linguagem de um livro que eles consideravam de suma importância. Eles escolhiam formas mais antigas, que estavam diminuindo na fala popular contemporânea. Crystal (1995, p. 65) identifica algumas características linguísticas: Pretéritos arcaicos de certos verbos, por exemplo, digged por dug “cavou”, gat por got “conseguiu”, bare por bore “pariu”, spake por spoke “falou”, clave por clove “cindir”, holpen por helped “ajudou”. Plurais irregulares de certos substantivos, por exemplo, kine por cows ou cattle “vacas”, “gado”, brethren por brothers “irmãos”, twain por pair “par”, “casal”. A sintaxe com frequência segue padrões antiquados, por exemplo, follow thou me por [you] follow me “segue-me tu”, speak ye unto por [you] speak to “falai vós com [alguém]”, cakes unleavened por unleavened cakes “pães sem lêvedo”, things eternal por eternal things “coisas eternas”, they knew him not por they did not know him “eles não o reconheceram”. A desinência da terceira pessoa do singular é sempre -(e) th, embora a forma em -(e)s já estava substituindo a primeira nos dialetos meridionais ao longo do século XVI. Em Shakespeare, por exemplo, encontramos as duas variantes. Os pronomes pessoais da segunda pessoa estavam mudando no século XVI. No sistema original, ye era a forma do nominativo, e you, a forma oblíqua. A “Edição autorizada” sempre mantém essa distinção, por exemplo, Ye cannot serve

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God and Mammon “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (sujeito), e, na sentença seguinte, Therefore I say unto you “Por isso, eu vos digo” (objeto indireto). Até o final do século XVI, you já tinha substituído ye em muitos dialetos, e a troca foi efetivada nas primeiras décadas do século XVII. His é usado em lugar de its para o possessivo da terceira pessoa do gênero neutro, por exemplo, if the salt has lost his savour, wherewith shall it be salted? “e se o sal está insípido, com que se há de salgar?”. Its é atestado desde o final do século XVI, mas sua substituição de his não está generalizada antes do final do século seguinte. Do mesmo modo, a forma do genitivo dos substantivos não segue o padrão ainda, de modo que encontramos expressões como for Christ his sake “pelo amor de Cristo” em lugar de for Christ’s sake. Várias preposições têm significados diferentes dos da língua moderna, por exemplo, the zeal of thine house “o zelo por tua casa” por the zeal for thine house; tempted of Satan “tentado por Satanás” por tempted by Satan; went forth of the Ark “saiu fora da Arca” por went forth from the Ark; in a good old age “com uma velhice avançada” por at a good old age; taken to wife “tomada em matrimônio” por taken as a wife; e like as the sand of the sea “como a areia do oceano”, em que apenas uma dessas duas palavras pode aparecer na língua moderna, ou seja, ora like ora as the sand of the sea, as duas são impossíveis juntas.

Ben Jonson e os poetas metafísicos Junto a Shakespeare, o principal escritor do período de transição entre os reinados de Elizabeth I e James I, estava Ben Jonson (c. 1572-1637). Sua reputação já estava consolidada no mundo do teatro londrino até o ano da morte da rainha em 1603 por cinco peças (havia outras): Every Man in his Humour (Todo homem em seu humor) (1598), Every Man out of his Humour (Todo homem fora de seu humor) (1599), Cynthia’s Revels (A festança da Cíntia) (1600), e The Poetaster (O poetinha) (1601). Em 1603, a tragédia Sejanus, his Fall foi realizada no Globe. Durante muitos anos, Jonson manteve uma produtiva colaboração com o famoso arquiteto e paisagista, Indigo Jones, na realização

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de entretenimentos mascarados na corte em que Jonson escrevia as peças e Jones desenhava os cenários. Masque of Blackness (Mascarada de negrura), Volpone, or The Fox (Volpone, ou o raposo), Epicoene or the Silent Woman (Epicoene ou a Mulher silenciosa), The Alchemist (O Alquimista). A parceria durou anos, e até uma briga afastou os colaboradores. Muito mais classicista que Shakespeare, Jonson foi valorizado como um exímio poeta por contemporâneos. Se seu teatro é associado e comparado tipicamente com Shakespeare, seus poemas provocam comparações com John Donne (veja mais adiante). Nesse sentido, Jonson foi o precursor dos poetas “cavaleiros” e monarquistas do período da guerra civil e da Restauração. Na realidade, ele contribuiu diretamente para a formação desses poetas posteriores, os quais se consideravam e se autodenominavam os “filhos de Ben” ou membros da “tribo de Benjamin”. O nome de “poetas metafísicos” foi dado por Samuel Johnson em seu Lives of the Most Eminent English Poets (As vidas dos mais conceituados poetas ingleses) de 1779, quando ele identificou um grupo de jovens poetas cuja poesia e outras escritas estão cheias de referências à morte, à podridão, ao decaimento da vida e sua fragilidade, à natureza efêmera de todo prazer e beleza, que passam rapidamente para feiura, nojo e horror. Os temas recorrentes são as preocupações com a vida eterna e espiritual que se sente por trás de tudo neste mundo. Com tal enfoque, não é de se estranhar que os metafísicos reconhecessem associações simbólicas ou metafóricas – “conceitos” – entre objetos, ideias e fenômenos que parecem totalmente opostos. Por meio de tais encontros inusitados e um foco extremamente detalhado e detalhista, poetas como Andrew Marvell, John Donne e Abraham Cowley, acreditavam enxergar a natureza metafísica do universo e expressar a intensidade da vida sensorial fugaz e a inevitável presença da morte. Sua linguagem é intensamente metafórica e hiper-intelectualizada, saturada de uma propriedade que eles chamavam de wit (“agudeza”, “destreza”), tanto em sua maneira de se expressar em suas composições como também no sentido de “inteligência”, “perspicácia”, por conseguirem penetrar o véu que esconde ou disfarça a natureza aterrorizante da realidade.

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Figura 3.4  Trecho do poema To His Coy Mistress.

Mas por minhas costas ouço sempre

A biga alada do Tempo aproximar-se rápido: E lá tudo ante nós se estende Desertos da vasta Eternidade. Tua Beleza nunca mais será encontrada; Também, em tua Cripta marmórea, não soará Meu Canto ecoante: então os Vermes provarão Essa Virgindade longamente preservada: E teu Honor pitoresco converter-se-á em poeira; E em cinzas toda minha Luxúria. A Sepultura é um lugar excelente e privado Mas acredito que lá ninguém se abraça. Fonte: adaptada de Marvell (1681 apud WARD, 1965, p. 245).

O mais famoso dos poetas metafísicos do período jacobino é John Donne (1576-1631). Donne nasceu em Londres e estudou nas universidades de Oxford e Cambridge e treinou para ser um advogado. No entanto, ele abandonou seus estudos de Direito para entrar no serviço do earl de Essex, viajou no Continente, além de participar de uma expedição militar para as ilhas Açores. Depois de um escândalo, em que ele fugiu com a sobrinha da esposa do seu patrão e se casou com ela, pelo qual Donne passou várias semanas preso, um período de serviço secular e a publicação de algumas canções e poemas, Donne abandonou o catolicismo e converteu-se ao anglicanismo em 1615, chegando a ordenar-se. Entre suas escritas mais famosas estão seus sermões. Sua esposa morreu em 1617, e, em 1621, Donne foi nomeado decano da catedral de Saint Paul’s, em Londres. As meditações sobre o espetáculo da mortalidade, sempre ameaçadas pela sombra da morte, eram constantes em toda a obra de Donne. Em 1624, depois de sobreviver a uma grave doença, ele publicou Devotions upon Emergent Occasions (Devoções sobre ocasiões emergentes). O tom da poesia e da prosa do período religioso da vida de Donne contrasta com o dos poemas escritos durante sua juventude.

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Figura 3.5 Primeira estrofe do poema Song, de John Donne.

Vá e apanhe uma estrela cadente, Engravida uma raiz de mandrágora, Diga-me, onde todos os anos passados estão, Ou quem fendeu o pé do Diabo, Ensine-me a ouvir sereias cantando, Ou a repelir as invejas cáusticas, E descobrir Qual vento Serve para adiantar uma mente honesta. Fonte: adaptada de Ward (1965, p. 250).

John Milton e John Bunyan Esses dois escritores representam os maiores talentos literários do período em torno da guerra civil inglesa. John Milton nasceu em Londres em 1608, era o filho de um tabelião bem-sucedido que era também um compositor amador. Educado em Saint Paul’s School e Christ’s College, Cambridge, onde ele se mostrou um excelente aluno e estudante assíduo. Quando deixou a universidade, Milton passou seis anos morando com os pais em Windsor, refletindo sobre o tema e o tipo de poema que queria compor como sua contribuição à humanidade. Entretanto, ele compôs diversos poemas excelentes: L’Allegro, Il pensaroso e Arcades, uma mascarada, Comus, e uma elegia, Lycias, que já eram excepcionais. Entre 1638 e 1639, Milton fez uma viagem pela França, Suíça e Itália. Figura 3.6 Trechos do poema Lycides, de John Milton.

Bocas cegas! Que elas mesmas mal sabem [como segurar Um bordão de Pastor, ou aprenderam sequer [o mínimo Que pertence à arte do Pastor fiel! O que lhes importa? Do que eles precisam? Eles [são despachados à pressa; E quando eles escutam, suas canções magrelas [e espalhafatosas Ralam os canos da Goela feitos de palha pobre, As Ovelhas esfomeadas levantam a cabeça, e não [recebem comida, Antes, enchidos de gases, e a neblina rançosa [que respiram Apodrecem por dentro, e o contágio pútrido [se estende:... Traga a Prímula espectral que morre abandonada. O Gerânio tufado e o pálido Jasmim,

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O Cravo branco, e o Amor-perfeito mosqueado [de azeviche, A Violeta brilhante. A Rosa-almíscar, e a Madressilva bem-vestida, Com a Prímula silvestre descorada que deixa [pendurar a cabeça pensativa, E cada flor que se veste de bordado triste: Pede a Amaranto despir toda sua beleza, E ao Narciso silvestre encher seus copos de [lágrimas, Para espargir no Carro Funerário laureado em [que Lucides jaze. Fonte: adaptada de Ward (1965, p. 268).

Lycides é uma elegia pastoral composta na ocasião da morte de um amigo de Milton, Edward King, em um naufrágio no mar da Irlanda em 1637. O nome Lucides é usado por Teócrito, Virgílio e Ovídio, entre outros poetas clássicos, geralmente com alguma referência pastoral. Nessa prática, Milton continua o padrão típico da poesia elegíaca e demonstra seu domínio do estilo, das imagens e dos temas da mitologia clássica associados ao gênero. Quando regressou de seu tour europeu, durante os 20 anos seguintes, de 1640 até 1660, Milton dedicou-se à publicação de panfletos e tratos a favor dos críticos presbiterianos do comando dos bispos na Igreja Anglicana. Quanto à política, produziu material que apoiava o Parlamento e o Commonwealth (“comunidade nacional republicana”) contra o partido monarquista. Em 1644, no auge da guerra civil, ele publicou sua obra-prima em prosa, Areopagitica: A Speech of Mr. John Milton for the Liberty of Unlicensed Printing (Areopagítica: Um discurso do Sr. João Milton para a liberdade da imprensa desregulada), uma defesa magistral da liberdade de expressão e da imprensa livre contra a censura. O título é uma referência a um discurso do orador grego Isócrates, sobre um conselho antigo que ele queria restabelecer, o qual se reunira antigamente no monte Areópago, em Atenas. Por meio desse panfleto, Milton quis derrubar o Decreto para a regulação da imprensa de 1643, que estipulava que todo autor deveria conseguir uma licença oficial do governo antes de imprimir sua obra. Apesar de ele apoiar os calvinistas puritanos que dominavam o parlamento contra a Igreja Anglicana e os monarquistas, Milton acreditava que a censura deveria operar apenas após a publicação, quando seria possível “examinar, refutar e condenar” o texto, na base do conteúdo.

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Em parte, a rejeição que Milton sentia sobre o decreto para censurar a imprensa veio de suas próprias dificuldades com a censura. Entre 1643 e 1645, ele tentou publicar quatro tratados em defesa do divórcio. Seu próprio casamento estava muito infeliz, a ponto de sua esposa, Marie Powell, se separar de Milton e voltar para a casa da mãe. No entanto, Milton não conseguia um divórcio por motivos de abandono. Não se sabe bem os motivos para as dificuldades do casal. Marie era 20 anos mais nova que seu marido, e eles vinham de lados opostos da guerra civil (a família Powell era monarquista anglicana, e os Milton eram parlamentaristas presbiterianos). Buscando promover um debate sobre os motivos que justificassem o divórcio, Milton tentou publicar quatro tratados: The Doctrine and Discipline of Divorce (A doutrina e a disciplina do divórcio), The Judgement of Martin Bucer (O julgamento de Martin Bucer), Tetrachordon (Com quatro cordas) e Colasterion (Instrumento de castigo). Como se pode imaginar, as autoridades religiosas contemporâneas não aprovaram a impressão dos textos. Em 1644, ele publicou Of Education (Sobre a educação), em que também propôs um sistema de centros locais que serviriam simultaneamente como colégios e faculdades, nos quais o currículo consistiria de estudo, exercício físico e alimentação, em medidas iguais. A terceira fase da vida literária de Milton (aproximadamente 1649-1654) ocupa os anos depois da vitória do parlamento sobre o rei Charles I e a subsequente execução do monarca. Os panfletos escritos por Milton tratavam principalmente de justificativas da causa parlamentar e do regicídio, por exemplo, On the Tenure of Kings and Magistrates (Sobre o mandato de reis e magistrados), Eikonoklastes (O quebrador de imagens), Defensio pro Populo Anglicano (Defesa do povo inglês). Nessas atividades propagandísticas, Milton exercia o cargo de Secretary of Foreign Tongues (Secretário de Línguas Estrangeiras), ao qual foi nomeado pelo Conselho de Estado em março de 1649. Seu trabalho era redigir a correspondência oficial internacional do governo inglês em latim. Em 1652, Milton ficou cego e empregou o poeta metafísico Andrew Marvell como seu amanuense. No entanto, ele não deixou de publicar regularmente. Com a morte de Cromwell em 1659, a situação política fragmentou-se. Milton escreveu vários textos nos quais ele defendia

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a continuação do governo republicano e atacava as corrupções que percebia na Igreja Anglicana. A restauração da monarquia em 1660 causou sérios problemas para Milton. Como conhecido e clamoroso membro do partido antimonarquista, ele teve de viver escondido durante um tempo até a anistia geral. Mesmo assim, ele foi preso, mas a influência de seus amigos, por exemplo, seu antigo secretário, Andrew Marvell, que era deputado, conseguiu libertá-lo. Milton aposentou-se e, em 1664, terminou sua obra-prima poética, que foi publicada em 1667. Paradise Lost (Paraíso perdido) reconta a história da queda de Lúcifer do Céu e da tentação de Adão e Eva e seu exílio do Paraíso terrestre. Em 1671, Paradise Regained (Paraíso recuperado) e Samson Agonistes (Sansão, o campeão) foram publicados em um volume. O primeiro trata da tentação de Cristo no deserto, o segundo conta a história de Sansão e Dalila. É interessante notar os paralelos entre a narrativa de Samson Agonistes e a vida do próprio autor, ou seja, cego, fraco, exilado na terra de seus respectivos inimigos: os filisteus e os monarquistas anglicanos. Os três poemas épicos representam o cimo da criatividade de Milton. Revestindo a mitologia hebraica em retórica e iconografia greco-romana, Paradise Lost conta um colossal de 10.565 versos divididos em 12 livros. Em comparação, Paradise Regained conta apenas 2.065 versos em 4 livros. Vejamos um trecho de Paradise Lost: Of Mans First Disobedience, and the Fruit Of that Forbidden Tree, whose mortal tast Brought Death into the World, and all our woe, With loss of Eden, till one greater Man Restore us, and regain the blissful Seat, Sing Heav’nly Muse, that on the secret top Of Oreb, or of Sinai, didst inspire That Shepherd, who first taught the chosen Seed, In the Beginning how the Heav’ns and Earth Rose out of Chaos: Or if Sion Hill Delight thee more, and Siloa’s Brook that flow’d Fast by the Oracle of God; I thence Invoke thy aid to my adventrous Song, That with no middle flight intends to soar Above th’ Aonian Mount, while it pursues

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Da Primeira Desobediência, e da Fruta Dessa Árvore Proibida, cujo gosto mortal Trouxe a Morte ao mundo, e todas nossas penas Com a perda de Éden, até um Homem maior Nos restaurar, e recuperarmos a Sede abençoada, Cante Musa Celestial, que no cume segredo De Horebe, ou de Sinai, que inspirou Aquele Pastor, que ensinou primeiro a Semente [escolhida No Começo como o Céu e a Terra Subiram do Caos: Ou se o Monte de Sião Te agrada mais, e o Arroio de Siloé que corria Próximo do Oráculo de Deus; eu de lá Invoco tua ajuda para minha Canção aventureira Que sem nenhum voo medíocre pretende planar Por cima da Montanha Aônia, enquanto ela [persegue

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Things unattempted yet in Prose or Rhime. And chiefly Thou O Spirit, that dost prefer Before all Temples th’ upright heart and pure, Instruct me, for Thou know’st; Thou from the first Wast present, and with mighty wings outspread Dove-like satst brooding on the vast Abyss And mad’st it pregnant: What in me is dark Illumin, what is low raise and support; That to the highth of this great Argument I may assert Eternal Providence, And justifie the wayes of God to men.

Coisas ainda não tentadas em Prosa ou Rima. E, principalmente Tu, Ó Espírito, que preferes Antes de todos os Templos o coração reto e puro, Instrua-me, porque Tu sabes; Tu desde o início, Estavas presente, e com tuas poderosas asas [expandidas Como um pombo empoleiravas meditando [sobre o vasto Abismo E fecundaste-o: O que em mim for escuro Ilumine, o que for baixo, eleve e sustenha; Que à altura desse grande Tema Posso vindicar a Providência Eterna. E justificar os caminhos de Deus aos homens.

Se o objetivo de Milton com seu Paraíso Perdido era de compor uma épica cristã nos moldes dos grandes épicos de Homero e Virgílio, a pretensão de John Bunyan (1628-1688), o latoeiro batista, era mais modesta. Bunyan foi conscrito para o exército parlamentarista em 1644, quando tinha 16 anos. Depois da guerra civil, ele atuou como pregador. O livro foi redigido na cadeia, onde Bunyan ficou durante 12 anos, desde a restauração de 1660 até a anistia geral de 1672, com grande custo de sua família, porque ele recusava abandonar a pregação. Foi durante sua longa prisão que Bunyan escreveu Grace Abounding to the Chief of Sinners (Graça abundante para o Chefe dos Pecadores), uma autobiografia espiritual, e sua obra-prima, The Pilgim’s Progress (O Peregrino). Milton quis “justificar os caminhos de Deus aos homens” por meio de um longo poema cheio de referências rebuscadas à cultura clássica, manifestando grande talento artístico na habilidade de dominar o complexo esquema de metrificação. A leitura de Paraíso Perdido é um exercício exigente. Bunyan, por outro lado, produziu uma breve obra de prosa (com alguns trechos breves de poesia), redigida em linguagem pouco elaborada, porém, atrativa, com o objetivo de atrair as pessoas para o caminho cristão, por meio de personagens simples e de ação viva. Nessa medida, Bunyan, um homem pouco instruído, embora fosse um excelente pregador, seguia os modelos de longa data do teatro moralista medieval: diálogos interessantes, bastante ação em um ritmo ligeiro, descrição viva e uma narrativa que progride sensível e constantemente em direção a um fim definido. O único elemento que falta, na opinião de Ward (1965, p. 277), é uma evolução dos

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personagens, os quais não passam de marionetes etiquetadas. Na melhor tradição do teatro moralista, eles não podem nos surpreender, como pode ocorrer em uma obra mais sofisticada, entretanto, isso não é necessário, pois Bunyan procurava um conto de fadas cativante para as pessoas comuns, ante um monumento a seu gênio. Figura 3.7 Trechos da obra The Pilgim’s Progress.18

Fonte: adaptada de Ward (1965, p. 279).

18 “[Cristão] continuou, e Apolião o encontrou. De fato, o monstro foi espantoso de ver; ele estava coberto de escamas como um peixe, que são seu orgulho; ele tinha asas como um dragão, patas como um urso, e da sua barriga saía fogo e fumaça; e sua boca era como a boca de um leão. Quando chegou a Cristão, ele o olhava com uma cara desdenhosa, ... [Após o “combate acirrado ... que durou por volta da metade do dia”] Apolião abriu suas asas de dragão e foi-se embora rapidamente, de modo que Cristão não o viu mais. [...] Vou à casa do meu Pai; e embora seja com grande dificuldade que eu sou conduzido daqui, apesar disso, agora eu não me arrependo de todo o aborrecimento que passei para chegar aonde estou atualmente. Minha espada, eu dou àquele que me seguir em minha peregrinação e minha coragem e habilidade àquele que a conseguir. As minhas manchas e cicatrizes, levo comigo, para serem uma testemunha para mim, de que eu lutei nas batalhas dele que será agora meu premiador. Quando o dia em que ele tinha de partir dali chegou, muitos o acompanharam até a margem do rio, no qual, na medida em que entrava, disse, Ó Morte, onde está teu ferrão? E conforme descia mais, ele disse, Ó cova, onde está tua vitória? Assim ele atravessou e todas as trombetas tocaram para ele no outro lado.”

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Daniel Defoe e Jonathon Swift Daniel Defoe (ca. 1660-1731) foi um escritor prolífico que trabalhou principalmente em uma área nova, o jornalismo. A facilidade com que a imprensa podia produzir textos a pouco custo, e em quantidades grandes, teve um impacto enorme sobre a indústria da escrita. Em 1704, Defoe fundou um periódico que era publicado três vezes por semana, chamado inicialmente The Review of the Affairs of France (A revisão dos negócios da França), por focar a situação da guerra entre a Inglaterra e a França no contexto da Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1714). Quando a guerra terminou, a revista passou a informar sobre o estado da nação inglesa e, depois, da união política entre a Inglaterra e a Escócia, em 1707, com o estado da nação britânica. The Review circulou durante 13 anos. Em termos de vida útil média de tais jornais, The Review foi longeva; outras publicações parecidas da época, por exemplo, The Tatler (O fofoqueiro) e The Spectator (O espectador), editadas por Addison e Steele, duraram apenas dois anos. Além das suas atividades jornalísticas, Defoe trabalhava como negociante de meias e malhas e gerenciava uma olaria, embora as duas empresas tenham quebrado. De alguma maneira, Defoe conseguiu vincular-se com o novo governo de William III, duque de Orange e a rainha Mary, que havia obrigado o católico James II a abdicar na “Gloriosa Revolução” de 1688. Em 1697, o primeiro de seus tratados importantes saiu na imprensa, An Essay upon Projects (Um ensaio sobre projetos). O texto tratava de maneiras de melhorar diversos aspectos da vida comercial e social, entre os quais estava a proposta de uma academia da língua inglesa (como já abordamos nesta unidade). Outro tema que motivava Defoe era a questão religiosa. De família de dissenters (protestantes que não se conformavam com Igreja Anglicana estabelecida), ele defendia mediante seus panfletos, como The True-born Englishman (O inglês puro-sangue) de 1701, o rei protestante holandês, William III, contra os frequentes ataques xenófobos por membros de outras facções políticas. Defoe castigou os críticos do rei como ingratos, destacou como a história da Inglaterra fez dos ingleses um povo misturado e vira-lata e enfatizou que William, embora um príncipe estrangeiro, salvara a Inglaterra de um retorno ao catolicismo, como muitos temiam que James II teria orquestrado, se ele tivesse continuado no trono. A defesa de William atraiu a hostilidade dos inimigos do rei e, quando William III faleceu em 1702, e sua filha Anne assumiu

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o trono, as políticas repressivas contra as minorias religiosas não conformistas tornaram a vida de Defoe ainda mais difícil. Para reclamar das medidas adotadas, ele publicou em dezembro de 1702 um panfleto anônimo intitulado The Shortest-Way with The Dissenters, or Proposals for the Establishment of the Church (A maneira mais breve para com os não conformistas, ou propostas para a instituição da Igreja), em que ele adotou uma posição muito radical contra os não anglicanos, propondo que todos os dissenters deveriam ser exilados ou mortos. As autoridades demoraram a perceber que se tratava de uma sátira contra o partido conservador, e a Igreja Anglicana que visava derrubar as restrições por torná-las ridículas. Contudo, quando se deram conta disso, eles ofereceram uma recompensa de 50 libras (equivalente a aproximadamente 7.384 libras britânicas atuais ou 28.569 reais brasileiros) para a captura do autor de The Shortest Way, e Defoe teve de se esconder. Figura 3.8  Trecho do panfleto The Shortest-Way with The Dissenters.19

Fonte: adaptada de Ward (1965, p. 316).

19 “É fútil gracejar neste Negócio, tratá-los de forma leviana e pouco severa mediante Impostos, Multas etc., é sua Felicidade e sua Vantagem; se a Forca em lugar do Balcão do Contador e remar nas Galés em lugar de Multas fossem a Recompensa para assistir a um Conventículo [reunião religiosa clandestina], ora para pregar, ora para escutar, não haveria tantos Sofredores, o Espírito de Martírio já acabou; aqueles que vão à Igreja para serem eleitos Corregedores e Prefeitos, prefeririam ir a 40 Igrejas a serem Enforcados... [...] Eu não proponho que todos os Dissidentes na Inglaterra devam ser Enforcados ou Exilados, mas como nos casos de Rebelião e Insurreição, se alguns dos Líderes sofrem, à Multidão é dada Licença para partir, assim, sendo algumas poucas Pessoas castigadas para fazer Exemplo, não cabe dúvida de que a Severidade da Lei encontraria uma fim na Complacência das Massas.”

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Quando preso, ele foi condenado por difamação sediciosa contra a Igreja, sendo exposto à irrisão pública no pelourinho durante três dias, multado severamente e encarcerado até pagar a multa. Quando ele estava na prisão, Defoe foi contatado pelo político Robert Harley, que posteriormente seria o earl de Oxford, que negociou o pagamento parcial das dívidas de Defoe, ao custo de exigir que ele trabalhasse como agente para Harley e para o partido conservador. Foi nessa capacidade de promotor do governo conservador liderado por Harley que Defoe publicou seu jornal The Review. A vida de Defoe como agente político e espião de Harley e dos conservadores o levou a integrar várias missões interessantes. Por exemplo, em 1706, Harley o mandou a Edimburgo para agitar a favor da união política da Inglaterra e da Escócia. Defoe explorou o fato de que, como presbiteriano, ele tinha sofrido persecução religiosa e política na Inglaterra, para procurar amizades (a Escócia era predominantemente presbiteriana), conseguindo se infiltrar como suposto assessor à Assembleia Geral da Igreja da Escócia e participar em reuniões de vários comitês parlamentares nas quais os políticos escoceses debatiam a proposta da união com a Inglaterra em um país, a Grã-Bretanha, em 1707. Ele repassava tudo que escutava para seu patrão em Londres. O tratado de união era ferozmente contestado pelo povo escocês e por uma proporção significativa dos governantes. Portanto, Defoe teria corrido bastante perigo se tivesse sido descoberto. Desse papel, surgiu o livro The History of the Union of Great Britian (História da união da Grã-Bretanha) em 1709. Ao retornar a Londres, Defoe continuava viajando e publicando material político no serviço de seu patrão, por exemplo, Appeal to Honour and Justice (Apelação ao honor e à justiça) de 1715, em que defendeu o legado do governo de Harley. Outras publicações eram sobre temas que o serviriam bem como encenações do período mais inspirado da sua vida, ou sobre temas sociais, por exemplo, The Family Instructor (1715), sobre o ensino do dever religioso, Minutes of the Negotiations of Monsieur Mesnager (Minutas das negociações de monsieur Mesnager) (1717), em que ele representa Nicholas Mesnager, o embaixador francês que negociou o tratado de Utrecht, o qual encerrou a Guerra da Sucessão Espanhola de 1713, e A Continuation of the Letters Writ by a Turkish Spy in Paris (Continuação das Cartas escritas por um espião turco em Paris), em que Defoe escreveu a continuação de um livro que tinha feito sucesso sobre supostas cartas escritas por um agente secreto turco na corte de Luís XIV da França.

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Então, em 1719, começou um período de cinco anos durante os quais ele produziu uma verdadeira torrente de obras excepcionais que consagrariam seu legado literário. Em 1719, foram publicados The Life and Adventures of Robinson Crusoe (A vida e as aventuras de Robinson Crusoé) e The Further Adventures of Robinson Crusoe (As novas aventuras de Robinson Crusoé). Em 1720, Memoirs of a Cavalier (Memórias de um cavaleiro) e Captain Singleton (Capitão Singleton) saíram das imprensas; e, em 1722, apareceram The fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders (A vida amorosa de Moll Flanders), Colonel Jack (Coronel Jack) e A Journal of the Plague Years (Um diário dos anos da Peste), e, em 1724, Roxana, The Fortunate Mistress (Roxana, a amante afortunada). Em todos esses livros, Defoe sempre adota uma perspectiva característica dele, que é a de procurar convencer o leitor da veracidade da história, ora por colocar a narrativa na boca do protagonista, ora por introduzir elementos de supostos fatos biográficos para tornar a estória mais real. A continuidade estilística entre suas obras de ficção e suas escritas de não ficção fica evidente quando comparamos, por exemplo, as introduções de Journal of the Plague Years e Journey Thro’ the Whole Island of Great Britain (publicado entre 1724 e 1727). I was born in the Year 1632, in City of York, of a good Family, tho’ not of that Country, my Father being a Foreigner of Bremen, who settled first at Hull. (Robinson Crusoe). It may suffice the Reader, without being very inquisitive after my name, that I was born in the County of Salop, in the year 1608; under the Government of what Star I was never Astrologer enough to examine/ but the Consequences of my Life may allow me ti suppose some extraordinary Influence affected my Birth. (Memoirs of a Cavalier). [...] If I may believe the Woman, whom I was taught to call Mother, I was a little Boy, of about two Years old, very well dress’d, had a Nursery Maid to tend me, who took me out on a fine Summer’s Evening into the Fields towards Islington [...] (Captain Singleton: part of second sentence). My True Name is so well known in the Records, or Registers at Newgate, and in the Old-Baily, and there are some things of such Consequence still depending there, relating to my particular Conduct, that it is not to be expected I should set my Name or the Account of my Family to this Work; perhaps, after my Death it may be better known [...] (Moll Flanders). It was about the Beginning of September 1664, that I, among the Rest of my Neighbours, heard in ordinary Discourse, that the Plague was return’d again to Holland; [...] (A Journal of the Plague Year).

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O tratamento de pessoas das classes inferiores e criminais em Moll Flanders, Captain Singleton e Colonel Jack, coloca Defoe como um dos mais importantes inspiradores do gênero do romance popular, embora ele não tenha exibido o mesmo grau de caracterização na construção de seus personagens. The Compleat English Tradesman (O comerciante inglês completo) (1727) é de interesse, porque nesse tratado Defoe promove a classe mercantil e comerciante como a principal força de suprimento da Inglaterra, advogando o comércio como uma fonte de renda muito mais segura que a guerra. Defoe também enfatiza as estreitas ligações sociais entre os comerciantes bem-sucedidos e a pequena nobreza inglesa, seja por origem, por casamento ou por ocupação, e elogia o espírito empreendedor inglês como um aspecto que torna a nação inglesa superior aos sistemas realizados nos demais países europeus. Jonathan Swift foi o exato contemporâneo de Daniel Defoe. Nascido em Dublin, na Irlanda (que era governada pela Inglaterra), em 1667, quando Defoe tinha sete anos. Quando Defoe faleceu em 1731, embora Swift fosse viver mais 14 anos, morrendo em 1745, a última década de sua vida foi improdutiva, devido aos problemas de saúde mental que o afligiam. Ambos foram exímios prosistas, tratando temas sociais, políticos e religiosos satírica e didaticamente. Os dois conheciam bem a classe governante e outros personagens importantes. É interessante observar também que a obra-prima de cada um desses dois homens, embora fossem sátiras sérias escritas para o público adulto, Robinson Crusoé de Defoe e As viagens de Gulliver de Swift, terminaram sendo atribuídas à literatura infantojuvenil. No entanto, Defoe e Swift vieram de lados opostos do espectro religioso: Defoe era presbiteriano convicto, e Swift, um defensor ferrenho da Igreja Anglicana. Também, as experiências de vida eram diferentes. Defoe sofreu perseguição por suas convicções religiosas, estava sempre em apuros financeiros, mas manteve um tom muito equilibrado em suas escritas literárias. De fato, a falta de intensidade emocional de seus personagens literários, mesmo quando confrontados por situações difíceis, é uma crítica à sua obra, que pode ficar insossa às vezes, apesar da excelente qualidade da linguagem, devido à sua pouca vivacidade. Por outro lado, Swift é um escritor mais passional. Sua linguagem é mais enérgica e veemente, imbuída de uma raiva, um desgosto que chega ao nojo direcionado aos males do mundo e dos homens. Entre os textos mais relevantes de Swift, o ensaio A Modest Proposal for Preventing the Children of Poor People in Ireland Being a Burden on their Parents or Country, and for Making them

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Beneficial to the Publick (Uma proposta modesta para evitar que os filhos dos pobres na Irlanda sejam um peso a seus pais ou seu país e para torná-los vantajosos ao público) foi um panfleto satírico publicado em 1729. Escrito em um estilo baseado no escritor satírico romano Juvenal, Swift critica a atitude cruel dos ricos ante os sofrimentos dos pobres e, em particular, a violência das políticas do governo inglês na Irlanda em geral. Por meio de argumentos cada vez mais grotescos, Swift sugere que os irlandeses pobres poderiam melhorar sua condição econômica e social se eles vendessem seus filhos aos ricos para serem comidos. Seguindo seu modelo romano, Swift introduz o tema enfatizando repetidamente a situação terrível em que os irlandeses mais pobres se encontravam e indicando que a causa de tanta destituição é a culpa da atitude indiferente dos membros das classes superiores. Portanto, o leitor não está preparado para a natureza inacreditável da proposta quando ela é introduzida e isso gera o choque quando ele diz: “A young healthy child well nursed, is, at a year old, a most delicious nourishing and wholesome food, whether stewed, roasted, baked, or boiled; and I make no doubt that it will equally serve in a fricassee, or a ragout” (“Uma criança pequena sadia, bem alimentada, é, com um ano de vida, uma comida realmente deliciosa, nutritiva e saudável, seja ela guisada em um ensopado, assada, torrada, ou cozida; e eu não tenho a menor dúvida de que ela combinaria igualmente com um fricassê ou um ragu”). Therefore let no man talk to me of other expedients: Of taxing our absentees at five shillings a pound: Of using neither clothes, nor household furniture, except what is of our own growth and manufacture: Of utterly rejecting the materials and instruments that promote foreign luxury: Of curing the expensiveness of pride, vanity, idleness, and gaming in our women: Of introducing a vein of parsimony, prudence and temperance: Of learning to love our country, wherein we differ even from Laplanders, and the inhabitants of Topinamboo: Of quitting our animosities and factions, nor acting any longer like the Jews, who were  murdering one another  at the very moment  their city was taken: Of being a little cautious not to sell our country and consciences for nothing: Of teaching landlords to have at least one degree of mercy towards their tenants. Lastly, of putting a spirit of honesty, industry, and skill into our shop-keepers, who, if a resolution could now be taken to buy only our native goods, would immediately unite to cheat and exact upon us in the price, the measure, and the goodness, nor could ever yet be brought to make one fair proposal of just dealing, though often and earnestly invited to it.

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[...] I desire those Politicians, who dislike my Overture, and may perhaps be so bold to attempt an Answer, that they will first ask the Parents of these Mortals, Whether they would not at this Day think it a great Happiness to have been sold for Food at a Year Old, in the manner I prescribe, and thereby have avoided such a perpetual Scene of Misfortunes, as they have since gone through, by the Oppression of Land-lords, the Impossibility of paying Rent without Money or Trade, the Want of common Sustenance, with neither House nor Cloaths to cover them from these Inclemencies of Weather, and the most inevitable Prospect of intailing the like, or greater Miseries, upon their Bredd for ever.20 (Swift, A Modest Proposal...).

Além de atacar as atitudes pouco caridosas dos ingleses e os ricos em geral, Swift também criticava a tendência contemporânea de propor irrisórias soluções milagrosas aos males sociais e econômicos. Sua defesa de causas irlandesas o tornou um herói na Irlanda, e a ele foi concedida a Cidadania honorária de Dublin, mas sua fama na Irlanda já crescia desde há algum tempo, quando ele publicou 20 “Portanto, não deixe que ninguém me fale de outros recursos: de tributar nossos absentistas a cinco shillings por libra; de usar nem roupa, nem móveis domésticos, exceto o que seja do nosso próprio cultivo e manufatura; de rejeitar totalmente materiais e instrumentos que promovem o luxo estrangeiro; de curar o dispêndio do orgulho, da vaidade, da preguiça e do jogo em nossas mulheres; de introduzir uma vocação à parcimônia, à prudência e à moderação; de aprender a amar nosso país, em que somos diferentes até dos lapões e os habitantes de Topinambu; de abandonar nossas animosidades e facções, tampouco de atuar mais como os judeus, que se matavam no mesmo momento em que a cidade deles era tomada; de tomarmos um pouco de cuidado de não vendermos nosso país e nossa consciência por nada; de ensinar os proprietários de haver um grauzinho de misericórdia para seus inquilinos. Por último, de conferir o espírito de honestidade, de indústria e de habilidade a nossos mercadores, os quais, se uma resolução fosse tomada agora de comprar apenas nossos produtos nativos, se uniriam de imediato para nos fraudar e nos extorquir no preço, na medida e na boa qualidade, e os quais até o presente ainda não se pudesse jamais convencer a realizar uma única proposta honesta para um trato justo, apesar de terem sidos convidados com frequência e sinceramente a fazer isso. [...] Eu rogo àqueles políticos que não gostam da minha proposta e talvez estejam bastante corajosos a tentar responder, que perguntem primeiro aos pais desses mortais, se eles neste dia não pensariam uma grande felicidade ter sido vendido como comida com um ano de vida na maneira que indico e, por isso, ter evitado tal cena de desventura perpétua, como a qual eles têm vivido sob a opressão dos proprietários, a impossibilidade de pagar aluguel sem dinheiro nem ocupação, a falta de mantimentos básicos, sem casa nem roupa para cobri-los destas inclemências do tempo, e a perspectiva inevitável de acarretar a mesma miséria, ou ainda pior, sobre sua raça para sempre.”

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anonimamente, em 1724, The Drapier’s Letter (As cartas do vendedor de tecidos), uma série de panfletos em que criticou diversos aspectos das políticas britânicas na Irlanda. Por exemplo, Swift incentivou os irlandeses a recusar usar as moedas depreciadas produzidas por William Wood, um comerciante que teria lucrado £25.000 pelo contrato monopolizador de fornecer moedas de cobre ao governo britânico. Swift protestava que o poder de compra das moedas seria menor que o valor nominal do metal e que isso constituía uma fraude contra o povo irlandês. O projeto ficou de tão má reputação graças às escritas de Swift que o governo cancelou o contrato com Wood. Em A Tale of a Tub (Um conto sobre um tonel), o título refere-se à superstição entre os marinheiros de que jogar um barril no mar poderia salvá-los de uma baleia agressiva, por confundi-la. Segundo Swift, o barco era o navio do estado, e a baleia raivosa era o livro Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil do filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), publicado em 1651, no auge da guerra civil entre Charles I e o parlamento. O autor propõe um dos primeiros exemplos, e certamente o mais influente, de uma teoria da base contratual da sociedade, e defendia a necessidade de um governo forte e centralizado para superar o anarquismo inerente do ser humano de lutar um contra o outro no Estado Natural. No entanto, não está claro que a motivação identificada por Swift não tenha sido irônica, dado o tema da necessidade de boas e cuidadosas leituras para identificar o que realmente é bom dos ensinamentos falsos e sem valor. Os objetos centrais da obra, que é simultaneamente uma sátira e paródia, são os diversos tipos de extremismo religioso no cristianismo (com evidente favorecimento do protestantismo anglicano), mas a obra está cheia de desvios e mudanças de tema, com digressões sobre modelos literários, exegese bíblica, medicina, teologia e política. Em geral, os alvos são o entusiasmo, o orgulho e a ingenuidade. O texto ficou notório por sua rispidez e crescente desorganização. No início, capítulos alternam-se com o título de “Narrativo” e “Digressão”. Os desvios temáticos, porém, são muito mais interessantes e vigorosos do que a suposta narrativa principal do tratamento de três casacos, cada um legado a um dos três filhos de um homem, Pedro, Martinho e Jacques. A história dos casacos é evidentemente uma alegoria religiosa para as três denominações gerais do cristianismo: Pedro, uma referência a São Pedro e os papas, representa o catolicismo, Martinho (Martinho Lutero), o protestantismo moderado da Igreja Anglicana, e Jacques é uma referência aos protestantes não conformistas

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(batistas, anabatistas, presbiterianos, quakers, congregacionalistas etc., cujas doutrinas descendem das ideias de Calvino). A certa altura, porém, a ordem dos títulos é invertida e, finalmente, tudo é digressão. Na última instância, Swift está procurando testar a inteligência e o ceticismo do seu leitor, levando-o a refletir sobre temas cada vez mais estapafúrdios: um debate sobre orelhas, uma comparação entre a sabedoria e uma noz, a descrição de uma marca de xerez e sobre o cacarejar de uma galinha. Swift até incorporou elementos de diversas tentativas de “explicar” sua obra nas edições subsequentes com comentários em notas de rodapé, tornando a interpretação do texto ainda menos confiável, por parecer oferecer orientação, que não era, na realidade, nada disso e somente mais uma camada de distração para o leitor decifrar e penetrar. Figura 3.9 Trecho da obra A Tale of a Tub.21

Fonte: adaptada de Ward (1965, p. 326-327).

21 “... na maioria dos seres corpóreos que recaíram em meu conhecimento, o exterior foi infinitamente preferível ao interior. Fiquei ainda mais convencido disso por alguns experimentos recentes. Na semana passada, vi uma mulher esfolada, e vocês mal conseguirão acreditar o quanto isso alterou a Pessoa dela para pior. Ontem, eu mandei que a carcaça de um galanteador fosse despida na minha presença. No caso, fomos todos alucinados a encontrar tantas imperfeições inesperadas sob um único terno de roupa. Em seguida, eu abri o cérebro, o coração e o baço dele e percebi claramente em cada operação que quanto mais longe procedíamos, tanto mais encontrávamos que os defeitos nos aumentavam em número e em tamanho. De tudo

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Depois do sucesso de A Tale of a Tub, que lhe trouxera notoriedade (e provavelmente impediu que o autor recebesse alguma promoção significativa na hierarquia anglicana, tal como ele almejava), Swift dirigiu-se à questão dos méritos relativos da literatura antiga e moderna em The Battle of the Books – an Account of a Battle between the Ancient and Modern Books in Saint James’s Library (A batalha dos livros – um relato de uma batalha entre os livros antigos e modernos na biblioteca de St. James). O tom do texto é menos sério de A Tale of a Tub. O poeta John Dryden (o primo de Swift) aparece vestindo “um elmo nove vezes maior que a cabeça dele”. Figura 3.10 Trecho da obra The Battle of the Books.22

Fonte: adaptada de Ward (1965, p. 327).

Como Ward (1965, p. 327) observa de modo sagaz, embora muitos escritores certamente compartilhem a opinião de Swift a respeito dos críticos literários, poucos possuem a capacidade de desabafar de tal maneira contra a “divindade maligna” como Swift: isso, eu me formulei corretamente esta conclusão: que o Filósofo ou Planejador que puder descobrir uma Arte para soldar e remendar na gambiarra as falhas e imperfeições da natureza, merecerá muito mais da Humanidade e ensinar-nos-á uma ciência mais útil do que tanto que está estimada atualmente, de ampliar e expô-las (como aquele que acreditava que a Anatomia fosse o último Objetivo final da Física).” 22 “[o poeta grego Píndaro] com um golpe fortíssimo, cortou o miserável Moderno [o poeta metafísico Cowley] em dois, a espada traçando o golpe, e uma metade ficou ofegante no chão, a ser pisoteada em pedaços pelos cascos dos cavalos; a outra metade foi levada pelo corcel aterrorizado pelo campo de batalha. Essa Vênus tomou, lavou-a sete vezes em ambrosia e tapou-a duas vezes com um galho de amaranto. Nesse instante, o couro ficou redondo e macio, e as folhas converteram-se em plumas e, sendo douradas antes, continuavam douradas ainda. Assim, tornou-se um pombo, e ela o arreou a sua biga.”

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Figura 3.11 Trecho da obra The Battle of the Books.23

Fonte: adaptada de Ward (1965, p. 327-328).

O mais famoso dos livros de Swift, As viagens de Gulliver, foi intitulado originalmente Travels into Several Remote Nations of the World, by Lemuel Gulliver, First a Surgeon and then a Captain of Several Ships (Viagens a várias nações remotas do mundo por Lemuel Gulliver, primeiro cirurgião e depois capitão de diversos navios). Swift comunicou-se com o editor Benjamin Motte em uma carta em que ele assinou como “Richard Sympson”, fingindo ser o representante do seu primo, Lemuel Gulliver. Motte aceitou o manuscrito, pelo qual ele pagou 200 libras, e quando foi publicado em 1726, o livro tornou-se um sucesso imediato. Os povos exóticos com os quais Gulliver se encontra durante suas viagens são representações satíricas de diferentes classes sociais e da situação sociopolítica na Europa em meados do século XVIII. Os liliputianos representam os políticos europeus cujas brigas e intrigas não são mais do que as discussões 23 “... o Criticismo ... estendido em seu covil, sobre o saque de inúmeros volumes meio devorados. À sua mão direita sentou a Ignorância, seu pai e marido, cego de velhice, à sua esquerda, o Orgulho, sua mãe, vestindo-a em tiras de papel que ela mesmo tinha rasgado. Lá havia a Opinião, sua irmã, de pés ligeiros, enganada e obstinada, mas tonta e sempre se virando. Ao redor dela brincavam seus filhos, Barulho e Desaforo, Torpeza e Vaidade, Convicção, Pedantismo e Malcriação. A própria deusa tinha garras como um gato; sua cabeça e orelhas e voz assemelhavam as de um asno; seus dentes dianteiros caídos, seus olhos virados para dentro, como se ela olhasse apenas a si mesma. Sua dieta era o derrame de seu próprio fel...”.

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de pigmeus com Gulliver, mas a visão de Gulliver é invertida na sua viagem para a terra dos gigantes de Brobdingnag, para quem as querelas das coroas europeias são ridículas e horripilantes. Na ilha voadora de Laputa, onde são cultivadas as artes, a música, a astronomia e a matemática, Gulliver observa os males de uma burocracia dedicada à pesquisa científica sem nenhum objetivo prático. Em Balnibari, uma região governada por Laputa, a grande Academia do Lagado (que representa a Real Academia das Ciências inglesa) dedica os recursos naturais e o potencial produtivo da população a projetos inúteis como a extração de raios de sol dos pepinos, convertendo mármore em travesseiros, misturando cores de tinta por olfato e a detecção de conspirações pela investigação do excremento dos suspeitos. Em Glubbdribdrib, Gulliver debate a história com os fantasmas de personagens históricas na casa de um mago, em uma repetição do tema dos antigos e moderno d’A Batalha dos Livros e em Luggnagg, ele encontra os strulbrug, um povo imortal, mas que não permanece jovem, de modo que todos ficam totalmente decrépitos e se consideram oficialmente mortos quando alcançam a idade de 80 anos. Finalmente, Gulliver chega ao Japão, de onde ele consegue voltar para a Inglaterra. Em sua última viagem, Gulliver sofre um motim em seu navio e é abandonado em um bote pela tribulação. Ao encontrar terra, Gulliver descobre que é habitada por uma espécie de hominídeos deformados, revoltantes e selvagens chamados de yahoo, aos quais ele desenvolve uma antipatia muito forte. Pouco depois, Gulliver descobre os governantes da região, uma raça de cavalos falantes cultíssimos chamados houyhnhnm. Entre os houyhnhnm, Gulliver adota o estilo de vida desses cavalos eruditos e honestos e rejeita todo contato com os membros de sua própria espécie, que ele menospreza como yahoos minimamente dotados de alguma razão, o que apenas magnifica sua capacidade para violência, falsidade e outros vícios. Os houyhnhnm, por outro lado, concluem que Gulliver, um tipo de yahoo um tanto superior aos demais, constitui um risco à civilização deles e o exiliam, enviando-o ao navio de um capitão português de volta para a Inglaterra. Lá, Gulliver não consegue se reintegrar com a sociedade. Ele se isola das pessoas, que ele julga rudes, feias e

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nojentas, ficando recluso em sua casa e até evitando ao máximo os membros da sua família. Ele passa longas horas conversando com os cavalos no estábulos, efetivamente enlouquecido. É curioso notar que os últimos anos da vida de Swift também foram acometidos por graves problemas psicológicos.

Exercícios de fixação 1. O que foi a Renascença? Quais foram as características do humanismo renascentista? 2. Por que Henry VIII rompeu com a Igreja Católica? 3. Quais foram as repercussões para o uso da lín-

12. Descreva a controvérsia entre os “enriquecedores” do léxico e os que rejeitavam as inovações como “termos do tinteiro”. 13. Quais eram as maiores fontes de empréstimos no período pré-moderno?

gua inglesa com a adoção do Protestantismo?

14. Quais vantagens tinha o plano para reformar

4. Qual foi a importância da uniformização ad-

a ortografia proposto por Mulcaster sobre as

ministrativa e judicial de Gales mandada por

propostas de outros reformadores ortográfi-

Henry VIII?

cos, como Bullockar?

5. Por que os ingleses e escoceses nunca esta-

15. Quais foram as preocupações dos letrados

beleceram uma Academia da Língua Inglesa/

pré-modernos que levaram vários deles a

Escocesa?

defender a necessidade de uma Academia da

6. O que é um fonema e como este se distingue? 7. O que ocorreu na grande mutação vocálica? 8. Descreva as principais mudanças que atingiram o sistema de vogais breves. 9. Como discriminamos entre alomorfes e morfemas? 10. Pea, cherry e sherry são exemplos de qual fenômeno ligado à formação do plural? 11. Indique as principais etapas na perda de thou/thee/thine e o impacto concomitante nos paradigmas verbais.

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Língua Inglesa? 16. Qual foi a relevância da “edição autorizada” da Bíblia, o teatro de Shakespeare e o Dicionário de Johnson para a língua inglesa? 17. Quais autores contemporâneos influenciaram Shakespeare? 18. Que modificações os elizabetanos introduziram no formato das peças clássicas? 19. Contraste o estilo e as motivações de Milton e Bunyan. 20. O livro As Viagens de Gulliver é mesmo uma literatura infantil?

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Panorama Periodização linguística por eventos não linguísticos O recorte cronológico classificado como pré-mo-

por outro lado, que a fala certamente reagiu muito

derno é delimitado convencionalmente pelo fim da

mais rapidamente às novas condições, mas, infeliz-

Guerra das Rosas em 1485 e o estabelecimento

mente, não possuímos evidências para comprovar

da dinastia dos Tudor por Henry VII e a ascensão da

tal convicção, baseada no que se sabe em situações

dinastia de Hannover em 1714, na pessoa de

análogas para as quais temos provas da oralidade.

George I. Do ponto de vista das mudanças estrutu-

Em decorrência desse atraso entre os divisores

rais ocorridas ao longo dos 335 anos que compõem

extralinguísticos e os feitos linguísticos, apesar

o período pré-moderno, a decisão de usar eventos

de iniciarmos a Idade Pré-Moderna do inglês em

não linguísticos para definir um momento linguísti-

1485, a chegada das ideias e práticas inovadoras

co é uma maneira um tanto arbitrária. No entanto,

da Renascença, o fator extralinguístico que catali-

a esta altura do curso, você não deve estranhar que

sou as transformações que caracterizam o inglês

tal prática ocorra. É tradicional na filologia e na lin-

pré-moderno, só ocorreu por volta de 1520. A

guística histórica. Entretanto, é importante que você

antedatação é feita porque o contexto histórico

entenda que a prática de recortar a história de uma

da Renascença na Inglaterra é o âmbito da cor-

língua (periodização) na base de coisas não linguís-

te de Henry VIII, cuja dinastia surgira na geração

ticas raramente corresponde bem aos momentos

anterior. Do mesmo modo, não podemos apon-

em que mudanças linguísticas relevantes ocorrem.

tar para nada concreto que sirva para distinguir

O motivo de organizar a história das línguas assim

a linguagem do final do reinado da rainha Anne

é que, em termos de ocorrências históricas con-

Stuart (1702-1714) da linguagem no início do rei-

sideradas importantes por razões socioculturais

nado de George I de Hannover (1714-1727). Tudo

e políticas, elas exercem uma atração muito mais

na língua forma um imenso continuum, em que

forte que as modificações no tecido morfossintá-

variantes antigas em vias de desaparecimento

tico ou fonético-fonológico da(s) língua(s) falada(s)

ocorrem cada vez mais raramente enquanto ou-

durante tal período. Além disso, em geral, acon-

tras, de uma idade parecida, permanecem no uso

tecimentos não linguísticos são mais fáceis de lo-

ativo ou passivo (isto é, entendido, mas não usa-

calizar cronologicamente. Embora existam fortes

do), devido a certos padrões de uso, por exemplo,

correlações entre o linguístico e o não linguístico,

formalidade, ou no contexto de determinados

com o segundo contribuindo com os fatores que

meios de comunicação, por exemplo, a escrita.

motivam as mudanças no primeiro, as línguas não

Por outro lado, as inovações mais recentes tam-

costumam reagir imediatamente aos feitos de ou-

bém ocorrem pouco, estando tipicamente limita-

tras esferas da atividade humana. Por exemplo, o

das a certos contextos interacionais inicialmente.

impacto de um episódio tão cataclísmico quanto a

Podemos pensar que tais novidades estão no

conquista normanda da Inglaterra em 1066 só co-

aguardo de quando uma associação com algum

meçou a deixar marcas registráveis nos textos, por

grupo ou indivíduo prestigioso se estabelecer e

volta de 50 a 100 anos depois. Devemos observar,

lhes conferir sua importância, para desencadear

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uma concorrência com as demais variantes para

Portanto, é importante ter em mente que as di-

fixarem-se na norma. Isso é de integrar aquele

visões que colocamos entre diferentes períodos

conjunto de formas que ocorrem com maior fre-

“da língua” não costumam ser o resultado de

quência e mais ampla distribuição, de modo que

questões próprias “da língua”, mas de outras áreas

sejam avaliadas como “normais”, ou seja, variantes

(em geral socioculturais ou tecnológicas). Conse-

“não marcadas”, como típicas de alguma situação

quentemente, são blocos artificiais do ponto de

ou grupo especial. Muitas inovações nunca rece-

vista da situação interna da língua e nada precisas

bem o prestígio necessário para competir com

quanto às mudanças realmente linguísticas, cujas

sucesso e acabam desaparecendo ou ficando res-

relações com o extralinguístico são extremamente

tritas à norma de grupos menores.

complexas.

Recapitulando

N

esta unidade, você estudou a história ex-

Depois da morte de Elizabeth I, sem nomear ne-

terna da Inglaterra e da Escócia, focando

nhum herdeiro, conduziu à união das coroas da

os aspectos mais relevantes para a histó-

Inglaterra e da Escócia na pessoa de James VI da

ria da língua inglesa. Inicialmente, você aprendeu

Escócia. A dinastia dos Stuart não foi bem-sucedi-

sobre o fim da Guerra das Rosas e as políticas es-

da. Embora James I sobrevivesse a vários atentados

tabilizadoras de Henry VII, e a chegada das ideias

por grupos católicos em geral, seu filho, Charles I

renascentistas durante o reinado de Henry VIII. As

alienou o parlamento inglês de tal forma com seu

controvérsias religiosas começam a surgir no reina-

governo autoritário que eclodiu a Guerra Civil. Der-

do de Henry VIII, com seus seis matrimônios à pro-

rotado pelos generais parlamentaristas, Charles I foi

cura de um herdeiro masculino. O breve reinado

executado e o parlamento, em várias guisas, admi-

de Edward VI estabeleceu a base da Igreja Angli-

nistrou o país como república, até o início do Pro-

cana, desfeita pela Contrarreforma de Mary I, que

tetorado de Cromwell. A impopularidade do rígido

almejava retornar ao catolicismo. O uso crescente

governo puritano e a ausência de um bom can-

da imprensa móvel também aumentava conside-

didato para substituir o todo-poderoso Cromwell

ravelmente, melhorando o acesso aos textos em

levaram certos parlamentaristas a planejarem o

geral, especialmente entre as classes inferiores. Por

retorno da monarquia sob Charles II, restaurando

fim, Elizabeth I presidiu um grande florescimento

a dinastia dos Stuart até a morte da rainha Anne,

literário no vernáculo na forma de Shakespeare,

em 1714. O período da Guerra Civil e a Restaura-

Marlowe, Kydd, Spenser, Sidney e Jonson, entre

ção foram momentos de grande produtividade

outros. A questão da fixação da ortografia começa

em inglês. As controvérsias religiosas e políticas

a ser debatida, mas não seria resolvida até o Dicio-

estimulavam a produção de panfletos satíricos e o

nário de Doutor Jonson em 1755.

início do jornalismo, ambos sendo exercidos pelos

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O inglês pré-moderno

escritores mais importantes da época: John Milton,

tinteiro”. Outra área bastante afetada foi o sistema

Daniel Defoe, Jonathan Swift e Alexander Pope.

pronominal, especialmente as formas da segunda

Quanto às mudanças internas que atingiram a es-

pessoa do singular, que foram substituídas gra-

trutura da língua inglesa, o período pré-moderno

dualmente pelas formas do plural. Na fonologia, a

viveu um enriquecimento do vocabulário sem

grande mutação vocálica se instaura, alternando

precedentes. Por empréstimos lexicais das línguas

as relações entre realizações dos fonemas em uma

clássicas, estimulados pela necessidade de traduzir

longa cadeia. A sintaxe também sofreu modifica-

obras antigas para o inglês, e por processos deri-

ções, especialmente na ordenação dos constituin-

vacionais, o número de palavras cresceu absurda-

tes na frase, por exemplo, o surgimento de do em

mente, causando a controvérsia dos “termos do

perguntas e afirmação negativas.

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unidade

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O inglês moderno Objetivos de aprendizagem Aprender sobre a expansão do inglês ao redor do mundo, como consequência da empresa colonial britânica nos séculos XVIII e XIX e, no século XX, como resultado da grande influência dos Estados Unidos na esfera político-econômica durante a Guerra Fria e sua hegemonia após a dissolução da União Soviética. Estudar o impacto da Revolução Industrial nas sociedades anglófonas durante os séculos XVIII e XIX. Entender os principais fatores que influenciaram a evolução de variedades distintas na América do Norte (Estados Unidos e Canadá) que as tornou diferentes das variedades de inglês trazidas das ilhas britânicas e da Irlanda. Conhecer as principais variedades mundiais da língua inglesa: na Europa, nas Américas, no Caribe, na África, na Ásia e na Australásia. Saber reconhecer os traços que distinguem as várias formas regionais do inglês dentro de cada uma das macrorregiões supracitadas. Desenvolver noções da interação de fatores não linguísticos da evolução de variedades linguísticas. Compreender a natureza das variedades vernáculas e sua relação com as variedades padrão.

Temas 1 – Variação e mudança na América do Norte Nesta seção, você estudará a história colonial da América do Norte e a subsequente evolução de variedades distintas de inglês nos Estados Unidos e no Canadá. Além disso, veremos como as origens regionais dos primeiros colonizadores deixou certos traços em algumas regiões e como as características dialetais originais iam sendo misturadas, recombinadas e reinterpretadas pelas gerações posteriores, até se configurarem nos três grandes blocos dialetais do inglês americano e nas várias divisões reconhecíveis do inglês canadense.

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2 – Diferenças entre o inglês americano e o inglês britânico Este tema apresenta as características das duas variedades mais influentes do inglês. Aqui, você aprenderá os traços que distinguem as duas normas cultas nas áreas do léxico, da gramática, da fonética e fonologia, e da ortografia. 3 – Variação global Neste tema, as principais variedades do inglês mundial serão apresentadas: no Caribe, na África (com suas três divisões entre oeste, leste e sul), na Ásia (com foco na Índia e no Paquistão) e na Australásia (Nova Zelândia e Austrália). Cada seção tratará brevemente da história colonial de cada região e do modo como o contato entre as variedades do inglês trazidas pelos colonizadores e as línguas autóctones contribuíram para criar novas formas da língua em cada caso. 4 – Variação nas ilhas britânicas e na Irlanda A última seção desta unidade retorna à origem do inglês, a ilha da Grã Bretanha, e revela a grande diversidade dialetal que ainda existe por lá. Cada país do Reino Unido receberá uma atenção especial: a Inglaterra, a Escócia e o País de Gales. A situação linguística na Irlanda, o primeiro lugar a ser colonizado por anglófonos e dividida atualmente entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte (que é parte do Reino Unido), também será apresentada, devido ao importante papel desempenhado pelos falantes de inglês irlandês na difusão dessa língua pelo planeta.

Introdução Esta última unidade do curso vai ser um pouco diferente das anteriores, pelo menos em relação à abordagem adotada. A razão desse tratamento distinto é que existe, de certa forma, menos história externa para apresentar que nas demais unidades. Embora esteja evidente que é possível descrever os acontecimentos na expansão imperial da Grã-Bretanha durante os séculos XVIII e XIX e as grandes alterações socioculturais que foram provocadas pela industrialização nas ilhas britânicas durante o mesmo período, tal como poderíamos tratar a história do crescimento das colônias britânicas na América do Norte e a independência dos Estados Unidos em 1776 de maneira detalhada,

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este não será o nosso objetivo nesta unidade. O motivo para essa mudança de foco é devido à escala dos eventos históricos extralinguísticos. Enquanto o palco das ocorrências era restrito às ilhas britânicas e à Irlanda, daria para contar os episódios mais detalhadamente, mas, a partir do século XVIII, a cena passa a ser mundial. Portanto, nosso enfoque nesta unidade é a descrição das diversas variedades diatópicas (geográficas) e diastráticas (sociais) do inglês moderno, suas características e os principais fatores que conduziram à sua formação, os que operam na sua manutenção, e, quando necessário, atuam para ameaçá-las ou promover sua expansão. Assim, o que você aprender nesta unidade será útil para entender a grande diversidade linguística que está compreendida na língua inglesa atualmente. Isto é, o inglês (como qualquer exemplo do complexo de elementos que chamamos convencionalmente de “uma língua”) é muito mais um conceito compartilhado por seus falantes que um fato consumado, facilmente identificável na prática. Não é incomum que falantes nativos tenham dificuldade para se comunicar quando cada um fala sua variedade nativa; porém, o fato de existirem algumas variedades do inglês que são suprarregionais (os ditos padrões), aprendidas por uma mistura de ensino formal e assimilação não estruturada por contatos no dia a dia, gera a impressão de unidade, mas que é muito menos estável e regular quanto sujeito à perscrutinação científica. Por exemplo, um falante alfabetizado de qualquer variedade de inglês consegue ler qualquer das variedades padrão, porque as diferenças ortográficas entre essas variedades codificadas são pequenas. As diferenças gramaticais e lexicais entre esses dialetos padronizados também são razoavelmente pequenas. Por outro lado, a pronúncia de um texto em inglês padrão pode variar muito, a ponto de dificultar o reconhecimento dessa linguagem padrão quando os interlocutores não estão familiarizados com a variedade do outro. Em paralelo com a rica variabilidade fonético-fonológica, que caracteriza os padrões e ainda mais as formas vernáculas, o vocabulário e a gramática das variedades vernáculas são muito diversos. Em geral, os vernáculos ingleses têm sofrido muita discriminação e estigmatização dos falantes de inglês por não estarem em conformidade com as normas padrão. É comum ouvir comentários negativos sobre eles, inclusive de quem os têm como língua materna (que é vasta na maioria dos anglófonos). Tal atitude, contudo, é baseada na ideia equivocada de que uma variedade vernácula é uma corrupção

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da forma padrão por preguiça, desleixo ou ignorância. Na realidade, a história dos vernáculos é independente da língua padrão, embora esta última tenha exercido muita pressão sobre os primeiros, especialmente depois que a educação escolar se tornou mais acessível. O que é reconhecido como “padrão” no tocante à gramática e ao léxico atualmente, nada mais é que uma codificação da linguagem usada pelas classes eruditas no “triângulo dourado” geográfico entre as cidades de Londres (a capital e o maior centro comercial, além de ser a sede da corte e o governo), Oxford e Cambridge (as duas universidades mais antigas e conceituadas da Inglaterra) principalmente durante o período pré-moderno (veja a Unidade 3), embora tivesse suas raízes no período medieval com a mistura de variedades do centro-leste, leste e sudeste em Londres e arredores. Essa variedade também não era popular, mas evoluía no ambiente da corte real e nos gabinetes dos governantes e administradores, muitos dos quais foram formados nas universidades mencionadas. Em termos de representação gráfica e constituição de uma linguagem escrita, a atividade dos tabeliães da chancelaria contribuíram bastante. As sementes de um inglês padrão na Inglaterra eram muitas e variadas. O mesmo vale para a constituição de uma variedade padrão na Escócia, no mesmo período e com os mesmos fatores (a mistura, a corte, a administração). Isto é, o inglês padrão começou como uma variedade regional (sudeste da Inglaterra) e de classe (média e alta). Em The Arte of English Poesie, de 1589, o autor, provavelmente Sir George Puttenham (1529­‑1590), recomenda que “ye shall therefore take the usuall speech of the court and of London, and of the shires lying about London within XL myles and not much above” (vós tomareis, portanto, a linguagem típica da corte e de Londres e dos condados ao redor de Londres até a distância de 40 milhas, sem ser muito mais). Quanto ao padrão escocês, depois da união das coroas em 1604, a forma inglesa exerceu muita influência sobre ela, eliminando a grande maioria de seus traços distintivos na ortografia e na gramática no decorrer do século XVII. A pronúncia e o léxico continuavam diferentes. Os vernáculos de outras regiões e comunidades de fala evoluíram independentemente de seu antecessor medieval (veja a Unidade 2) e, em última instância, do precursor comum, o inglês antigo (que tampouco era uniforme, como vimos na Unidade 1).

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A dominância social, cultural e política dos grupos que falavam este dialeto de elite lhes conferiam um prestígio enorme, o que estimulava a adoção de suas características por falantes de outras variedades, na esperança de participar na auréola de consideração. Outro fator relevante nesse processo, além da imitação geral, era o esforço entre muitos pais não falantes da variedade padrão de “corrigir” a maneira como seus filhos falavam, na expectativa de que o abandono da variedade ancestral (pelo menos em contextos formais) lhes ajudaria a progredir na vida e, assim, os jovens evitariam as dificuldades e discriminações que as gerações anteriores tinham experimentado. O resultado dessa pressão social para adquirir a variedade padrão prestigiosa resulta em pessoas que são “polidialetais”, ou seja, pessoas que dominam mais de uma variedade da mesma língua e podem trocar entre elas dependendo da situação, por exemplo, o padrão em interações formais e o vernáculo em contextos informais. Na prática, as formas não estarão totalmente separadas, mas com graus variados de mistura. O crescente acesso à educação formal desde a segunda metade do século XIX também contribuía para aumentar a competência (variada) na variedade padrão entre a população. Em cada lugar em que uma norma padrão foi codificada, pois o inglês é uma língua policêntrica (existem várias normas consideradas padrão – Inglaterra, Escócia, Irlanda, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Índia, África do Sul etc. – não apenas uma), sua origem era sempre da variedade da elite. O impacto de seu uso no ensino formal e nos meios de comunicação produzia sempre a mesma reação genérica entre os falantes de outras variedades: desejo de adquirir a norma, complexo de inferioridade do vernáculo perante o padrão, mas paradoxalmente, a pressão e o preconceito contra as variedades não padrão também as poderia fortalecer como marcadores de identidade regional, de classe ou de outro critério etnocultural, gerando um prestígio invertido ou encoberto (valorizar algo que não é percebido como de valor tipicamente pela maioria), que pode manter o vernáculo de uma comunidade apesar das pressões do prestígio aberto ou explícito do padrão. É o prestígio invertido que torna as pessoas bi ou polidialetais: manutenção da variedade local para identidade pessoal e o padrão para acesso ao mundo afora.

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Variação e mudança na América do Norte Neste tema, apresentaremos um breve sumário da história externa da colonização anglófona na América do Norte para tratar da natureza das diferenças entre as variedades padrão do inglês da Grã Bretanha e dos Estados Unidos, e da diversidade dos dialetos americanos e britânicos modernos.

A constituição do inglês americano As primeiras colônias inglesas no continente norte-americano foram estabelecidas na virada do século XVI para o século XVII. Em 1584, Sir Walter Raleigh fundou uma comunidade na ilha de Roanoke, na região em que hoje é a Carolina do Norte. Essa primeira fundação não prosperou. Quando o navio que tinha sido enviado de volta para a Inglaterra para buscar suprimentos chegou em 1590, os colonos tinham desaparecido. Em 1607, uma nova leva de colonos se fixou um pouco ao norte na região atualmente conhecida como a baía de Chesapeake. Eles chamaram a região de Virgínia (referência à rainha Elizabeth I) e o povoado de Jamestown (em homenagem ao rei James I). Esse assentamento vingou, apesar de enfrentar muitas dificuldades, como brigas com as tribos indígenas e entre os próprios colonos, além de colheitas ruins. Outros grupos de colonos se estabeleceriam ao longo do litoral durante os próximos anos. Em novembro de 1620, um grupo de 35 puritanos e 67 colonos chegou no navio Mayflower a uma região mais ao norte, por causa das tempestades que não permitiram que atracassem em Virgínia. Lá, os “Pais peregrinos” (Pilgrim fathers), como são conhecidos, fundaram a comunidade de Plymouth, atualmente no estado de Massachusetts, na baía de Cabo Cod. O objetivo da colônia de Massachusetts era estabelecer uma comunidade religiosa livre da influên­ cia da igreja anglicana. O assentamento foi o mais bem-sucedido dentre os grupos ingleses no Novo Mundo e, até 1640, já contava com aproximadamente 25 mil habitantes (CRYSTAL, 1995, p. 92). Os colonos que ocupavam os primeiros assentamentos de língua inglesa na América do Norte vieram de regiões diferentes das ilhas britânicas e, por isso, os sotaques e dialetos que se desenvolveram em cada lugar apresentam a influência desse efeito de fundador (quando alguma característica de uma população original é preservada nas gerações subsequentes). Por exemplo, as colônias de

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Virgínia eram habitadas principalmente por colonos do sudoeste da Inglaterra, de condados como Somerset e Gloucestershire. Características típicas dessa região são o vozeamento de fricativas no início de palavras, por exemplo: /s/ → [z], /f/ → [v], /θ/ → [ð], por exemplo, so [zo:] “assim”, from [vrɑm] “de”, through [′ðru:], e a manutenção de /r/ depois de vogais, por exemplo, market /′mær.kǝt/ “mercado”, tower /′tɑwǝr/ “torre”. Tais sotaques, denominados popularmente Tidewater (“vazanteiros marinhos”), devido à localização predominante dos seus falantes pela costa, ainda podem ser encontrados nas partes mais remotas do litoral das Carolinas e em Virgínia. Conservadores, por causa do isolamento, afirmam que são as variedades mais próximas à linguagem de Shakespeare que existem (embora nem tudo fosse preservado: esses sotaques inovaram algumas particularidades também nos últimos trezentos anos. As línguas vivas nunca estão estáticas!). Por outro lado, os colonos de Massachusetts eram predominantemente do leste da Inglaterra, dos condados de Nottinghamshire, Leicestershire, Lincolnshire Norfolk, Essex, Kent, Londres e alguns condados nos Midlands. Conhecemos as origens dos primeiros colonos, porque muitos assinaram documentos se comprometendo financeira e legalmente com o empreendimento da nova colônia e, nesses textos, eles se identificam por nome e, com frequência, pela cidade e pelo condado de origem também. A fonologia dos dialetos dessas regiões leste e sudeste são caracterizadas pela perda precoce de /r/ pós-vocálico, ou seja, market era /′mɑ:__kǝt/, tower era /′tɑ__wǝ/. A ausência de /r/ depois de vogais é um traço típico dos dialetos de New England até os dias de hoje que contrasta com a maioria dos sotaques norte-americanos, que são róticos (/r/ é pronunciado depois de vogais). Ainda entre os séculos XVI e XVII, a região da Pensilvânia era colonizada por pessoas no centro e norte da Inglaterra que pertenciam ao movimento Quaker. Essa zona também desenvolveu certas particularidades dos dialetos fundadores, por exemplo, a manutenção de /a/ como [æ] em palavras como dance “dançar”, que é típica dessa parte da Inglaterra, enquanto os dialetos de outras áreas mudou a vogal para [ɑ:]. O quarto grupo influente na formação dos dialetos norte-americanos eram as populações de escoceses e irlandeses. Os dois grupos participavam desde o início do programa de colonização, mas houve um êxodo enorme de emigrantes do norte irlandês por

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volta de 1720, quando aproximadamente 50 mil irlandeses e irlandeses-escoceses (escoceses protestantes que foram “plantados” no norte da Irlanda como uma política do estado britânico para aumentar o número de protestantes por lá) saíram da Irlanda rumo à América. Avalia-se que até um em cada sete habitantes dos territórios britânicos era de origem escocesa ou irlandesa quando os Estados Unidos se declararam independentes do Reino Unido em 1776. O foco da emigração irlandesa foi inicialmente na região da Philadelphia, mas a maioria migrou para o Oeste, para o interior em busca de terras, ocupando as serras da Appalachia. A origem linguística predominante desses colonos deixou marcas evidentes nos dialetos e sotaques dessa região que são claramente identificáveis até hoje. Embora seja possível identificar certos traços linguísticos nos dialetos regionais americanos que são sobreviventes dos dialetos de inglês trazidos com os colonos ingleses, escoceses e irlandeses e que permanecem nos lugares de maior concentração desses grupos fundadores, em geral, as características gramaticais, lexicais e fonéticas entraram em um enorme poço de variantes, do qual as gerações seguintes selecionaram, recombinaram e reanalisaram repetidas vezes. Portanto, houve um processo de nivelamento em que os traços mais marcantes (os mais incomuns e regionalmente específicos) eram eliminados a favor de elementos menos marcantes para criar um repertório de formas que constituíam uma espécie de “denominador comum” linguístico das variedades contribuintes. A partir dessa base comum, os processos de seleção operavam para criar novas especificadas, conforme as comunidades de fala ficavam mais distanciadas e com menos contato regular entre si e, por isso, começaram a se diferenciar novamente. Por exemplo, a descoberta de ouro na Califórnia, em 1848, atraiu uma enxurrada de imigrantes de outras regiões americanas às jazidas. Em fevereiro de 1849, havia aproximadamente 2 mil americanos na região; em novembro do mesmo ano, 53 mil pessoas registradas! Quando a Califórnia entrou na União de Estados em 1851, a população já tinha alcançado 150 mil e, em pouco mais de um ano, chegou a 250 mil. Como Baugh e Cable (1994, p. 349) observaram: “Cada parte da América estava representada”. É por causa desse nivelamento na grande região central dos Estados Unidos que o inglês americano aparece tão uniforme.

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A investigação sistemática da diversidade dialetal nos Estados Unidos tem sido realizada desde o final do século XIX. As pesquisas identificam três grandes áreas dialetais: Northern (“Setentrional”), Midland (“Centro”) e Southern (“Meridional”), dentro da quais existem diversas subáreas e variedades locais.





Setentrional – o núcleo desta área era a região de New England, mas uma estreita faixa se estende para o oeste do estado de Vermont, passando por Nova York, ao longo da fronteira com o Canadá, até o Oceano Pacífico. Além disso, dentro desta área existe uma subdivisão que coincide aproximadamente com o rio Connecticut. Ao leste do rio, os sotaques não róticos em contextos pos-vocálicos são o mais comum. Um traço característico da região norte é a fusão dos fonemas /ɒ/ e /ɔ:/, que fazem com que palavras como cot “berço” e caught “pegou” ou don “vestir” e dawn “amanecer” fiquem homófonas. Meridional – esta área representa um longo trecho do litoral oriental dos estados de Delaware, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte e Carolina do Sul, Geórgia, até os contrafortes da serra Appalachia, e os estados do Golfo de México – Florida, Alabama, Mississippi, Louisiana – até o leste e sudeste do Texas. Esta região também é caracterizada pela perda do /r/ pos-vocálico. Central – esta região é o maior bloco dialetal, que começa estreito na costa leste – onde é constituído pela parte meridional de New Jersey, Pensilvânia e o norte do estado de Delaware e Maryland – avançando para a divisória com o bloco meridional, por meio do interior montanhoso da Virgínia, das Carolinas e da Geórgia, descendendo em direção ao sudoeste pelo Tennessee e ao oeste do Arkansas, abrangendo o centro do Texas até a fronteira com o México.

Contribuições de outras línguas ao inglês americano Desde o início, a colonização europeia da América do Norte não era homogênea. No Sudoeste e Sudeste (Florida), havia falantes de espanhol, em virtude do movimento hispânico subindo do México. Califórnia, Texas, Novo México, Arizona e Nevada eram originalmente territórios espanhóis. Os franceses eram muito ativos no Nordeste, pelo rio Saint Lawrence (atual Canadá) e por toda a Louisiana, o Centro e Centro-Sul (estados atuais de Louisiana, Mississippi, Illinois, Arkansas, Missouri), que foram comprados

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pelos Estados Unidos em 1803. A terrível fome causada na Irlanda pela praga da batata em 1845 resultou no esvaziamento do país: um milhão e meio de irlandeses deixaram a ilha e foram para os Estados Unidos ou a outros lugares nas décadas seguintes. Outro grupo eram os alemães, especialmente depois do fracasso das revoluções liberais em 1848, que levou uma quantidade parecida à dos irlandeses a fugir da repressão dos regimes conservadores vitoriosos. Nos últimos 25 anos do século XIX, ondas de imigrantes da Europa nórdica (Noruega, Suécia, Dinamarca), meridional (Itália, Grécia) e oriental (do Império Russo ou Império Austro-Húngaro) chegavam, especialmente judeus fugindo da persecução da sua religião. Mesmo com a exceção de algumas peculiaridades locais, os milhões de imigrantes eram, em geral, assimilados às normas linguísticas estabelecidas pelas populações de fundadores (CRYSTAL, 1995, p. 94; BAUGH; CABLE, 1994, p. 346). Há ainda outro fator importante na constituição das variedades de inglês faladas nos Estados Unidos: a presença de escravos africanos. Seguindo o modelo colonial dos espanhóis, em que escravos africanos trabalhavam desde 1517, nos engenhos de açúcar, os primeiros 20 escravos africanos desembarcaram nas colônias inglesas de um navio holandês em 1619. No momento da Declaração de Independência em 1776, havia pelo menos meio milhão de africanos escravizados no novo país. Até a abolição da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, a população escrava chegava a quatro milhões, concentrada nos latifúndios agrícolas do Sul e Sudeste.

Inglês no Canadá O inglês canadense compartilha muitas características com o inglês dos Estados Unidos, porém, as variedades não são idênticas. John Cabot alcançou a costa de Labrador em 1497, mas a chegada de emigrantes das ilhas britânicas começou apenas um século depois. Desde a década dos 1520, os franceses também estavam ativos na região, mas as reivindicações francesas a esses territórios foram renunciadas ao longo do século XVIII, por causa da pressão militar britânica na Guerra da Rainha Anne (1702-1713), sendo interrompidas depois da Guerra francesa e da Guerra com os indígenas (1754-1763). Na década dos 1750, muitos colonos franceses foram deportados da região de Acádia (oeste da Nova Escócia e arredores) para a Louisiana. Em seu lugar vieram colonizadores da Nova Inglaterra e novas levas de imigrantes das

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Ilhas britânicas e da Irlanda. Depois da independência dos Estados Unidos em 1776, muitos dos colonos que tinham apoiado o lado britânico deixaram o país. Grande parte foi inicialmente para Nova Escócia, só depois foram para o interior, em New Brunswick. Alguns anos mais tarde, outro grupo considerável de “legalistas tardios” abandonou os Estados Unidos para se assentarem na região do Canadá Superior. É interessante observar que houve um deslocamento de colonos da Nova Inglaterra para a região das Províncias Marítimas (o litoral oriental canadense). Como já mencionamos, o sotaque do novo inglês é não rótico. No entanto, o sotaque atual da costa leste do Canadá é rótico. Isso pode ter sido o resultado da influência de sotaques róticos que vieram posteriormente, mas ainda outro fator teria sido o desejo de se distinguir dos vizinhos americanos, especialmente depois da Guerra da Independência Americana. É irônico que, atualmente, o sotaque mais comum nos Estados Unidos é o rótico, de modo que os canadenses nas províncias orientais perderam seu marco distintivo. O inglês canadense é bastante homogêneo em termos fonéticos e fonológicos, com exceção de algumas regiões específicas, como Québec (devido ao contato com o francês) e a Terra Nova (devido a fatores de colonização por irlandeses e pessoas do sudoeste da Inglaterra e ao isolamento). No entanto, como ocorre nos Estados Unidos, alguns blocos dialetais podem ser identificados, principalmente quando olhamos as questões lexicais. Esses blocos são:



As províncias atlânticas (Nova Escócia, New Brunswick e Prince Edward Island). Quebec – empréstimos lexicais do francês incluem caleche “carruagem”, whisky blanc “whisky claro, não envelhecido” e professor para professores escolares. Vale do rio Ottawa – a imigração escocesa e irlandesa deixou construções como They’re after leaving “Eles saíram” (em lugar de They left/have left) e expressões usando mind para “lembrar(-se) de”, que exibem a influência do gaélico nas variedades originais. Nesta região, o “alçamento canadense” de /ai/ e /au/ ocorre antes de consoantes surdas e sonoras, de modo que [hǝʊz] é o verbo (com /z/) e o nome (com /s/). No resto do país, só o substantivo sofre alçamento.

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Sul de Ontário – esta região abrange o litoral norte dos Grande Lagos e tem a maior densidade habitacional do país. Vários termos que surgiram nesta zona tornaram-se gerais no inglês canadense, por exemplo, reeve “prefeito”, riding “distrito eleitoral”, continuation school “escola secundária” e concession “loteamento”. Palavras específicas da região incluem dew worm “minhoca” e eavestrough “calha”. Os Prairies (Alberta, Sakatchewan e Manitoba) – a enorme área das planícies centrais está bem conectada pelas vias de transporte, o que favorece a manutenção de uma variedade mais ou menos homogênea. Sede da pecuária, do trigo e do petróleo, a região foi o berço de algumas expressões relacionadas a esses temas, por exemplo, stampede “rodeio” (no inglês geral, stampede significa a debandada de um rebanho), oil borer “perfuratriz petrolífera” e Dry Belt “sertão árido”. O Ártico (Yukon, Northwest Territories, norte de Quebec e Labrador) – o inglês dessa grande região exibe palavras emprestadas pelos inuit (“esquimó”), por exemplo, kabloona “homem branco”, basket sledge “[tipo de] trenó”, fan hitch “[tipo de] arreio para cães de trenó” e tupik “[tipo de] barraca”. O oeste (British Colombia) – é separado do resto do país pela cordilheira das Montanhas Rochosas. A facilidade de deslocamento na direção norte-sul, em vez de oeste-leste, favorece o contato com os Estados Unidos e a influência do inglês americano está evidente na linguagem desta região.

Diferenças entre o inglês americano e o inglês britânico Existem várias diferenças entre as duas maiores normas inglesas. Algumas dizem respeito à fonética e fonologia, outras na morfossintaxe e ao léxico. Contudo, existem outras áreas de divergência com relação aos aspectos da norma que não são propriamente linguísticos, como os culturais, que constituem parte do “pacote” de características que identificam cada variedade linguística. Entre esses traços distintivos não linguísticos consta a norma ortográfica. A maneira de representar uma língua na escrita é essencialmente arbitrária, pois qualquer conjunto de símbolos pode ser escolhido para representar as unidades linguísticas. Sequer é preciso indicar os fonemas explicitamente: a escrita

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chinesa indica sílabas e morfemas, por exemplo. Devido à seleção de diferentes formas escritas pelas elites que definiram e codificaram a norma culta e a maneira de escrevê-la, algumas palavras são grafadas de formas diferentes em cada lado no Atlântico. Na lista a seguir, há 100 grafias que não são iguais. Algumas variantes são muito produtivas, por exemplo, US –er (center, meter), versus UK -re (centre, metre), US -og (catalog “catálogo”) versus UK -ogue (catalogue), US -or (color), versus UK -our (colour). A origem da maioria dessas diferenças é o uso do American Dictionary of the English Language (“Dicionário americano da língua inglesa”) de Noah Webster (1758-1843). Publicado em 1828, quando seu autor tinha 70 anos, depois de 25 anos de pesquisa, o americanismo mencionado no título se referia mais às citações de autores americanos que ao número de termos especificamente americanos que a obra continha. Webster também escreveu The American Spelling-Book (“O livro de ortografia americano”) em 1783. Este livro era a primeira parte de uma série, A Grammatical Institute of the English Language (Uma instituição gramatical da língua inglesa): uma gramática saiu da imprensa em 1784 e um livro de leitura escolar foi publicado em 1785. Conhecido popularmente como o blue-backed speller (“cartilha de capa azul”), é provável que esse livro tenha sido o texto pedagógico mais vendido de todos os tempos: na década dos 1850, vendiam-se mais de um milhão de cópias por ano, em uma época na qual a população inteira dos Estados Unidos chegava a cerca de 23 milhões! Quadro 4.1  Alguns alternantes gráficos comuns em inglês americano e britânico.

Britânico

Americano

battleaxe*

battleax

chilli

chili*

aeroplane

airplane

boloney

baloney*

cigarette*

cigaret

aesthetics*

esthetics

B.Sc.*

B.S.

cissy

sissy*

aether

ether*

buses*

busses

citrous (adj)

citrus*

amoeba*

ameba

caesarian*

cesarian

connexion

connection*

anaemia

anemia

callisthenics

calisthenics

councillor*

councilor

anaesthesia

anesthesia

cantaloup

cantaloupe*

counsellor*

counselor

appal*

appall

carat (gold)*

karat

defence*

defense

archaeology*

archeology

cauldron*

caldron

diarrhoea*

diarrhea

axe*

ax

cheque

check

disc (not

disk

checker

computing)*

bale out

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bail out

chequer

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doughnut*

donut

largesse*

largess

premise*

premiss

draughtsman

draftsman

leukaemia

leukemia

pretence (n.)

pretense (n.)

draughty

drafty

libellous*

libelous

primaeval

primeval*

encyclopaedia

encyclopedia*

licence (n.)

license (n.)

programme

program

enquire

inquire*

liquorice

licorice*

(not computing)

ensure*

insure

manoeuvre

maneuver

pyjamas

pajamas

faeces

feces

marvellous*

marvelous

renegue

renege*

foetus

fetus*

mediaeval

medieval*

sanatorium*

sanitorium scalawag

floatation

flotation*

mollusc*

mollusk

scallywag*

gaol

jail*

mould*

mold

sceptical*

skeptical

garotte*

garote

moult*

molt

smoulder*

smolder snowplow

gauge*

gage

moustache*

mustache

snowplough

gonorrhoea

gonorrhea

M.Sc.*

M.S.

Snr.

Sr.*

gramme

gram*

oedema

edema

storey*

story

grey*

gray

oesophagus

esophagus

gynaecology

gynecology

oestrogen

estrogen

sulphur*

sulfur

haemo-*

hemo-

offence*

offense

throughway*

thruway tidbit

(building)

homoeopath

homeopath

orthopaedics

orthopedics

titbit*

hosteller

hosteler

paediatrician

pediatrician

traveller*

traveler

inflexion

inflection*

panellist

panelist

tyre

tire vise

instil*

instill

paralyse

paralyze

vice (tool)

jeweller*

jeweler

pedlar*

peddler

wilful*

willful

Jnr.

Jr.*

plough*

plow

woollen*

woolen

kilogramme

kilogram*

practice (n.)

practise (n.)

* = ocorre em ambas as normas em certas circunstâncias. n. = “nome”, “substantivo” Fonte: Crystal (1995, p. 307).

Originalmente conservador no que diz respeito às grafias (o blue-backed speller original seguiu a ortografia do dicionário de Doutor Johnson), Webster tornou-se mais radical, chegando a propor uma ortografia fonética. Quando sua ideia não recebeu apoio, ele atenuou sua posição, propondo eliminar todas as letras mudas e regularizando a relação entre fonemas e letras ou dígrafos em um ensaio de 1789, por exemplo, bred por bread “pão” e greeve por grieve “afligir(-se)”. Na grande revisão do speller, em 1804, Webster implementou algumas das suas propostas: -ick > -ic, por

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exemplo, music “música”, -our > -or, por exemplo, honour > honor. A lista inteira das modificações ortográficas apareceu em 1806 em seu Compendious Dictionary (Dicionário conciso): -re > -er, p. ex., theater “teatro”, -que > -k, por exemplo, check “cheque” , -ce > -se, por exemplo, defense “defesa”, um l antes de um sufixos e o acento recai na primeira sílaba, por exemplo, travel > traveling, mas excel > excelling (segunda sílaba tônica). Essas mudanças ortográficas acabaram entrando no padrão americano, mas outras, por exemplo, eliminando o e mudo em palavras como definite > definit, examine > examin, ou feather > fether, ou outras letras mudas, por exemplo, isle > ile, não pegaram. Quadro 4.2  Algumas das principais diferenças de pronúncia entre o inglês britânico meridional padrão (RP) e o sotaque americano geral (GA).

Item

RP

GA

anti- (anti)

′anti:

′antaɪ-, ′anti:

asthma (asma)

′asma

′azma

ate (comeu)

ɛt, eɪt

eɪt

capsule (cápsula)

′kapsju:l

′kapsəl

chassis

′ʃasi:

′tʃasi:

clerk (burocrata)

klɑ:k

klɜrk

clique (panelinha/grupo)

kli:k

klɪk

data

′dɑ:tə, ′deɪtə

′deɪtə, ′datə

derby

′dɑ:bi

′dɜ:rbi

erase (apagar)

ɪ′reɪz

ɪ′reɪs

fracas (rixa)

′frakɑ:

′freɪkəs

geyser (gêiser)

′gaɪzə

′geɪzər

gooseberry (groselha-espinhosa)

′gʊzbəri

′gu:sberi

goulash (gulash)

′gu:laʃ

′gu:lɑ:ʃ

herb (erva)

hɜ:b

ɜ:rb, hɜ:rb

leisure (ócio)

′leʒə

′li:ʒər

lever (alavanca)

′li:və

′lɛvər, ′li:vər

lieutenant (tenente)

lɛf’tɛnənt

lu:′tenənt

medicine (medicina)

′medsɪn

′medɪsɪn

missile (míssil)

′mɪsaɪl

′mɪsəl

nephew (sobrinho)

′nevju:, ′nefju:

′nefju:

nougat (nogado)

′nu:gɑ:

′nu:gət

progress (progresso)

′prəʊgres

′prɒgress

route (rota)

ru:t

raʊt, ru:t

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schedule (programa)

′ʃɛdju:l

′skɛdʒuəl, ′skɛdʒəl

tissue (lenço de papel)

′tɪsju:, ′tɪʃu:

′tɪʃu:

tomato (tomate)

tə′mɑ:təʊ

tə′meɪtəʊ

vase (vaso)

vɑ:z

veɪs, veɪz

wrath (ira)

rɒθ

raθ

z

zed

zi:

Obs: observe que, em geral, essas diferenças fonético-fonológicas não aparecem na grafia. Fonte: Crystal (1995, p. 307).

Quadro 4.3  Diferenças na pronúncia de em inglês: RP /ɑ:/:[ɑ] = GA /a/:[æ]. 

advance (avanço/avançar)

mask (máscara/mascarar)

after (depois)

mast (mastro)

answer (resposta/responder)

monograph (monografia)

ask (pedir)

nasty (desagradável/horrível/vil)

aunt (tia)

overdraft (saque a descoberto)

banana

pass (passar)

basket (cesto)

passport (passaporte)

bath (banheira)

past (passado)

blast (explosão)

pastor (pastor)

broadcast (difundir)

path (caminho)

castle (castelo)

plant (planta)

class (classe)

plaster (gesso)

command (comando/comandar)

raft (balsa)

dance (dança/dançar)

ranch (rancho)

disaster (desastre)

raspberry (framboesa)

example (exemplo)

rather (antes)

fasten (fixar)

reprimand (reprimenda/repreender)

France (França)

sample (amostra/prova/provar)

giraffe (girafa)

slander (calúnia)

glass (vidro)

slant (ângulo diagonal)

grass (capim)

staff (cajado)

half (metade)

task (tarefa)

last (último)

telegraph (telégrafo)

laugh (rir)

vast (vasto)

Fonte: Crystal (1995, p. 307).

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Quadro 4.4  Diferenças na posição do acento tônico entre os sotaques de Received Pronunciation (RP) e General American (GA).

RP

GA

address (endereço) [ǝ′drɛs]

address* [′ædrɛs]

advertisement [′bæleı] (propaganda/anúncio) [ǝd′ɜ:tısmǝnt]

advertisement* [′ædvɜrtaızmǝnt]

ballet (balê)

ballet [bæ′leı]

cafe* (café) [′kæfeı]

cafe [kæ′feı]

cigarette (cigarro) [sıgǝ′rɛt]

cigarette [′sıgǝrɛt]

controversy* (controvérsia) [kǝn′trɒvǝsı]

controversy [′kɑntrǝvɜsi]

debris* (destroços) [′dɛbri]

debris [dǝ′bri]

frontier* (fronteira) [′frʌntiǝ]

frontier [frʌn′tıʌr]

garage* (garagem) [′gærıdʒ]

garage [gǝærɑ:ʒ]

inquiry (inquérito) [ıŋ′kwaıri]

inquiry [′iŋkwari]

laboratory (laboratório) [lǝ′bɒrǝtri]

laboratory [′læbrǝtɔri]

magazine (revista) [mægǝ′zi:n]

magazine [′mægǝzin]

moustache (bigode) [mǝ′stɑ:ʃ]

mustache [′mʌstæʃ]

premier (primeiro) [′prɛmıǝ]

premier [prǝ′miǝr]

princess* (princesa) [prıin′tsɛs]

princess [′prınsɛs]

research* (pesquisa) [′risɜtʃ]

research [rı′sɜtʃ]

reveille (toque de alvorada)

reveille

translate* (traduzir) [trænz′leıt]

translate [′trænzlaeıt]

valet (valete/criado) [′væleı]

valet [vǝ′leı]

weekend* (fim de semana) [wi:′kɛnd]

weekend [′wi:kɛnd]

* Pode ocorrer em ambos os sotaques. Fonte: Crystal (1995, p. 307).

Variação global Inglês no Caribe A presença de escravos africanos nas ilhas caribenhas para trabalhar nos engenhos e plantações das colônias europeias começou no início do século XVI, quando a população indígena das ilhas ficara dizimada pelos trabalhos forçados e as epidemias de doen­ ças contra as quais não tinham imunidade. Em 1501, escravos africanos foram trazidos da Espanha para trabalhar nas minas em Santo Domingo. Em 1517, mais escravos africanos foram levados para manter a lucrativa produção de açúcar, rum, fumo, imitando o modelo desenvolvido pelos espanhóis nas Ilhas Canárias e pelos portugueses em São Tomé e Príncipe e em Cabo Verde.

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A Inglaterra ocupou e conquistou várias ilhas no Caribe ao longo do século XVII: Saint Kitts em 1623 (disputada com a França até 1793), Bermuda (1625), Neves (1628), Antígua, Barbuda e Monserrate (1632), Bahamas (1647), Anguilla (1653), Jamaica (1655), Ilhas Virgem Britânicas (1666), Ilhas Caimão (1670). No século XVIII, outras ilhas foram adquiridas por conquista ou por tratado no contexto das muitas guerras com a França: Dominica (1761), Tobago, São Vicente e as Granadinas, Granada (1762) e Santa Lúcia (1778). A exploração de mão de obra escrava na lavoura, em plantações do Caribe fazia parte de um ciclo de comércio triangular entre a América do Norte e o Reino Unido, o Oeste africano e o Caribe, que durava entre cinco e doze semanas, em média. Ainda outros territórios foram adquiridos ao longo do século XIX. A Figura 4.1 representa o comércio triangular com a Nova Inglaterra como o terceiro ponto do triângulo. 0º

Figura 4.1  Ciclos do comércio atlântico, o transporte de escravos 0º africanos para as plantações do Caribe ocorria na Middle Passage (“passagem do meio”), a base do triângulo.  Açúcar, fumo e algodão para a Europa

EUROPA

Rum e produtos diversos para a África

Escravos para as Américas AMÉRICA DO SUL

ÁFRICA Trópico de Câncer

OCEANO ATLÂNTICO

Tecidos, rum e produtos manufaturados para a África Ocidental

Escravos para as Américas

AMÉRICA DO SUL

ÁFRICA Meridiano de Greenwich

Açúcar para a Nova Inglaterra

EUROPA

AMÉRICA DO NORTE

Meridiano de Greenwich



EUROPA

Rum e produtos diversos para a África

AMÉRICA DO NORTE

Trópico de Câncer

Açúcar para a Nova Inglaterra

Escravos para as Américas AMÉRICA DO SUL

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AMÉRICA DO NORTE

OCEAN ATLÂNT

ÁFRICA Trópico de Câncer Meridiano de Greenwich

er

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AMÉRICA DO SUL

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Figura 4.2  Mapa das principais regiões da África Ocidental afetadas pelo tráfico de escravos para as Américas entre os séculos XVI e XIX.  0º

EUROPA

Ma Tróp ic

o de

r Me diterrâneo

ÄSIA

Cân

cer

Equador



OCEANO ÍNDICO

Senegambia Serra Leoa e Libéria Costa Barlavento

OCEANO ATLÂNTICO

Costa do Ouro Baía de Benin Baía de Biafra

nio

Capricór

Meridiano de Gre

de Trópico

enwich

África Central do Oeste

As línguas faladas nas regiões da África Ocidental mais afetadas pelo tráfico de escravos eram ewe, twi, efik, ioruba, ibo, hauçá, entre várias outras. Os senhores dos engenhos preferiam manter ao mínimo grupos de escravos que falavam a mesma língua, para reduzir as possibilidades de planejar fugas e levantes. Portanto, devido à falta de uma língua africana comum entre os escravos, e em virtude de o inglês ser a língua dos capatazes e outros trabalhadores nas colônias com quem os escravos tinham mais contato, além de ser, com frequência, a língua dos marinheiros que trouxeram os escravos, eles eram forçados a aprender a falar inglês. No entanto, a aprendizagem era totalmente sem estrutura e baseada nas intuições dos africanos sobre a gramática da língua que eles ouviam. Não se

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deve esquecer de que o inglês falado nas colônias não era o inglês padrão, pois não existia ainda, mas era uma mistura de variedades regionais. Nesse contexto de intenso contato linguístico, surgiram primeiro diversas línguas pidgin, as quais, quando começaram a ser aprendidas por crianças como a primeira língua deles, passaram a ser línguas crioulas, que se estabeleceram como o vernáculo dos escravos e a língua franca dos habitantes das colônias caribenhas.

Saiba mais Línguas de contato, línguas pidgin e línguas crioulas As línguas de contato são sistemas de comunicação que surgem entre grupos que não têm uma língua comum com a qual possam se comunicar. Tais línguas exibem aspectos de uma tendência genérica no ser humano, ou seja, o fato de simplificar sua linguagem quando fala com alguém que sabe que não o entende. Esse “linguagem de estrangeiro” fica “telegráfica”, isto é, com uma simplificação dramática que elimina a maioria das complexidades gramáticas, como ocorria nos telegramas antigamente, deixando de fora tudo que não for absolutamente necessário para focar na transmissão da mensagem, por exemplo, “Você: fome?” (apontando para o interlocutor e depois imitando comer), “eu dormir” (apontando para si mesmo e fingindo dormir), “cinco peixe” (mostrando cinco dedos e apontando para os peixes). Tais línguas de contato são pouco estruturadas e as estratégias comunicativas variam de indivíduo a indivíduo e de situação a situação. É possível, porém, que a linguagem se torne menos individual e específica e as estratégias expressivas fiquem mais regulares. Nessa fase, é denominada uma língua pidgin (o termo provavelmente veio da palavra business “negócios” no inglês pidgin chinês). Tais línguas desenvolvem normas gramaticais e lexicais mais firmes que na fase de língua de contato, embora nunca sejam a língua materna de nenhum de seus falantes. Existe, portanto, uma margem maior para admitir variação. Uma língua pidgin também tende a ser empregada em um número maior de contextos que a língua de contato, cuja função geralmente são interações comerciais de alguma espécie. Um uso mais amplo exige um vocabulário maior e estruturas morfossintáticas mais complexas; para dar conta disso os falantes respondem a essa necessidade produzindo inovações gramaticais e lexicais por conta própria a partir dos recursos linguísticos que já possuem. Por motivo da herança mista de várias variedades de inglês e diversas línguas (africanas no contexto caribenho) e a restruturação drástica dos paradigmas morfológicas e as estruturas sintáticas, as línguas pidgin muitas vezes se assemelham pouco às línguas que contribuíram para sua formação.

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Quando filhos de pais que usam um pidgin como seu principal veículo de comunicação, embora possam falar outras línguas (vale lembrar que um pidgin não tem falantes nativos), começam a aprender o pidgin como sua língua materna, por ouvi-la mais que qualquer outra, diz-se, então, que o pidgin se converteu em uma língua crioula, isto é, um pidgin usado como língua materna.

Línguas crioulas de base inglesa se desenvolveram em cada ilha. No crioulo jamaicano, um traço interessante é uma entoação com um tom ascendente nas sílabas finais, que alguns linguistas atribuem aos sistemas tonais comuns em várias línguas da África Ocidental (BAUGH; CABLE, 1994, p. 323). Certos elementos lexicais são evidentemente empréstimos de línguas africanas, por exemplo, nyam “comer”, que possui correlatos verbais em fula e uolofe e nominais em haussá /na:ma/ “carne”, em efik /unam/ “carne”, twi /ɛnãm/ “carne de qualquer animal”. No crioulo jamaicano, nyam é geralmente o verbo “comer”, ninyam significa “comida” e nyaams é uma comida específica, “inhame”. A palavra juk “furar”, “cutucar”, “apunhalar” parece ser de uma palavra /dʒukka/ “empurrar”, “derrubar”, “esporear”. Certas palavras compostas exibem modelagem como decalques (empréstimos traduzidos) de metáforas africanos, por exemplo, door-mouth “boca de porta”, que segue iloru enu em ioruba “soleira de porta” (lit., “boca de pórtico”) ou baki em hauçá “boca”, “abertura”, “entrada”. Outro decalque é strong-eye (lit., “olho-forte”) “resoluto”, “decidido” talvez de n’ani yɛ deŋ em twi “olho-forte”, “atrevido”, “voluntarioso”. Dutty “terra”, “solo”, “excremento” parece ser baseado nas palavras inglesas dirt “sujeira”, “terra” ou dirty “sujo”. Na realidade, contudo, a fonte principal parece ser dɔ̀tɛ́ “terra”, “solo” em twi, fortalecida pelas associações fortuitas das palavras inglesas (BAUGH; CABLE, 1994, p. 323-324).

Exemplos The dog of the man who lives in that house is called King (O cachorro do homem que mora nessa casa é chamado King). RP – [ðǝ ′dɒg ǝv ðǝ ′mæn hu ′lıvz ın ðæt ′hɑʊs ız ′kɔ:ƚd ′kıŋ]. Jamaicano – [di ′ma:n wa ′lıb i:na da ′hɔʊs ′da:g ′njɛm ′kıŋ]. Trinidad – [di ′dɔg dat ′bılɔŋ tu di ′man dat ′lıvɛn ın dat ′hɔʊs, ′nɛ:m ′kıŋ]. Ilhas Cayman – [da ′mɑn hʊ ′lıv ın da ′hɔʊs, i ′dɑg ′ne:m ′kıŋ].

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Crystal (1995, p. 345) indica alguns traços fonológicos que caracterizam as línguas crioulas de base inglesa do Caribe são a fusão de /ɑ/ e /ɒ/ em /ɑ/, de modo que cat “gato” e cot “berço” são homófonos (/kɑt/). Em algumas variedades, /ɔ:/ também é afetado, de modo que caught, /kɔ:t/ “apanhou” em RP, passa a /kɑ(:)t/. Os fonemas vocálicos /ıǝ/ e /ɛǝ/, distintivos em RP, fusionam-se também, de forma que fare “passagem” e fear “medo” são idênticos: /fıǝ/. O ditongo /ej/ em RP é /ıǝ/ em jamaicano e /e:/ em outras crioulas: cake “bolo”, portanto, é /kıǝk/ ou /ke:k/. Uma fusão paralela ocorre com /ǝʊ/, que passa a ser /ʊɔ/ na Jamaica e /o:/ alhures, por exemplo, coat “casaco” é /kʊǝt/ ou /ko:t/. Os fonemas /θ/ e /ð/ do RP costumam ser substituídos por /t/ e /d/, respectivamente, de modo que o adjetivo thin “magro” e tin “latão” são homófonos em jamaicano como /tın/. É normal que o /r/ pós-vocálico ocorra nos crioulos de Barbados e das Ilhas Virgem e também a pronúncia de /r/ é frequente na Jamaica e na Guiana. Grupos de duas consoantes finais tendem a perder a segunda, especialmente quando é /t/ ou /d/, por exemplo, best “melhor” /bɛs/, walked “andou” /wɔk/. Outros exemplos são /jɛside/ para yesterday /jɛstǝdej/ “ontem” e /a:redi/ para already “já”.

Inglês na África A presença de anglófonos na África começou no século XVI, com as viagens dos corsários elizabetanos, inicialmente em busca de oportunidades para comércio e, mais tarde, como traficantes de escravos para o Caribe e para as Américas. No século XIX, por outro lado, a marinha britânica patrulhava o Atlântico para coibir o tráfico de escravos. Foi nesse período que colônias foram estabelecidas. Depois de mais de um século e meio de atividade colonial, a língua inglesa se tornou integrante da complexa rede de fatores que compõem o tecido das culturas africanas, influenciando-as e sendo influenciada por elas.

África ocidental A presença de falantes de inglês na África ocidental começou no final do século XV, com interesse em adquirir ouro, marfim e escravos e vender produtos manufaturados no Reino Unido (tecidos, armas, utensílios de estanho e cobre) e produtos agrícolas e

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seus derivados das colônias americanas e caribenhas, açúcar, rum, fumo, algodão etc. Até o começo do século XX, uma série de territórios dominados pelos britânicos foram estabelecidos. A língua oficial nas colônias era o inglês, embora centenas de línguas locais fossem (e continuam sendo) faladas, além de vários pidgins de base inglesa, como o krio de Serra Leoa. A escolha do inglês como língua oficial ou co-oficial de muitos países do oeste africano pode ser justificada pelo fato de ser um idioma neutro com respeito às rivalidades e aos conflitos entre os diferentes grupos étnicos. Justamente por não ser a língua nativa de nenhuma etnia, reino ou grupo religioso, o inglês era selecionado como a língua oficial nesses países depois da independência do Império britânico a partir da década dos 1960. Serra Leoa foi estabelecida na década dos 1780 em terras compradas por filantropos britânicos como um lugar para assentar escravos libertos. Os primeiros a chegar vieram da Nova Escócia (Terra Nova), Inglaterra e Jamaica. Em 1808, o assentamento se tornou uma colônia britânica e servia como a base das esquadras navais britânicas que patrulhavam o Golfo da Guiné contra o tráfico de escravos. As ações navais acabaram trazendo aproximadamente 60 mil escravos “recapturados” de navios negreiros e libertos. O interior foi anexado como um protetorado em 1896. O Krio, língua crioula de base inglesa que surgiu em Serra Leoa, tornou-se muito usado pela região. Serra Leoa conquistou a independência em 1961. Gana era conhecida como a Costa de Ouro durante o período colonial. Constituída por uma expedição militar britânica contra o reino xante, para assegurar os interesses comerciais britânicos na região, Costa de Ouro se tornou colônia em 1874. O país moderno, o primeiro do Commonwealth a ganhar independência (em 1960) foi criado juntando Costa de Ouro com o protetorado de British Togoland, uma antiga colônia alemã que o Reino Unido tinha recebido como mandato depois da Primeira Guerra Mundial. A mais populosa nação africana, a Nigéria foi constituída em 1914, a partir de uma coleção de territórios britânicos que originaram em uma colônia estabelecida em 1861 em Lagos (atualmente a segunda cidade do país). O país conquistou independência em 1960.

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Camarões está situada em uma região que foi explorada pelos portugueses, espanhóis, holandeses, franceses e ingleses. Em 1884, o território se tornou um protetorado alemão, sendo dividido entre a França e o Reino Unido em 1919. Em 1972, as duas áreas administrativas foram unificadas em um único país, com o inglês e o francês como línguas oficiais. Camarões é um lugar de grande diversidade linguística e a maioria das pessoas fala mais de uma língua. Mais que a metade da população tem competência em pidgin camaronês ou kamtok (de Camaroon talk “fala camaronesa”), de base inglesa. Libéria é a república mais antiga do continente africano. Fundado em 1822, pelas ações do American Colonization Society (“Sociedade de Colonização Americana”), cujo objetivo era criar uma pátria africana para escravos americanos libertos. Em cerca de 50 anos, aproximadamente 13 mil ex-escravos dos Estados Unidos e mais 6 mil escravos regatados de navios negreiros se estabeleceram por lá. A fundação declarou-se uma república em 1847 e resistiu às pressões dos poderes imperiais europeus durante a partilha da África. A grande diversidade linguística e o fato de a maioria das pessoas ser pelo menos bilíngue resultou na não evolução de nenhum padrão especificamente africano. Baugh e Cable (1994, p. 317-318) apontam para fatores como a harmonia vocálica do igbo (quando todas as vogais de uma palavra devem ser do mesmo tipo, por exemplo, todas altas/baixas, todas nasais/orais, todas anteriores/posteriores etc.) que altera follow “seguir” (RP [′fɒ.lǝʊ]) em [′fɔ.lɔ]. A influência do hauçá no norte da Nigéria gera a intercalação de vogais entre grupos de consoantes: screw “parafuso” (RP [skru]) passa a ser [sukuru] (os u sobrescritos indicam vogais extremamente breves). O número menor de vogais em muitas línguas da África ocidental em comparação ao inglês gera maior quantidade de palavras homófonas, por exemplo, beat /bi:t/ “surrar”, “ritmo” e bit /bıˑt/ “mordeu”, “pedaço”, que são distinguidas por uma vogal longa e tensa e uma vogal semilonga e frouxa (“tenso” e “frouxo” se referem à tensão muscular da língua durante a articulação. A duração das vogais é classificada em longa ([ɔ:]), semilonga, ([ɔˑ]), breve ([ɔ]) e muito breve ([ɔ̆]), respectivamente, e apresentam a mesma vogal tensa em inglês nigeriano: /bit/. Wells (1982, III, p. 637 apud BAUGH; CABLE, 1994, p. 318) afirma que a

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ausência do contraste tenso/frouxo nas vogais é uma das características mais marcantes do inglês africano. Outras pares mínimas que deixam de existir em virtude da ausência do traço são: sleep “dormir” – slip “derrapar”, “escorregar”, leave “deixar” – live “viver”, seen “visto” (vb.) – sin “pecado”, “pecar”. Outro fator que causa diferença é a raridade do schwa (vogal central média frouxa [ǝ]) e das consoantes silábicas (consoantes soantes (as líquidas e nasais, que exibem sonorização espontânea, que as fazem mais parecidas às vogais)), localizadas no núcleo de uma sílaba, a parte de maior sonoridade dela, tipicamente ocupada por vogais [l̩ ɫ̩ m̩ n̩ ɹ̩ ], por exemplo, button “botão” [′bʌ.tn̩], bottle “garrafa” [′bɒ.tɫ̩ ], rhythm “ritmo” [ˈɹɪðm̩]). O inglês africano reflete a cronometria silábica das línguas africanas (cada sílaba dura o mesmo tempo, seja tônica ou não), enquanto o inglês exibe tipicamente cronometria acentual (as sílabas podem durar mais ou menos, mas os acentos tônicos tendem a cair regularmente, com o mesmo espaço temporal entre eles). Repare na diferença entre as pronúncias de smoother “mais liso”: [′smu:ðǝ] (RP) e [′smu:da] (Nigéria), com a vogal plena final, entre lesson “aula”, “lição” [′lɛsn̩] (RP), com a nasal alveolar silábica final e [′lɛsɔn] (Nigéria) e entre I have seen him today “Eu o vi hoje” em RP – [ɑɪv′siːn ɪm tə′deɪ] – e em inglês africano ocidental – [ai hav siˑn him tu′de].

África oriental A presença de falantes de inglês na África oriental começou a crescer a partir da década dos anos 1850, depois das viagens de exploradores como David Livingstone, Richard Burton e John Hanning Speke pela região. Em 1888, a Imperial British East Africa Company (“Companhia Imperial Britânica da África Oriental”) passa a explorar a região. Em seguida, depois da conferência de Berlim (1884-1885), quando os poderes imperiais europeus dividiram o continente africano entre si em zonas de influência colonial e comercial, vários “protetorados” foram instituídos, em concorrência com Alemanha, Itália e França. Seis Estados modernos surgiram desses territórios administrados pelo Reino Unido: Quênia (1963), Tanzânia (1961), Uganda (1962), Malaui (1964), Zâmbia (1964) e Zimbabué (1980).

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Figura 4.3  Mapa da divisão da África negociada entre os grandes poderes coloniais europeus no Congresso de Berlim em 1884-1885 para definir suas esferas de influência.  0º

EUROPA

Ma Tróp ic

o de

r Me diterrâneo

ÁSIA

Cân

cer

Equador



França

OCEANO ÍNDICO

Itália Portugal Espanha

OCEANO ATLÂNTICO

Bélgica Reino Unido Alemanha

órnio

de Capric

Meridiano de Gre

Trópico

enwich

Países Independentes

O inglês que evoluiu na África oriental é diferente das variedades faladas no Oeste. A região recebia uma população significativa de emigrantes britânicos, o que gerou um grupo de colonos de origem europeia nascidos na África, semelhante à situação na África do Sul. O inglês foi introduzido cedo nas escolas e muitos grupos missionários eram ativos na região na virada do século XX, o que aumentou bastante o contato com o inglês padrão, outro fator diferente da África ocidental. A presença de um segmento que falava inglês britânico padrão como língua materna (fazendeiros, médicos, advogados, professores) também servia como modelo prestigioso para os africanos que aprendiam o inglês. Os anglófonos africanos fixavam sua moradia nas cidades maiores e o uso do inglês como uma língua franca em conjunto com o suaíli, a língua

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banto mais falada, tirou a necessidade de pidgins, como ocorreu no Oeste. Vejamos, agora, um pouco sobre as principais colônias:











Quênia – era uma colônia britânica desde 1920. Antes de ganhar a independência em 1963, havia uma década de instabilidade (a rebelião mau-mau), que foi duramente reprimida pelas autoridades coloniais. O inglês era a língua oficial, mas foi substituído pelo suaíli em 1974. Tanzânia – foi criada a partir das colônias de Zânzibar (inglesa desde 1890) e Tanganyika (uma antiga colônia alemã, desde 1919). Foi o primeiro país africano do leste a ganhar sua independência, em 1961. Até 1967, o inglês era co-oficial com o suaíli. A influência menor do inglês no país é o resultado da história colonial: até a Primeira Guerra Mundial, a região era a África Oriental Alemã que depois foi dividida entre o Reino Unido (Tanganyika) e a Bélgica (Ruanda, Burundi). Uganda – era uma série de reinos independentes que foram incorporados em um protetorado britânico entre 1893 e 1903. O país se tornou independente em 1961. O inglês é o único idioma oficial, mas o suaíli é muito usado como língua franca também. Malaui – era conhecido como Nyasaland durante o período colonial entre 1907 e 1964. O inglês é co-oficial com o chichewa, a língua banto mais falada no país. Zâmbia – a região que abrange a atual Zâmbia era administrada como Rodésia do Norte pela Companhia Britânica da África do Sul até 1924, quando foi convertida em protetorado. A independência veio em 1964. Zimbabué – a outra parte do território da Companhia da África do Sul, Rodésia do Sul, passou a ser uma colônia em 1923. A rejeição pela população branca de participar em um governo com a maioria negra, resultou na declaração unilateral de independência em 1965 pelo governo dominado pela minoria branca e vários anos de uma guerra civil, até o reconhecimento dos direitos da maioria negra. Na transição entre os governos, o país voltou a ser uma colônia britânica, finalmente formalizando sua independência como Zimbabué em 1980.

Traços linguísticos típicos do inglês falado na África oriental incluem a troca de /θ/ por [s] e /ð/ por [z], devido à ausência dessas fricativas interdentais em suaíli, por exemplo, [zis siŋ] para this thing (BAUGH; CABLE, 1994, p. 319). Na sintaxe, a eliminação de preposições em verbos frasais é comum, por exemplo, I picked

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him outside his house and dropped him at work “eu busquei ele em frente à casa dele e deixei ele no trabalho”, com picked him em lugar de picked him up e dropped him por dropped him off (embora a segunda forma também seja frequente em outras variedades fora da África); her name cropped in the conversation “o nome dela surgiu na conversa”, em lugar de cropped up. Algumas palavras têm a forma plural, mas o significado singular, por exemplo, behaviours “comportamento”, bottoms “bumbum”, laps “colo”, minds “mente”, nighties “camisola”, noses “nariz”, popcorns “pipoca”.

África do Sul Os primeiros migrantes europeus a fixar sua residência na porção meridional da África foram os holandeses, no começo do século XVII, no Cabo da Boa Esperança, sendo reforçado no final do século por uma contingente de huguenotes (protestantes franceses), que foram assimilados rapidamente. A colônia holandesa prosperava, mas o governo pela Companhia das Índias Orientais holandesa era despótico. Para fugir do controle tirânico da Companhia, os colonos começaram a realizar os chamados treks, migrações para o interior. Tais expedições continuaram depois da tomada da colônia em 1806 pelos britânicos durante as guerras napoleônicas, passando definitivamente para o Império Britânico em 1814. O grande trek de 1836 levou mis de boers para o norte, em uma série de expedições durante mais de uma década para se livrar do domínio britânico. Além das fronteiras da colônia, os boers estabeleceram três repúblicas africânderes. Posteriormente, eram anexados pelo império britânico. O inglês foi declarado língua oficial em 1822. A população anglófona crescia regularmente ao longo do século XIX e, na década dos 1870, o desenvolvimento dos campos de mineração de ouro e diamantes na região de Natal provocou um fluxo de quase meio milhão de imigrantes. Portanto, a composição do inglês sul-africano envolve contatos com o dialeto sul-africano do holandês, o africânder, além de contato com várias línguas africanas, principalmente da família banto, como xhosa, zulu, tswana, entre outras. Também há contato com línguas indianas e malaias, trazidas com trabalhadores contratados pelos holandeses e britânicos. Em comum com outros países africanos, bilinguismo e trilinguismo são frequentes, muitas vezes entre uma língua banto, o inglês e o africânder.

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O inglês sul-africano de falantes com sotaques mais fortes exibe traços que lembram certos elementos do inglês australiano, além de características do holandês, especialmente quando falado por falantes de africânder. Crystal (1995, p. 356-357) aponta para as seguintes particularidades: Alçamento de /a/ para [e], de modo que pat “tapinha” soa como pet “animal de estimação”, ao ouvido de uma falante de RP. /e/ também sobe, indo em direção a /i/, soando como [ı], ou seja, pet soa como pit “buraco”, “cova”. /ı/, por sua vez, está centralizado, soando como [ǝ] e [ʊ]. Essa mudança é condicionada pelo tipo de consoante que segue a vogal: /ı/ não recua depois de /k g h/. Portanto, sit [sət] ~ [sʊt] não rima com kit [kɪt]. Uma piada antiga sul-africana baseadas nessas mudanças vocálicas de /a/ > [e] e /e/ > [ı] diz que sex “sexo” é o que você usa para carregar coisas e six “seis” é o que se faz para procriar! (ou seja, que sacks “sacos” soa como sex “sexo” e sex “sexo” soa como six “seis”). /ɑ:/ exibe arredondamento dos lábios, fazendo que star “estrela” soe como store [stɔ:] “armazém”, “venda”. Vários ditongos enfraquecem ou perdem o glide, soando mais como vogais puras, por exemplo, hair “cabelo” [hɛǝ] > [he:], mouse “rato” [mɑʊs] > [mɑ:s]. Em geral, o inglês sul-africano não é rótico, mas /r/ pode aparecer depois de vogais com mais frequência na fala de africânderes, cuja língua materna tem /r/ pós-vocálico. Várias palavras de origem africânder são correntes no inglês geral, por exemplo, aardvark “oricterope”, “porco-da-terra”, apartheit “segregação” (originalmente racial), boer “fazendeiro”, commando “incursão militar”, eland “elã” (espécie de antílope), homeland “pátria”, rand “moeda sul-africana”, spoor “rastro (de animal de caça)”, springbok “gazela”, trek “viagem longa e difícil”, veld “estepe”. Termos que são típicos do inglês sul-africano são: arvey “tarde”, bakkie “tipo de caminhão”, bell “telefonar”, bioscope “cinema”, bottle store “loja de bebida alcoólica”, butchery “açougue”, camp “pasto”, dinges “coisa”, “troço”, “bagulho”, gogga “inseto”, indaba “reunião”, “encontro”, kloof “desfiladeiro”, lekker “bom”, “gostoso”, putu “mingau”, robot “sinal”, “semáforo”, verkrampte “tacanho”, “escroto”.

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Inglês na Ásia O subcontinente indiano (Paquistão, Índia, Sri Lanka, Bangladesh, Nepal, Butão) constitui o terceiro bloco de falantes de inglês no planeta, depois de Estados Unidos e Reino Unido. Estima-se que aproximadamente 5% da população da Índia, mais de 30 milhões de pessoas, usam o inglês regularmente. A presença inglesa na Índia data de 1612, quando a Companhia das Índias Orientais, uma sociedade de negociantes londrinos que tinham recebido um monopólio sobre o comércio com a Índia da rainha Elizabeth I, estabeleceu uma feitoria em Surat. A companhia abriu novos entrepostos em Calcutá, Mumbai e Chennai até o fim do século. O declínio do poder central dos imperadores mughal e o vigoroso crescimento da Companhia contra outros Estados europeus, especialmente a França, levou-a a controlar a região da Bengala em 1765. Em 1784, depois de vários escândalos decorrentes da má administração, a companhia foi obrigada a formar um Conselho de Controle, responsável ao parlamento britânico. Finalmente, em 1858, depois de um grande levantamento contra o governo da Companhia das Índias Orientais, o governo britânico a dissolveu e assumiu a administração dos territórios indianos. O período de dominância britânica na Ásia meridional, de 1765, a 1947 é conhecido como o Raj (“reinado”, “governo”) britânico. Gradualmente, o inglês passou a ser a língua da administração e educação nas escolas e nas universidades fundadas em Mumbai, Calcutá e Madras em 1857. Muitos britânicos, ora administradores, engenheiros e militares, ora comerciantes privados, fixaram sua residência de forma permanente na Índia durante o século e meio do Raj. A assimilação da língua pelas classes profissionais indianas deixou profundas marcas na cultura indiana e as línguas e culturas indianas influenciaram a língua dominante. Características do inglês indiano incluem a articulação retroflexa para as consoantes /t d l r/. Isto é, a língua curva para trás quando é levantada para realizar o fechamento contra os alvéolos com a parte de baixo da ápice (ponta), gerando [ʈ ɖ ɽ ɭ] em lugar dos fones [t d ɹ l], típicos de outras variedades do inglês. Em português brasileiro, muitas variedades do Centro-Oeste, do Sudeste de Minas Gerais e do interior do estado de São Paulo, manifestam retroflexão na articulação de /r/ em final de sílaba antes de con­ soantes e em final de palavra. Esse /r/ é foneticamente [ɻ] um aproximante alveolar retroflexo: a língua sobe e se curva para trás, mas

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não encosta. Além das consoantes labiais, palatais e velares, as línguas indianas exibem consoantes em duas outras séries: dental ou alveolar (ápice da língua nos dentes ou nos alvéolos) e retroflexo. A articulação lâmino-alveolar do inglês britânico assemelha-se mais à articulação retroflexa das línguas indianas que à articulação dental/alveolar e, portanto, a pronúncia retroflexa foi transferida para o sotaque inglês indiano. Quadro 4.5  Consonantes do híndi e do urdu (as duas variedades do hindustani, indiana e paquistanesa, respectivamente), destacando a série de consoantes retroflexas nessa língua que teve influência nas características fonéticas do inglês da Ásia meridional.

Labial Nasal Desvozeada Desvozeada e Oclusiva/

aspirada

africada

Vozeada Vozeada e aspirada

Fricativa

Vibrante

Desvozeada

Dental/ alveolar

Palatal

Velar

m

n

ɳ

ɲ

ŋ

p



ʈ

c

k



t̪ ʰ

ʈʰ





b



ɖ

ɉ

ɡ



d̪ ʱ

ɖʱ

ɉʱ

ɡʱ

f

s

ʂ

ʃ

x

Vozeada

z

Simples

ɾ

Vozeada e

ɣ

Uvular

Glotálica

q

ɦ

ɽ ɽʱ

aspirada Aproximante

Retroflexa

ʋ

l

j

Algumas características fonético-fonológicas do inglês indiano incluem:



Os fonemas /w/ e /v/ muitas vezes não são discriminados em sotaques indianos, já que nas línguas do subcontinente (parentes muito distantes do inglês, no caso, que constituem o ramo indo-iraniano da família indo-europeia) em geral apenas /ʋ/ existe. /θ/ e /ð/ não ocorrem na maioria das línguas indianas, portanto, [t̪ ʰ] e [t̪ ] (oclusiva dental surda com ou sem aspiração)

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e [d̪ ʰ] e [d̪] (o par sonoro) são usados como substitutos, por exemplo, /θɪn/ thin “magro”, seria [t̪ ʰɪn] ou [t̪ ɪn], e /ðæt/ that “esse”, “isso” seria [d̪ ʰaʈ] ou [d̪aʈ]. Trocas de /s/ e /z/ pode ocorrer em plurais, diferente de falantes da maioria das outras variedades importantes do inglês, entre os quais existe uma rigorosa distinção entre [s] depois de sons desvozeados, por exemplo, cats [kæt]+[s], [z] depois de sons vozeados, por exemplo, dogs [dɒɡ] + [z], e [ɪz] ou [əz] depois de fricativas e africadas, por exemplo, noses [nəʊz] + [ɪz], passes [pɑːs] + [ɪz], churches [tʃɜːtʃ] + [ɪz] e judges [dʒʌdʒ] + [ɪz]. /l/ é sempre [l] “claro” (lateral alveolar), como no inglês irlandês, sem a alternância entre [l] em início de sílaba ou palavra e [ɫ] (lateral velar velarizado) em final de sílaba antes de consoantes e em final de palavra, como na maioria das variedades. As consoantes silábicas são realizadas como sequências de vogal + consoante, por exemplo, bottle [bɒʈʈəl], button [bʌʈʈən] e custom [kʌʂʈəm]. Quando há uma vogal alta na sílaba anterior, a vogal final é [i], por exemplo, little [lɪʈʈɪl]. Algumas diferenças podem ser atribuídas a pronúncias ortográficas (articulando conforme os valores fônicos canônicos da grafia), por exemplo, ghost [ɡʰo:ʃʈ] (com [ɡʰ] para gh), which [ʋʰɪtʃ] ([ʋʰ] devido a wh) e jewelery [dʒʋeləɾɪ] por [dʒulɹɪ]. Outro aspecto relevante da fonologia das línguas indianas que foi transferido para o inglês do subcontinente é a cronometria silábica em lugar de cronometria acentual. Em termos da gramática do inglês indiano, algumas características gerais são:





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A tendência de usar a forma progressiva com verbos “estáticos”, em lugar das formas simples, por exemplo, I am understanding it e she is knowing the answer. Esses usos são decalcados sobre as formas em híndi ou outras línguas indianas. Variação no número de nomes e determinantes, por exemplo, She loves to pull your legs (GA, UK: leg) e he performed many charities (many charitable acts, much charity). Uso de preposições: pay attention on (GA, UK to), discuss about (sem preposição) e convey him my greetings (convey algo to alguém).

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O inglês moderno



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Ausência de inversão de verbo e sujeito em perguntas: Who you have come for? (versus: Who have you come for?).

Muitos itens de vocabulário entraram no inglês das línguas indianas durante a longa presença colonial britânica: bandana “bandana”, brahmin “brâmane”, bungalow “casa térrea”, calico “tecido de algodão fino”, caste-mark “marca de casta”, chakra “chacra” (literalmente, “roda”), cheetah “guepardo”, cheroot “charuto curto”, chintz “tecido de algodão grosso e estampado”, chit “bilhete [de penhora]”, chutney “conserva de fruta agridoce”, curry “caril”, coolie “estevador”, dacoit “bandido”, guru “guru”, jodhpurs “calça de montaria estreita entre o joelho e o tornozelo” (típica da região de Jodhpur), juggernaut “carro/caminhão grande” (carro enorme para levar a imagem de Crixna, avatar de Vixnu), jungle “selva”, juice “suco”, mogul “magnata”, “manda­ ‑chuva” (literalmente, “mogol”), mulligatawny “sopa apimentada” (literalmente, “água-de-pimenta” em tâmil), nirvana “nirvana”, pundit “especialista”, “pessoa sábia” (literalmente, sacerdote hindu), purdah “segregação das mulheres dos homens não parentes”, rajah “rajá”, rupee “rupia”, sahib “senhor”, tiffin “comida”, “almoço”, verandah “varanda”, yoga “ioga”.

Austrália e Nova Zelândia Inglês na Austrália Em 1770, capitão James Cook visitou o continente australiano. Em 20 anos, o Reino Unido tinha estabelecido uma colônia penal em Botany Bay, localização atual da cidade de Sidney. Em 1788, a “primeira frota” levou os primeiros condenados à “transportação” durante alguns anos, ou pela vida inteira. O objetivo era aliviar a pressão sobre as vagas nos presídios britânicos. Por volta de 130 mil presos foram levados à Austrália nos primeiros 50 anos. Embora presentes desde o início da colônia, colonos livres demoravam a ir. Porém, na primeira metade do século XIX, as levas de imigrantes aumentavam consideravelmente. Em 1850, havia aproximadamente 400 mil e, em 1900, quase quatro milhões de habitantes coloniais (descontando a população indígena de aborígenes). As principais influências dialetais sobre a evolução do inglês australiano eram londrinas (ou do sudeste da Inglaterra) e irlandesas, especialmente depois de uma grande revolta na Irlanda em 1798.

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No que diz respeito ao inglês australiano, é interessante observar que quase não há nenhum marcador distintivo na gramática que caracteriza o inglês australiano em comparação ao inglês britânico meridional ou ao inglês neozelandês, por exemplo. Os traços que mais chamam a atenção são no léxico (especialmente empréstimos das diversas línguas aborígines para a fauna e flora e acidentes geográficos e ambientais típicos e para a toponímia) e o sotaque. A impressão geral em relação à variedade australiana é de uniformidade geográfica, mas com vários graus de diferenciação diastrática, com três categorias gerais identificáveis no estudo clássico de Mitchell e Delbridge do ano 1965, The Speech of Australian Adolescents: A Survey (“A fala de adolescentes australianos: um levantamento”): 1. “Erudito” (cultivated), usado por aproximadamente 10% da população, essa variedade é quase indistinguível do inglês britânico padrão. Apenas algumas pronúncias das vogais podem revelar a origem australiana. 2. “Forte” (broad), de aproximadamente 30% da população, em que se nota claramente vários elementos tipicamente australianos. 3. “Geral” (general), um meio termo bastante variável entre os dois extremos anteriores, que abrange o restante da população. A impressão de uniformidade é provavelmente o resultado da concentração da população atual em quatro grandes cidades (Melbourne, Sidney, Perth e Brisbane); com a história de uma população bastante móvel, que estimula contatos e, consequentemente, nivelamento de variantes marcadas; e o fato de que a entrada histórica era sempre via o porto de Sidney, concentrando os recém-chegados em um lugar antes de se difundir, o que estimularia contatos e a adoção das normas predominantes. Os traços distintivos do sotaque australiano são praticamente todos fonéticos e relacionados às vogais e aos ditongos. Crystal (1995, p. 351) lista as mais importantes características:

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/i:/, como em see “ver” tende a ser pronunciado [ǝi]. Com menos frequência, /u:/, como em do “fazer” é [ǝʊ]. No ditongo /eı/, o primeiro elemento é articulado com a boca mais aberta, podendo ser anterior [ai] ou [ɑi], como ocorre no nome o país, Australia, que é [ɒs′trej.lja] em RP,

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mas [ǝs′trɑiljǝ] na variedade geral. Essa mudança é o motivo da piada de denominar Australian English [ǝ′streiljǝn ′ıŋglıʃ] > [stræjn], escrito Strine. Existe um curso de inglês cômico chamado Let’s Talk Strine (“Vamos falar ‘straliano’”) (Sydney: Ure Smith, 1965) por Afferbeck Lauder (um pseudônimo para Alastair Ardoch Morrison: a leitura em voz alta soa como alphabetical order (“ordem alfabética”). Designer gráfico, Morrison produziu uma música, With Air Chew (literalmente, “Com ar mastigar” = Without You “Sem você”) e outro livro pseudodidático de 1967, Nose Tone Unturned (literalmente, “Nariz tom sem virar” = No Stone Unturned “[deixar] nenhuma pedra sem virar” = “mover céus e terra”). A vogal /ǝʊ/ em so “assim” é articulada com maior abertura a anteriorização, que em RP, por exemplo, [saʊ] ~ [sæʊ]. /ai/ > [ɒi], por exemplo, my “meu”. /aʊ/ > [æʊ], por exemplo, plough “arado”. /ı/ > [ǝ], por exemplo, hospital = [hɒspıtǝl] > [hɒspǝtǝl], because = [bı′kɒz] > [bıkǝz]. Vogais em contato com segmentos nasais seguintes recebem uma nasalização mais forte que em inglês britânico meridional, o que provavelmente motiva a descrição do sotaque como um twang (“ressonância nasal”). Em geral, as características do sotaque “forte” do inglês australiano envolvem articulações, especialmente nos ditongos, nos quais a língua está mais avançada na boca que o sotaque conservador e do inglês britânico e americano, que estão, literalmente, atrás daquele.

Nova Zelândia O famoso navegador James Cook mapeou a Nova Zelândia entre 1769 e 1770, mas a colonização anglófona deste país só começou a aumentar significantemente depois de 1840, quando o Tratado de Waitangi com os chefes maori estabeleceu uma colônia oficialmente. Antes, a presença de falantes de inglês tinha sido limitada a alguns baleeiros e comerciantes a partir de 1790, e missionários evangelizavam os maori a partir de aproximadamente 1814. Depois do tratado, a população imigrante aumentou rapidamente. Na primeira década, de 1840 a 1850, a população cresceu de aproximadamente 2 mil para 25 mil. Até a virada do

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século XIX, havia 750 mil pessoas. Já no início do século XX, comentava-se que existia um sotaque neozelandês reconhecível. Entre as variedades vernáculas do inglês, a neozelandesa é interessante do ponto de vista sociolinguístico porque sofre pressões de quatro diferentes influências normativas: além da pressão das grandes normas internacionais, a britânica e a americana, há pressão do vizinho maior australiano, que provoca resistência à assimilação e tentativas de diferenciação, e também pressões da relação com o maori, cujos falantes constituem quase 12% da população nacional (CRYSTAL, 1995, p. 354). Muitos traços gerais do inglês neozelandês são parecidos com o inglês australiano, por exemplo, /i:/: [ǝı] (mean “malvado” [mi:n] > [mǝın]), /u:/: [ǝʊ] (shoot “atirar” [ʃu:t] > [ʃǝʊt]) e /ı/: [ǝ] em sílabas átonas, por exemplo, rocket “foguete” [′ɹɒkɪt] > [′ɹɒkət]. Traços que estão evoluindo de maneiras diferentes no inglês da Austrália e da Nova Zelândia incluem:









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/ı/ > [ǝ] (NZ), > [i] (AUS): os australianos acham que os neozelandeses dizem “Sudney” [sǝdnæı] por Sidney [sıdnæı], ao passo que os kiwi pensam que os australianos dizem “feesh and cheaps” [′fi:ʃ ǝnd ′tʃi:ps] por [′fıʃ ǝnd ′tʃıps] (“peixe e batata frita”). /e/ é mais alto, próximo a [ı], e /a/ está próximo a [ɛ]. Desse modo, yes “sim” soa como [jıs] e bat “morcego” soa como [bɛt], bet “aposta”. Os ditongos /ıǝ/ e /ɛǝ/, como em here e hair, respectivamente, variam bastante e, para alguns falantes com sotaques mais fortes até se fusionaram, por exemplo, uma placa de um salão de cabelereiro no centro de Wellington: Hair Say, explorando, assim, o trocadilho here “aqui” / hair “cabelo” em hearsay “rumor” e, talvez, Here, say “Aqui, digamos”. /ɑ:/ é mantido em NZ em palavras com castle “castelo” e dance “dançar”, enquanto o som correspondente nessas palavras no inglês australiano é /æ:/. Um contraste é mantido entre whales [ʍeɪlz] “baleias” e Wales [weɪlz] “Gales”, pelo menos na fala mais cuidadosa. Esse trato parece estar em vias de desaparecimento entre o mais jovens. A manutenção desse contraste ainda é típica das variedades escocesas, que talvez tenham contribuído à sua presença, enquanto desapareceu na maioria do resto do inglês britânico.

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Os /l/ com frequência são muito mais velarizados que em inglês britânico (a parte de trás da língua levanta junto com o fechamento principal com a lâmina da língua na região alveolar [ƚ]), devido, novamente, à provável influência do escocês também. Em final de sílaba antes de consoantes e em final de palavra, /l/ apresenta um alofone vocálico [w], como ocorre no “inglês do estuário”. Várias palavras têm pronúncias particulares, por exemplo, não é raro ouvir o nome do país pronunciado /zılǝnd/, em lugar de /zi:lǝnd/, como é em RP, embora tal variante seja criticada socialmente. A primeira sílaba de geyser “gêiser” é /aı/ e não /i:/. Menu “cardápio” é dito com /i:/ em lugar de /ɛ/. English “inglês” é [′ıŋ.lıʃ], sem o /g/ mais comum (ou seja, [′ıŋ.glıʃ]). Spectator “espectador” recebe o acento tônico na primeira sílaba em lugar da segunda, como RP.

Variação nas ilhas britânicas e na Irlanda Apesar da influência quase universalmente sentida do inglês padrão e o sotaque tipicamente associado (Received pronunciation), (veja os quadros 2.1 e 3.1-3.4 para uma lista dos sons do RP), e a diversidade dialetal nas ilhas britânicas (Inglaterra, Escócia e Gales na Grã-Bretanha, a Ilha de Man, as Ilhas Orkney e Shetland, as Ilhas do Canal da Mancha [Jersey, Guernsey]) e na Irlanda.

Inglaterra Além do sotaque da culta Received Pronunciation e da gramática e léxico da variedade culta do Received Standard, existem diversas variedades regionais do inglês falado na Inglaterra. Essas variedades não são descendentes da variedade culta, baseada na linguagem das classes média-alta e alta da região do “triângulo dourado” – definida pelas cidades de Cambridge, Oxford e Londres – e subsequentemente difundida no âmbito nacional por meio da instituição dos colégios internos privados e dos grammar schools (lit., “colégio-de-gramática”, um colégio secundário público em que o latim e o grego fazia parte do currículo). No entanto, a parte da população que tinha acesso à norma culta era pequena. A

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grande maioria das pessoas adquiria a variedade falada no lugar em que vivia.

Os dialetos regionais tradicionais As divisões dialetais representadas no mapa e a árvore genealógica a seguir, tirados de Crystal (1995, p. 324), relacionam-se com as áreas dialetais identificadas no inglês antigo (Unidade 1) e no inglês medieval (Unidade 2). O extremo sul da Cornualha foi excluído, como também foi descontada a região de Gales, por não serem lugares em que o inglês predominava antes do século XVIII. A área metropolitana de Londres também não foi incluída, devido à enorme diversidade linguística e dialetal da cidade, que abarca pessoas do mundo inteiro e de todas as regiões anglófonas. Quadro 4.6  Exemplos da pronúncia de certos itens lexicais que constituem as divisões dialetais tradicionais no inglês da Inglaterra.

long

night

blind

“comprido”

“noite”

“cego”

“terra” “braço” “colina” “sete” “morcego”

Northumberland

[læŋ]

[ni:t]

[blınd]

[land]

[aɹm]

[hıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

Norte inferior

[læŋ]

[ni:t]

[blınd]

[land]

[ɑ:m]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

Lancashire

[lɒŋ]

[ni:t]

[blɑınd]

[lɒnd]

[aɹm]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

Staffordshire

[lɒŋ]

[nait]

[blɑınd]

[lɒnd]

[ɑ:m]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

[lɒŋ]

[ni:t]

[blınd]

[land]

[ɑ:m]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

Lincolnshire

[lɒŋ]

[nait]

[blınd]

[land]

[ɑ:m]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

Leicestershire

[lɒŋ]

[nait]

[blaınd]

[land]

[ɑ:m]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

[lɒŋ]

[nait]

[blaınd]

[land]

[ɑɹm]

[ıƚ]

[zɛvn]

[bæt]

[lɒŋ]

[nait]

[blaınd]

[lɒnd]

[ɑɹm]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

[lɒŋ]

[nait]

[blaınd]

[land]

[ɑɹm]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

Sudeste

[lɒŋ]

[nait]

[blaınd]

[lænd]

[ɑɹm]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

Centro-leste

[lɒŋ]

[nait]

[blaınd]

[lænd]

[ɑ:m]

[ıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

[lɒŋ]

[nait]

[blaınd]

[lænd]

[ɑ:m]

[hıƚ]

[sɛvn]

[bæt]

Área

Yorkshire meridional

Sudoeste ocidental Sudoeste setentrional Sudoeste oriental

Condados orientais

land

arm

hill

seven

bat

Fonte: Crystal (1995, p. 324).

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Figura 4.4  Mapa das divisões dialetais identificadas pelo Survey of English Dialects, realizado entre 1946 e 1961 em 313 localidades na Inglaterra. A interpretação das descobertas da investigação foi publicada em 1978 no Linguistic Atlas of England. A árvore genealógica dos dialetos tradicionais é baseada em Trudgill (1990). 0º

Escocês

ESCOCÊS

Norte

NORTE

Norte Inferior Setentrional Northmberland

Northmber- SETENTRIONAL land

Mar do Norte

NORTE INFERIOR Cumbria

54º N

Mar da Irlanda

Durham and North Yorkshire

Lancashire

Centro-Leste Central

CENTRO-LESTE

CONDADOS ORIENTAIS

SUL

Lancashire

sul

ORIENTAL CENTRAL ORIENTAL Northamptonshire and SUDOESTE Cambridgeshire SETENTRIONAL SUDOESTE Essex ORIENTAL Wiltshire and Berkshire Hampshire Kent and Surrey SUDOESTE SUDESTE SUDOESTE OCIDENTAL Sussex Dorset and Somerset East Cornwall and Devon

Canal da Mancha

South Yorkshire Centro-Oeste

Lincolnshire

Leicestershire

Lincolnshire

Stalfordshire

CENTRAL

Meridiano de Greenwich

SUDOESTE

Leidestershire

Dialetos Tradicionais

South Yorshire

CENTRO-OESTE Staffordshire

East Yorshire

Condados Orientais Oriental Oriental Central Meridional

Sudeste

Ocidental

Sudoeste Oriental Sudoeste Setentrional Sudoeste Ocidental

Fonte: adaptada de Trudgill (1990 apud CRYSTAL, 1995, p. 324).

No mapa, é interessante observar que uma divisão importante separa os dialetos setentrionais do norte da Inglaterra e do centro e sul da Escócia, dos dialetos centrais e meridionais. Curiosamente, a fronteira entre esses dois grandes blocos corresponde aproximadamente à divisa entre os reinos anglo-saxônicos de Nortúmbria e Mércia. É fascinante pensar que a linha do rio Humber ainda no século XX reflete agrupações políticas estabelecidas há mais de 1.500 anos! Outra separação menos nítida cinde os dialetos centrais do Leste e do Sudoeste. Atualmente, poucas pessoas falam os dialetos tradicionais dos tipos representados no mapa (Figura 4.4). A pesquisa que levantou os dados em que o mapa está baseado foi feita por informantes predominantemente masculinos, com mais de 60 anos, moradores

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de áreas rurais, com baixa escolaridade, da classe operária rural e pouco viajados. O objetivo da investigação era registrar as características dos dialetos regionais tradicionais, antes que eles fossem apagados do mapa pelas inovações trazidas pelos contatos com o inglês padrão transmitido pelo novos meios de comunicação, como o rádio e a televisão, a educação primária e secundária compulsória e a maior mobilidade. O declínio das pronúncias tradicionais e o léxico e a gramática associados com elas é apresentado, às vezes, como a “extinção dos dialetos ingleses”. No entanto, a perda dessas variedades coincide com o surgimento de diversos dialetos novos, especialmente nas áreas urbanas. Se apresentarmos as características desses novos dialetos, é possível produzir um mapa diferente, no qual podemos apreender 16 divisões importantes. Figura 4.5  Mapa dos atuais agrupamentos dialetais do inglês na Inglaterra e a árvore genealógica que reflete os vínculos de parentesco detectáveis entre as variedades. A divisão entre uma região setentrional e meridional se manifesta pelo traço da pronúncia da vogal [ʊ] (Norte) e [ʌ] (Sul) em palavras como up “para cima”. Observe que poucas variedades modernas coincidem com as áreas dialetais identificadas no mapa anterior. Outra diferença é a posição tradicional da divisa entre o bloco setentrional versus o meridional, que não está situada mais dentro da Inglaterra, mas corresponde à fronteira nacional entre a Inglaterra e a Escócia. 0º

Nordeste

Setentrional

NORDESTE

Norte Central SETENTRIONAL

Norte Central

Norte Inferior

Mar do Norte

Mar da Irlanda

Lancashire Central

Humberside

NORTE

NORTE INFERIOR

54º N

Merseyside Centro-Oeste

Humberside

Merseyside

Nordeste dos Midlands CENTRAL Midlands Noroeste Central CENTROdos Midlands -LESTE CENTRO- Midlands Orientais -OESTE East Anglia Midlands Midlands Ocidentais Meridionais

Centro-Leste

Nordeste dos Midlands Midlands Orientais

Leste

Leste

Home Counties

Midlands Meridionais East Anglia Home Counties

SUL

Sudoeste Superior

Sudoeste Inferior

Canal da Mancha

Meridiano de Greenwich

Sudoeste

Nordeste dos Midlands Midlands Ocidentais Midlands Central

Central Dialetos Modernos

Sudoeste Superior

Sudoeste Central

Lancashire Central

Sudoeste

Sudoeste Central Sudoeste Inferior

Fonte: adaptada de Crystal (1995, p. 325).

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Quadro 4.7  Lista de palavras exemplares dos contrastes fonético-fonológicos entre os sotaques regionais da Inglaterra.

Área

very

few

cars

“muito” “poucos” “carros”

made “fez”,

up “para

“fizeram”

cima”

long

hill

“comprido” “colina”

Nordeste

vɛri:

fju:

kɑ:z

mɛ:d

ʊp

lɒŋ

hıƚ

Norte central

vɛrı

fju:

kɑ:z

mɛ:d

ʊp

lɒŋ

ıƚ

Lancashire central

vɛrı

fju:

kɑrz

mɛ:d

ʊp

lɒŋg

ıƚ

Humberside

vɛri:

fju:

kɑ:z

meıd

ʊp

lɒŋ

ıƚ

Merseyside

vɛri:

fju:

kɑ:z

meıd

ʊp

lɒŋg

ıƚ

Centro-nordeste

vɛrı

fju:

kɑ:z

meıd

ʊp

lɒŋg

ıƚ

Centro-oeste

vɛri:

fju:

kɑ:z

meıd

ʊp

lɒŋg

ıƚ

Centro

vɛrı

fju:

kɑ:z

meıd

ʊp

lɒŋ

ıƚ

Centro-nordeste

vɛri:

fju:

kɑ:z

meıd

ʊp

lɒŋ

ıƚ

Centro-leste

vɛri:

fu:

kɑ:z

meıd

ʊp

lɒŋ

ıƚ

Sudoeste superior

vɛri:

fju:

kɑ:rz

meıd

ʌp

lɒŋ

ıƚ

Sudoeste central

vɛri:

fju:

kɑ:rz

meıd

ʌp

lɒŋ

ıʊƚ

Sudoeste inferior

vɛri:

fju:

kɑ:rz

mɛ:d

ʌp

lɒŋ

ıƚ

Sentro-sul

vɛri:

fu:

kɑ:z

meıd

ʌp

lɒŋ

ıʊƚv

Ânglia oriental

vɛri:

fu:

kɑ:z

meıd

ʌp

lɒŋ

(h)ıƚ

vɛri:

fju:

kɑ:z

meıd

ʌp

lɒŋ

ıʊƚ

“Home counties” (Sudeste) Fonte: Crystal (1995, p. 325).

“Estuary English” Um fenômeno identificado popularmente na década de 1980, embora na realidade o processo estivesse ocorrendo há tempos, era a expansão do Estuary English (“inglês do estuário”). O estuário em questão é do rio Tâmisa e o inglês a que se refere é a variedade popular londrina. A crescente frequência de traços associados com o inglês londrino já havia sido observada na região entre as cidades de Oxford, a Oeste, Cambridge, ao norte, e ao longo do rio por Essex, em direção ao Mar do Norte, e penetrando os condados ao sul de Londres: Kent e Sussex. Atualmente, características tipicamente associadas ao inglês londrino não padrão, por exemplo, glotalização de /t/ em final de palavras e em sílabas antes de consoantes – por exemplo, cat [kʰææɁ] “gato” e hatbox [æɁbɒks] “chapeleira” –, estão atestadas em muitas

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regiões do sul da Inglaterra. Outro traço é a vocalização do /l/ em final de palavra e se há uma consoante antes da lateral, por exemplo, ball [bɔʊƚ] “bola” e hallway [(h)ɔ:ʊweı] “corredor”. Na gramática, uma característica do inglês do estuário é o uso de advérbios sem o sufixo {-ly}, por exemplo, They talked very quiet for a while; You’re turning it to slow. Algumas formas preposicionais também são típicas, por exemplo, I got off of the bench (“eu me levantei do banco”), em que o uso de of é atípico; por outro lado, I looked out ___ the window não exibe of, antecipado. Na sintaxe, o uso de perguntas-eco usando do e uma entoação cadente para indicar irritação ocorre, por exemplo, em I said I was going, didn’t I? Aspectos da linguagem popular de Londres, como os apresentados no parágrafo anterior, ocorrem na fala de pessoas no estuário do rio Humber, no Nordeste, no estuário do rio Dee, no Noroeste, e no estuário do rio Severn, no Sudoeste; além de inúmeros pontos entre os três. Um fator relevante na difusão de traços linguísticos é a mobilidade. Traços linguísticos precisam de hospedeiros para transportá-los e uma boa malha rodoviária e ferroviária facilita muito a possibilidade de deslocamentos. É interessante observar como a expansão da palavra manger “manjedoura” está substituindo a palavra trough “comedouro” no Sudeste.

Escócia Crystal (1995, p. 329) apresenta algumas características que distinguem o escocês do inglês:





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Ausência de arredondamento dos lábios em muitas palavras com /o:/ [ǝʊ] em RP, de forma a tornar stone “pedra” e go “ir” em [steın] e [geı], respectivamente, escritas stane e gae na ortografia escocesa. A vogal alta posterior arredondada /u:/ sofre anteriorização e passa a ser [y:] (como lune em francês). Esse som é escrito ui, como muin [my:n] para moon “lua” ou yuise “yous” (pronome da segunda pessoa do plural, ou seja you+-s). A vocalização do /l/ foi completada até o fim da Idade Média, deixando uma vogal labial e posterior [ʊ] que combina com a vogal precedente para gerar ditongos, por exemplo, full [fʊƚ] = fou’ [fu:] “cheio”, salt [sɔƚt] = saut [sɑʊt] “sal” e ball [bɔƚ] = baw [bɔʊ] “bola”.

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A grande mutação vocálica seguiu um caminho diferente na Escócia: /u:/ medieval não se tornou [aʊ], de modo que house = [hu:s] hoose, down = [du:n] doon. Certas vogais mudam de duração de acordo com o som que as segue. Por exemplo, leave “deixar” e see “vê” exibem [i:], mas leaf “folha” e cease “desistir” contém [ı]. Não pode ser o mesmo tipo de alongamento que ocorre antes de consoantes sonoras, como em RP, pois existem pares mínimos como agreed [ǝgri:d] e greed [grıd], ambas antes de /d/. Uma fricativa velar [x] ocorre em palavras escritas com ch, por exemplo, loch “lago”, Brechin “topônimo: cidade”, technical [′tɛknıkl]. [ʍ] e [w] continuam a contrastar, por exemplo, em Wales “Gales” e whales “baleias”, diferente do inglês, em que ocorreu uma fusão desses antigos fonemas em /w/: [w], tornando Wales e whales homófonos no inglês, mas não em escocês. No Nordeste, contudo, [ʍ] > [f], de modo que as pessoas lá dizem [fa] para [ʍa] “quem” e [faıt] para [ʍait] “branco”. Na gramática, certos nomes preservam plurais irregulares, por exemplo, een [i:n] “olhos”, shuin [ʃy:n] “sapatos”, hors [hɔrs] “cavalos”, mas, por outro lado, certas palavras tiveram o plural irregular nivelado, por exemplo, wife [wif]; wifes [wif+s] (= wives [waıv+z]) “esposa”, wolf [wʊʊf]; wolfs [wʊʊf+s] = wolves [wʊƚv+z] etc. Nos pronomes demonstrativos, thae “esses” (= those) e thir “estas” (= these), existem no escocês. They também ocorre para “esses” em algumas regiões. Em Orkney e Shetland, a distinção entre thou, thee e ye ainda é percebida. O artigo indefinido exibe duas formas: ae [eı] antes de nomes, por exemplo, ae man “um homem” (= a man), e ane ou aine quando o significado é o número “um”, por exemplo, that ane “esse” (= that one). Vários verbos exibem modelos de conjugação diferentes, por exemplo, gae – gaed – gane (= go – went – gone) “ir”,

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hing – hang – hungin (= hang – hung/hanged – hung/hanged) “pendurar”/“enforcar”, lauch – leuch – lauchen (= laugh – laughed – laughed) “rir”. A partícula negativa aparece como -no, -nae [neı], muitas vezes reduzida e enclítica, por exemplo, cannae [kani] (= cannot). No léxico, muitas palavras entraram no escocês do gaélico, como cairn “monte de pedras como marco ou túmulo”, ceilidh “festa com música e danças tradicionais” ([keıli]), claymore “espadão para duas mãos, típico dos guerreiros das Terras Altas”, glenn “vale”, loch “lago”, “fiorde”, sporran “bolsa de couro coberto de pelo amarrado no cinto”, whisky “uísque” (de uisge bha “água da vida”). Essas palavras passaram para o inglês geral. Uma pequena amostra de palavras que são restritas ao escocês são: airt “direção”, ay “sempre”, dominie “professor”, dreich “lúgubre”, fash “incômodo”, “aborrecimento”, high-heid yin “chefe” (literalmente, cara cabeça-alta), kirk “igreja”, outwith “do lado de fora de”, swither “hesitar”. No uso, o escocês constitui um contínuo. Não existem fronteiras bem definidas entre as diferentes regiões e não há claras divisões entre os diferentes níveis estilísticos. Em certos registros, um falante pode empregar uma variedade que está próxima ao inglês padrão, com nada mais que um leve sotaque para revelar sua origem geográfica. Por outro lado, existem variedades que exibem diferenças marcantes com o inglês em todas as áreas de estrutura linguística. O indivíduo pode escolher onde se situar ao longo de uma escala para adequar-se à situação comunicacional e aos efeitos que deseja produzir em seu público. Junto com as variedades regionais e sociais, existe uma variedade escocesa que foi desenhada como uma variedade padrão literária, o lallans (= lowlands “Terras Baixas”). Lallans foi definida formalmente em diversos manuais de estilo. A língua, porém, recebe críticas de quem acha que é excessivamente artificial e não possui a vivacidade e o distanciamento dos dialetos autênticos do inglês.

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Exemplo Um exemplo de lallans pode ser visto no poema A Drunk Man Looks at the Thistle (1926), escrito por Hugh MacDiarmid (pseudônimo de Christopher Murray Grieve). I amna fou’ sae muckle as tired – deid dune. It’s gey and hard wark coupin’ gless for gless Wi’ Cruivie and Gilsanquhar and the like, And I’m no’ juist as bauld as aince I wes. The elbuck fankles in the coorse o’ time, The sheckle’s no sae souple, and the thrapple. Grows deef and dour: nae langer up and doun. Gleg as a squirrel speils the Adam’s apple.1 1

“Não estou tão bêbado como estou cansado – estou morto e acabado. /

É muito trabalho e duro virar taça atrás de taça / Com o Cruivie e o Gilsanquhar e assim por diante, / E não sou tão atrevido como eu era uma vez. / O cotovelo fica desajeitado com o decorrer do tempo, / O pulso não está tão flexível, e a garganta. / Fica pouco reativa e rígida: não sobe e desce mais. / Animado que nem esquilo, o pomo de Adão escala.”

País de Gales A língua galesa pertence à família celta. Antes da chegada dos anglo-saxões no século V d.C., variedades dessa língua eram faladas por toda a ilha. As variedades do gaélico (irlandês, escocês e da Ilha de Man) são parentes distantes do galês, que pertence ao ramo britônico da família, enquanto o gaélico é do ramo goidélico. O gaélico falado na Escócia foi para lá com emigrantes da Irlanda do Norte, que colonizaram o litoral ocidental e acabaram estabelecendo um reino (em latim, os scotti são irlandeses; portanto, “Escócia” significa “país dos irlandeses”!). Aos poucos, os anglo-saxões conquistaram território e expulsaram ou assimilaram os galeses. Durante a Idade média, o cornualhês era falado no extremo Sudoeste e o cúmbrico na Região do Lagos a Noroeste e no reino medieval de Strathclyde, que abrangia o sudoeste da atual Escócia. Os especialistas em línguas celtas acreditam que o cúmbrico deixou de ser falado no século XII. O último falante de cornualhês, Dolly Pentreath, contudo, só morreu em 1777.

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A conquista normanda de Gales abriu espaço para o inglês, embora o galês tenha continuado predominando por muitos séculos. A derrota do príncipe Llewellyn por Edward I levou aos estatutos de Rhuddlan em 1284, que impôs a lei inglesa. Em 1535, Henry VIII implementou o estatuto de Gales, também conhecido como o Ato de União. O país de Gales foi formalmente incorporado às estruturas administrativas e judiciais inglesas. A lei inglesa predominaria e a língua inglesa seria a língua oficial nos tribunais e para a redação de documentos oficiais. Em 1563, um ato do parlamento decretou que uma Bíblia e uma cópia do Livro de Ofícios Comuns em inglês deveriam ficar no altar de cada igreja em Gales, junto com qualquer Bíblia em galês que lá tivesse. A pressão do inglês como língua mais prestigiosa e o apoio da moquinaria governamental impactou negativamente na manutenção da língua galesa. A dissolução dos mosteiros às ordens de Henry VIII destruiu os centros de erudição em galês. As escolas que abriam nas cidades galesas ensinavam por meio do inglês. No começo da Revolução Industrial, os galeses eram encorajados a irem até as cidades industriais. Mais tarde, o movimento foi invertido e milhares de ingleses e escoceses migraram para o sul do País de Gales para trabalhar nas fábricas, minas de carvão e siderúrgicas, diluindo a população de falantes de galês com seu monolinguismo anglófono. Os dados em Crystal (1995) indicam que a tendência de perder falantes de galês está enfraquecendo. Medidas tomadas para fortalecer a língua, como a Lei da Língua Galesa de 1967, a criação de um canal de televisão (S4C) em 1982, e uma série de programas para ensinar a língua nas escolas públicas e de usar a língua em todo tipo de administração pública, junto com o inglês, conseguiram manter o número de falantes. Características do inglês galês, segundo Crystal (1995, p. 335):



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Nenhuma distinção entre /ǝ/ e /ʌ/, por exemplo, butter “manteiga” é [bǝtǝ]; em RP é [bʌtǝ]. Consoantes sofrem geminação (duplicadas) quando estão entre vogais, por exemplo, butter [bǝttǝ], money [mǝnni]. Em palavras de origem galesa, ll = [ɬ] (fricativa lateral alveolar desvozeada), por exemplo, em Llandudo (uma cidade), e ch = [x], por exemplo, bach “pequeno”. Não existe /z/, isso cria pares mínimos entre pence “moedas de penny” e pens “canetas”, especialmente no Norte, ambas as palavras são [pɛns].

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A pergunta-eco isn’t it? (“não é?”) pode ocorrer com qualquer pronome, em lugar de variar o verbo para concordar, por exemplo, You’re leaving, isn’t it? (por you’re leaving, are(n’t) you? Em inglês padrão. É comum que o predicado seja invertido com o sujeito, por exemplo, Running on Friday, he is (“Ele vai correr na sexta”).

Irlanda A ilha da Irlanda ocupa uma posição interessante na história da língua inglesa, por ser uma fonte de ondas de emigrantes anglófonos para os quatro cantos do mundo, por exemplo, a contribuição linguística dos irlandeses foi central na composição das variedades americana, canadense, australiana e neozelandesa. Por outro lado, não se deve esquecer o fato de que a Irlanda é a primeira colônia ultramarina da Inglaterra. Desse modo, se a história moderna da Irlanda é como difusora do seu inglês, a história medieval e pré-moderna da ilha esmeralda foi feita de ondas de anglófonos em sua direção em diferentes momentos e com diversos objetivos. A língua original, ou pelo menos a mais antiga de que temos conhecimento, da Irlanda é o gaélico irlandês, uma língua celta do ramo goidélico (em oposição ao ramo britônico a qual pertencem as outras línguas celtas atestadas historicamente: galês, cornualhês, cúmbrico, bretão e o gaulês continental). Como já foi mencionado anteriormente, emigrantes irlandeses tiveram um papel fundamental no estabelecimento do reino da Escócia e na expansão do gaélico por todos os arquipélagos do litoral ocidental da Escócia e pelas Terras Altas da terra firme (o Norte e o Oeste) da Escócia. No século XII, Henry II enviou alguns de seus barões anglo-normandos para conquistar a Irlanda. Embora eles conseguissem se impor militarmente durante certo tempo, esses senhores feudais anglo-normandos acabaram se naturalizando irlandeses, assimilando-se à cultura e à língua celta e chegando a se considerar, em muitos casos, mais irlandeses que súditos do rei da Inglaterra. A missão do inglês foi retomada com novo vigor no século XVII, pelo motivo de proteger as “costas” indefesas da Inglaterra contra eventuais invasões financiadas pelos grandes poderes católicos, já que a população irlandesa, tanto os anglo-normandos irlandeses como os irlandeses autóctones, não demonstraram nenhum apego à reforma protestante. Com o objetivo de segurar a Irlanda, Elizabeth I e

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James I mandavam colonos protestantes recrutados principalmente das terras baixas da Escócia e predominantemente para o norte da ilha, para a região de Ulster. As “plantações” protestantes, como o assentamentos eram conhecidos, foram planejadas para alterar o equilíbrio de poder em favor dos protestantes. A violenta campanha de Cromwell em 1659-1650 também teve como objetivo reprimir as chances de rebelião, e as batalhas de William de Orange contra James II frearam precisamente o tipo de levante favorável ao catolicismo que os monarcas anteriores tinham se preocupado. Finalmente, em 1803, um novo Ato de União converteu a Irlanda em parte do Reino Unido, que passou a ser de Grã-Bretanha e Irlanda até a separação da República da Irlanda, sem a região de Ulster, onde os protestantes tinham chegado a predominar numérica e politicamente. Todas essas interferências no tecido da sociedade irlandesa tiveram o impacto de reduzir o número de falantes do gaélico e, concomitantemente, alargar a quantidade de anglófonos. Figura 4.6  Divisões territoriais gerais na Irlanda.

Meridiano de Gre

enwich



TERRAS ALTAS

ESCÓCIA Edimburgo

Ter ra

s B aix a s

IRLANDA DO NORTE

U L S

T

Mar do Norte

Belfast

R

54º N

E

REPÚBLICA DA IRLANDA

Mar da Irlanda Dublin

INGLATERRA GALES

OCEANO ATLÂNTICO Áreas em que o gaélico ainda é falado A Pala (faixa sob administração real direta)

Canal da Mancha

Fonte: adaptada de Crystal (1995, p. 336).

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As políticas repressivas contra o gaélico irlandês na educação e a estigmatização social do uso da língua como algo bárbaro e atrasado estimulava os pais a não o ensinarem a seus filhos. A terrível praga da batata, entre 1845 e 1852, causou uma fome horrenda, em que morreram aproximadamente um milhão de pessoas, além de uma onda de emigração de quase um milhão. Em função disso, a situação demográfica da ilha foi mudada para sempre. O descaso dos políticos em ajudar a população e a indiferença dos latifundiários e proprietários ante o sofrimento do povo contribuíram para fomentar o ressentimento contra os governantes ingleses e protestantes e a estimular o movimento que reivindicava a autodeterminação e, potencialmente, a independência. O inglês hiberno apresenta diversas características, algumas devido aos contatos com o gaélico, outras por particularidades próprias dos traços adotados pelos falantes do leque de possibilidades trazido pelas diferentes ondas de colonos. São características do inglês falado na Irlanda:







Palavras como tea “chá” e key “chave” contêm [e:] em lugar do [i:] de RP, por exemplo, peacock “pavão” = [pe:kɑk]. /ɔı/ é pronunciado como [ǝı], especialmente no sul da Irlanda. Várias vogais abertas têm valores diferentes dos de RP, por exemplo, path “caminho” e calm “calma” com frequência exibem /a:/ e /ɑ:/ longo e posterior aparece em talk “falar”, saw “viu”, “serra”, “serrar”. Sotaques irlandeses são róticos em contextos pós-vocálicos. /t/ e /d/ tendem a ser dentais: [t̪ ] [d̪]; em RP são alveolares. /θ/ e /ð/ também tendem a ser [t̪ ] [d̪], por exemplo, thanks [t̪ æŋks] (= tanks “tanques”), this [d̪ ıs]. /l/ é sempre “claro”, isso é sem velarização, mesmo em final de palavra ou em final de sílabas antes de consoantes, por exemplo, field. /s/ > [ʃ] antes de /t l n/, por exemplo, stop! = [ʃtɒp].

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Exercícios de fixação 1. Por que é incorreto considerar que os vernáculos ingleses são versões estropiadas das variedades padrão? 2. Qual é a reação típica de um falante nativo de alguma variedade vernácula do inglês ante a pressão sociocultural imposta pela norma

9. Qual é a relevância do contraste ente sacks, sex e six para o inglês sul-africano? 10. Caracterize as mudanças gerais que ocorreram no surgimento do sistema vocálico do inglês australiano. 11. Quais propriedades distinguem o sotaque australiano do sotaque neozelandês?

culta? 3. Explique a diferença entre prestígio aberto/

12. O que está ocorrendo com os dialetos tradi-

explícito e prestígio encoberto/implícito.

cionais na Inglaterra? 

4. Qual foi a contribuição de Noah Webster à

13. O que é “Estuary English”?

constituição da ortografia americana? 5. Como funcionava o comércio atlântico trian-

14. Qual é a conexão entre a difusão de variantes do inglês e a malha rodoviária e ferroviária? 15. Em que sentido o escocês é um contínuo?

gular? 6. Explique as diferenças e os pontos de relacionamento entre línguas de contato, línguas pidgin e línguas crioulas. 7. Identifique quatro características do inglês falado na África ocidental. 8. Por que uma língua pidgin ou crioula de base

16. O que significa lallans? 17. O que é irlandês escocês e onde você pode encontrá-lo? 18. Quando os linguistas afirmam que “a variação é o veículo da mudança”, o que eles querem dizer?

inglesa nunca se estabeleceu na África orien-

19. Qual foi o motivo por William Labov descor-

tal se várias línguas desse tipo surgiram na

dar do modelo gerativo proposto por Noam

África ocidental?

Chomsky?

Panorama A variação é o veículo da mudança A ideia de que as escolhas feitas pelos falantes e pe-

O embasamento dessa noção está radicado no

las comunidades de fala entre diversas variantes lin-

programa da investigação linguística, conhecido

guísticas acabam direcionando a evolução de uma

como a sociolinguística variacionista. Essa abor-

língua pode ser resumida pela expressão, muito fre-

dagem foi desenvolvida inicialmente pelo linguista

quente entre sociolinguistas, “a variação é o veículo

e professor William Labov (1927-), da Universida-

da mudança”. O que queremos dizer com isso?

de da Pensilvânia, nos Estados Unidos, na década

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dos 1960, como uma reação aos modelos vigen-

nativos do português brasileiro produzem diaria-

tes na linguística daquela época e, sobre tudo, ao

mente e são compreendidas por todos os falantes

programa de investigação denominado “gerati-

do português brasileiro (PB). Embora a competên-

vismo”, lançado pelo linguista Noam Chomsky

cia seja igual entre dois falantes, seu desempenho

(1928-), do Massachusetts Institute of Technology,

pode variar muito. Um pode ser um grande poeta,

o conceituado MIT.

letrista ou prosaísta, o outro pode ser pouco arti-

Labov critica a visão dos gerativistas (os segui-

culado. Em princípio, seu conhecimento gramati-

dores de Chomsky) de que a gramática de um

cal é o mesmo que o de Chico Buarque (NEGRÃO;

indivíduo ou uma descrição que abstrai de várias

SCHER; VIOTTI, 2010), mas diferem muito no uso

gramáticas individuais para produzir uma gramáti-

desse conhecimento.

ca geral de uma comunidade de fala é tipicamen-

O sujeito dos experimentos gerativistas iniciais era

te uniforme, homogênea. Nas primeiras fases do

descrito como um “ouvinte-falante ideal”, cuja com-

projeto gerativista, cujo objetivo é compreender

petência é homogênea em relação a outros mem-

a composição e o desenvolvimento da compe-

bros de sua comunidade de fala. Para Labov e seus

tência linguística (uma gramática mental, o co-

seguidores, a ideia de que uma língua possui uma

nhecimento que todo falante nativo possui da sua

única gramática mental não faz sentido, uma vez

língua materna, e que permite que ele possa criar

que observamos a presença de múltiplas variantes

e entender uma quantidade infinita de sentenças,

em cada área de estrutura linguística. Conhecer o

mesmo que se trate de uma sentença totalmente

significado de cada variante e saber explorá-las faz

inovadora, que nunca foi ouvida antes). Por essa

parte do conhecimento do falante nativo. Quem as

perspectiva, a produção de sentenças, ou seja, o

usar equivocadamente revela que não é membro

ato de pôr a competência linguística na prática,

da comunidade de fala. Além disso, tais variantes

é conhecido como desempenho. Problemas de

estão organizadas pelas relações que apresentam

desempenho não impactam a competência. Por

com fatores linguísticos e não linguísticos, como os

exemplo, gaguejar, tossir, esquecer o que se iria

valores que a comunidade as atribui, por exemplo,

dizer, resolver reformular a fala etc., não afetam a

prestígio ou estigmatização, com quem as usa, ou

capacidade de julgar se uma sentença é gramatical

com as situações em que podem ocorrer.

(natural, possível, compreensível).

A sociolinguística laboviana emprega análises es-

Fundamentalmente, para os gerativistas, dois in-

tatísticas para encontrar correlações entre o uso de

divíduos podem compartilhar a mesma compe-

variantes linguísticas (formas diferentes de ex-

tência, na medida em que concordam sobre quais

pressar o mesmo conceito ou sons diferentes que

sentenças são gramaticais. Isto é, tais frases são

podem co-ocorrer na mesma posição nas mesmas

possíveis, fazem sentido e podem ser ditas por fa-

palavras), por exemplo, /-r/ e Ø (zero) no fim do infi-

lantes nativos. Observe que “gramatical” aqui não

nitivo (correr = /ko′rer/ ou /ko′re_/). Em PB, há corre-

é igual a “correto” do ponto de vista da gramática

lações positivas muito fortes entre a ocorrência de

prescritiva. Nesse sentido, são gramaticais “nóis

/-r/ em contextos de maior formalidade e a presen-

têm três cachorro preto” ou “Os peixe grande que

ça de Ø em contextos informais (CALLOU; MORAES;

tu vai pescar, nóis vai dar para a moça que a gente

LEITE, 1996a, 1996b, 1998). As quantidades exatas

mora na casa dela, para mim vender na feira”, por-

de /-r/ e Ø variam de indivíduo para indivíduo, mas

que essas sentenças constam entre as que falantes

todos os brasileiros apresentam a mesma reação

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diante de um contexto com maior formalidade: a

o que a faz aumentar na comunidade de fala como

quantidade de /-r/ aumenta e de Ø cai, concomi-

um todo e até passar para outras comunidades de

tantemente. Outras correlações podem ser identi-

fala. Inversamente, o uso de uma variante que é

ficadas entre essas variáveis (qualquer elemento

malvista por algum motivo, por exemplo, por ser

capaz de alternar, ou seja, que apresenta variantes,

percebido como típico de um grupo também mal-

por exemplo, “morfemas do infinitivo” = /-ar/, /-er/,

-avaliado, tende a diminuir, podendo chegar a de-

/-ir/ versus /-a__ /, /-e__ /, /-i__ /; “formalidade” =

saparecer por completo. Dessa maneira, podemos

“formal” versus “informal” etc.). Por exemplo, quanto

entender a variação como necessária para haver

mais alto for o nível educacional do sujeito, mais

mudança, ou seja, pelas mudanças nas quantida-

/-r/ usará. Contudo, Ø ainda estará presente na fala

des relativas das variantes de determinada variá-

informal desses falantes mais instruídos, é apenas a

vel, que são modificadas pela opinião dos falantes

frequência de ocorrência que diminui. Igualmente,

acerca dela, a variação veicula a mudança de uma

pessoas com menos anos de ensino formal com-

maneira geral.

pletados também empregam a variante /-r/ em

Dito isso, a explicação sociolinguística da mudança

situações formais, mas em quantidades menores.

do tipo implementação funciona muito bem para

A sociolinguística laboviana demonstra como os

esclarecer como variantes já existentes concorrem

falantes aprendem a interpretar e manipular as

entre si, até a exclusão de algumas e a dominação

inúmeras variantes linguísticas que encontram

total de outras em alguns casos, ou até atingir uma

em seu ambiente social. Em 1968, Uriel Weinreich,

distribuição estável, em outros casos. No entanto,

William Labov e Marvin Herzog publicaram um ar-

essa elucidação ainda não resolve o caso do surgi-

tigo importante, cujo título em português é Fun-

mento de inovações (variantes totalmente novas)

damentos empíricos para uma teoria da mudança

dentro do repertório linguístico de indivíduos (e

linguística (tradução de Marcos Bagno, São Paulo:

assim, nas comunidades de fala). Isso ainda não foi

Parábola, 2012). Nele, os pesquisadores america-

aclarado de forma satisfatória, mas eventualmente

nos propuseram que a presença universal de va-

tem relação com processos cognitivos de percep-

riação em todas as línguas naturais era um aspecto

ção e compreensão do ser humano, que, curiosa-

relevante para entender a mudança linguística.

mente, sugere a possibilidade de vincular áreas do

Para os três linguistas, os diferentes padrões de va-

variacionismo com aspectos do projeto gerativista.

lorização atribuídos às variantes linguísticas pelos

Toda a apresentação descrita serve para esclarecer

indivíduos e pelas comunidades estimulam, ora

como a variação linguística apresentada nesta uni-

o incremento, ora a diminuição na frequência de

dade interage com os aspectos não linguísticos por

uso das variantes. Assim, explica-se a implemen-

meio de associações estabelecidas entre as duas

tação de uma mudança e como ela se difunde.

áreas pelos falantes e os valores atribuídos pelas

Os fatores não linguísticos motivam as mudanças

pessoas e pelas suas comunidades, que motivam

nas frequências relativas das variantes por afetar os

sua expansão ou redução/eliminação. Do mesmo

sistemas de valores que os falantes lhes atribuem.

modo, todas as mudanças linguísticas apresenta-

Uma variante que é considerada prestigiosa tende

das ao longo deste livro resultaram desse proces-

a crescer no uso pessoal de um falante individual e

so de modulação de frequências por escolhas dos

também a ser adotada por cada vez mais pessoas,

falantes. Às vezes, o prestígio de certas palavras de

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O inglês moderno

outras línguas, como o francês ou o latim, era su-

Consequentemente, o inglês, como qualquer ou-

ficiente para induzir falantes de inglês a adotá-las

tra língua, é o produto de uma quantidade inima-

como empréstimos. Assim, entraram no repertório

ginável de seleções realizadas em cada momento

de traços e itens linguísticos e iniciaram sua concor-

por parte dos falantes entre as variantes presen-

rência. Em outras ocasiões, uma interpretação mal-

tes. Uma língua é um mosaico complicadíssimo

feita de determinada estrutura levou a uma reanálise

de formas, as quais estão organizadas em ma-

do significado ou da função, gerando, desse modo,

neiras sistemáticas pelos fatores extralinguísticos

uma nova variante que competia com as demais.

associados a elas. Portanto, as estruturas de cada

Em outros casos, porém, ambiguidades entre as

língua registram seu percurso desde o passado

expressões existentes levaram as pessoas a inventar

remoto até o presente e contêm as sementes do

novas maneiras de se expressar com mais clareza,

que vai acontecer no futuro. No entanto, saber

as quais entraram no poço de variantes a serem

precisamente qual caminho a língua vai seguir

escolhidas ou ignoradas pelos falantes conforme

dependerá das atitudes de seus falantes diante

eles as adotassem ou as rejeitassem.

do contexto sociocultural.

321

Recapitulando

N

esta unidade, você investigou os fatores

Com o estabelecimento das plantações escra-

extralinguísticos que conduziram os pro-

vagistas e o rico ciclo comercial triangular pelo

cessos de deslocamento, contato e inova-

Atlântico do Norte, o movimento para essas regiões

ção das variedades e variantes que fizeram surgir a

cresceu bastante por interesses comerciais. No

complexa entidade que recebe o nome de “língua

mesmo tempo, a Companhia das Índias Orientais

inglesa”. A migração de anglófonos da Inglaterra e

se estabelecia na Índia e se envolvia no lucrativo

da Escócia para outras regiões das ilhas britânicas

comércio de mercadorias e produtos orientais. A

(Cornualha, Gales, norte e oeste da Escócia) e para

industrialização e as reformas agrárias na Grã-Bre-

Irlanda ocorria desde a Idade Média. No período

tanha causavam grandes movimentos populacio-

pré-moderno, Inglaterra e Escócia estabeleceram

nais internos, com os campesinos desempregados

colônias na América do Norte e no Caribe e o fluxo

deixando as comunidades rurais rumo aos centros

migratório para a Irlanda aumentou consideravel-

de indústria e aos focos de produção das matérias-

mente durante o século XVIII por motivos políticos.

-primas utilizadas nas fábricas, por exemplo, car-

Os problemas religiosos entre católicos, anglicanos

vão, cobre, ferro etc.

e outras denominações protestantes estimulavam

No final do século XVIII, as 13 colônias meridionais

emigração à América do Norte para fundar co-

americanas se tornaram independentes, consti-

munidades religiosas com pouca interferência do

tuindo os Estados Unidos. A nova nação foi o desti-

estado.

no de muitos anglófonos de diversas re­giões, como

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Gramática histórica da língua inglesa

os milhões de irlandeses que fugiam da Grande

Na segunda metade do século XX, muitas pesso-

Fome e os escoceses gaélicos expulsos durante o

as das antigas colônias britânicas começaram a

Esvaziamento das Terras Altas. Muitas outras regiões

se instalar no Reino Unido à procura de melhores

das ilhas britânicas sofreram emigrações significa-

condições de trabalho respondendo à demanda

tivas para os Estados Unidos e para outros lugares,

de mão de obra nas indústrias britânicas. Gran-

como a Austrália, Nova Zelândia e a África do Sul ao

des quantidades de caribenhos, indianos (agora

longo do século XIX. Com esses deslocamentos de

separados entre paquistaneses, indianos e ban-

pessoas comuns por iniciativa própria, havia tam-

gladexenses), chineses de Hong Kong e Malásia,

bém os envolvidos no programa imperial britânico:

nigerianos, guineenses, serra-leonenses, quenia-

os administradores civis e militares que foram man-

nos. A presença desses povos e muitos outros que

dados aos territórios ao redor do globo, muitos dos

imigraram para o Reino Unido (gregos, italianos,

quais optaram por se fixar nas colônias.

espanhóis, portugueses, cipriotas, árabes libane-

Enquanto o Reino Unido liderava o mundo em

ses, marroquinos, egípcios, turcos, russos, tailande-

avanços tecnológicos, os Estados Unidos acolhiam

ses, húngaros, poloneses, tchecos etc.) criaram um

inúmeras etnias do mundo inteiro e se expandia

riquíssimo caldeirão de línguas em contato, o que

para o Oeste. No Leste e Centro-leste, indústrias

gerou novos dialetos urbanos, ao mesmo tempo

pesadas começaram a se desenvolver, especial-

que as variedades tradicionais sofriam cada vez

mente na segunda metade do século XIX, depois

mais pressão da língua padrão devido ao ensino

que ruína dos estados meridionais escravocratas

universal e ao alcance dos meios de comunicação.

na guerra civil americana transferiu a potência

Processos parecidos ocorreram nos Estados Uni-

agrícola para a região central.

dos, com os deslocamentos de americanos afro-

No século XX, as duas guerras mundiais levaram o

descendentes das comunidades rurais do Sul para

Reino Unido à bancarrota. Sem os recursos huma-

os grandes centros urbanos industriais do Centro-

nos e financeiros para manter a rede de colônias

-norte, Leste e Oeste nas décadas de 1950 e 1960

ao redor do globo, gradualmente, elas iam se tor-

e a vinda de pessoas de origem hispânica a partir

nando independentes. Às vezes, por simples mu-

dos anos 1970. O fluxo contínuo de imigrantes do

danças administrativas, por exemplo, no caso de

mundo inteiro tem tornado os Estados Unidos

Jamaica, Canadá, África do Sul, Austrália e Nova Ze-

uma sociedade com grande diversidade linguística

lândia. Por outro lado, os habitantes muitas vezes

e, consequentemente, de grande diversidade nas

precisaram lutar para se livrar no caso das posses

variedades de inglês faladas lá, especialmente nas

territoriais mais valorizados, por exemplo, no caso

grandes metrópoles.

da Índia e da África Oriental (Quênia, Zimbabué,

O último tema desta unidade trata das diferenças

Zâmbia, Malawi). Em lugar do Império Britânico, a

entre as diversas variedades da língua inglesa. Nela,

maior potência econômica e política era os Esta-

contrastamos as duas variedades mais conhecidas

dos Unidos, outro país anglófono, travando uma

e mais prestigiosas: o inglês americano padrão e

guerra fria com a União Soviética e os países do

o inglês britânico meridional padrão, além de ex-

Pacto de Varsóvia. Desse modo, a preeminência do

plicar as diferenças que existem dentro do inglês

inglês como a língua da primeira potência militar e

americano e britânico, ou seja, as principais varie-

econômica do mundo era mantida.

dades regionais.

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