GRAMSCI, OS INTELECTUAIS E SUAS FUNÇÕES CIENTÍFICO-FILOSÓFICA, EDUCATIVO- CULTURAL E POLÍTICA

July 19, 2017 | Autor: Eduardo Fellix | Categoria: Educação, Hegemonia, Engajamento, Intelectuais
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GRAMSCI, OS INTELECTUAIS E SUAS FUNÇÕES CIENTÍFICO-FILOSÓFICA, EDUCATIVO-
CULTURAL E POLÍTICA



RESUMO: à luz da concepção gramsciana de intelectual, vista sob o prisma da
relação entre trabalho intelectual e engajamento político, o texto
apresenta uma leitura de suas funções científico-filosófica, educativa-
cultural e política na disputa pela hegemonia que se trava entre as classes
na realidade capitalista. Inicialmente, é destacada a dificuldade
enfrentada pelos que se propõem a conceituar o termo "intelectual", pois
ele suscita significados variados e é utilizado de diferentes formas para
identificar indivíduos e/ou grupos sociais na ação sócio-política e
educativa. Resgata-se a visão de alguns autores que trabalharam com essa
temática, destacando que o debate sobre os intelectuais emergiu Modernidade
e ganhou contornos mais nítidos no final do século XIX e início do século
XX, sobretudo com o caso Dreyfus. Por fim, apresenta-se a concepção
gramsciana de intelectual, orientada pela marxiana categoria de classe.

PALAVAS-CHAVE: Antônio Gramsci (1891-1937), educação, engajamento,
hegemonia, intelectuais.


ABSTRACT: based on the concept of Gramscian intellectual,seen through the
prism of the relationship between intellectual work and political
engagement, the text presents a reading of his roles scientific and
philosophical, educational, cultural and political struggle for hegemony in
that rages between classes in capitalist reality. Ouvir
Ler foneticamente
Initially, it highlighted the difficulty faced by those who propose to
conceptualize the term "intellectual" because he raises various meanings
and is used in different ways to identify individuals and/or social groups
in social and political action and educational. Rescue is the view of some
authors who have worked with this theme, noting that the debate on
intellectual modernity emerged and gained more clearly defined in the late
nineteenth and early twentieth century, especially with the Dreyfus case.
Finally, we present the Gramscian conception of intellectual, driven by the
Marxian categories of class, and some considerations about the role he must
play today, especially the intellectuals organic to the subordinate
classes.

KEYWORDS: Antonio Gramsci (1891-1937), education, engagement, hegemony,
intellectuals.
INTRODUÇÃO
Este texto tem dois objetivos centrais, quais sejam: apresentar a concepção
de Antonio Gramsci sobre os intelectuais e, à luz disso, refletir sobre o
papel que eles podem desempenhar na disputa pela hegemonia quando engajados
organicamente às classes sociais fundamentais: o científico-filosófico, o
educativo-cultural e o político.
Inicialmente, são tecidas algumas considerações sobre a dificuldade
enfrentada pelos que se propõem a conceituar o termo "intelectual", pois
esta palavra suscita significados variados e é utilizada de diferentes
formas para designar indivíduos e/ou grupos sociais em sua ação sócio-
política na realidade concreta. Após isso, resgata-se a leitura que fizeram
alguns clássicos das ciências humanas e sociais que trabalharam com essa
temática, tendo como referência o posicionamento sobre a polêmica relação
entre trabalho intelectual e engajamento político. Nessa mesma parte do
texto encontra-se também descrito, em linhas gerais, o debate sobre os
intelectuais, que na Modernidade emergiu com vigor para ganhar contornos
mais nítidos, ou melhor, referenciado na categoria de classe social, no
final do século XIX e início do século XX, sobretudo a partir do caso
Dreyfus.
Nas partes subseqüentes encontram-se uma leitura possível da concepção
gramsciana sobre os intelectuais e, a partir dela, considerações sobre o
papel que podem desempenhar nos dias atuais, sobretudo em se tratando dos
intelectuais orgânicos às classes subalternas. Além do papel científico-
filosófico e político, em especial, é discutida função educativo-cultural
dos intelectuais na disputa que se trava entre as classes pela dominação e
direção das relações sociais.
Dada a amplitude das diferentes abordagens feitas pelos autores sobre
os intelectuais e seu papel, adota-se como fio condutor da exposição a
relação entre intelectual e engajamento político, perspectiva analítica
consoante ao paradigma teórico-metodológico gramsciano, que a ela
acrescenta a categoria marxiana de classe social. É a partir desse enfoque
que o texto apresenta a concepção de Antonio Gramsci sobre os intelectuais
e o papel que exercem nas relações sociais ao participarem da disputa pela
hegemonia.
Todavia, importa considerar que não é objetivo do presente texto
esmiuçar o conceito de educação formulado por Gramsci, mas identificá-lo a
tal ponto de se poder ter clareza em relação ao papel educativo-cultural
que este autor atribuiu aos intelectuais, o qual deve ser desenvolvido de
forma articulada com as funções científico-filosófica e política.




A POLÊMICA SOBRE O ENGAJAMENTO POLÍTICO DOS INTELECTUAIS
"Intelectual" é uma palavra amplamente utilizada, seja no ambiente
acadêmico-científico, seja na seara sócio-cultural das sociedades atuais. A
amplitude de seu uso resulta em enorme dificuldade aos que pretendem
investigá-lo e conceituá-lo, pois o termo "intelectual" pode ser abordado
por diferentes enfoques, cada qual com suas próprias especificidades,
sobretudo suas referências heurísticas.
Entre as variadas formas de se tomar os intelectuais como objeto de
investigação com vista à sua conceituação, destacam-se, entre outras, as
três seguintes:
a) o enfoque da produção e socialização do conhecimento por um grupo social
especializado;
b) o enfoque da produção cultural, que pode resultar na clássica distinção
entre "cultura erudita" e "cultura popular";
c) e o enfoque da distinção entre "trabalho concreto" (produtor de valor-de-
uso) e "trabalho abstrato" (produtor de valor-de-troca), como faz Marx
(1999), por exemplo, a partir da referência à categoria de classe social.
Desses possíveis enfoques sobre o tema, resultam variados sentidos ao
uso do termo "intelectual", mas principalmente dois:
Ao substantivo Intelectuais podem ser atribuídos dois
sentidos principais, aparentemente semelhantes mas
substancialmente diferentes. Em primeiro lugar, ele
designa uma categoria ou classe social particular, que se
distingue pela instrução e competência, científica,
técnica ou administrativa, superior à média, e que
compreende aqueles que exercem atividades ou profissões
especializadas [...] uma segunda acepção, mais vulgar na
publicidade de atualidade literária e política, para a
qual Intelectuais são os escritores "engajados". Por
extensão, o termo se aplica também a artistas, estudiosos,
cientistas e, em geral, a quem tem adquirido, com o
exercício da cultura, uma autoridade e uma influência nos
debates públicos. (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1992, p.
637)


Tais sentidos da palavra "intelectual" são bastante próximos e, assim,
não ajudam muito na conceituação, embora a segunda posição relatada remeta
a questão para um debate mais frutuoso aos marxistas em geral, e
particularmente a Gramsci, que é o da relação entre a atividade do
intelectual e seu envolvimento com a disputa pelo poder, isto é, seu
engajamento político. Daí a opção de, neste texto, enfrentar o debate
tomando, em parte, como referência, o segundo enfoque, que é próximo ao do
comunista da Sardenha. Próximo mas não idêntico, porque a posição
gramsciana claramente adota como referência a categoria marxiana de classe
social.
Considerando a opção por orientar a exposição sobre os intelectuais a
partir do envolvimento que tiveram no jogo de poder em diferentes contextos
históricos, pode-se dizer que há intelectuais que vivenciaram a dinâmica
luta pela definição dos contornos da vida sócio-política, há também alguns
que apenas defenderam o engajamento político do intelectual e, mesmo assim,
mantiveram-se distantes dos embates decorrentes da disputa pelo poder, em
oposição a outros que rechaçaram completamente essa posição.
O engajamento dos intelectuais não é algo novo na história. Basta ver,
por exemplo, o caso de Platão e de Aristóteles na antigüidade clássica. O
primeiro, interessado que era na vida política, tentou sucessivas vezes,
sem sucesso, intervir em Siracusa, chegando a viver a polêmica (367 a.C.)
entre ficar na academia de Atenas (fundada por ele em 387 a.C.) ou atender
ao chamado de seu amigo Dion para ir pela segunda vez àquela cidade com o
intuito de implantar o que formulou na República. Por sua vez, seu
discípulo mais famoso, Aristóteles, aventurou-se como preceptor de
Alexandre, o Grande. Apesar de sua personalidade de homem de cultura pouco
afetado pelos problemas da pólis[1], diferentemente do mestre Platão, em
343 a.C., aos 41 anos, o estagirita foi à corte de Pela atender ao pedido
de Felipe: educar seu filho Alexandre, um adolescente de 13 anos de idade.
Ocupou-se Aristóteles com o ofício de aio até 336 a.C., quando seu famoso
educando subiu ao trono com o assassinato do pai.
Considerando a anunciada perspectiva da exposição - o engajamento
político dos intelectuais -, apenas na Modernidade é que se pode falar mais
apropriadamente em "intelectual", pois foi neste período que as forças
produtivas desenvolveram-se ao ponto de se construir as condições para
fazer surgir um grupo social com possibilidades de se apresentar com
relativa autonomia[2] em relação aos demais e à estrutura econômica e
social. Na Modernidade, de fato, com o desenvolvimento das forças
produtivas, produziram-se novas conformações sócio-históricas, classes
sociais antagônicas e espaços na esfera pública (universidades, academias,
imprensa, aparelhos de administração estatal etc.) para grupos cultos,
especializados em tarefas não manuais. Eis uma situação radicalmente
diferente da vivida em períodos anteriores, cuja dinâmica social era
mediada por seitas, corporações, castas, laços de sangue etc. Passa-se,
então, na Modernidade a se ter condições de claramente conformar um grupo
social que, culto e com a formação especializada, chega a apresentar-se com
relativa autonomia ético-política em relação às disputas entre as classes
sociais.
Interessante observar, por exemplo, a posição de Fichte (1762-1814)
neste debate. Sua filosofia idealista concebe a realidade como produto da
atividade de um eu puro – universal, absoluto e transcendental -, do qual
resultam diferentes "eus empíricos", "eus particulares", concretizados no
tempo e no espaço, no mundo da natureza, identificado como "não-eu". A
oposição entre "eu" e "não-eu", natureza resultante do espírito, acaba por
se tornar o terreno no qual são lançadas as bases para que o "eu puro"
supere os desafios de sua própria eticidade por meio de um processo ativo,
ascendente e infinito (busca da efetivação da concretude dos ideais,
vontade de superar os limites que a eles são impostos), dando origem a uma
metafísica imanente, inspirada na razão prática kantiana. Ao firmar posição
em favor da consciência e da liberdade, em oposição ao determinismo e ao
dogmatismo, muito apregoados à sua época e dos quais resultavam a
passividade e a aceitação, Fichte defende não apenas a concepção ética do
Estado, mas também que a produção intelectual só tem sentido se for
colocada a serviço da sociedade, um entendimento expresso, sobretudo, no
seu texto denominado A missão do douto, que foi publicado após a Revolução
Francesa.
Todavia, nos séculos XIX e XX ocorreu um aprofundamento neste debate
sobre os intelectuais e o papel que desempenham na realidade sócio-
histórica, sendo o processo Dreyfus um marco dos mais significativos,
mormente porque nele começa a se desenhar com mais clareza um conceito de
intelectual que tem como referência a categoria de classe social.
Alfred Dreyfus, judeu, foi um oficial do Exército Francês – capitão do
Estado Maior do Exército Francês – condenado à prisão perpétua (1894) na
Ilha do Diabo por traição. Foi acusado de colaborar com os alemães, uma
incriminação baseada no fato de terem sido encontrados documentos com sua
caligrafia juntos com o adido militar alemão em Paris. O processo
acusatório baseou-se em documentos falsos e foi tocado a portas fechadas.
Mesmo tendo surgido, em 1898, evidências de sua inocência, o segundo
julgamento manteve a sentença do primeiro, indicando claramente a
prevalência do anti-semitismo dos nacionalistas franceses guiando a
decisão.
Esse caso dividiu a opinião pública francesa no final do século XIX e
gerou atos radicalizados e marcados pela violência: de um lado os
dreyfusards, os progressistas, e de outro os anti-dreyfusards, os
conservadores. Defensores de Dreyfus questionaram a parcialidade da Justiça
e uniram-se em defesa da lisura do processo. Tendo à frente figuras como
Émile Zola, morto em 1902, quatro anos depois de ter publicado na primeira
página do jornal parisiense L'Aurore de 13.01.1898 o libelo "Eu acuso"
(J'Accuse), articulou-se um grande número de artistas e escritores. Entre
suas ações, produziram o Manifesto dos intelectuais que, além de pedir a
reparação da injustiça cometida contra Dreyfus, expressa com clareza a
polêmica relação entre engajamento e não engajamento dos intelectuais,
identificados não apenas como indivíduos ligados ao mundo da produção
cultural e simbólica, mas também à vida sócio-política. A partir do caso
Dreyfus, que acabou por ser inocentado em 1906, é que os intelectuais
passaram a ser vistos na França também como homens engajados[3]
politicamente.
O debate aprofundou-se posteriormente ao caso Dreyfus, principalmente
a partir do surgimento de duas obras: A traição dos intelectuais, de Julien
Benda, em 1927, e Cães de guarda, de Paul Nizan, em 1932.
O texto de Benda defende a posição de que o trabalho intelectual exige
a defesa desinteressada da razão, da verdade e da justiça, que são vistas
por ele como princípios universais e abstratos, isto é, a-históricos,
válidos independentemente do tempo e do lugar. Para Benda, é uma traição do
intelectual se deixar orientar por fins práticos, como é o caso das paixões
políticas. Em outros termos, pode-se dizer que "Benda, como Croce, examina
a questão dos intelectuais abstraindo a situação de classe dos próprios
intelectuais e a sua função" (GRAMSCI, 2000, p. 73). Todavia, é
interessante observar que A traição dos intelectuais tornou-se um
instrumento utilizado nos debates em torno do caso Dreyfus para combater o
anti-semitismo da Justiça francesa, contrariando as próprias linhas que
Benda escreveu, pois esse seu texto incorporou-se à luta ético-política.
Por sua vez, o livro de Nizan, que abandonou a academia para integrar-
se ao Partido Comunista Francês, questionou a universalidade dos princípios
enunciados por Benda, pois são entendidos por Nizan como expressão de
relações sócio-históricas concretas. Para esse comunista francês, que
polemiza "[...] contra a filosofia moderna [...] em defesa da filosofia da
praxis" (GRAMSCI, 1999, p. 408), a defesa de princípios e de valores
universais é uma abstração que pode resultar na traição de homens reais e
justificar injustiças. De maneira que o posicionamento idealista de Benda é
visto por Nizan como o daqueles que se constituem na dinâmica da vida sócio-
política como verdadeiros cães de guarda da burguesia.
Importa destacar esses dois autores quando se trata de discutir o
papel dos intelectuais porque, a partir deles, consolidaram-se posições
muito claras ao longo do século XX, quais sejam: os que defenderam o
engajamento político do intelectual, sustentados ou não na categoria
marxiana de classe social, e os que são contra esse posicionamento.
Há realmente uma gama enorme de autores que poderiam ser citados como
defensores de uma ou de outra posição em relação ao engajamento dos
intelectuais no século XX. Mas é muito difícil tratar do tema do
intelectual engajado politicamente no século passado sem se reportar a
Sartre (1905-1980), pois entre os anos cinquenta e setenta ele se tornou um
dos ícones da posição que defende o engajamento. Entre seus textos que
versam sobre essa questão, destaca-se Em defesa dos intelectuais, um
conjunto de três conferências proferidas por Sartre sobre o papel dos
intelectuais na sociedade capitalista moderna.
Deve-se enfatizar a posição de Sartre em relação aos intelectuais e
seu engajamento político porque, sob vários aspectos, ela é importante
neste debate, inclusive por considerar um contra-senso um intelectual ser
de direita. Para ele, o que caracteriza um intelectual não é o fato de ele
escrever livros ou não, mas a crítica radical ao poder e, portanto, à
direita com ele envolvida. Ou seja, os intelectuais são sujeitos que se
posicionam à esquerda no embate político, muito embora a definição sobre
esquerda e direita não necessariamente passa pela categoria de classe
social, que é central no conceito gramsciano de intelectual.
E é exatamente por isso que se deve ressaltar, também, outras posições
de Sartre externadas neste debate por ele enfrentado, como a que afirma que
os intelectuais vivem muitas contradições. Uma delas é a resultante do fato
de que eles são vinculados historicamente à burguesia, mas normalmente
pertencem à classe média. Outra contradição vivida pelos intelectuais
ocorre com o dilema entre ideologia e ciência: a burguesia procura fazer
com que os intelectuais difundam a visão de mundo burguesa universalmente,
isto é, disseminem no meio social a posição particular de uma classe
social, mas ele deve advogar o que lhe é próprio como homem de ciência,
qual seja a racionalidade radical, que lhe cobra a defesa universal da
justiça e da verdade, por exemplo. Ocorre que essa posição vai ao encontro
dos interesses do proletariado como classe, de maneira que o posicionamento
racional e radical exigido do intelectual o faz assumir uma contradição que
é própria da sociedade capitalista.
Outro autor a ser mencionado é Weber (1864-1920). Suas considerações
em relação ao debate sobre o engajamento ou não dos intelectuais devem
também ser aqui lembradas porque se constituem como um pólo opositor às
assertivas sartreanas, já que defende a separação entre a atividade
intelectual e o engajamento político. Nas duas conferências proferidas em
1918 – A ciência como vocação e A política como vocação – Weber defende a
posição de que a ciência e a política são atividades com racionalidades
diferentes, isto é, lidam com a dinâmica relação entre meios e fins de
maneira diversa. Para ele, enquanto a intencionalidade da política refere-
se ao poder, a da ciência reside no senso crítico, com vista a dar mais
clareza para a ação. Por sua vez, enquanto a lógica da política é orientada
por juízos de valor, a da ciência deve ser a de afastar tais juízos na
medida do possível, em busca da objetividade do conhecimento científico,
que desencanta o mundo (cf. WEBER, 1970, p. 30 e 31) com seu labor
especialista que procura dominar e prever.
Identificado com a mesma perspectiva da necessária defesa da separação
cabal entre atividade intelectual e atividade política, em oposição às
assertivas de Sartre, apresenta-se Ortega y Gasset (1883-1955). Em A
rebelião das massas (publicado em 1926, no Jornal El Sol, de Madrid)
diferencia o trabalho do intelectual e o do político. Para ele,
A missão do chamado "intelectual" é, em certo modo, oposta
à do político. A obra intelectual aspira, com freqüência
baldada, a esclarecer um pouco as coisas, enquanto a do
político só, pelo contrário, consisti em confundi-las mais
do que estavam. Ser da esquerda é, como ser da direita,
uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para
ser imbecil: ambas, com efeito, são formas da hemiplegia
moral. Ademais, a persistência destes qualificativos
contribui não pouco a falsificar mais ainda a "realidade"
do presente, já fala de per si, porque se encrespou o
crespo das experiências políticas a que respondem, como o
demonstra o fato de que hoje as direitas prometem
revoluções e as esquerdas propõem tiranias. (ORTEGA y
GASSET, 1971, p. 14)


Por sua vez, Karl Mannheim (1893-1947), em Ideologia e utopia,
assevera ser o pensamento condicionado socialmente, não sendo, portanto, um
produto teórico puro, abstrato, produzido por um indivíduo desvinculado de
suas vontades e de tudo mais que influencia sua vida. Por conseguinte, para
Mannheim, cada classe social produz sua visão de mundo nos limites de suas
próprias condições históricas.
Contudo, para Mannheim, os intelectuais apresentam-se como um grupo
social que tem a possibilidade de compreender os condicionantes de seu
pensamento e das visões de mundo dos demais grupos sociais. Tais
condicionantes podem ser desvelados pela investigação desenvolvida por uma
nova disciplina, qual seja a Sociologia do Conhecimento. Ela possibilita
aos intelectuais ter consciência do que condiciona o seu pensamento e dos
demais indivíduos e grupos sociais, o que torna possível construir as
condições necessárias para se produzir um conhecimento mais objetivo da
realidade.
É exatamente essa possibilidade aberta aos intelectuais de produzirem
um pensamento menos condicionado, porque têm a clareza dos condicionantes,
que fez com que Mannheim defendesse a idéia de que a intellighentzia é um
grupo social com certa autonomia em relação às determinações sociais que
interferem na produção das visões de mundo. Ou seja, "Êste estrato
desamarrado, relativamente sem classe, consiste, para usar a terminologia
de Alfred Weber, na 'intelligentsia' socialmente desvinculada." (MANNHEIM,
1976, p. 180) Assim, esse grupo social torna-se habilitado a fazer a
mediação dos conflitos sociais, principalmente os que surgem em
determinados momentos históricos a partir do conflituoso encontro das
tentativas de se conservar a realidade (movimento norteado pelas
ideologias) e de transformá-la (motivadas pelas utopias).
Embora tenham sido mencionados importantes pensadores cuja produção
teórica enfrentou, cada qual à sua maneira, o debate sobre o engajamento
político dos intelectuais, pode-se afirmar que Gramsci contribuiu nesse
processo ao forjar um conceito intelectual de perspectiva classista, o que
possibilitou a ele identificar a seara do trabalho intelectual também como
um espaço em que se desenvolve a disputa pela hegemonia. De fato, na
primeira metade do século XX, Gramsci tratou dessa questão de maneira
original, legando ao presente a possibilidade de se distinguir o
engajamento político mediado pela visão classista e outros tipos de
engajamento, que podem ser intercedidos, por exemplo, por valores morais,
espírito religioso, concepção filosófica, identidade de grupo (étnica, de
gênero, opção sexual, faixa etária etc.)[4] etc. Assim, Gramsci se tornou
uma referência nessa questão até os dias atuais, mormente àqueles que
assumem o materialismo histórico e dialético como paradigma científico e
filosófico de análise da realidade concreta e guia para a ação sócio-
política e educacional-cultural.


.
A CONCEPÇÃO GRAMSCIANA DE INTELECTUAL: O ENGAJAMENTO POLÍTICO DO
INTELECTUAL À LUZ DA CATEGORIA DE CLASSE
Gramsci não tem uma formulação a priori sobre os intelectuais, isto é, ele
não faz uma exposição abstrata – leia-se, desvinculada das relações sócio-
históricas concretas - de um conceito que procura expressar o perfil de um
determinado indivíduo ou grupo social dedicado às atividades intelectuais.
Pelo contrário, consoante à sua matriz teórico-metodológica, o materialismo
histórico e dialético (cf. MARTINS, 2008), ele analisou a função que os
intelectuais desempenharam na dinâmica societária para definir a totalidade
da vida social em uma determinada sociedade, tendo como referência as
disputas que as classes sociais travaram entre si com vista a consolidar um
"bloco histórico"[5], um conjunto articulado e contraditório de forças
estruturais e superestruturais que estabelece, por meio de relações
recíprocas, os princípios, as finalidades, a dinâmica, os limites e as
possibilidades de funcionamento do modo de vida social.
Veja-se que o anti-apriorismo de Gramsci é por ele manifesto por meio
de sua visão epistemológica, claramente materialista histórica e dialética:
Se é necessário, no perene fluir dos acontecimentos, fixar
conceitos, sem os quais a realidade não poderia ser
compreendida, deve-se também - aliás, é imprescindível -
fixar e recordar que realidade em movimento e conceito da
realidade, se podem ser logicamente distinguidos, devem
ser concebidos historicamente como unidade inseparável.
(GRAMSCI, 1999, p. 311)


A partir do paradigma que lhe orientou, Gramsci produziu um conceito
de intelectual que, muitas vezes, é equivocadamente interpretado e
utilizado abstratamente, isto é, recortado da realidade em que foi
formulado e aplicado universalmente à análise de diferentes realidades
sociais. Para evitar isso, é importante considerar que o fio condutor da
análise gramsciana sobre os intelectuais reside no papel que desempenham na
disputa pela hegemonia entre as classes de uma determinada formação
econômica e social; no caso de Gramsci, essa realidade foi a da Itália, em
particular, e da Europa, em geral, no período correspondente à primeira
metade do século XX. Nesse sentido, "Na abordagem gramsciana, a questão dos
intelectuais dizia respeito às formas de exercício das funções de direção e
dominação dos grupos sociais antagonistas e, por essa via, à formação do
pessoal encarregado ou especializado." (BIANCHI, 2008, p. 74)
Dessa maneira, o conceito gramsciano de intelectual, bem como os
demais que o comunista revolucionário da Sardenha formulou, advém da
análise concreta da gênese e do desenvolvimento da dinâmica de
funcionamento da formação econômica e social italiana no contexto europeu,
suas contradições, seus limites e suas possibilidades. E é justamente por
isso que ele pode servir como parâmetro epistemológico aos que pretendem
compreender a função dos intelectuais na hodierna realidade brasileira e,
ao mesmo tempo, como uma referência ética e política, isto é, como guia à
ação sócio-política e educativo-cultural[6].
Destaque-se que, mesmo tendo a realidade italiana como objeto de
reflexão e local de intervenção, Gramsci não perdeu perspectiva
cosmopolita[7], e a manteve com a mesma referência à marxiana categoria de
classe social. A propósito desse cosmopolitismo classista, Gramsci
interessou-se por conhecer o processo de formação dos intelectuais e de
seus grupos em vários países europeus e não europeus, como é o caso da
França, da Inglaterra, da Alemanha, da Rússia, dos Estados Unidos e até
mesmo da América do Sul, da América Central e da China (cf. GRAMSCI, 2000,
p. 26 a 32), mas com vista a conhecer historicamente a função dos
intelectuais na península italiana para nela intervir e, com isso, impactar
as relações sociais internacionais, pois "[...] a relação 'nacional' é o
resultado de uma combinação 'original' única [...], que deve ser
compreendida e concebida nesta originalidade e unicidade se se quer dominá-
la e dirigi-la. [...] o desenvolvimento é no sentido do internacionalismo,
mas o ponto de partida é 'nacional', e é deste ponto de partida que se deve
agir." (GRAMSCI, 2000b, p. 314).
Assim agiu Gramsci, nacional e cosmopolitamente, ao resgatar
historicamente o processo sócio-político, econômico e cultural que resultou
na construção do perfil de várias nações no estágio em que se encontravam
na primeira metade do século XX. Contudo, o objetivo de entender melhor o
papel dos intelectuais nesse contexto não foi cumprido plenamente, pois,
mesmo tendo produzido um plano de trabalho[8] para desenvolver um estudo
aprofundado e sistemático, ele não conseguiu efetivá-lo pelos limites que o
cárcere lhe impôs. Mesmo assim, as anotações que Gramsci deixou sobre os
intelectuais são muito significativas.
No cárcere, Gramsci discutiu o papel dos intelectuais e outras
questões relativas a eles principalmente no Caderno 12, um conjunto de 30
folhas incompletas e intituladas de Apontamento e notas esparsas para um
grupo de ensaio sobre a história dos intelectuais e da cultura na Itália.
Antes da prisão, porém, Gramsci abordou também essa questão com profunda
originalidade no contexto italiano no seu famoso ensaio denominado Alguns
temas sobre a questão meridional, de 1926 (cf. GRAMSCI, 2004, p. 403 a
435). Em ambos os textos, bem como em várias passagens dos Cadernos do
Cárcere, dos escritos políticos anteriores à prisão e das cartas que
escreveu, percebe-se que o revolucionário da Sardenha pautou-se pelo
compromisso de militante comunista e pelo que é fundamental ao método
marxiano: a análise concreta de situações concretas (cf. MARX, 1999, p. 26
a 28; MARX, 1991, p. 16 e 17; e MARTINS, 2008).
Historicamente, até a segunda metade do século XIX, a Itália
encontrava-se fragmentada territorial, econômica, política, social e
culturalmente. E neste processo, "[...] o fato central é precisamente a
função internacional ou cosmopolita de seus intelectuais, que é causa e
efeito do estado de desagregação em que permanece a península, desde a
queda do Império Romano até 1870." (GRAMSCI, 2000, p. 26) E mesmo com o
difícil processo do Risorgimento (lutas pela unificação italiana, que foram
de 1815 a 1870), as estruturas sociais demoraram a ser alteradas,
permanecendo a histórica dicotomia entre Norte e Sul.
O Sul caracterizava-se por ser, sob o ponto de vista sócio-econômico,
agrário e camponês, e culturalmente, tradicionalista e religioso. Nele, o
modelo econômico capitalista em expansão não tinha a mesma força que
adquiriu no Norte do país, pois encontrava fortes resistências culturais e
ideológicas, sobretudo articuladas pela Igreja Católica e pelos
intelectuais vinculados a ela. Gramsci identificou esses intelectuais
comprometidos com a estrutura social "atrasada" do Sul como intelectuais
tradicionais: "Os intelectuais de tipo rural são, em grande parte,
'tradicionais', isto é ligados à massa social do campo e pequeno-burguesa,
de cidades (notadamente de centro menores), ainda não elaborada e posta em
movimento pelo sistema capitalista" (GRAMSCI, 2000, p. 22 e 23). Entre os
mais típicos intelectuais tradicionais estavam os eclesiásticos, que
detinham o monopólio ideológico e cultural, e ligavam "O camponês
meridional [...] ao grande proprietário rural" (GRAMSCI, 2004, p. 426).
Eles não se comprometiam nem com a superação da condição de vida do povo e
nem com a atualização capitalista do padrão civilizatório da nação
emergente; estavam, na verdade, ligados a uma estrutura social pré-
existente - medievalesca - que se encontrava em franca decadência.
Disse Gramsci:
Todo grupo social "essencial", contudo, emergindo na
história a partir da estrutura econômica anterior e como
expressão do desenvolvimento dessa estrutura, encontrou –
pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos
dias – categorias de intelectuais preexistentes, as quais
apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade
histórica que não foi interrompida nem mesmo pelas mais
complicadas e radicais modificações das formas sociais e
políticas. A mais típica dessas categorias de intelectuais
é a dos eclesiásticos, que monopolizaram durante muito
tempo [...] alguns serviços importantes: a ideologia
religiosa, isto é, a filosofia e a ciência da época, com a
escola, a instrução, a moral, a justiça, a beneficência, a
assistência, etc. A categoria dos eclesiásticos pode ser
considerada como a categoria intelectual organicamente
ligada à aristocracia fundiária [...] Mas o monopólio das
superestruturas por parte dos eclesiásticos [...] não foi
exercido sem luta e sem limitações; e nasceram [...]
outras categorias [...] Dado que estas várias categorias
de intelectuais tradicionais sentem com "espírito de
grupo" sua ininterrupta continuidade histórica e sua
"qualificação", eles se põem a si mesmos como autônomos e
independentes do grupo social dominante. (GRAMSCI, 2000,
p. 16 e 17 – grifo nosso)


O Norte, por sua vez, tinha perfil sócio-econômico urbano e
industrial, e ideologicamente nele predominava o liberalismo. Ali a
burguesia encontrou terreno fértil para se desenvolver como classe
dominante economicamente e dirigente sob o ponto de vista ético-político.
Como tal, a burguesia almejou posicionar a Itália no mundo capitalista como
nação, mas para tanto foi preciso criar o espírito nacional articulado pelo
interesse de construir uma nação urbana e industrial. Sem essa nova visão
de mundo, ficaria difícil criar as condições para o desenvolvimento do
capitalismo na península italiana. Tal função foi assumida por "[...]
intelectuais de tipo urbano [que] cresceram junto com a indústria e são
ligados às suas vicissitudes. [...] Na média geral, os intelectuais urbanos
são bastante estandardizados; os altos intelectuais urbanos confundem-se
cada vez mais com o estado-maior industrial propriamente dito." (GRAMSCI,
2000, p. 22). A burguesia contou com tais "intelectuais", que a ela se
vincularam organicamente, para promover às condições de adequar a estrutura
econômica, política, social e cultural da Itália ao capitalismo urbano e
industrial, até mesmo porque,
Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma
função essencial no mundo da produção econômica, cria para
si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de
intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da
própria função, não apenas no campo econômico, mas também
no social e no político (GRAMSCI, 2000, p. 15)


Mormente formado por funcionários de nível médio (engenheiros,
professores, advogados etc.), os intelectuais orgânicos à burguesia
assumiram a tarefa de soldar estrutura e superestrutura, isto é, adequar a
ideologia na Itália às funções da vida prática burguesa, o que levou
Gramsci a assim identificá-los: "Os intelectuais são os 'prepostos' do
grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia
social e do governo político" (GRAMSCI, 2000, p. 21), funções que o
revolucionário comunista da Sardenha identificou nos intelectuais de outras
formações econômicas e sociais também, européias e não européias[9]. Ao
atuarem dessa forma, os intelectuais acabaram colaborando
significativamente no processo de forja do bloco histórico[10] burguês,
articulando estrutura e superestrutura, da "[...] qual os intelectuais são
precisamente os 'funcionários'." (idem, p. 20). Com o conceito de bloco
histórico Gramsci quis se referir a um conjunto de forças sociais coesas,
no qual a estrutura econômica encontra na ideologia reinante plena
correspondência no que se refere aos seus princípios, métodos e
finalidades, procurando fazer subsumir as contradições concretas e
inexoravelmente inerentes ao modo de vida capitalista.
No cenário italiano de construção de um novo bloco histórico a partir
da e para a consolidação da Itália como nação capitalista desenvolvida,
destacaram-se entre os intelectuais orgânicos à burguesia o fascista de
inspiração idealista Giovanni Gentile (1874 a 1944), Benito Mussolini (1883
a 1945) e o liberal Benedetto Croce (1866 a 1952); este que "[...] cumpriu
uma altíssima função 'nacional': separou os intelectuais radicais do Sul
das massas camponesas, levou-os a participarem da cultura nacional e
européia e, através desta cultura, fez com que fossem absorvidos pela
burguesia nacional e, portanto, pelo bloco agrário" (GRAMSCI, 2004, p.
431). Eles estavam, na verdade, comprometidos em garantir que a visão de
mundo do povo e sua decorrente prática social estivessem em sintonia com o
desenvolvimento da nova estrutura econômica da nação italiana. E, assim, ao
mesmo tempo resistiram à penetração de outras visões de mundo e práticas
sociais, como é o caso da comunista, pois ela poderia contaminar a
subjetividade da nação italiana e comprometer todo o processo de
reestruturação da vida social que se desdobrava sob a égide urbano-
industrial burguesa.
Interessante observar que Gramsci constatou que no mundo que emergiu
das formações econômicas e sociais medievais a escola era um dos principais
aparelhos de reprodução da visão de mundo e da sociabilidade burguesa, e
também por ele entendida como responsável pela formação dos intelectuais.
[...] assim como se buscou aprofundar a "intelectualidade"
de cada indivíduo, buscou-se igualmente multiplicar as
especializações e aperfeiçoá-las. Isso resulta das
organizações escolares de graus diversos, até os
organismos que visam a promover a chamada "alta cultura",
em todos os campos da ciência e da técnica. (A escola é o
instrumento para elaborar os intelectuais de diversos
níveis. A complexidade da função intelectual nos vários
Estados pode ser objetivamente medida pela quantidade das
escolas especializadas e pela sua hierarquização: quanto
mais extensa for a "área" escolar e quanto mais numerosos
forem os "graus" "verticais" da escola, tão mais complexo
será o mundo cultural, a civilização, de um determinado
Estado. (GRAMSCI, 2004, p. 19)


Essa constatação de Gramsci é coerente com o entendimento que ele
tinha de que a superestrutura social é uma instância da realidade concreta
que se desenvolve de forma dialeticamente articulada com a estrutura. Por
isso, diz ele que
A diferente distribuição dos diversos tipos de escola
(clássica e profissional) no território "econômico" e as
diferentes aspirações das várias categorias destas camadas
determinam, ou dão forma, à produção dos diferentes ramos
de especialização intelectual. Assim, na Itália, a
burguesia rural produz sobretudo funcionários estatais e
profissionais liberais, enquanto que a burguesia urbana
produz técnicos para a indústria. (idem, p. 20)


Essa perspectiva de análise da situação histórica da Itália e o
compromisso de militante comunista levaram Gramsci a indicar a necessidade
de se forjar outro tipo intelectual orgânico, este vinculado às classes
subalternas: os operários do Norte e os camponeses do Sul[11], na tentativa
de superar a "[...] a ideologia que foi difundida capilarmente pelos
propagandistas da burguesia entre as massas do Norte: o Sul é a bola de
chumbo que impede progressos mais rápidos para o desenvolvimento civil da
Itália" (GRAMSCI, 2004, p. 409) e, assim, ter condições de produzir, a
partir da articulação dos subalternos, uma nova realidade não capitalista
na Itália. E tais intelectuais orgânicos às classes subalternas não
deveriam ser "O velho tipo de intelectual [que] era o elemento organizador
de uma sociedade de base predominantemente camponesa e artesã; [...] [mas]
um novo tipo de intelectual: organizador técnico, o especialista da ciência
aplicada" (GRAMSCI, 2004, p. 424). Ou seja,
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir
na eloqüência, motor exterior e momentâneo dos afetos e
das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como
construtor, organizador, "persuasor permanente", já que
não apenas orador puro – mas superior ao espírito
matemático abstrato; da técnica-trabalho, chega à técnica-
ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual
permanece 'especialista' e não se torna "dirigente"
(especialista + político). (GRAMSCI, 2004, p. 53)


Só assim tais intelectuais poderiam auxiliar na tarefa de colocar
"[...] o proletariado urbano como protagonista moderno da história italiana
e, por conseguinte, da questão meridional" (GRAMSCI, 2004, p. 432), um
papel que os comunistas turinenses tentaram cumprir, em particular, aqueles
vinculados ao L'Ordine Nuovo.
Diferentemente dos intelectuais orgânicos à burguesia, os intelectuais
orgânicos ao proletariado deveriam organizar as classes subalternas para o
processo de luta pela libertação das condições de explorada economicamente
e dirigida ético-politicamente, o que exigiria a construção de um novo
bloco histórico, orientado pelos interesses e pelas necessidades das
classes dominadas e dirigidas, que na Itália encontravam-se divididas
econômica e ideologicamente entre Norte e Sul, um problema amplamente
debatido por Gramsci em Alguns temas sobre a questão meridional (GRAMSCI,
2004). Entre as dificuldades para tanto estava o fato de que a versão do
capitalismo em pleno desenvolvimento na primeira metade do século XX era
mais desenvolvida do que aquela "atrasada" que marcou o final do século
XIX, e que ainda estava presente na Rússia antes de 1917. Tal capitalismo
em sua forma mais desenvolvida foi identificado por Gramsci como o das
"sociedades ocidentais", o qual imprimiu sérios obstáculos ao processo
revolucionário, porque nele as classes subalternas comportavam-se como tal
não apenas porque eram obrigadas pela força dos parelhos jurídicos,
políticos e repressivos do Estado, mas também porque estavam convencidas a
assim agirem de forma subalterna graças à visão de mundo por elas
partilhada, e que foi produzida e difundida pela burguesia, pelos seus
intelectuais orgânicos e os aparelhos privados e públicos que dispunham
para produzir consensos sociais.
Assim, pode-se dizer que a difusão da visão de mundo burguesa contava
com vários aparelhos privados e estatais que dispunham de mecanismos de
força ("sociedade política") e de construção de consensos sociais em torno
da sociabilidade burguesa ("sociedade civil")[12]. De maneira que a
realidade italiana era deveras diferente daquela em que os bolcheviques
produziram a revolução pela "guerra de movimento"[13]. Em grande parte da
Europa, a concretude da realidade capitalista, a dinâmica de seu modo de
produção da vida social, era reproduzida no âmbito subjetivo e
intersubjetivo por diferentes e novos meios de difusão, tornando os
comportamentos, os valores, as idéias, os desejos e as vontades dos
variados grupos sociais consoantes ao modelo econômico capitalista e à
classe que o dominava e dirigia: a burguesia. Em outras palavras, a visão
de mundo burguesa tornava-se a ideologia hegemônica nas relações sociais,
um fato que corrobora a clássica assertiva marxiana:
As idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as
idéias dominantes, ou seja, a classe que é o poder
material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu
poder espiritual dominante. A classe que tem à sua
disposição os meios para a produção material dispõe,
assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção
espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo,
submetidas em média as idéias daqueles a quem faltam os
meios para a produção espiritual. (MARX e ENGELS, 1984, p.
56 – grifos dos autores)


Foi esse novo contexto italiano e o desafio de se forjar um
intelectual orgânico às classes subalternas que fizeram Gramsci formular um
novo tipo de escola, a escola unitária, uma escola que visa a superar as de
tipo clássico e profissional[14], integrando saber e fazer (cf. MARTINS,
2000). Entre os propósitos mais importantes da escola unitária estava o de
formar o "[...] novo homem da classe subalterna, tendo como fim a reforma
intelectual e moral do coletivo social" (MARTINS, 2000, p. 26), ou seja,
intelectuais: indivíduos, grupos e organizações sociais que pudessem
promover as condições de transformação da realidade vigente, por meio do
exercício de três funções básicas: científico-filosóficas, educativo-
culturais e políticas, articulando "[...] novas relações entre trabalho
intelectual e trabalho industrial, não apenas na escola, mas em toda a vida
social" (GRAMSCI, 2004, p. 40).




A TRÍPLICE TAREFA DOS INTELECTUAIS ORGÂNICOS ÀS CLASSES SUBALTERNAS NA
SOCIEDADE DE CLASSE: CIENTÍFICO-FILOSÓFICA, EDUCATIVO-CULTURAL E POLÍTICA
Considerando a classista compreensão gramsciana exposta, é possível dizer
que o intelectual orgânico às classes subalternas é o indivíduo ou a
organização social (sindicato, partido político etc.) que se propõe a
assumir inúmeras tarefas no processo de superação da sociedade de classes,
sobretudo três com perfis dialeticamente articulados: as de cunho
científico-filosófico, as educativo-culturais e as políticas.
Entende-se por tarefas de cunho científico-filosófico aquelas cujo
objetivo é compreender a dinâmica da vida societária em uma determinada
formação econômica e social, em seu processo de gênese e desenvolvimento
histórico e suas contradições, seus limites e suas possibilidades. Além
disso, ao intelectual orgânico às classes subalternas caberá, nesse
processo, formular uma visão de mundo que seja condizente com as
necessidades reais e os interesses históricos dos trabalhadores do campo e
da cidade, disseminando-a na coletividade por diferentes meios. Agindo
assim, ele terá condições de questionar a visão de mundo hegemônica –
burguesa! – e, ao mesmo tempo, apresentar alternativas às classes
subalternas na disputa pela hegemonia, elevando a outro patamar a
compreensão que elas têm da realidade, de forma a possibilitar-lhes a
sensibilização em relação ao processo de exploração econômica, de alienação
social e de subalternidade ético-política a que estão submetidas, com
vistas a mobilizá-las para lutar em busca da superação desta sua condição
histórica vivida sob a égide do modo de vida capitalista.
Em outros termos, os intelectuais orgânicos às classes subalternas
devem, sob o ponto de vista da tarefa científico-filosófica, compreender a
realidade a partir do ponto de vista da classe, formular e disseminar na
coletividade, junto com a classe a que estão vinculados e para ela, uma
visão de mundo que articule os interesses e as necessidades dos subalternos
para superarem a situação de dominação econômica e de submissão ético-
política, social e cultural a que estão sujeitos como classe, forjando
outra cultura[15] e as condições de produção de outro bloco histórico, este
sob a hegemonia do proletariado, o que é indispensável para a superação do
modo de vida capitalista.
Tal tarefa científico-filosófica só se realiza se, e somente se,
estiver articulada à tarefa educativo-cultural. Segundo Gramsci, as
"sociedades ocidentais" desenvolveram-se de tal forma que a totalidade da
vida individual e social dos sujeitos das classes subalternas não é
determinada direta e imediatamente pela posição que ocupam no âmbito das
relações econômicas, e nem apenas e tão somente pela coerção imposta pela
classe dominante economicamente por meio da força dos aparelhos da
"sociedade política", que estão em suas mãos pelo fato de terem se
apropriado do Estado. Para se contrapor a essa compreensão mecanicista da
dinâmica da realidade concreta, que contaminou parte dos pensadores
marxistas, sobretudo os que se inspiraram na II Internacional, Gramsci
formulou sobre esse problema uma resposta dialética, sustentada no conceito
de "Estado ampliado", isto é, "[...] poder-se-ia dizer que Estado =
sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de
coerção..." (GRAMSCI, 2000b, p. 244). Segundo este conceito, há entre a
estrutura econômica, de um lado, e as superestruturas jurídico-políticas e
ideológicas, de outro, uma relação mediatizada, que se desenvolve pela
interposição de processos e de aparelhos sociais chamados de "sociedade
civil", os quais buscam formular, difundir e consolidar visões de mundo no
meio social, visando à adequação das massas à direção moral e intelectual
da classe dominante sob o ponto de vista econômico.
Esse processo desenvolvido por meio da "sociedade civil" guarda
dimensões éticas e educativas. Éticas no sentido de que os aparelhos da
"sociedade civil", na realidade capitalista que se consolidou ao longo do
século XX, visam a adequar, a normatizar a ação individual e coletiva tendo
como referência a visão de mundo da classe dominante sob o ponto de vista
econômico; e educativas porque tal processo depende, também, da difusão e
da assimilação pelo coletivo social da visão de mundo da classe dominante
economicamente, o que é feito pelos processos educacionais, seja por meio
do aparelho escolar[16], seja por meio de outros aparelhos e processos
educacionais não escolares.
É nesse sentido que se pode dizer que a educação em Gramsci é
eminentemente política, ao mesmo tempo em que, para ele, a política, ou
melhor, as relações de poder desenvolvidas nas típicas "sociedades
ocidentais" têm uma dimensão educativa. Isso se deve ao fato de que, para o
revolucionário da Sardenha, os processos de ensino-aprendizagem
desenvolvidos na escola e fora dela estão articulados à disputa pela
hegemonia que se trava entre as classes e, concomitantemente a esse
processo, a política desenvolvida nas "sociedades ocidentais" exige que se
ensine aos indivíduos e grupos sociais a viver de acordo com as
necessidades e desejos da classe que é dominante no âmbito das relações
econômicas. Foi essa visão do cenário político em que viveu que fez Gramsci
afirmar que a "[...] tarefa dos intelectuais é determinar e organizar a
reforma moral e intelectual, isto é, adequar a cultura à função prática
[...]" (GRAMSCI, 1999, p. 126).
Assim sendo, a educação é vista por Gramsci como fundamental à
estratégia de construção do socialismo, pois se a burguesia educa as
classes subalternas para continuarem a viver na condição de subalternidade
econômica, política, social e cultural, é necessário que as classes
subalternas, organicamente articuladas aos seus intelectuais, façam o
embate também no campo ideológico-cultural, educando-se para que possa
forjar uma nova visão de mundo e disseminá-la no meio social, com vistas
potencializar lutas econômicas e políticas que resultem na revolução do
modo de vida social.
Portanto, a função educativo-cultural do intelectual orgânico se
efetivará na medida em que ele integrar-se organicamente ao povo, aos seus
espaços e suas ações, para sentir o que o povo sente[17] e, assim, melhor
compreendê-lo e mobilizá-lo para a ação revolucionária, o que exigirá uma
reforma moral e intelectual. Logo, o intelectual orgânico às classes
subalternas precisa educar-se para, junto com as classes às quais se
vinculou vitalmente, educá-las também, o que exigirá dele a readequação de
seus princípios, valores, ideias, perspectivas, métodos de ação, práticas
sociais e linguagem, para ter condições de construir um "bloco ideológico"
com "força material" (GRAMSCI, 2000b, p. 53) suficiente para produzir e
difundir uma nova visão de mundo até torná-la senso comum[18], em oposição
ao "bloco ideológico" burguês, elevando, neste processo de disputa pela
hegemonia, a consciência popular até o ponto de nela promover uma
"catarsis"[19], condição indispensável para que os subalternos possam
superar a condição de indivíduos submissos e indiferentes e, ao mesmo
tempo, projetar-se na luta econômica e política como classe, adquirindo
cada vez mais consciência de si e do mundo ao seu redor - leia-se:
consciência de classe -, rompendo com a passividade política e empreendendo
novas ações, tendo em vista a transformação radical das relações sociais
capitalistas.
Com efeito, a "catarsis" das classes subalternas - um processo
eminentemente educativo-político - e a decorrente maior projeção delas na
disputa pela hegemonia são indispensáveis à superação da condição de
dominadas e dirigidas para tornarem-se dominantes e dirigentes, mas
caminhando historicamente na construção de uma realidade que não comporta a
própria divisão de classes. Isto é, a responsabilidade dos intelectuais
orgânicos às classes subalternas, nos termos em que Gramsci os concebe, é
objetiva e subjetiva: dedicar-se à construção de um tipo de formação social
igualitária sob o ponto de vista das condições econômicas, sociais,
políticas e culturais, porque o que caracteriza tal realidade é a
liberdade, a auto-criação humana, e não a dominação e direção de um grupo
social sobre os demais, que resultou historicamente na exploração econômica
e na alienação social de indivíduos, grupos e classes sociais.
Considerando que, para Gramsci, "Toda relação de 'hegemonia' é
necessariamente uma relação pedagógica" (GRAMSCI, 1999, p. 399), isto é,
que todo processo de disputa de poder entre as classes nas "sociedades
ocidentais" pressupõe um exercício heurístico, bem como a formulação e
sedimentação de conhecimentos, valores, práticas sociais e concepção de
mundo -, pode-se dizer que a compreensão científico-filosófica e educativo-
cultural gramsciana é profundamente contaminada pela política, ao mesmo
tempo em que a política é vista pelo revolucionário da Sardenha como um
processo que se efetiva não apenas por meio da coerção dos aparelhos de
Estado ("sociedade política"), mas também pela formulação e consolidação de
consensos sociais, produzidos e "cimentados" pelos aparelhos da "sociedade
civil", que guardam, assim, clara função educativa.
Destarte, a compreensão da realidade, a formulação de uma nova visão
de mundo e sua disseminação na coletividade deverá ocorrer, para Gramsci,
por meio da integração, do engajamento orgânico dos intelectuais com as
classes subalternas, para que possam interagir com elas com vistas a
construírem, juntos[20], organizações e desenvolverem ações com força
social suficiente para forjarem um novo bloco histórico em oposição ao
bloco hegemônico burguês. Na disputa pela dominação e direção da formação
econômica e social, que exige a articulação de coerção e consenso na
prática educativa-política, o resultado esperado é que o "bloco histórico"
formado pelas classes subalternas e seus intelectuais conquiste a
hegemonia, mas isso só será atingido se a correlação de forças lhes for
favorável, de forma a produzir as condições para instituírem novas relações
econômicas, sociais, políticas e culturais, isto é, um novo modo de vida
social resultante da reforma moral e intelectual[21], que se manifesta
concretamente em uma nova estrutura sócio-econômica que supere a
capitalista:
Pode haver reforma cultural, ou seja, elevação civil das
camadas mais baixas da sociedade, sem uma anterior reforma
econômica e uma modificação na posição social e no mundo
econômico? É por isso que uma reforma intelectual e moral
não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma
econômica; mais precisamente, o programa de reforma
econômica é exatamente o modo concreto através do qual se
apresenta toda reforma intelectual e moral. (GRAMSCI,
2000b, p. 19)


Desta feita, quando Gramsci se reporta a "intelectuais orgânicos", por
"intelectual" ele está se referindo não a um tipo específico de indivíduo,
aquele que tem formação filosófica ou científica especializada, por
exemplo, pois para ele o intelectual pode ou não ser diplomado. Quando
menciona o termo "intelectual" ele está identificando uma pessoa ou um
grupo delas, uma organização social, por exemplo, que tenha condições e
capacidades para fazer a análise crítica da dinâmica de funcionamento da
sociedade (entender seus princípios, perspectivas, mecanismos de
funcionamento, contradições, limites e possibilidades), produzir uma visão
de mundo e disposição suficiente para se posicionar publicamente orientado
por ela, com vistas a garantir que o funcionamento da coletividade ocorra
segundo os interesses das classes subalternas, o que é feito por meio de um
processo coletivo que tem, entre outras, uma dimensão educativa que envolve
os intelectuais e o povo.
Por sua vez, quando se refere ao termo "orgânico", Gramsci remete-se
ao engajamento vital do intelectual com as classes fundamentais de um
determinado modo de vida social, que no modo de produção capitalista são a
burguesia e o proletariado. Ou seja, para Gramsci o termo "orgânico" refere-
se ao compromisso vital que os intelectuais podem ter com as classes no
processo que travam na disputa pela hegemonia em uma totalidade sócio-
histórica, que no caso de Gramsci foi a da formação econômica e social
italiana da primeira metade do século XX.
Pelo que foi exposto sobre as tarefas científico-filosóficas,
educativo-culturais e políticas dos intelectuais, pode-se inferir que
enquanto os intelectuais orgânicos à classe dominante e dirigente do modo
de vida capitalista são conservadores, porque eles assumem como função
primordial promover a reprodução do modo de vida social ao nível da
subjetividade, da inter-subjetividade e da prática social, os intelectuais
orgânicos às classes subalternas têm outra função, a revolucionária, pois
devem formular, disseminar e consolidar na dinâmica da vida social uma
visão de mundo que seja capaz de se tornar uma força social com potencial
suficiente para promover concretamente a transformação radical do modo de
vida social.
Feitas essas considerações, há ainda que se ressaltar quatro
observações: primeiro que os intelectuais não são uma classe social, mas um
indivíduo ou, no máximo um grupo ou organização social; segunda, os
intelectuais orgânicos não se confundem com a classe a que estão
organicamente vinculados, pois, mesmo a ela articulados organicamente, eles
guardam certa autonomia relativa, e isso porque a sua relação com "[...] o
mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais
fundamentais, mas é 'mediatizada', em diversos graus, por todo o tecido
social, pelo conjunto das superestruturas (GRAMSCI, 2000, p. 20)[22];
terceira observação: um dos papéis destacados dos intelectuais na disputa
pela hegemonia é cooptar outros "intelectuais", sejam os "tradicionais",
sejam os "orgânicos" à outra classe[23], e quando ocorre a cooptação,
Gramsci a identifica com o conceito de "transformismo"[24]; quarta
observação: na realidade atual é possível identificar intelectuais
progressistas engajados politicamente e, ao mesmo tempo, não orientados
pela categoria de classe, isto é, não revolucionários e, neste sentido, não
orgânico às classes subalternas. Progressistas[25] porque seu engajamento
político foca o equacionamento de determinados problemas sociais
originários da dinâmica de funcionamento da sociedade de classe, e não
classistas, não revolucionários, não orgânicos às classes subalternas
porque a atuação política desses intelectuais na vida social não ocorre por
meio da identidade de classe, mas por outras identidades (étnicas, de
gênero, opção sexual etc.), e, portanto, eles não têm como escopo
fundamental a superação do elemento determinante da sociedade capitalista,
que são as classes, como claramente expressa Gramsci tanto em sua produção
teórica quanto em sua vida de militante revolucionário.
A propósito, mais do que formular um conceito classista de
intelectual, Gramsci teve uma vida militante que pode ser identificada como
a de um intelectual orgânico às classes subalternas nos próprios termos em
que ele apresenta esse conceito. E isso porque Gramsci não apenas defendeu
o engajamento político dos intelectuais a partir da categoria de classe,
mas efetivamente viveu isso concretamente por meio da ação sindical e
partidária que teve com o objetivo de produzir uma revolução socialista.




À GUISA DE CONCLUSÃO: MARX E GRAMSCI COMO INTELECTUAIS ORGÂNICOS ÀS CLASSES
SUBALTERNAS
Considerando o posicionamento gramsciano sobre a questão dos intelectuais,
pode-se afirmar que ele é interessante sob três aspectos: primeiro porque
dá seqüência aos esforços da teoria marxiana para entender qual foi o papel
desempenhado pelos intelectuais ao longo da história, seguindo as pistas
deixadas por Marx principalmente em sua famosa XI Tese sobre Feuerbach[26];
segundo porque o ponto de vista gramsciano projeta a discussão sobre os
intelectuais para além da relação entre "trabalho manual" e "trabalho
intelectual", mas sem desconsiderá-la, até mesmo porque esse é um debate
clássico no interior do marxismo; terceiro porque ajuda a compreender
melhor a relação entre os intelectuais e a dinâmica da vida social em uma
formação econômica e social específica, como a presente realidade
brasileira.
Além disso, deve-se dizer, ainda, que a presente leitura da concepção
gramsciana de intelectual instiga a aproximá-la da marxiana, com a qual
mantém muito mais proximidades do que distanciamentos, mesmo que Marx tenha
prioritariamente se dedicado a perscrutar a dinâmica concreta de
funcionamento do modo de produção capitalista no século XIX e Gramsci, por
sua vez, as formas objetivas e subjetivas de sua efetivação pelos
indivíduos, grupos e classes sociais ao longo da primeira metade do século
XX. E isso porque ambos adotam o mesmo referencial ontológico,
epistemológico e axiológico, qual seja a categoria de classe, e
compartilham do objetivo de superar a sociedade capitalista por meio da
revolução socialista.
Assim, no que concerne ao conceito de intelectual, é possível observar
que há muitas semelhanças entre Marx e Gramsci porque, indiscutivelmente,
ambos foram intelectuais orgânicos às classes subalternas - na acepção
gramsciana aqui enunciada do termo "intelectual orgânico" -, compreenderam
a necessidade de o proletariado contar com forças sócio-culturais que
mantêm relativa autonomia em relação a eles no processo de desencadeamento
e efetivação da revolução social almejada, além do que entenderam que as
idéias da classe dominante são as idéias dominantes na formação econômica e
social capitalista.
Contudo, deve-se considerar que Marx não discutiu de forma sistemática
e aprofundada o conceito de intelectual e o seu papel no processo
revolucionário, do que podem resultar conclusões equivocadas sustentando
que a concepção marxiana advoga a separação cabal entre "trabalho manual" e
"trabalho intelectual". Por sua vez, Gramsci produziu, com todas as
limitações do cárcere, interessantes contribuições ao conceito de
intelectual, que para ele não se define pela pelas diferentes posições que
os indivíduos ocupam no mundo produtivo, esteja ele desempenhando um
"trabalho manual" ou outro "não-manual". A propósito disso, diz ele que
O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, é
ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco
às atividades intelectuais, em vez de buscá-lo no conjunto
do sistema de relações no qual estas atividades (e,
portanto, os grupos que as personificam) se encontram, no
conjunto geral das relações sociais. Na verdade, o
operário ou proletário, por exemplo, não se caracteriza
especificamente pelo trabalho manual ou instrumental, mas
por este trabalho em determinadas condições e em
determinadas relações sociais [...] E já se observou que o
empresário, pela sua própria função, deve possuir em certa
medida algumas qualificações de caráter intelectual,
embora sua figura social seja determinada não por elas,
mas pelas relações sociais gerais que caracterizam
efetivamente a posição do empresário na indústria.
(GRAMSCI, 2000, p. 18)


Na verdade, para Gramsci, "[...] todos os homens são intelectuais, mas
nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais" (GRAMSCI,
2000, p. 7) e
Quando se distingue entre intelectuais e não-intelectuais,
faz-se referência, na realidade, tão-somente à imediata
função social da categoria profissional dos intelectuais,
isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o
peso maior da atividade profissional específica, se na
elaboração intelectual ou se no esforço muscular-nervoso.
Isso significa que, se se pode falar de intelectuais, é
impossível falar de não-intelectuais, porque não existem
não intelectuais. [...] Não existe atividade humana da
qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se
pode separar o homo faber do homo sapiens. (GRAMSCI, 2000,
p. 52 e 53)


Eis porque é válido adotar como eixo de interpretação dos textos
gramscianos sobre os intelectuais a função que desempenharam e desempenham
no complexo processo de transformação ou de conservação do modo pelo qual
se desdobra a totalidade da vida social capitalista, fundada na contradição
de classe.
Partindo desse pressuposto marxiano fundamental, a contradição de
classe, Gramsci pôde dar mais clareza ao conceito de intelectual e
identificar as articuladas funções científico-filosóficas, educativo-
culturais e políticas que os intelectuais exerceram ao longo da história e
as que devem exercer hodiernamente os que organicamente se vincularem às
classes subalternas.
Resta, pois, aos que se interessam pela temática presente reler os
textos gramscianos para lhes tirar outras interpretações, já que são
escritos abertos. Àqueles que estão comprometidos com a transformação das
relações sociais globais e, particularmente, com a construção de outra
realidade societária no Brasil, também é importante retomar os escritos
gramscianos, pois neles se encontram interessantes apontamentos que servem
de guia para a ação política, sobretudo os que trabalham com a educação em
uma perspectiva classista.


REFERÊNCIAS
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[1] "[...] ele não era cidadão ateniense e estava estritamente ligado à
casa real da Macedônia. Essa condição de meteco – estrangeiro domiciliado
numa cidadã grega – explica que ele não viesse a se tornar, como Platão, um
pensador político preocupado com os destinos da polis e com as reformas das
instituições. Diante das questões políticas Aristóteles assumirá a atitude
de homem de estudo, que se isola da cidade em pesquisas especulativas,
fazendo da política um objeto de erudição e não uma ocasião para agir."
(PESSANHA, 1991, p. VIII)
[2] "Para a filosofia da práxis o ser não pode ser separado do pensar
[...]; se se faz esta separação, cai-se numa das muitas formas de religião
ou na abstração sem sentido." (GRAMSCI, 1999, p. 175)
[3] Sobre o termo "engajamento", confira-se o artigo denominado Pedagogia
do engajamento: considerações sobre a desumanização e as possibilidades de
sua superação, publicado pela Revista Práxis Educativa, volume 3, número 1,
de janeiro a junho de 2008.
[4] Veja-se, por exemplo, o engajamento político atual de muitos
intelectuais vinculados aos chamados Novos Movimentos Sociais (NMS), que se
mobilizam contra aspectos específicos do processo de exploração, alienação
e exclusão resultante da dinâmica do modo de vida capitalista, mas
relegando ao segundo plano a determinação da base material na vida social e
mesmo o peso da categoria de classe, que é central a marxistas como Gramsci
(Cf. GOHN, 2009 e PICOLOTTO, 2007). Neste sentido, tais intelectuais
engajados aos NMS preocupam-se primeira e primordialmente com a equalização
de alguns problemas inerentes à dinâmica do modo de vida capitalista, mas
não necessariamente com a superação desse tipo de vida social, que se
assenta na contradição de classe.
[5] "A estrutura e as superestruturas formam um 'bloco histórico', isto é,
o conjunto complexo e contraditório das superestruturas é o reflexo do
conjunto das relações sociais de produção." (GRAMSCI, 1999, p. 250)
[6] Na verdade, para Gramsci "Toda ciência é ligada às necessidades, à
vida, à atividade do homem" (GRAMSCI, 1999, p. 174), de modo que, para ele,
"[...] os significados das categorias e dos conceitos variam de acordo com
a situação concreta, de acordo com as disputas eminentemente políticas
travadas entre os diferentes sujeitos sociais de uma determinada realidade.
A rigor, eles não têm uma dimensão "em si mesmo", pois que são sempre
elementos situados concretamente, cujos significados variam de realidade
para realidade, de contexto para contexto, de sociedade para sociedade."
(MARTINS, 2008, p. 285)
[7] Diz Gramsci ao tratar das "[...] glórias nacionais ligadas às invenções
de indivíduos geniais" (GRAMSCI, 2000, p. 143) que "Seria necessário [...]
ressaltar o fato de que uma nova descoberta que se conserva como algo
inerte não é um valor: a 'originalidade' consiste tanto em 'descobrir'
quanto em 'aprofundar', em 'desenvolver' e em 'socializar', isto é, em
transformar em elemento de cultura universal" (idem).
[8] Disse ele em uma carta enviada do cárcere de Milão em 19 de março de
1925: "Estou dominado [...] por essa idéia: que precisaria fazer alguma
coisa für ewig [...] Em resumo, pretenderia, segundo um plano
preestabelecido, ocupar-me intensa e sistemàticamente de algum tema que me
absorvesse e centralizasse minha vida interior. Pensei em quatro temas até
agora, e êste já é um indício de que não consigo me recolher, isto é: 1.
Uma pesquisa sôbre a formação do espírito público na Itália no século
findo, por outras palavras, uma pesquisa sôbre os intelectuais italianos,
suas origens, seus agrupamentos segundo as correntes da cultura, os seus
diferentes modos de pensar, etc., etc. Argumento sugestivo no mais alto
grau, e que eu naturalmente poderei apenas esboçar em linhas muito gerais,
face à absoluta impossibilidade de ter à disposição o imenso volume de
material que seria necessário. (GRAMSCI, 2005, p. 128) Os três outros temas
que compõem o plano de estudos de Gramsci são os seguintes: "2. Um estudo
de lingüística comparada [...] 3. Um estudo sobre o teatro de Pirandello e
sobre a transformação do gosto teatral italiano [...] 4. Um ensaio sobre os
romances de folhetim e o gosto popular na literatura." (GRAMSCI, 2005, p.
129)
[9] Os EUA, neste processo, guardam singularidades, pois ali "[...] deve-se
notar a ausência, em certa medida, dos intelectuais tradicionais [...]
Ocorreu a formação maciça de todas as superestruturas modernas com base na
indústria" (GRAMSCI, 2000, p. 29)
[10] Os intelectuais constituem-se na "[...] camada social encarregada de
gerir a superestrutura do bloco histórico" (PORTELLI, 1977, p. 48)
[11] Diz Gramsci que "O proletariado, para ser capaz de governar como
classe, deve se despojar de todo o resíduo corporativo [...] O que isso
significa? Que não só devem ser superadas as distinções entre as diferentes
profissões, mas que é preciso - para conquistar a confiança e o consenso
dos camponeses e de alguns segmentos semiproletários das cidades – superar
alguns preconceitos e vencer determinados egoísmos que podem subsistir e
subsistirem na classe operária enquanto tal, mesmo quando já desapareceram
de seu seio os particularismos de profissão. O metalúrgico, o marceneiro, o
operário da construção civil, etc., devem não só pensar como proletários e
não mais como metalúrgico, marcineiro e operário da construção civil, etc.,
mas devem dar um passo à frente: devem pensar como operários membros de uma
classe que tende a dirigir os camponeses e os intelectuais, de uma classe
que só pode vencer e construir o socialismo se for ajudada e seguida pela
grande maioria destes estratos sociais. Se não conseguir isso, o proletário
não se torna classe dirigente; e tais estratos, que na Itália representam a
maioria da população, ao continuarem sob a direção burguesa, darão ao
Estado a possibilidade de resistir à ofensiva proletária e de derrotá-la."
(GRAMSCI, 2004, p. 415 e 416)
[12] "[...] o Estado tem e pede o consenso, mas também 'educa' este
consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são
organismos privados deixados à iniciativa particular da classe dirigente."
(GRASMCI, 2000b, p. 119) Ou seja, "[...] poder-se-ia dizer que Estado =
sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de
coerção" (idem, p. 244).

[13] Segundo Gramsci, "No período posterior a 1870, com a expansão
colonial européia, todos estes elementos se modificam, as relações de
organização internas e internacionais do Estado tornam-se mais
complexas e robustas; e a fórmula da 'revolução permanente', própria
de 1848, é elaborada e superada na ciência política com a fórmula da
'hegemonia civil'. Ocorre na arte política o que ocorre na arte da
militar: a guerra de movimento transforma-se cada vez mais em guerra
de posição; e pode-se dizer que um Estado vence uma guerra quando a
prepara de modo minucioso e técnico em tempo de paz. A estrutura
maciça das democracias modernas, seja como organizações estatais, seja
como conjunto de associações na vida civil, constitui-se para a arte
política algo similar às 'trincheiras' e às fortificações permanentes
da frente de combate na guerra de posição: faz com que seja apenas
'parcial' o elemento do movimento que antes constituía 'toda' a
guerra, etc. A questão se apresenta para os Estados modernos, não para
os países atrasados e as colônias, onde ainda vigoram formas que, em
outros lugares, já foram superadas e se tornaram anacrônicas."
(GRAMSCI, 2000b, p. 24 - grifos nossos)

[14] "[...] as escolas de tipo profissional, isto é, preocupadas em
satisfazer interesses práticos imediatos, predominam sobre a escola
formativa, imediatamente desinteressada. O aspecto mais paradoxal reside em
que este novo tipo de escola aparece e é louvado como democrático, quando,
na realidade, não só é destinado a perpetuar as diferenças sociais, como
ainda cristalizá-las em formas chinesas. [E] A escola tradicional era
oligárquica já que se destinava à nova geração de grupos dirigentes,
destinada por sua vez a tornar-se dirigente." (GRAMSCI, 2004, p. 49)

[15] Diz Gramsci que "Criar uma nova cultura não significa apenas fazer
individualmente descobertas 'originais'; significa também, e sobretudo,
difundir criticamente verdades já descobertas, 'socializá-las' por assim
dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de
coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de
homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a
realidade presente é um fato 'filosófico' bem mais importante e 'original'
do que a descoberta, por parte de um 'gênio filosófico', de uma nova
verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais."
(GRAMSCI, 1999, p. 95 e 96)
[16] "A tendência atual é a de abolir qualquer tipo de escola
'desinteressada' (não imediatamente interessada) e 'formativa', ou de
conservar apenas um seu reduzido exemplar, destinado apenas a uma pequena
elite de senhores e de mulheres que não devem pensar em preparar-se para um
futuro profissional, bem como a de difundir cada vez mais as escolas
profissionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura
atividade são predeterminados. A crise terá uma solução que, racionalmente,
deveria seguir esta linha: escola única inicial de cultura geral,
humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da
capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de
escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional,
passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo."
(GRAMSCI, 2004, p. 33 e 34)

[17] "O elemento popular 'sente', mas nem sempre compreende ou sabe; o
elemento intelectual 'sabe', mas nem sempre compreende e, menos ainda,
'sente' [...] O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa
saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado
[...], isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual
(e não um mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo-
nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo,
compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em
determinada situação histórica, bem como relacionando-as
dialeticamente com as leis da história, com uma concepção de mundo
superior, científica e coerentemente elaborada, com o 'saber'; não se
faz política-história sem essa sem esta paixão, isto é, sem essa
conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação." (GRAMSCI, 1999,
p. 221 e 222 - grifo do autor)

[18] Cf. a relação entre filosofia, senso comum e disputa pela hegemonia no
capítulo 5 do livro Marxismo e educação: debates contemporâneos, de
Lombardi e Saviani, publicado em 2005 e intitulado Conhecimento e disputa
pela hegemonia: reflexões em torno do valor ético-político e pedagógico do
senso comum e da filosofia em Gramsci.
[19] "Pode-se empregar a expressão 'catarse" para indicar a passagem do
momento puramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético-
político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na
consciência dos homens. Isto significa, também, a passagem do 'objetivo ao
subjetivo' e da 'necessidade à liberdade'. A estrutura, de força exterior
que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma em meio
de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em
origens de novas iniciativas. A fixação do momento 'catártico' torna-se
assim, parece-me, o ponto de partida de toda filosofia da práxis; o
processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resultam do
desenvolvimento dialético." (GRAMSCI, 1999, p. 314 e 315)
[20] Da noção gramsciana de intelectual orgânico, portanto, não deve
resulta uma compreensão de que tais intelectuais são elementos externos às
classes, com autonomia total em relação a elas. Sua autonomia é sempre
relativa, pois diz respeito à consciência mais clara que têm - porque mais
racional, radical, rigorosa e de conjunto - em relação à dinâmica da
realidade da vida social.
[21] Gramsci, portanto, ao destacar a importância do embate cultural e
ideológico na disputa pela hegemonia, e mesmo ao por em relevo o papel dos
intelectuais, não desvincula a "sociedade civil" da sociedade política e
nem, muito menos a "sociedade civil" da dinâmica que se estabelece na base
econômica da vida social, com querem alguns de seus intérpretes, como é o
caso de "Bobbio, que em seu famoso texto chamado de O conceito de sociedade
civil, desvirtua a concepção dialética que Gramsci tem da relação estrutura-
superestrutura, afirmando ser o revolucionário sardenho um intelectual que
teria "[...] colocado 'o verdadeiro centro, o teatro da história' [...]"
(BOBBIO, 1982: 33) na "[...] sociedade civil, [que] em Gramsci, não
pertence ao momento da estrutura, mas ao da superestrutura." (idem: 32 -
grifos do autor). E mais ainda, diz ele que "Na realidade, ao contrário do
que se crê, Gramsci deriva o seu conceito de sociedade civil não de Marx,
mas declaradamente de Hegel [...]", o que seria suficiente, sob esse ponto
de vista, para Gramsci não ser considerado um materialista histórico e
dialético, mas um idealista, um novo Croce." (MARTINS, 2008, p. 224 e 225)
[22] O intelectual "[...] atua em "mão dupla": age como vendedor
("commesso") do ideário da classe, organiza a cultura para preservar esse
ideário, desenvolve a ciência e a técnica que lhe fornece o poderio
econômico; mas sua função retroage também sobre a classe. Cabe-lhe, também,
a tarefa de fornecer a consciência de sua função no mundo da produção, na
sociedade, no Estado, consciência esta que não é dado de modo automático,
espontâneo no interior da própria classe como um todo. Portanto, funciona
como criador/difusor da concepção de mundo da classe mas, também, como a
própria autocrítica necessária para as correções de percurso." (MAXIMO,
2000, p. 95).
[23] Diz Gramsci: "Formam-se assim, historicamente, categorias
especializadas para o exercício da função de intelectual; formam-se em
conexão com todos os grupos sociais, mas sobretudo em conexão com os grupos
sociais mais importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em
ligação com o grupo social dominante. Uma das características mais
marcantes de todo grupo que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta
pela assimilação e pela conquista 'ideológica' dos intelectuais
tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes
quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar simultaneamente seus
próprios intelectuais orgânicos." (GRAMSCI, 2000, p. 18 e 19)

3 [24] Segundo Saviani, assiste-se no Brasil "transformismos" de toda
ordem, seja o "transformismo molecular", seja o "transformismo de grupos",
afetando os intelectuais das classes subalternas, que "[...] passam
individualmente [ou como] conjuntos inteiros da elite consciente e ativa
das massas [...] ao bloco histórico dominante." (SAVIANI, 2005, p. 23)

[25] Obviamente, há também hodiernamente intelectuais conservadores
engajados politicamente, mas o que o presente texto está procurando
esclarecer são algumas confusões que se cometem na utilização do conceito
gramsciano de intelectual orgânico, recorrentemente utilizado para
identificar a ação de intelectuais progressistas, estejam eles ou não
orientados pela categoria de classe em sua ação política.
[26] "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes
maneiras; mas o que importa é transformá-lo." (MARX, 1986, p. 128 – grifos
do autor)
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