Grandes projetos urbanos, parcerias público-privadas e usos corporativos do território da área central de São Paulo

Share Embed


Descrição do Produto

Grandes projetos urbanos, parcerias público-privadas e usos corporativos do território da área central de São Paulo

Eduardo Augusto Wellendorf Sombini Doutorando em Geografia Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo, Brasil Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) [email protected]

Preparado para apresentação no Congresso de 2016 da Associação de Estudos LatinoAmericanos, Nova York, 27 a 30 de maio de 2016

Resumo A realização de grandes projetos urbanos (GPUs) por meio de parcerias público-privadas (PPPs) tem se constituído, desde a década de 1990, em um dos principais vetores de redefinição das concepções e práticas do planejamento territorial de São Paulo. Acompanhando a agenda urbana hegemônica difundida na escala global, a cidade vem internalizando seletivamente modelos de intervenção urbana pautados por princípios neoliberais. Nesse contexto, novos instrumentos urbanísticos vêm sendo propostos – como as operações urbanas consorciadas e a concessão urbanística – com o intuito de liberalizar a atuação dos promotores imobiliários em áreas centrais estratégicas ao circuito imobiliário. Com a aprovação das normas federais que regulamentam as PPPs no Brasil (como a lei 11.079/2004) e os crescentes estímulos governamentais à aplicação desse modelo, as PPPs se tornaram o mecanismo de financiamento por excelência de GPUs em diversas metrópoles brasileiras. Esta comunicação discute os vínculos crescentes entre GPUs e PPPs em São Paulo por meio da análise de dois projetos formulados para a área central da cidade nos últimos anos – o projeto Nova Luz e a PPP de Habitação de Interesse Social da Agência Casa Paulista. Esses GPUs incidem em áreas de caráter popular do centro histórico e bairros adjacentes, buscando promover a revalorização de parcelas da área central de São Paulo. Ao se sustentar em lógicas de rentabilidade financeira e apropriação privada de mais valias urbanas, esses projetos têm como objetivo deliberado a atração de atividades econômicas e moradores de maior poder aquisitivo, apontando para a possível expulsão de grupos de menor renda. Palavras-chave: grandes projetos urbanos, parcerias público-privadas, revalorização de áreas centrais, São Paulo.

Introdução Em setembro de 2011, a Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo apresentou ao Conselho Gestor do Programa Estadual de Parcerias Público-Privadas uma proposta preliminar de PPP relativa à construção de 50 mil unidades habitacionais nas regiões metropolitanas do estado, incluindo 10 mil na área central da cidade de São Paulo, totalizando R$ 7,3 bilhões em investimentos privados1. O lançamento, em 2009, do programa federal Minha Casa Minha Vida havia permitido uma forte retomada dos investimentos públicos e privados no setor habitacional por meio, sobretudo, da concessão de subsídios públicos à produção em larga escala por promotores privados2. No âmbito do novo contexto nacional de financiamento à produção habitacional, o governo estadual criou a Agência Paulista de Habitação de Interesse Social (Casa Paulista), no mesmo mês de 20113. A criação da agência era parte central de uma estratégia de reorientação da política habitacional do estado: o governo deveria se afastar da produção direta de unidades habitacionais para se tornar articulador e regulador do setor, permitindo que o mercado se tornasse a principal arena de provisão de habitação de interesse social. Para tanto, a Casa Paulista se tornou responsável pela operação do Fundo Paulista de Habitação de Interesse Social e do Fundo Garantidor Habitacional, com o intuito de possibilitar a mobilização de recursos públicos para novas linhas de atuação pautadas em parcerias – com os governos municipais e federal, empresas privadas, associações e cooperativas habitacionais, entre outros agentes4. As ações de planejamento e implementação da política habitacional passariam, como consequência, a ser realizadas gradualmente por empresas privadas e organizações sociais, em um claro alinhamento às concepções e práticas filiadas ao ideário neoliberal. Cabe questionar, com efeito, a validade do termo política habitacional nesse contexto, já que o mecanismo das parcerias tende a promover uma profunda fragmentação, obstruindo uma articulação de fato entre planos,

1

SÃO PAULO (Estado). Ata da 41ª Reunião Ordinária do Conselho Gestor do Programa Estadual de Parcerias PúblicoPrivadas. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 27 dez. 2011.

2

Há uma ampla bibliografia crítica aos fundamentos e às implicações territoriais do Programa Minha Casa Minha Vida. Entre outros, cf. Amore, Shimbo e Rufino (2015), Cardoso (2013) e Fix (2011).

3

SÃO PAULO (Estado). Decreto n. 57.370, de 27 de setembro de 2011. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 28 set. 2011.

4

GOVERNO cria a Agência Casa Paulista. Portal do Governo do Estado de São Paulo, 27 set. 2011. Disponível em: bit.ly/1YYcGUA. Acesso em: 10 abr. 2016. 1

programas e projetos distintos. O discurso do governador Geraldo Alckmin (PSDB) na cerimônia de criação da Agência demonstra o sentido da proposta: Então, a pergunta é: O Estado deve ser construtor? Deve fazer prédio? Óbvio que não! O setor privado faz muito mais depressa, de forma muito mais eficiente, muito mais rápida. O Estado não deve fazer produção, ele deve fazer fomento [...] de unidade habitacional. Essa é a grande mudança. Tem sentido você pegar o recurso do Tesouro e financiar uma casa ou apartamento e receber de volta o dinheiro do Tesouro em 30 anos, com uma inadimplência lá no teto? Óbvio que não! O que o Estado tem que fazer é pôr o subsídio para a família de baixa renda, [...] através do Fundo Paulista de Habitação de Interesse Social; e do Fundo Garantidor, para poder vir o crédito5.

Os discursos que buscam legitimar as PPPs como instrumentos inovadores de gestão pública no Brasil mobilizam recorrentemente a ideia de que o Estado é lento e ineficiente, atualizando as representações empregadas para justificar as privatizações de empresas públicas dos anos 1990. No caso específico da política habitacional, o mercado é considerado a esfera mais eficiente de resolução dos problemas da habitação de interesse social, já que se supõe que, com a criação de um ambiente de negócios favorável, as empresas seriam capazes de obter terrenos, aprovar projetos, produzir as habitações e comercializá-las de forma mais rápida e eficiente que o Estado. Ao mesmo tempo, os discursos filiados à matriz neoliberal insistem que o Estado deve continuar atuando, por meio de subsídios públicos e oferecimento de garantias financeiras, já que os beneficiários não possuem renda suficiente para arcar com os custos da habitação e as empresas não assumirão os riscos inerentes a esse tipo específico de produção. Nessa “fórmula mágica” (FIX, 2003), o Estado permanece, portanto, como suporte essencial da expansão do mercado por meio de PPPs, ao mesmo tempo em que enfraquece os instrumentos que dispõe para regular efetivamente a ação das empresas privadas. Há pouco de novo, porém, nesse contexto. Diversos trabalhos no campo dos Estudos Urbanos e Regionais tem se debruçado, desde a década de 1990, sobre o avanço dos princípios neoliberais no campo do planejamento territorial, a partir de diversas abordagens (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000). Não caberia, aqui, apresentar o debate internacional sobre a ascensão da agenda urbana neoliberal. Na literatura brasileira, é possível citar alguns trabalhos importantes que se preocupam com os processos de desconstituição do planejamento territorial e de aceleração da fragmentação do

5

ALCKMIN, Geraldo. Governador discursa durante criação da Agência Casa Paulista. Portal do Governo do Estado de São Paulo, 27 set. 2011. Disponível em: bit.ly/1UmNg3T. Acesso em: 10 abr. 2016. 2

território brasileiro (VAINER, 2007), a circulação internacional de modelos urbanos conservadores, orientados pela ampliação dos atributos de competitividade das metrópoles (NOVAIS, 2010; SÁNCHEZ, 2010) ou a ação das grandes empresas globais de consultoria na redefinição da regulação e dos usos do território brasileiro (SILVA, 2009). As PPPs, que já se apresentavam como a fórmula por excelência de continuidade da agenda neoliberal em diversos países periféricos (MIRAFTAB, 2004), ganhou forte impulso no Brasil, com a aprovação de um quadro jurídico e institucional sofisticado a partir dos anos 2000 (MANZONI NETO, 2007). Foram aprovadas normas jurídicas regulamentando as interações entre Estado e mercado na formulação e execução de projetos de infraestrutura de todo tipo, bem como foram criados órgãos técnicos e conselhos gestores para impulsionar os investimentos por meio de PPPs. Dessa forma, o cenário recente aponta para um novo impulso de modernização seletiva do território nacional e das metrópoles brasileiras, ampliando o alcance dos mecanismos de planejamento pautados na dinamização dos circuitos capitalistas no país. Presente em várias políticas setoriais do Estado brasileiro, as PPPs encontraram terreno fértil no campo da política urbana, se associando aos históricos expedientes da urbanização corporativa do país (SANTOS, 2009). Para o autor, se a necessidade de modificar a cidade, reconstruindo o espaço urbano, faz-se sentir de forma repetida e a fracos intervalos, o erário público é chamado a ter despesas sempre maiores, toda vez que a cidade se torna inviável para o grande capital. Por conseguinte, há ciclos sucessivos de inviabilização e reviabilização da cidade, aumentando a superfície urbana, útil aos grandes capitais, estendendo a área urbana de forma específica, de maneira a permitir as condições exigidas pelas grandes firmas em matéria de espaço geográfico (idem, p. 46).

Se o direcionamento da ação estatal ao equacionamento das demandas territoriais das empresas hegemônicas está estabelecido há décadas, o período recente vem sendo marcado por um protagonismo inédito dos interesses privados na condução da política urbana das metrópoles brasileiras, em geral, e de São Paulo, em particular. Os grandes projetos urbanos se tornaram a ferramenta privilegiada de intervenção em áreas centrais estratégicas ao circuito imobiliário, ao mesmo tempo em que as parcerias público-privadas emergiram como mecanismo jurídico e financeiro de viabilização dessas intervenções urbanas. Os nexos estabelecidos nesse contexto portam, desse modo, novas formas de regulação e uso do território que merecem ser analisados, tanto pelas intencionalidades que vem sendo difundidas por meio dessas propostas de intervenção como pelas 3

implicações potenciais na redefinição dos usos do território das metrópoles brasileiras, que tendem a se tornar crescentemente corporativos. Partindo desse debate, esta comunicação busca apresentar desdobramentos recentes da pesquisa de mestrado do autor (SOMBINI, 2013), discutindo os vínculos crescentes entre grandes projetos urbanos e parcerias público-privadas em São Paulo. Apresentaremos reflexões a partir da análise de duas propostas de intervenção formuladas para a área central de São Paulo nos últimos anos – a já citada PPP de Habitação de Interesse Social da Agência Casa Paulista e o projeto Nova Luz. Esses GPUs incidem em áreas de caráter popular do centro histórico e bairros adjacentes, buscando promover a revalorização de parcelas da área central de São Paulo. Ao se sustentar em lógicas de rentabilidade financeira e apropriação privada de mais valias urbanas, esses projetos têm como objetivo deliberado a atração de atividades econômicas e moradores de maior poder aquisitivo, apontando para a possível expulsão de grupos de menor renda.

Conexões entre dois grandes projetos urbanos na área central de São Paulo Prosseguindo na proposta de direcionar a produção habitacional do Estado por meio de parcerias público-privadas, a Agência Casa Paulista priorizou o projeto da área central de São Paulo, prevendo inicialmente a oferta de 10 mil moradias, distribuídas em 6 setores de intervenção (figura 1) nos distritos centrais da cidade e destinadas a famílias com renda bruta mensal entre 1 e 10 salários mínimos. Na proposta preliminar da PPP, 50% das unidades deveriam ser ofertadas à faixa de renda entre 1 a 3 salários mínimos, 40% à faixa de renda entre 3 a 5 salários mínimos e os 10% restantes à faixa de renda 5 a 10 salários mínimos. A distribuição das faixas de renda dos beneficiários evidencia um dos objetivos do projeto: não se trata de um programa habitacional dedicado ao enfrentamento do enorme déficit habitacional de São Paulo, calculado pela Fundação João Pinheiro, em 2011, em 507.779 domicílios na região metropolitana, correspondendo a 7,7% do total. 78% do déficit habitacional era composto por famílias com renda mensal de até 3 salários mínimos, compreendendo aquelas que não possuem renda; 13,4% por famílias com renda mensal de 3 a 5 salários mínimos; e 7,4% por famílias com renda mensal de 5 a 10 salários mínimos. A PPP da Habitação, além de não acompanhar as demandas efetivas por faixa de renda do déficit habitacional de São Paulo, não contemplou desde o início as famílias sem renda ou 4

com rendimento mensal inferior a 1 salário mínimo que, sobretudo nas áreas empobrecidas da cidade, são extremamente numerosas. Esse descolamento em relação às necessidades habitacionais existentes se acentuou ainda mais com a elaboração do projeto da PPP, realizado por empresas interessadas na concessão.

Figura 1. Localização dos setores de intervenção da PPP de Habitação. Fonte: Agência Casa Paulista.

Em abril de 2012, foi publicado o edital de chamamento público para a modelagem da PPP. Nesse formato, as empresas interessadas se cadastram junto ao Estado e, posteriormente, desenvolvem e entregam os estudos técnicos que fundamentam a licitação futura do projeto. A PPP da Habitação demandava a elaboração, para cada setor de intervenção, de plano urbanístico, análise de viabilidade econômico-financeira e modelagem jurídico-institucional, entre outros estudos, o que requer a contratação, por parte das empresas interessadas, de consultorias especializadas e equipes técnicas para cumprir os requisitos e prazos6. Previsto nas normas que regulamentam as PPPs no Brasil, esse mecanismo permite que o Estado transfira a formulação dos estudos técnicos e propostas de intervenção às empresas diretamente interessadas na execução das obras, que são remuneradas caso os documentos entregues sejam escolhidos para fundamentar a modelagem das parcerias. Isto significa

6

A equipe da proposta selecionada na concorrência, desenvolvida em 4 meses, foi composta por 73 profissionais (OLMOS, Marli. Uma São Paulo para conviver. Valor Econômico, 10 mai. 2013). 5

que as mesmas empresas que elaboram os diagnósticos e a modelagem da PPP podem vir a ser responsáveis pela implementação dos projetos. No chamamento público da PPP da Habitação, 32 empresas se qualificaram para desenvolver os estudos técnicos, a maior parte grandes construtoras e incorporadoras do país, e 5 entregaram, em outubro de 2012, os produtos demandados pelo edital. Entre as propostas apresentadas por 4 grandes empresas do circuito imobiliário (Bairro Novo Empreendimentos Imobiliários SA e Arquiteto Pedro Taddei e Associados Ltda; Brookfield Empreendimentos Econômicos SA e Concremat Engenharia e Tecnologia SA; CITADD Empreendimentos Ltda; e Consórcio Reviva São Paulo – Impacto Gouvêa Construtora e Incorporadora Ltda e Montagens e Projetos Especiais SA), foram escolhidos para estabelecer as regras da PPP os estudos realizados pelo Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (URBEM), fundado 1 ano antes. A empresa ganhou notoriedade pelo projeto de intervenção apresentado, que tinha o objetivo declarado de “promover o repovoamento, a regeneração e a revitalização da Área Central da cidade de S. Paulo de forma ordenada e condizente com a aspiração maior de todos: tornar a cidade um modelo de metrópole de influência global”7. Philip Yang, proprietário da empresa e sócio da Petra Energia, a maior concessionária de blocos de petróleo e gás em terra do país, apresentou os estudos formulados para a PPP da Habitação como uma “grande contribuição pública”8 à São Paulo – e encontrou respaldo na mídia, que o retratou a partir do ângulo do “regente da sociedade civil” 9 na transformação da área central paulistana; sua ONG, como o URBEM foi recorrentemente chamado, seria uma organização socialmente engajada, independentemente de eventuais ganhos econômicos futuros10, apesar de Yang ter admitido que avaliava participar da licitação do projeto11.

7

URBEM. Estudos técnicos e modelagem de projetos de Parceria Público-Privada (PPP) de habitação de interesse social (setor A) para a Secretaria de Estado de Habitação e sua Agência Paulista de Habitação Social - Casa Paulista. São Paulo: 15 out. 2012.

8

CARIELLO, Rafael. Urbanista acidental: as obsessões e os dilemas de Philip Yang. Piauí, n. 84, set. 2013.

9

“Yang utiliza parte dos lucros para sustentar o Urbem e o sonho de facilitar a participação da sociedade civil na reorganização e humanização das áreas urbanas paulistanas” (OLMOS, Marli. Uma São Paulo para conviver. Valor Econômico, 10 mai. 2013).

10

Idem.

11

CARIELLO, Rafael. Urbanista acidental: as obsessões e os dilemas de Philip Yang. Piauí, n. 84, set. 2013. 6

Mobilizando princípios consagrados de desenho urbano – como quadras abertas, usos mistos, espaços públicos generosos, valorização dos pedestres e articulação com o sistema de transporte público – a proposta comandada por Yang buscava, em realidade, comprovar que “é possível ter lucro com habitação popular sem deixar de cuidar do legado que fica para a cidade”12. O empresário, preocupado com o “hiato entre o pensamento urbanístico que temos no Brasil, de um lado, e o poder econômico dessa cidade, de outro” e inconformado com a “feiura” dos bairros centrais paulistanos13, insistia na superação do pretenso atraso urbanístico de São Paulo por meio da concretização de parcerias do Estado com empresas e organizações da sociedade civil: a fórmula estaria nas metrópoles dos países centrais, que “conseguiram avançar com novas vocações no campo da tecnologia e da economia criativa graças a uma combinação poderosa de ação do governo, do mercado e da sociedade civil. Quem sabe, nosso atraso permita que a cidade dê um salto de sapo"14. Na avaliação das propostas apresentadas no chamamento, o URBEM teve 58% dos estudos aproveitados para a modelagem final da PPP, que trouxe mudanças importantes em relação ao chamamento inicial. O valor do investimento total alcançou R$ 4,6 bilhões, sendo R$ 2,6 bilhões da iniciativa privada, R$ 1,6 bilhão do governo do Estado e R$ 404 milhões da Prefeitura, e a modelagem previu taxa interna de retorno entre 8% e 10% e prazo de concessão de 20 anos15. Houve o aumento de 10 mil para 20.221 unidades habitacionais ofertadas, alteração nas faixas de renda dos beneficiários e um deslocamento gradual na narrativa dominante a respeito da PPP, que progressivamente deixou de mobilizar a retórica do programa habitacional para ressaltar as possibilidades de “recuperação” e “dinamização” da área central de São Paulo. Nesse sentido, os discursos a respeito da PPP da Habitação como elemento desencadeador de um processo mais amplo de revalorização da área central da cidade passaram a ser mais frequentes. O então secretário estadual de habitação, Silvio Torres, afirmou, por exemplo, que a PPP tinha como intenção “induzir a ocupação do centro e fazer com que outras empresas invistam no entorno dos imóveis que serão construídos ou reformados”16. Em outra entrevista, declarou que a PPP buscava 12

OLMOS, Marli. Uma São Paulo para conviver. Valor Econômico, 10 mai. 2013.

13

CARIELLO, Rafael. Urbanista acidental: as obsessões e os dilemas de Philip Yang. Piauí, n. 84, set. 2013.

14

OLMOS, Marli. Uma São Paulo para conviver. Valor Econômico, 10 mai. 2013.

15

DIAS, Guilherme. Edital de PPP para revitalizar centro de SP sai em maio. Valor Econômico, 28 fev. 2013.

16

DIAS, Guilherme. PPP de habitação propõe reocupação mista do centro de SP. Valor Econômico, 05 abr. 2013. 7

“criar condições para que outras 30 mil unidades, que se encontram subutilizadas, recebam intervenção da iniciativa privada naturalmente”17. Esses discursos retomam ideias que vinham sendo criticadas desde a década de 1990, quando surgiram os contornos de um projeto articulado de revalorização do centro de São Paulo18. A primeira diz respeito à necessidade de “reocupação” da área central, demonstrando que se parte da compreensão de que a área central não é ocupada – quando, na realidade, o centro de São Paulo apresenta intenso dinamismo. Como demonstrou Pedro Arantes (2008), essa construção retórica busca legitimar projetos com o objetivo de atrair outros ocupantes – nesse caso, moradores e usuários de maior poder aquisitivo. A segunda faz menção ao desencadeamento de processos “naturais” de transformação do meio construído e dos conteúdos sociais dos bairros centrais por meio de investimentos públicos catalisadores de mudanças no entorno. O objetivo, que se associa ao propósito de promover a revalorização do centro, é criar um círculo virtuoso de investimentos privados na área: a PPP da Habitação teria como fim último, portanto, não a oferta de unidades habitacionais ou a intervenção urbanística em setores específicos, mas a reinserção da área central no circuito imobiliário hegemônico, isto é, a ativação de frentes de expansão imobiliária de padrão mais elevado. Esse tipo de alteração é esperado, considerando que as estratégias de execução das PPPs são formuladas por empresas interessadas nos projetos e orientadas, portanto, pelo retorno financeiro das intervenções. Para “lucrar com habitação de interesse social”, é preciso alinhar as diretrizes da PPP com as expectativas de rentabilidade dos potenciais investidores privados. Para haver interesse do “parceiro privado”, a taxa de retorno dos investimentos deve ser atrativa, comparativamente a outras possibilidades de aplicação do capital, e o Estado deve minimizar os riscos inerentes aos grandes projetos urbanos. No caso da PPP da Habitação, duas questões eram centrais: a definição do “públicoalvo”, isto é, as faixas de renda dos beneficiários, e a garantia de disponibilidade de terrenos para a construção dos empreendimentos. A modelagem final da PPP, colocada em consulta pública em maio de 2013, buscava encaminhar essas questões para assegurar o interesse privado. Em relação às faixas de renda, houve um aumento considerável do rendimento máximo dos futuros beneficiários, alcançando o limite de 16 salários mínimos. A faixa de renda de 1 a 3 salários

17

DIAS, Guilherme. SP prevê PPPs para recuperar imóveis subutilizados. Valor Econômico, 21 jun. 2012.

18

Para uma reconstituição desse período, cf. Frúgoli Jr (2006) e Kara-José (2007). 8

mínimos, que soma quase 80% do déficit habitacional, seria contemplada com 32% do total de unidades habitacionais produzidas, ainda que o número absoluto tenha aumentado em relação à proposta inicial. Os beneficiários com renda mensal de 5 a 16 salários mínimos, por sua vez, acessariam mais de 35% das unidades habitacionais, invertendo completamente as prioridades de atendimento habitacional. Dois argumentos foram empregados para justificar a distribuição da renda dos beneficiários: em primeiro lugar, de que não haveria interesse privado ou de que os subsídios públicos seriam proibitivos caso a PPP fosse direcionada aos estratos mais baixos de renda; em segunda lugar, de que o objetivo do projeto não era “criar guetos”, mas, ao contrário, promover a mistura e a diversidade sociais da área central de São Paulo. Para um consultor da Secretaria de Habitação, as moradias destinadas a faixas de renda não prioritárias do ponto de vista do déficit habitacional financiariam as unidades ofertadas aos estratos de renda mais baixa, permitindo a diminuição das contraprestações do Estado à concessionária da PPP e, como consequência, uma oferta maior de unidades habitacionais aos mais pobres19. O direcionamento proposital dos objetivos da PPP aos grupos mais privilegiados foi apresentado em diversas ocasiões como uma necessidade para o equacionamento financeiro do projeto e não como uma decisão política deliberada. Pouco se questionou, por outro lado, a utilização de boa parte dos terrenos localizados em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) – um estoque limitado, instituído para permitir a produção habitacional aos grupos de baixa renda, que seria consumido por unidades habitacionais voltadas a grupos que têm condições de acessar a moradia diretamente por meio do mercado. A noção de mistura social, que vem compondo diversas narrativas que buscam justificar grandes projetos urbanos em áreas centrais no mundo e no Brasil20, também foi frequentemente utilizada para legitimar o desenho da PPP. A atração de moradores de renda mais elevada que trabalham no centro e moram em outras áreas da cidade – tal como colocado pela proposta da PPP –, tinha supostamente

19

CARIELLO, Rafael. Urbanista acidental: as obsessões e os dilemas de Philip Yang. Piauí, n. 84, set. 2013..

20

Sobre o tema, cf. Bridge, Butler e Lees (2012) e Monteiro (2015). 9

o objetivo de “garantir uma diversidade social e funcional equilibrada” 21. De acordo com o documento elaborado pelo URBEM22, Como em qualquer lugar e qualquer tempo, as intervenções a serem desenvolvidas deverão evitar aquilo que muito frequentemente ocorre na promoção de habitação social: a segregação urbana e a formação de “guetos” estigmatizados como lugares da precariedade ambiental, da pobreza econômica e da violência social. Lugares expressos pelos adensados conjuntos habitacionais nos bairros periféricos ou por edifícios com grande número de famílias, dedicados exclusivamente à habitação como exemplo do recém demolido conjunto São Vito no Parque D. Pedro. Os projetos deverão, nesse sentido, começar por superar erros recorrentes.

Se o objetivo final da PPP era contribuir para a reincorporação da área ao circuito imobiliário hegemônico, nada mais coerente que promover a atração de moradores e usuários de maior poder aquisitivo. A proposta endossa, portanto, os interesses dos grandes promotores imobiliários, que há décadas se contrapõem à ideia de políticas de caráter socialmente progressista na área central. Essa posição pode ser encontrada, por exemplo, na declaração de Claudio Bernardes, ex-presidente do sindicato patronal de habitação de São Paulo (SECOVI): “minha preocupação é usar o centro para resolver moradia de baixa renda. A revitalização da região deve ocorrer com espectro amplo, com diversas características, rendas e inclusão do lazer”23. Não caberia, nessa perspectiva, um programa que buscasse enfrentar os problemas habitacionais efetivos da população da área central: o interesse é promover a “revitalização” da área, por meio da atração de moradores e usuários de perfil socioeconômico mais elevado. Tratando da matriz discursiva da mistura e da diversidade sociais, Neil Smith (2006, p. 82 – 83) estabelece de forma precisa a intencionalidade dessas propostas: O equilíbrio sociológico parece uma coisa boa – quem poderia ser contra? – até que se examinem quais são os bairros escolhidos para a “regeneração”, e se torne claro que o projeto implica em uma acentuada colonização desses locais pelas classes médias e altas. Para os políticos, urbanistas e economistas, o equilíbrio sociológico de Brixton, em Londres, significa fazer regressar ao bairro as classes médias brancas. Os arautos do equilíbrio sociológico raramente são a favor de um reequilíbrio dos bairros brancos pela chegada de africanos, caribenhos ou asiáticos. Não é a população em geral que deve ser “reconduzida ao centro” – certamente não se trata de mineiros gauleses, de 21

URBEM. Estudos técnicos e modelagem de projetos de Parceria Público-Privada (PPP) de habitação de interesse social (setor A) para a Secretaria de Estado de Habitação e sua Agência Paulista de Habitação Social - Casa Paulista. São Paulo: 15 out. 2012.

22

Idem.

23

DIAS, Guilherme. PPP de habitação propõe reocupação mista do centro de SP. Valor Econômico, 05 abr. 2013. 10

operários agrícolas da Bavária ou de pescadores da Bretanha -, este chamado de retorno às áreas centrais é sempre um chamado “interessado” para que as classes médias e médias altas brancas recuperem o controle das políticas econômicas e culturais, assim como do espaço nas grandes cidades.

Os mecanismos de aquisição fundiária da PPP também eram um entrave a ser desatado. Para isso, um dos pressupostos da proposta era, desde o início, transferir para o concessionário a prerrogativa de realizar desapropriações e exercer direito de superfície sobre bens públicos24, recursos extremamente controversos do ponto de vista jurídico. Como exigência para o prosseguimento do projeto, a Agência Casa Paulista se comprometeu a publicar o Decreto de Interesse Social, para fins de desapropriação, dos imóveis que poderiam ser afetados pelas obras da PPP25. Apesar dos princípios que orientaram a formulação da PPP da Habitação e das amplas implicações sobre a área central de São Paulo, a proposta não foi publicamente apresentada ou debatida até a apresentação do edital, em março de 2013. Houve, por parte do governo estadual, uma absoluta falta de transparência em relação ao desenvolvimento do projeto. Apenas uma audiência pública foi realizada, em 25 de março de 2013, para cumprir as exigências da Lei de Licitações, o que motivou posteriormente uma ação civil pública. Essa audiência não contemplou os princípios de participação social previstos no Estatuto da Cidade, que regulamenta a política urbana brasileira26. A pequena visibilidade da PPP da Habitação até o início de 2013 está relacionada, em segundo plano, à enorme polêmica em relação ao projeto Nova Luz, que vinha monopolizando o debate sobre grandes projetos urbanos em São Paulo até ser cancelado, em janeiro de 2013, pelo prefeito então recémempossado Fernando Haddad (PT)27.

24

“Para o desenvolvimento adequado dos projetos, o Parceiro Público outorgará poderes ao Parceiro Privado para promover e pagar desapropriações e exercer direito de superfície sobre bens imóveis dominiais de propriedade do Estado, de suas fundações, autarquias, inclusive as de regime especial, e empresas, que porventura sejam identificados pelos estudos como passíveis de ser utilizados no projeto” (SÃO PAULO (Estado). SEHAB - Chamamento público n. 04/2012. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 04 mai. 2012).

25

SÃO PAULO (Estado). Ata da 53ª Reunião Ordinária do Conselho Gestor do Programa Estadual de Parcerias PúblicoPrivadas. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 23 mar. 2013.

26

BRITO, Gisele. Ministério Público quer paralisar projeto de PPPs para moradia no centro de São Paulo. Rede Brasil Atual, 04 jun. 2013. Disponível em: bit.ly/1rqwZ2B. Acesso em: 10 abr. 2016.

27

SPINELLI, Evandro. Haddad engaveta plano de Kassab para a Luz. Folha de São Paulo, 24 jan. 2013. 11

O projeto, que teve início na administração municipal de José Serra (2005) e foi levado adiante nas duas gestões de Gilberto Kassab (PSD, 2006-2008 e 2009-2012) propôs, em sua versão final, a renovação urbana de 45 quadras nos bairros da Santa Ifigênia e da Luz, com prazo de execução de 15 anos. O plano urbanístico do Nova Luz previa a demolição de 55% da superfície (195.000 m2) e 23% da área construída existente (285.000 m2) e o acréscimo de 1.080.000 m2 de novas construções, bem como o incremento de 4.600 unidades habitacionais28. A área, caracterizada pela população de baixa renda e comércio popular, sofreria um intenso processo de valorização e provável expulsão de moradores e usuários se o projeto tivesse sido implementado.

Figura 2. Perímetro do projeto Nova Luz e áreas sujeitas à concessão urbanística. Fonte: Prefeitura de São Paulo.

Se os princípios do Nova Luz foram duramente criticados por se basear em técnicas de “arrasaquarteirão” que desconsideravam as dinâmicas urbanas existentes no perímetro, o instrumento

28

SÃO PAULO (Município). Projeto Nova Luz – Plano Urbanístico Específico. São Paulo, jul. 2011. 12

urbanístico mobilizado para implementá-lo foi o maior alvo de contestações ao projeto e de resistências sociais29. Em 2009, foram aprovadas duas leis municipais que tratavam da concessão urbanística: a lei 14.917 regulamentou o instrumento urbanístico em São Paulo e a lei 14.918 autorizou a Prefeitura a aplicar o instrumento na área do projeto Nova Luz. Esse instrumento urbanístico havia sido previsto no Plano Diretor Estratégico de 2002 sem uma delimitação clara de seus objetivos e áreas possíveis de aplicação, e permitia a concessão a empresas privadas da realização de intervenções urbanas, incluindo a desapropriação de imóveis particulares (SOUZA, 2011). Por meio da concessão urbanística, a empresa responsável pelos projetos urbanos ficaria autorizada a realizar as desapropriações de imóveis de terceiros necessárias e obteria a remuneração dos investimentos realizados por meio da exploração imobiliária dos novos empreendimentos, isto é, através da apropriação privada das mais-valias urbanas produzidas pela intervenção. Dois grupos principais se organizaram para resistir ao projeto Nova Luz. Os comerciantes da rua Santa Ifigênia e do entorno se opuseram frontalmente ao projeto, buscando inviabilizá-lo por meio da contestação judicial da concessão urbanística. Buscou-se argumentar que as leis que criaram o instrumento eram inconstitucionais, já que a Prefeitura não estaria autorizada a repassar a empresas privadas a prerrogativa de desapropriar imóveis de terceiros30. Os moradores do perímetro do projeto, por sua vez, criaram a Associação de Moradores e Amigos da Santa Ifigênia e da Luz (AMOALUZ) com o intuito de negociar junto ao poder público a minimização dos danos potenciais do Nova Luz. Por meio da pressão da associação, foi formado o Conselho Gestor da Zona Especial de Interesse Social demarcada na área do Nova Luz. Depois de meses de negociação, o Plano de Urbanização da ZEIS foi aprovado sob protestos dos representantes da sociedade civil e, por meio de uma ação judicial proposta pela Defensoria Pública do Estado, o projeto foi paralisado31. A esse contexto somaram-se as ações contestando a constitucionalidade da concessão urbanística e as resistências sociais ao projeto, que influenciaram negativamente a opinião pública em relação à intervenção. Nesse contexto, os agentes privados avaliaram que o projeto não tinha viabilidade econômica e não apresentava a segurança jurídica necessária, comprometendo as possibilidades de a Prefeitura implementar o Nova Luz.

29

Para uma reconstituição detalhada do projeto Nova Luz, cf. Gatti (2015), Sombini (2013) e Souza (2011), entre outros.

30

Sobre o assunto, cf. Harada (2009).

31

Cf. Gatti (2015). 13

Tampouco havia condições, com a mudança de comando da Prefeitura, da gestão Gilberto Kassab lançar a licitação do projeto em seus últimos meses. Com o cancelamento do Nova Luz, no início de 2013, a PPP da Habitação apareceu como herdeira dessa proposta de intervenção na área central, já que são muitos os paralelos entre os dois GPUs. A PPP insistiu na proposta de delegar ao concessionário a prerrogativa de realizar as desapropriações, mesmo que não houvesse base jurídica sólida para tanto. Com a publicação do Decreto de Interesse Social em junho de 201332, indicando mais de 900 imóveis passíveis de desapropriação para a implementação da PPP, os moradores e comerciantes que poderiam ser atingidos se organizaram para resistir ao projeto. Como no Nova Luz, os proprietários, comerciantes e moradores não foram previamente informados, tampouco se discutiram publicamente os objetivos e as diretrizes da PPP da Habitação. A maior parte dos atingidos pelo decreto soube de sua publicação por meio de escritórios de advocacia especializados em desapropriações, que entraram em contato com os moradores e comerciantes oferecendo seus serviços33. Um grupo de voluntários realizou um levantamento, demonstrando que havia condomínios residenciais e estabelecimentos comerciais consolidados, entre vários outros usos, na lista dos imóveis incluídos no Decreto de Interesse Social34. Os moradores e comerciantes pressionaram a Secretaria de Habitação para que seus imóveis fossem retirados da lista e o decreto fosse revisto. Nesse período, a PPP da Habitação foi temporariamente suspensa: o Ministério Público do Estado obteve, na Justiça, uma liminar por meio de um agravo de instrumento, argumentando que o princípio da gestão democrática da cidade por meio da participação popular, previsto no Estatuto da Cidade, não havia sido observado na formulação do projeto35. A liminar, contudo, foi revogada em outubro de 2013 e, no mês seguinte, também o Decreto de Interesse Social.

32

SÃO PAULO (Estado). Decreto 59.273, de 07 de jun. de 2013. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 08 jun. 2013.

33

MURIANA, Fabrício & DURAN, Sabrina. PPP de habitação - parceria entre governo estadual de SP e capital imobiliário ameaça até classe média. Arquitetura da Gentrificação, 06 dez. 2013. Disponível em: bit.ly/1VGdOhK. Acesso em: 10 abr. 2016.

34

Idem.

35

DURAN, Sabrina. PPP de habitação no centro é temporariamente paralisada. Arquitetura da Gentrificação, 19 set. 2011. Disponível em: bit.ly/1rqxppM. Acesso em: 10 abr. 2016. 14

Menos de um semestre depois de ser publicamente apresentada como uma intervenção inovadora, por combinar desenho urbano, habitação de interesse social e parceria com a iniciativa privada, a PPP da Habitação acumulava inúmeras críticas: as organizações da sociedade civil e os movimentos sociais atuantes no centro, entre outras ações, lançaram uma carta aberta, em abril de 2013, questionando os fundamentos do projeto36. Entregaram também uma manifestação à consulta pública da PPP, contestando diversos pontos do edital da licitação do projeto37. Nas apresentações da PPP, as questões nunca foram devidamente respondidas e as informações relativas ao projeto foram sistematicamente omitidas do público. Os estudos técnicos produzidos pelo URBEM, por exemplo, nunca foram disponibilizados integralmente: em setembro de 2013, quase um ano depois da entrega oficial dos documentos, a Agência Casa Paulista publicou em seu sítio apenas o primeiro tomo dos estudos, mantendo em sigilo o modelo de negócios proposto para a PPP. Frente às resistências de moradores e comerciantes e as contestações em relação ao processo de formulação da PPP, a proposta sofreu ajustes sucessivos em 2014. Em maio, uma nova modelagem da PPP reduziu a intervenção para 4 lotes e o número de unidades habitacionais para 16.101 38. A licitação da PPP, publicada em setembro de 2014, diminuiu o total de unidades habitacionais para 14.12439. A justificativa foi a falta de terrenos disponíveis para a intervenção40. A aquisição dos terrenos necessários aos empreendimentos de habitação de interesse social (voltados às faixas de renda mais baixas) se tornou responsabilidade do governo estadual e da Prefeitura, e diversos outros itens relevantes na estratégia da PPP foram modificados para atenuar os riscos das empresas privadas. Mesmo assim, durante a licitação da PPP, finalizada em dezembro de 2014, houve somente uma empresa interessada, que arrematou um lote. No contrato assinado em fevereiro de 2015, a construtora Canopus Holding SA se comprometeu, recebendo R$ 82,5 milhões de contraprestação máxima anual do governo estadual, a investir em torno de R$ 900 milhões na construção de 3.683

36

CARTA aberta: questões para a PPP da “Casa Paulista” para o centro de São Paulo. Disponível em: bit.ly/1rqxt8O. Acesso em: 10 abr. 2016.

37

MANIFESTAÇÃO encaminhada à consulta pública do projeto de parceria público-privada da Agência Casa Paulista. Disponível em: bit.ly/1rqxwl2. Acesso em: 10 abr. 2016.

38

SÃO PAULO (Estado). Ata da 65ª Reunião Ordinária do Conselho Gestor do Programa Estadual de Parcerias PúblicoPrivadas. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 03 jul. 2014.

39

SÃO PAULO (Estado). SEHAB - Concorrência internacional n. 01/2014. São Paulo, 25 set. 2014.

40

FERRAZ, Adriana. Falta de terrenos reduz PPP da habitação. O Estado de São Paulo, 12 set. 2014. 15

unidades habitacionais. Destas, 2.260 serão destinadas a famílias com renda mensal entre 1 a 6 salários mínimos, e 1.423 à faixa de renda entre 6 e 10 salários mínimos mensais41. Embora a PPP da Habitação não tenha se efetivado como foi anunciada inicialmente, o volume de unidades habitacionais contratadas é relevante no conjunto dos programas habitacionais da área central de São Paulo. Além das implicações territoriais concretas da PPP, nos parece de extrema relevância considerar a lógica que vem orientando os projetos formulados para a área central paulistana. Tanto no caso do Nova Luz como na PPP da Habitação, as propostas de intervenção tomam como pressuposto a necessidade de garantir a rentabilidade financeira dos projetos, que se concretiza por meio da geração e apropriação privada das mais-valias urbanas, socialmente produzidas. Por isso, nos interessa compreender as formas específicas de uso corporativo do território que os vínculos entre grandes projetos urbanos e parcerias público-privadas carrega.

Considerações finais Duas problematizações nos parecem centrais para prosseguir analisando os vínculos entre GPUs e PPPs. Em primeiro lugar, é necessário investigar os papéis desempenhados pelos mecanismos convencionais de contratação de empresas de consultoria por parte do Estado e, sobretudo, as práticas recentes de modelagem de PPPs por empresas interessadas em sua execução, como o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). Ao transferir o protagonismo na formulação de planos, programas e projetos que orientam investimentos e reorganizam os usos do território, o Estado aponta para um novo impulso de privatização do planejamento territorial e da política urbana. Tratando especificamente da política regional brasileira, Carlos Vainer (2007, p. 11), apontou que a “privatização dos setores responsáveis pela infra-estrutura acabou tendo como corolário a privatização dos processos de planejamento e controle territorial que são intrínsecos aos grandes projetos”. Processo similar parece estar em curso no campo da regulação urbanística e, sobretudo, em relação aos GPUs, já que o alcance do poder corporativo na produção do espaço urbano é consideravelmente potencializado com as novas possibilidades permitidas no âmbito das PPPs. A conjuntura atual aponta, portanto, para o aprofundamento das concepções e práticas neoliberais no campo do planejamento 41

PREFEITURA e Estado assinam 1ª. PPP para habitação no centro. Portal da Prefeitura de São Paulo, 23 mar. 2015. Disponível em: bit.ly/1rqxWIj. Acesso em: 10 abr. 2016. 16

territorial brasileiro, processo que vai de encontro aos fundamentos da cidade como direito que orientam, ao menos formalmente, o ordenamento jurídico-institucional da política urbana brasileira. Em segundo lugar, esse contexto de ampliação do caráter privatista da política urbana do país tende a criar implicações territoriais duradouras e perversas. As propostas recentes de intervenção urbana em áreas centrais no país vêm sendo pautadas pela apropriação do rent gap (SMITH, 1996) existente nos subespaços desvalorizados das metrópoles brasileiras. Mesmo que enfrentem sérias dificuldades para se concretizar, esses projetos carregam esforços claros de gentrificação, invertendo por completo os princípios redistributivos que o Estado deveria portar e apontando para a ampliação dos usos corporativos do território das áreas urbanas centrais.

Referências bibliográficas AMORE, Caio; SHIMBO, Lúcia; RUFINO, Maria (Org.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015. ARANTES, Otilia; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. ARANTES, Pedro. Interesse público, poderes privados e práticas discursivas na política de renovação do centro de São Paulo. In: CYMBALISTA, Renato et al. (Org.). Políticas públicas para o centro: controle social do financiamento do BID à Prefeitura Municipal de São Paulo. São Paulo: Instituto Pólis, 2008. BRIDGE, Gary; BUTLER, Tim; LEES, Loretta (Org.). Mixed communities: gentrification by stealth? Bristol: Policy Press, 2012. CARDOSO, Adauto (Org.). O Programa Minha Casa Minha Vida e seus efeitos territoriais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013. FIX, Mariana. A “fórmula mágica” da parceria público-privada: Operações Urbanas em São Paulo. In: SCHICCHI, Maria Cristina; BENFATTI, Denio (Org.). Urbanismo: Dossiê São Paulo – Rio de Janeiro. Campinas: PUCCampinas, 2003. ______. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil. 2011. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econômico) – IE/UNICAMP, Campinas, 2011. FRÚGOLI JR, Heitor. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo: Edusp, 2006. 17

GATTI, Simone. Entre a permanência e o deslocamento. ZEIS 3 como instrumento para a manutenção da população de baixa renda em áreas centrais. 2015. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – FAUUSP, São Paulo, 2015. KARA-JOSÉ, Beatriz. Políticas culturais e negócios urbanos: a instrumentalização da cultura na revitalização do centro de São Paulo, 1975-2000. São Paulo: Annablume, 2007. MANZONI NETO, Alcides. O novo planejamento territorial - empresas transnacionais de consultoria, parcerias público-privadas e uso do território brasileiro. 2007. Dissertação (Mestrado em Geografia) – IG/UNICAMP, Campinas, 2007. MIRAFTAB, Faranak. Public-private partnerships: the trojan horse of neoliberal development? Journal of Planning Education and Research, v. 24, n. 1, p. 89–101, set. 2004. MONTEIRO, João Carlos. Habitação de interesse social em cenários de revalorização urbana: considerações a partir da experiência carioca. Cadernos Metrópole, v. 17, n. 34, p. 441–459, nov. 2015. NOVAIS, Pedro. Uma estratégia chamada “planejamento estratégico”: deslocamentos espaciais e a atribuição de sentidos na teoria do planejamento urbano. Rio de Janeiro, RJ: 7Letras, 2010. SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó: ARGOS, 2010. SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade: o caso de São Paulo. São Paulo: Edusp, 2009. SILVA, Adriana Maria Bernardes. Círculos globais de informações e uso corporativo do território brasileiro: privatizações e planejamento territorial a partir dos anos 1990. Cadernos IPPUR, v. 23, n. 1, p. 9–32, 2009. SMITH, Neil. A gentrificação generalizada: de uma anomalia local à “regeneração” urbana como estratégia urbana global. In: BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine (Org.). De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos". São Paulo: Annablume, 2006. ______. The new urban frontier: gentrification and the revanchist city. New York: Routledge, 1996. SOMBINI, Eduardo Augusto Wellendorf. A revalorização contemporânea do centro de São Paulo: agentes, concepções e instrumentos da urbanização corporativa (2005-2012). 2013. Dissertação (Mestrado em Geografia) – IG/UNICAMP, Campinas, 2013. SOUZA, Felipe. A batalha pelo centro de São Paulo: Santa Ifigênia, concessão urbanística e Projeto Nova Luz. São Paulo: Paulo’s Editora, 2011. VAINER, Carlos. Planejamento territorial e projeto nacional: os desafios da fragmentação. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 9, n. 1, p. 9–23, maio 2007.

18

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.