Grande Carnaval de uma “cidade sebastiana”.

July 27, 2017 | Autor: Eduardo Wagner | Categoria: CARNAVAL
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Grande Carnaval de uma “cidade sebastiana”. Eduardo Wagner Nunes CHAGAS1 Resumo Em “A cidade Sebastiana” (2010), Fábio Fonseca de Castro analisa a memória social construída a partir das reverberações do ciclo do látex em Belém, o qual, por meio de uma romantização imaginada tornou-se a “Era da Borracha”, desdobrada e exaltada ao longo do século XX, principalmente, como o lugar da opulência onde Belém figura como referência cultural e social. Esta construção se deu por uma memória dolorosa embasada por uma melancolia coletiva que só é desintegrada a partir de fins da década de 1960 com a incorporação da cidade de Belém como parte da Amazônia à sociedade brasileira. Considerando essa forma peculiar de o belemense construir uma memória social a respeito de um fato, sendo capaz de transformar um “ciclo” em uma “era”, e a partir da perspectiva hermenêutica de Hans Gadamer e Paul Ricouer, a qual toma o mundo como texto e sentido, este trabalho objetiva dialogar com outro mito criado aos moldes da Cidade Sebastiana e da Era da Borracha: a “Belém dos Grandes Carnavais”. Esta Belém, no contexto sociocultural das escolas de samba da cidade, após a década de 1980 e os dois anos iniciais da década de 1990, quando não se realizaram desfiles e concursos oficiais de escolas de samba na cidade, existe em uma memória também dolorosa e melancólica como um lugar de algo que “poderia ter sido” e reverbera ainda hoje no meio social das escolas de samba. Este trabalho pretende evidenciar esse mito traçando um paralelo com a obra de Fábio Fonseca de Castro, a fim de compreender os discursos e práticas socioculturais que ainda mantém a “Belém dos Grandes Carnavais” viva na memória da Belém dos carnavais dos anos 2000. Palavras-Chave Carnaval, Memória, Cultura Popular, Discurso.

A compreensão mais clássica de análise do discurso refere-se àquela que tem por finalidade interpretar e compreender o que foi escrito, onde o texto é todo discurso fixado pela escrita. No entanto, da mesma forma como a linguagem escrita fixa o pensamento em seus suportes próprios (livros, por exemplo) as linguagens não escritas também o fazem e, portanto, criam seus próprios discursos. O discurso é, então, a língua em ação, a linguagem materializada em signos.

abrangente, no entanto, é preciso considerar que todo discurso vem da fala e que alguma 1

Doutorando em Antropologia – PPGCS/UFPA. E-mail: [email protected].

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Para que a prática em análise do discurso seja realizada de modo mais

coisa ocorre quando se fala de algo para alguém. Há uma condição física primeira no ato da fala, enquanto na escrita – interdependência entre leitor/escrita/leitura – a relação, em geral, não se dá pelo diálogo verbalizado, mas sim entre aquele que lê e aquilo que é lido. A expressão “leitura e interpretação de texto”, comum às aulas de Língua Portuguesa nas séries iniciais do ensino fundamental, está intimamente ligada a essa percepção unilateral da análise do discurso e traz em si uma diferenciação clara entre “ler” e “interpretar”. É justamente essa diferenciação que dificulta a compreensão de um texto – o que seria o resultado harmônico da relação entre ambas (leitura e interpretação). Para compreender um texto escrito, portanto, é necessário saber ler – ato de apreender o conteúdo por meio do conhecimento dos códigos que o compõem – e ser capaz de interpretar – determinar ou identificar o significado preciso daquilo que é apresentado na leitura. Assim, o texto – o conjunto de palavras escritas em um livro, folheto, jornal etc. – é algo que precisa ser lido e interpretado para ser compreendido. Há, entretanto, uma consideração importante a ser feita. Quando refletimos desta forma no campo da escrita, a relação tríplice entre leitura, interpretação e compreensão é clara. No entanto, é possível consideramos o texto como algo não unicamente escrito, mas também como uma construção semântica e simbólica sem o uso de palavras, construída sobre um suporte que não é o papel, mas sim as próprias relações sociais e culturais. Obviamente, nesta ocorrência as formas de leitura e de interpretação de seus códigos se configuram por outros processos que, no entanto, também têm por fim a compreensão. Se pensarmos o mundo como texto, ou como conjunto de textos, poderíamos estabelecer uma relação semântica entre os termos da escrita e os das relações sociais. Por exemplo, se uma festividade popular é observada como um texto não escrito e possui características próprias, rituais particulares e singulares, para que seja alcançada a compreensão dos atos, símbolos e comportamentos dessa festividade é necessário “ler” e “interpretar” tais atos, símbolos e comportamentos, ou seja, é preciso conhecer os códigos e determinar seus significados, seus sentidos. Observar o mundo como texto,

cada um dos significados da palavra) é, portanto, um exercício de alfabetização

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o mundo como sentido (e leia-se “sentido” no tocante às acepções de uma palavra, de

simbólica, de aprendizagem da linguagem simbólica específica daquele evento, o desdobramento de uma nova semântica. Tomar o mundo como texto, por essa perspectiva, requer, obviamente, tal qual se dá no processo de aprendizagem de uma língua escrita e seus códigos vocabulares e fonéticos, o conhecimento das unidades que constituem esse texto, o entendimento de como se construíram vocábulos e fonemas para que esse texto seja lido de modo a proporcionar a compreensão. Considerando, porém, que todo texto para ser compreendido precisa tanto da semântica (GEERTZ, 1989; 2009) quanto da sintaxe (LÉVI-STRAUSS, 1995), entendemos que a leitura, portanto, é complementar e necessita de ambas as perspectivas (RICOUER, 1986; 1988). Assim, pode ser preciso conhecer as letras que compõem o alfabeto principal dessa escrita – os indivíduos. As palavras que vogais e consoantes formam – relações de sociabilidade. As frases – relações sociais. Para que seja possível interpretar – conhecer os significados de cada frase ou oração (a frase com ação). E por fim, então, compreender – visualizar o possível sentido da mensagem repassada pelo conjunto simbólico. No campo das ciências sociais, por exemplo, essa forma de entendimento fica mais clara quando perspectivas estruturalistas diferenciam-se de abordagens como as de Weber, o qual dá ênfase à compreensão, não a explicação, embora compreensão e explicação

não

se

excluam,

pois

o

explicar

necessita

do

compreender.

Consequentemente, Geertz também se diferencia de Lévi-Strauss, por exemplo, por tomar um rumo weberiano. No entanto, como sugere Ricouer quanto a Habermas e Gadamer, há o caminho da conciliação, no qual podemos, com cautela, compreender e explicar na medida correta. Em Gadamer, tem-se a pretensão da hermenêutica à universalidade. Faz parte do ser humano. Língua e compreensão são constructos humanos. Compreende a historicidade do processo hermenêutico do homem. Em Habermas, no entanto, tem-se a oposição a Gadamer. Linguagem é um meio de dominação. Quase toda comunicação é assentada em uma ideologia ou em um processo inconsciente. A comunicação é

em interesses. Em Ricouer, tacitamente, entretanto, tem-se a oposição como

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marcada por distorções encobertas pelo subconsciente. Toda comunicação é baseada

complementaridade, bem como a hermenêutica como compreensão filosófica. Compreender no sentido de autocompreensão. O caminho do meio. No entanto, esse modelo de análise mais flexível e maleável – onde se têm perspectivas aparentemente contraditórias ou localizadas em contextos conceituais díspares estabelecendo conexões entre si –, aplicado às ciências sociais, tal como o faz Ricouer buscando complementaridades entre Gadamer e Habermas tem sua gênese ainda em Weber, quando este procurou tornar as ciências sociais críveis no sentido de um reconhecimento validado no hall das ciências físicas, em fins do século XIX e início do XX. Esta legitimidade seria, entretanto, alcançada pelo método. Assim, na continuidade da linha de tempo trilhada pelas ciências sociais, com as mudanças de perspectivas dos anos 1930, a compreensão como característica do ser – ontológica –, o estar no mundo como processo permanente de compreensão do mundo, afasta-se radicalmente do sentido de hermenêutica unicamente como método. E este é o ponto de partida do trabalho de Gadamer, suas bases. A compreensão não mais como método. Como seres mergulhados na linguisticidade, tudo em nós se transforma em linguagem. O homem é um ser de linguagem (o que já se tem, de certa forma, em Aristóteles), principalmente quando ressaltamos a capacidade de simbolização humana. O homem, portanto, é um ser simbólico, cujo processo de compreensão é mediado pela linguagem. Assim, necessitamos exercitar nossa consciência hermenêutica para compreender o mundo de modo amplo. Temos, então, a partir dessa proposição, uma mudança de perspectiva de Weber para Gadamer: da ação como texto além do escrito – Weber – para o mundo como texto além da ação – Gadamer. Em Gadamer, no entanto, um dos aspectos mais significativos de seu modo de abordagem hermenêutica é sua crítica ao objetivismo das ciências humanas, tomando por base a experiência estética como uma experiência de autorrepresentação, de autocompreensão, como argumento. Portanto, o processo hermenêutico é um processo autointerpretativo. O que se tem também no heideggerianismo, refletindo a respeito do sentido abrangente do ser, como o que possibilita acepções diversas, em oposição à

num mero ente com atributos divinos.

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tradição metafísica que, em sua orientação teológica, teria transformado o ser em geral

Estas considerações a respeito de Weber, Ricouer e Gadamer, no entanto, postas desta forma servem unicamente para apresentar a perspectiva de análise a partir da qual o contexto desse artigo observa seu objeto, considerando o mundo como um grande texto simbólico composto pelo conjunto de ações culturais criadas pelo homem, dentre as quais estão as ações simbólicas gestadas no campo da cultura popular. Modos de análise maleáveis, tais como a hermenêutica ricoueriana consideram principalmente que vivemos efetivamente na época do fim das certezas. Uma época ou mundo onde o pesquisador se torna cada vez mais seu próprio objeto de estudo, onde as visões atuais de pesquisa regem-se por perspectivas e não por afirmações. Hoje, a opção metodológica não é mais um caminho que conduz a uma verdade universal, mas sim é a forma particular de organização e apresentação de dados. O método é um ponto de vista que leva em consideração os objetivos que a pesquisa pretende alcançar. São inúmeras letras e palavras, parágrafos e textos que precisam ser cuidadosamente lidos e interpretados para serem compreendidos. Tal como propôs Geertz a respeito da interpretação das culturas, são símbolos conectados em teias. Contextos que costuram sentidos percebidos de acordo com o ângulo pelo qual são observados. Assim, a cultura apresenta-se como algo que precisa ser localizado, observado a partir dos códigos ou nós semânticos que constituem suas teias – seus vocabulários simbólicos. Na tentativa de compreender o contexto histórico e social das escolas de samba de Belém, no conjunto dos nós semânticos que compõem sua teia de significados, nada há que não sejam indagações ou metáforas de meu próprio contexto cultural, o qual eu preciso compreender, seja pelo aprendizado de um novo vocabulário ou pelo método científico unicamente. No entanto, o pano de fundo motivador de minha análise neste artigo é, com toda certeza, um exercício de autocompreensão. A compreensão, nesse contexto, porém, é um momento não metódico que na explicação científica, entretanto, se torna metódico. A compreensão apenas envolve um momento explicativo. É neste sentido que me utilizo de “Cidade Sebastiana” (CASTRO, 2010) para estabelecer um paralelo entre a análise realizada por Castro e o imaginário construído a

curiosidade compreender o significado tão intenso que uma década, representa por uma

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respeito do carnaval da década de 1980 em Belém, pois há muito é objeto de minha

escola de samba em especial – a Arco-Íris –, possui até os dias atuais no contexto sociocultural das escolas de samba em Belém. O discurso construído a respeito dos desfiles da década de 1980 gira em torno de um deslumbramento estético proporcionado pelas escolas do grupo especial à época, o qual, de acordo com o que é reproduzido pelas memórias dos que viveram esta época e até mesmo pelos que dela não participaram, não é mais alcançado pelas escolas atuais, mesmo passados quase vinte anos do último desfile dessa “grandiosa” década. O que é importante considerar antes de tudo é que a desconstrução da realidade a partir da construção de um passado alegórico e de um futuro messiânico não configura um imaginário como uma elaboração falseada de uma memória social, pois é, na realidade, produto do desejo que projeta do passado idealizado, a partir do presente, perspectivas desejadas de um futuro possível. Quero dizer com isso que, embora os símbolos e processos rituais e semânticos pertencentes a eventos tais como os desfiles de escolas de samba possuam uma significação carnavalizada (BAKHTIN, 1987), possuem também uma simbologia de marcação de lugar, de disputa por espaço de expressão, em uma relação agonística (BHABHA, 2003) entre seus símbolos, que ocorre na zona de contato (PRATT, 1999) entre os sistemas díspares de significações que as produziram. Sinteticamente, é disso que trata Castro em seu trabalho. Cidade Sebastiana apresenta Belém como capital periférica da modernidade e a construção de sua efêmera notoriedade, bem como o imaginário remanescente dessa construção. O objetivo do trabalho é compreender as alegorias da modernidade periférica de Belém em seu processo de sedimentação de sentidos, a sensação de modernidade, de moderno, presente na intersubjetividade de certos setores da sociedade amazônica. A origem dessas alegorias estaria no processo “civilizatório” ocorrido em Belém em decorrência do ciclo do látex. De acordo com Castro essa figuração social é construída em meio a sedimentação, e conceituada pela expressão semiotical blues – constituída por códigos estéticos, políticos e de convívio social, em uma forma periférica de participar da melancolia, por isso semiotical blues (semióticas azuis – em inglês o azul sugere melancolia, tristeza, apatia; tal como o cinza em nossa cultura).

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modernidade e que se manteve na memória coletiva a partir de um sentimento de

Pela visão de Castro, a partir do filtro do imaginário popular, o ciclo do látex foi transformado na “Era da Borracha”, o mesmo que percebo ter ocorrido com os desfiles dá década de 1980 em Belém, os quais deram à Belém o título de “Belém dos Grandes Carnavais”, tendo na escola de samba Arco-Íris seu símbolo maior. A Arco-Íris tornou-se o estopim da construção do imaginário da “Belém dos Grandes Carnavais”. O Grêmio Recreativo Guamaense Arco-Íris, embora representasse o bairro do Guamá, um dos mais populosos de Belém, possuía duas sedes: uma em seu bairro – precário em muitos aspectos sociais –, outra na Cidade Nova – conjunto habitacional de classe média, no município de Ananindeua, área metropolitana de Belém. Fundado em 06 de março de 1982, à Tv. Castelo Branco, no Guamá, teve por presidente o atual deputado federal Mário Couto Filho. Foi campeão no ano de 1983, vice-campeão nos anos de 1984 e 1985, e novamente campeão em 1986, 1987 e 1989. A estes desfiles se resume toda a história da agremiação. Qual seria então o motivo de seus únicos seis desfiles permanecerem no imaginário popular carnavalesco como uma referência a um período áureo das escolas de samba em Belém? Primeiramente, é preciso considerar as mudanças ocorridas a partir do primeiro desfile da Arco-Íris. As escolas de samba do grupo especial obrigatoriamente necessitaram elevar o nível estético de seus desfiles, pois a Arco-Íris tornou-se conhecida pela grandiosidade de suas apresentações. Além disso, nomes reconhecidos nacionalmente por pertencerem ao carnaval carioca – referência estética e histórica quando se trata de escolas de samba – foram trazidos para Belém para participarem do carnaval, mesmo que de forma indireta. Dentre estes estão Joaozinho Trinta e Laíla, como carnavalesco e diretor de carnaval, respectivamente, trazidos da Beija-Flor de Nilópolis para a Arco-Íris, e intérpretes como Dominguinho do Estácio (para o Rancho Não Posso Me Amofiná), Neguinho da BeijaFlor (Império de Samba Quem São Eles), Carlinhos de Pilares (Arco-Íris). Estes nomes juntaram-se a artistas e profissionais locais, como os professores e carnavalescos Néder Charone e Bechara Gaby, e a intérpretes tais como Ademar Carneiro e Fernando Gogó de Ouro. carnavalesco nacional – a tal ponto que Belém passa a ser considerada como cidade com o terceiro maior desfile do Brasil. À época, porém, essa aproximação era bem possível,

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Isto gerou uma frágil aproximação entre Belém e Rio de Janeiro – expoente

pois os desfiles dessas duas cidades pouco se diferenciavam no tocante à plástica e estrutura, em inícios dos anos 80. No entanto, tal como se deu com o ciclo do látex, os desfiles da década de 1980 levaram um duro golpe, o que marca o início de sua derrocada épica e do discurso que mantém viva no imaginário popular carnavalesco a “Belém dos Grandes Carnavais”. Por decisão da prefeitura de Belém, não foram realizados concursos oficiais nos anos de 1990 e 1991. O retorno dos desfiles no ano de 1992 foi precário em muitos aspectos e já bem distanciado do que se tinha à época no Rio e Janeiro, que pela criação de uma liga de escolas de samba e a inauguração do sambódromo da Marquês de Sapucaí alcançou um desenvolvimento espetacular rápido e hiperbólico em poucos anos. Esse golpe desferido diretamente no coração da vaidade carnavalesca belemense fez nascer um sentimento melancólico e doloroso, muito semelhante ao descrito por Castro em seu trabalho, pois o fim do período de deslumbramentos mantém em memórias apoteóticas o título de terceiro carnaval do Brasil ainda ecoando no imaginário popular. Algo como a Belém que poderia ser o que não é mais, que teve no carnaval das escolas de samba um segundo semiotical blues, representado numa Belém como capital periférica da modernidade no contexto da cultura popular. Castro, citando Alfred Schutz, diz que ideias sociais formam-se por sedimentação de ideias pré-existentes. Neste sentido, quando pensamos em análise do discurso e na proposta hermenêutica ricoueriana, pensamos também que as falas do presente têm que ser compreendidas pelos ecos advindos do passado. Segundo Castro há duas formas de se contar uma história: pelos olhos do presente; pelos olhos do passado (preferida pelo autor) – forma que nos faz entender o presente. O parágrafo a seguir sintetiza o que Castro pretende em seu trabalho:

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Não obstante, nos anos em que se manteve como centro do mercado mundial do látex, a cidade de Belém constituiu-se uma importante experiência de modernidade. Uma experiência alegórica, desejamos demonstrar, na medida em que vivências e visibilidades do moderno, constituídas no centro do capitalismo mundial, foram trazidas para a capital amazônica como temporalizações e configurações de alteridade que, em Belém, era experimentada indiretamente: como uma experiência de linguagem – como o que aqui chamamos de alegoria. (CASTRO, 2010, p. 25). (Negritos meus).

Destaco as expressões “experiência de modernidade” e “experiência alegórica” por apresentarem, a meu ver, o que realmente ocorreu em Belém durante o ciclo do látex: uma experiência, ou melhor, uma experimentação. Não houve um efetivo acontecimento de modernidade, mas sim ecos consequentes de uma posição momentânea. Da mesma forma entendo o acontecido com as escolas de samba da cidade que, na experimentação de ocupar um lugar de reconhecimento nacional, vislumbraram patamares maiores na escala cultural, aproximando-se do centro maior – o Rio de janeiro – e tornando-se por um tempo referência na Amazônia. Em sua análise, Castro elenca quatro elementos discursivos atuais que justificam ainda a “Era da Borracha”, os quais podem ser aplicados perfeitamente ao contexto que apresento aqui, tanto como uma reprodução do processo ocorrido com o ciclo do látex, ou como uma similaridade genuína generalizada. Segundo Castro os quatro elementos principais que alimenta o imaginário social que transforma o ciclo em Era, são: 1) ideia de um passado fausto; 2) ideia de um passado modernamente civilizado; 3) ideia de uma urbanidade delirante e cosmopolita; 4) ideia de destruição ágil e impiedosa dos signos anteriores. A ideia de um passado fausto, deslumbrante, nobre, é presente largamente no discurso carnavalesco atual que se refere aos desfiles dos 80 e a Arco-Íris. São comuns expressões do tipo “no tempo do Arco-íris”, ou “mas isso era no tempo do Arco-íris, quando o carnaval era bom”. Ressalto que essas construções fazem parte de meu próprio imaginário, pois há muito trabalhando com escolas de samba em Belém, percebo claramente o discurso da “Belém dos Grandes Carnavais” sempre aplicado às falas e memórias dos que fazem parte do contexto sociocultural das escolas de samba. As ideias de um passado modernamente civilizado e de uma urbanidade delirante e cosmopolita são materializadas no pilar discursivo que compara o carnaval dos anos 80 ao do Rio de Janeiro, ou que o diferencia deste hoje – pois já foi um dia tal qual, não é mais. Surge, então, a principal ideia: a de uma destruição ágil e impiedosa dos signos

prefeitura da cidade seu grande algoz. Isto é de tal forma importante para que se compreenda o discurso da “Belém dos Grandes Carnavais” que, sem este momento, a

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anteriores, a qual se materializa nos anos sem desfiles oficiais e que personifica na

década de 1980 torna-se apenas à década de bons desfiles, principalmente se pensamos que a partir dessa interrupção do curso espetacular dos desfiles belemenses, seu ícone maior, a escola de samba Arco-Íris, fecha suas portas e nunca mais volta a desfilar. Essa criação idealizada e gestada no seio do imaginário popular, a meu ver, materializa-se como eco das classes populares reivindicando seu lugar na cultura reconhecida e sua parcela integrante da identidade cultural paraense e brasileira. Não apenas um discurso elaborado pela vaidade, mas compõe um quadro de disputa social que aloca os desfiles das escolas de samba no que podemos chamar de um entre-lugar de disputa. A reverberação desse imaginário nos enredos das décadas seguintes retorna mesmo que suavizada e diluída tanto nas falas de pessoas que fazem parte da comunidade carnavalesca de Belém, quanto nos próprios enredos. Um enredo emblemático e mais representativo para mim nesse sentido foi o apresentado pelo Império de Samba Quem São Eles no ano de 1997, intitulado “Diz-me com quem andas”. A letra do samba-enredo, de autoria dos compositores Francisco Fonseca e Armando Barroso, traduz bem tanto o que trata Castro em seu trabalho, quanto aquilo que percebo como discurso criado no contexto cultural em que estou inserido. De grená e branco eu pintei meu coração pra te cantar nesta canção / Terra do “já teve”, todo mundo mete a mão, ai de tua tradição... Diz, diz pra mim, porque levam tua fauna e flora? / Pro Zoo de Berlim, pro Bonfim, pros terreiros de Nossa Senhora. Diz, meu amor, que não vão te levar, não / Cara-de-pau, leva a tristeza, mas deixa a beleza do samba do carnaval do meu Quenzão. Tua arquitetura do tempo colonial é quase só recordação / Foram-se os coretos e o Largo virou CAN... / Ai de tua tradição... Diz, diz porque, porque levam tua fauna e flora? / Pro Champs-Élysées, pro AZT, Importado a peso de dólar. Diz, meu amor, que não vão te levar, não / Cara de pau, leva a tristeza, mas deixa a beleza do samba do carnaval do meu Quenzão. Tô tombado na avenida da paixão / Sou amor, sou fantasia, sou canção / Tradição que ninguém tira de Belém, sou cinquentão e não tem nada pra ninguém.

As frases em negrito exemplificam na letra do samba algumas percepções muito reproduzidas no discurso legitimador da “Belém dos Grandes Carnavais”. “Terra do já carnaval do Brasil, quanto seu passado áureo da “Era da Borracha”. O estado do Pará é adjetivado como o lugar que “já teve”. E o que “teve” foi levado – seja a modernidade e

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teve” é uma frase emblemática, pois retira da Belém atual tanto o título de terceiro

refinamento do ciclo do látex ou a espetacularidade e reconhecimento do carnaval da década de 1980. É importante perceber ainda que discursos tais como estes apresentados neste artigo são construídos a partir também de articulações políticas e ideológicas, presentes nas relações sociais de cidades que se apresentam como espaço de disputa. É como se fosse necessário aumentar o nível da voz que fala para que sua mensagem soe superior às demais vozes que também falam na cidade. Assim, retomando a hermenêutica da complementaridade de Ricouer, percebo que há muitas vozes e discursos estratificados no convício social urbano. O contexto das escolas de samba belemenses e seus sacralizados desfiles da década de 1980 são apenas um exemplo disto. Importante também salientar a função de autocompreensão assinalada por Ricouer, pois toda indagação parte de algo em nós mesmos, buscando conhecer ou compreender um texto cultural a partir de nossas próprias experiências. No tocante a este artigo, minha vivência tanto como pesquisador quanto como carnavalesco em Belém produziu o interesse de entender, de compreender o porquê e a importância de um discurso a respeito de uma época que eu não vivi. Citando Weber, Geertz (1989) também ressalta uma consideração de extrema importância: todo acontecimento não está a esmo compondo um vocabulário simbólico unicamente para preencher uma lacuna, mas sim por possuir significado e por isso sim acontecer, por causa do significado. Assim, podemos compreender que a necessidade primordial dos valores simbólicos varia de cultura para cultura e de indivíduo para indivíduo e que nada é puramente pelo ser, pois tudo tem um significado. A esse conjunto de ferramentas analíticas pode-se ainda adicionar a articulação entre tempo, memória e narrativa – o reconhecimento do outro – que se tem em Ricouer, quando este dialoga mais estreitamente com Gadamer. Essa articulação traz à baia de análise a reflexão de que todo pensamento é construído sobre ruínas do passado. Portanto, tudo o que se vê de inusitado, diferente, “o dos outros”, apenas possui uma aparência de novidade, da mesma forma que nenhuma religião é ou foi pura, sem

concomitantes. Quando estamos buscando a compreensão de algo, estamos agindo sobre nós mesmos. A primeira pessoa que muda é o “eu”. Todos nós temos um véu que cobre

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influências de outras modalidades ou construções semânticas anteriores ou

nossa relação com o mundo (pertença). Para desvelar este véu precisamos do distanciamento (oposto à pertença) em uma dialética pertença/distanciamento, por meio de uma postura imbuída de humildade (renúncia à arrogância da crítica; assumir a própria condição histórica como pesquisador inserido no contexto de pesquisa). Isto nos proporciona a consciência hermenêutica proposta por Gadamer e reproduzida por Ricouer.

Referências BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. CASTRO, Fábio Fonseca de. A cidade Sebastiana. Era da borracha, memória e melancolia numa capital periférica da modernidade. Belém: Edições do Autor, 2010. GADAMER, Hans-George. Verdade e método. Trad. Flávio Paulo Meurer. 4. ed. Petópolis: Vozes, 2002. . Verdade e método II: complementos e índice. 2. ed. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2004. . O problema da consciência histórica. Org. Pierre Fruchon. Trad. Paulo César Duque Estrada. 3. ed. Rio de janeiro: editora FGV, 2006.

GEERTZ, Clifford James. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. . O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Trad. Vera Mello Joscelyne. 7. ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2009. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

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PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Trad. Jézzio Hernani Bonfim Gutierre. São Paulo: EDUSC, 1999.

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