Grandezas do ínfimo: espaços residuais em Salvador

June 15, 2017 | Autor: Sanane Sampaio | Categoria: Salvador - Bahia, Cotidiano, Produção Do Espaço
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

SANANE SANTOS SAMPAIO

GRANDEZAS DO ÍNFIMO: ESPAÇOS RESIDUAIS EM SALVADOR

Salvador 2013

SANANE SANTOS SAMPAIO

GRANDEZAS DO ÍNFIMO: ESPAÇOS RESIDUAIS EM SALVADOR

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientadora: Profa. Dra. Ana Fernandes.

Salvador 2013

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

S192 Sampaio, Sanane Santos. Grandezas do ínfimo: espaços residuais em Salvador / Sanane Santos Sampaio. 2013. 122 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Ana Fernandes. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2013. 1. Projeto urbano - Aspectos sociais. 2. Projeto urbano - Salvador (BA) - Estudo de casos. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. I. Fernandes, Ana. II. Título. CDU: 711.4(813.8)

SANANE SANTOS SAMPAIO

GRANDEZAS DO ÍNFIMO: ESPAÇOS RESIDUAIS EM SALVADOR

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em __________________________________

Banca Examinadora

Profa. Dra. Ana Fernandes (orientadora) Pós-Doutorado pela École d'Architecture Paris - Malaquais.

Prof. Dr. Angelo Serpa (membro interno) Pós-Doutorado pela Humboldt - Universität zu Berlin.

Profa. Dra. Naia Alban (membro interno) Doutorado pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid.

Prof. Dr. João Marcos de Almeida Lopes (membro externo) Doutorado pela Universidade Federal de São Carlos

Salvador 2013

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AGRADECIMENTOS Para escrever um agradecimento é preciso depor as armas, é preciso estar emocionada, é preciso aceitar que isso que aqui se escreve é um fim. Minhas mãos são, sempre, as mãos de meus pais. Aqui, minhas mãos também são as de minha irmã, dos amigos, de Ana, dos professores da banca, dos moradores da Fazenda Grande II, dos técnicos, das bibliotecárias. E, graças a Deus, minhas mãos são posses absolutas minhas. Agradeço ao que se apresenta de muitas maneiras, inclusive na maneira de Deus, por ter mãos, espírito e o poder de usálos. Agradeço ao meu pai, que se chamava José, pelo que me tem deixado e ensinado, em todas as horas e sempre. Agradeço à minha mãe, que se chama Goretti, pelo exemplo e pelo amor em forma de cheiros, confiança, apoio e providências. À minha irmã, Sana, pelo que ainda não soube agradecer e por estar aqui. Aos amigos, tão belos, tão amados, por não desistirem de mim e por fazerem como que eu me sinta necessária, apesar de tantos momentos de ausência, e, em especial, a Mel. Agradeço a Leo Cruz, pelos incentivos, ponderações, carinhos e apoios. Agradeço, com grande carinho, a Ana, por muito do que me faz ver, entender e amar a cidade, e, certamente, pelas fundamentais contribuições a este trabalho. Agradeço a Ramon, professor de meus escapes, pelos risos e alívios. Agradeço a Angelo, João Marcos e Naia, pela atenção, cuidado e competência nas observações, sugestões e críticas. Agradeço à solidariedade das pessoas que dispuseram de seu tempo e de seu conhecimento para ajudar na construção desse trabalho: Anderson Pereira, André Brandão, Célia Teixeira, Emanoel Araújo, Elizabete Maia, Keila Ramos, Rafael Cordeiro, Regina Luz, Tânia Scofield, Teresa do Espírito Santo, Yveline Hardman. Agradeço imensamente aos moradores da Fazenda Grande II, pela constante cordialidade e pelas conversas, e às bibliotecárias da Fundação Gregório de Mattos e da Fundação Mário Leal Ferreira. Agradeço ao grupo de pesquisa Lugar Comum por ter me aproximado de pessoas tão potentes e ao PPGAU-UFBA pela oportunidade de juntar tudo isso.

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RESÍDUO Carlos Drummond de Andrade

na consoante? no poço?

De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco

Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os peixes não o evitam, um pouco: não está nos livros.

Ficou um pouco de luz captada no chapéu. Nos olhos do rufião de ternura ficou um pouco (muito pouco).

De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil... De tudo ficou um pouco: de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco; vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada, e minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina. De tudo ficou um pouco.

Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos pouco, pouco, muito pouco. Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama, do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco. Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio um pouco ficou, um pouco nos muros zangados, nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo no pires de porcelana, dragão partido, flor branca, ficou um pouco de ruga na vossa testa, retrato. Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal, um pouco de mim em Londres, um pouco de mim algures?

E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória. Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe, fica sempre um pouco de tudo. Às vezes um botão. Às vezes um rato. 3

RESUMO Partindo do pressuposto de que a cidade está repleta de espaços que sobram, que são resíduos, vai-se à sua procura em locais de Salvador, em muitos aspectos antagônicos entre si, que são dois conjuntos habitacionais – Fazenda Grande II e de Cajazeira VI – e a Av. Tancredo Neves. Ao tempo em que estes espaços eram identificados, foi-se construindo uma reflexão sobre o que são, como se apresentam no contexto em que estão inseridos, como são produzidos, qual o sentido deles e quais as possibilidades de alteração do seu caráter residual. Para tanto, os principais referenciais teóricos utilizados foram desenvolvidos por Henri Lefebvre no livro “La production de l’espace”, de 1974, e por Michel de Certeau e Pierre Mayol nos dois volumes do livro “A invenção do cotidiano”, publicados originalmente em 1980 e 1994. Os espaços residuais são espaços livres, por vezes são vazios na cidade, e estão inseridos num modo de construir a cidade que preconiza pela racionalidade e planejamento. Foi observado, contudo, que há resíduos que de alguma maneira estão ocupados ou, quando vazios, não são “vazios urbanos” no sentido em que esta expressão normalmente é utilizada. Ademais, suas especificidades são pouco abordadas nos estudos sobre espaços livres e são, sobretudo, espaços que explicitam aspectos da irracionalidade de modos hegemônicos de produzir a cidade. Nos estudos de caso aqui abordados, os espaços residuais são elementos excluídos do processo de projetação e de planejamento, ou seja, da representação do espaço, e, sendo materializados na cidade, podem ser absorvidos ou não pela dinâmica urbana. Sendo absorvidos, isso significa que estes espaços são percebidos e vividos, isto é, são produzidas práticas espaciais e espaços de representação, e, neste caso, reverte-se o caráter residual destes espaços. Esta produção é feita mediante práticas cotidianas que, nos conjuntos habitacionais e na avenida, objetivam suprir uma demanda privada de seus moradores ou usuários, sendo conduzidas por processos de reconhecimento e de negociação e da construção de conveniências sociais. Não obstante, há exemplos de grupos que propõem e efetivam apropriações de espaços residuais sem que isso resulte em sua privatização.

Palavras-chave: Espaço residual. Produção do espaço. Cotidiano. Cajazeira VI. Fazenda Grande II. Avenida Tancredo Neves.

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ABSTRACT Assuming that the city is plenty of remaining spaces which are residues, a search takes place at locations in Salvador, antagonistic in many aspects: two public housing estates – Fazenda Grande II and Cajazeira VI – and Tancredo Neves Avenue. By the same time these spaces were identified, a reflection about their nature was taking shape, as well as how they present themselves in the context in which they are located, how they are produced, their signification and the possibilities of change of their residual characteristics. Therefore, the main theoretical references in use were developed by Henri Lefebvre in the 1974 book “The production of space”, and by Michel de Certeau and Pierre Mayol in the two volumes of “The practice of everyday life”, originally published in 1980 and 1994. Residual spaces are free spaces, sometimes being voids in the city, inscribed in a way of building the city that advocates rationality and planning. It was noted, however, that there are residues occupied in some way or, when empty, aren´t “urban voids” in the sense this expression is commonly used. Furthermore, their specificities are poorly discussed in studies about free spaces and are, above all, spaces that explicit irrationality aspects of hegemonic ways of producing the city. In the case studies addressed in this dissertation, the residual spaces are elements excluded from the process of designing and planning, namely, they’re apart from the representation of space, and, once materialized in the city, they might be absorbed by urban dynamics or not. When absorbed, it means that these spaces are perceived and experienced, that is to say, spatial practices and representational spaces are produced and, in this case, their residual character is reverted. This production is made through everyday life practices whose aim is – whether in the public housing estates or on the avenue – to supplement a private demand for its residents or users, being guided by processes of acknowledgement and negotiation and by construction of social conveniences. However, there are examples of groups proposing and establishing appropriation of residual spaces without resulting in its privatization.

Keywords: Residual space. Production of space. Everyday life. Cajazeira VI. Fazenda Grande II. Avenida Tancredo Neves.

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FONTES DE CONSULTA Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia – CONDER Fundação Mário Leal Ferreira – FMLF Fundação Gregório de Matos – FGM Superintendência de Trânsito e Transporte de Salvador – TRANSALVADOR Habitação e Urbanização do Estado da Bahia S/A – URBIS

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LISTA DE IMAGENS Imagem 1. Localidades visitadas para definir áreas a serem pesquisadas. Imagem elaborada por Sanane Sampaio................................................................................................................................14 Imagem 2. Ocupação do território pelos conjuntos de Cajazeira-Fazenda Grande. As encostas e fundos de vale não ocupados são áreas ainda de propriedade da URBIS, tratadas como áreas remanescentes. Fonte da imagem: Sheinowitz, 1998. .......................................................................29 Imagem 3. Equipamentos que induziram a expansão da ocupação urbana de Salvador e justificaram a localização de Cajazeira-Fazenda Grande. Imagem elaborada por Sanane Sampaio. ..........................32 Imagem 4. Passeios em Fazenda Grande II. .......................................................................................35 Imagem 5. Blocos de apartamento padrão URBIS no conjunto da Fazenda Grande II. Fonte da fotografia: Sanane Sampaio ..............................................................................................................36 Imagem 6. À esquerda, fachada de edifício em Cajazeira VI e, à direita, fachada de edifício em Fazenda Grande II. Fotografias de Sanane Sampaio. ..........................................................................37 Imagem 7. Blocos de apartamentos do conjunto habitacional Fazenda Grande II. Fonte da imagem: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. .................................................................................................38 Imagem 8. Trecho da planta do partido urbanístico da Fazenda Grande II (URBIS S. A., 16/02/1982).39 Imagem 9. Blocos de apartamentos na Fazenda Grande II como foram construídos. Fonte: CONDER, INFORMS, 2010. ................................................................................................................................39 Imagem 10. Blocos de apartamentos do conjunto habitacional Cajazeira VI. Fonte da imagem: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. .................................................................................................40 Imagem 11. Reprodução da proposta da Hidroservice/CEDURB para Cajazeira VI (BAHIA, 1977b). Em frente aos edifícios em “H” também estava prevista uma praça, a qual não foi representada nesta planta. ..............................................................................................................................................41 Imagem 12. Trecho da planta do partido urbanístico de Cajazeira VI elaborado pela URBIS (URBIS S.A, 1981). ...............................................................................................................................................42 Imagem 13. Blocos de apartamentos em Cajazeira VI. Fonte: CONDER, INFORMS, 2010. ..................43 Imagem 14. Cajazeira VI quando da conclusão das obras. Fonte da imagem: SHEINOWITZ, 1998. .....43 Imagem 15. Localização da Av. Tancredo Neves. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Elaborado por Sanane Sampaio. ...................................................................................45 Imagem 16. Fonte: CONDER, INFORMS, 1989. ...................................................................................46 Imagem 17. Fonte: CONDER, INFORMS, 1998. ...................................................................................47 Imagem 18. Fonte: CONDER, INFORMS, 2002. ...................................................................................47 Imagem 19. Localização do Loteamento Centro Empresarial Metropolitano. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Elaborado por Sanane Sampaio................................................49 Imagem 20. Projeto do Loteamento Centro Empresaria Metropolitano. Imagem gerada automaticamente pelo programa LOUOS 1.2. ...................................................................................50 Imagem 21. Av. Tancredo Neves quando da construção da Casa do Comércio. Legenda da imagem: “Inauguração do Iguatemi e construção da Casa do Comércio iniciaram ciclo de mudanças na região da Tancredo Neves, que não para de crescer” (MAIA FILHO, 2000). ..................................................51 Imagem 22. Edifícios do Loteamento Centro Empresarial Metropolitano. .........................................52 Imagem 23. Caminhos de pedestre nas quadras do Loteamento Centro Empresarial Iguatemi. Fonte da imagem: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Elaborado por Sanane Sampaio.............................53 Imagem 24. Reprodução da planta da proposta da Empreendimentos Odebrecht (EMPREENDIMENTOS ODEBRECHT, 1978). ........................................................................................54 7

Imagem 25. Imagem aérea do estacionamento proposto pela Empreendimentos Odebrecht. Fonte: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. .................................................................................................54 Imagem 26. Elaborado por Sanane Sampaio......................................................................................56 Imagem 27. Projeto do viaduto que liga a região do Iguatemi à Av. Tancredo Neves. Fonte do projeto: Prefeitura de Salvador, Superintendência de Trânsito e Transporte. Elaborado por Sanane Sampaio. .........................................................................................................................................................58 Imagem 28. Situação atual do viaduto que liga a região do Iguatemi à Av. Tancredo Neves. Fonte: Google Maps.....................................................................................................................................58 Imagem 29. Avenida Tancredo Neves. Fotografia à esquerda: Sanane Sampaio. Fotografia à direita: Aratu Online. ....................................................................................................................................60 Imagem 30. Reprodução da planta do partido urbanístico do conjunto habitacional de Cajazeira VI (URBIS S.A., 1981) .............................................................................................................................64 Imagem 31. Reprodução da planta do partido urbanístico do conjunto habitacional da Fazenda Grande II (URBIS S.A., 1982). .............................................................................................................65 Imagem 32. Construções formais na Quadra A da Fazenda Grande II: edifícios e acessos. Elaborado por Sanane Sampaio. ........................................................................................................................73 Imagem 33. Construções formais em parte do Setor A de Cajazeira VI: edifícios e acessos. Elaborado por Sanane Sampaio. ........................................................................................................................74 Imagem 34. Foto 1: acesso para a Av. Tancredo Neves Fechado; foto 2: vala exposta em parte do Caminho A; foto 3: Caminho A interrompido pelo remembramento dos lotes; foto 4: Caminho A interrompido pelo remembramento dos lotes. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio. .......................................................................81 Imagem 35. Foto 1: acesso para a Av. Tancredo Neves; foto 2: Caminho B entre muros; foto 5: acesso para o Rio Camurujipe. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio. ............................................................................................................82 Imagem 36. Foto 1: Caminho C ocupado por edifícios de escritório; foto 2: Caminho C ocupado por edifícios, onde hoje funcionam instituições públicas. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Fonte da imagem do projeto da Quadra C: Prefeitura de Salvador, Fundação Mário Leal Ferreira, LOUOS 1.2. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio. ...........................................................83 Imagem 37. Fonte da imagem aérea: CONDER, INFORMS, 2010. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio. ...........................................................................................................................................86 Imagem 38. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio. .........................................................................90 Imagem 39. Comércio nos conjuntos habitacionais. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio. ............90 Imagem 40. Canteiro próximo ao Shopping Sumaré. Fonte da fotografia: Sanane Sampaio. ..............91 Imagem 41. Canteiro ocupado por vendedores ambulantes. Fonte da fotografia: Sanane Sampaio. ..91 Imagem 42. Delimitação dos setores censitários computados na quantificação dos dados de renda. Fonte da imagem: CONDER, INFORMS, 2010. Fonte dos setores censitários: IBGE, Censo Demográfico 2010. Elaborado por Sanane Sampaio. ..............................................................................................93 Imagem 43. Delimitação dos setores censitários computados na quantificação dos dados de renda da Pituba. Fonte dos setores censitários: IBGE, Censo Demográfico 2010. Elaborado por Sanane Sampaio. ...........................................................................................................................................93 Imagem 44. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio. .......................................................................103

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LISTA DE TABELAS Tabela 1. Rendimento nominal mensal dos responsáveis pelos domicílios: Cajazeira VI e Fazenda Grande II. ..........................................................................................................................................92 Tabela 2. Rendimento nominal mensal dos responsáveis pelos domicílios: Pituba e Salvador. ...........93

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ABREVIATURAS E SIGLAS Av.

Avenida

BNH

Banco Nacional da Habitação

CAB

Centro Administrativo da Bahia

CEDURB

Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia

CIA

Centro Industrial de Aratu

CONDER

Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia

COPEC

Complexo Petroquímico de Camaçari

DESENBAHIA

Agência de Fomento do Estado da Bahia S/A

DETRAN

Departamento Estadual de Trânsito

EPUCS

Escritório do Plano Urbanístico da Cidade do Salvador

FGM

Fundação Gregório de Matos

FMLF

Fundação Mário Leal Ferreira

GEPAT

Gerência de Patrimônio da CONDER

HIDROSERVICE

Engenharia e Projetos Ltda.

INFORMS

Sistema de Informações Geográficas Urbanas do Estado da Bahia

IPTU

Imposto Predial Territorial Urbano

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

OCEPLAN

Órgão Central de Planejamento

PLANHAP

Plano Nacional de Habitação Popular

PLANDURB

Plano de Desenvolvimento Urbano

RMS

Região Metropolitana de Salvador

SICAD

Sistema Cartográfico e Cadastral do Município do Salvador

SICAR

Sistema Cartográfico de Salvador

SUCOM Município

Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do

TRANSALVADOR

Superintendência de Trânsito e Transporte de Salvador

URBIS

Habitação e Urbanização da Bahia S.A. 10

SUMÁRIO AGRADECIMENTOS ................................................................................................................ 2 RESUMO ................................................................................................................................ 4 FONTES DE CONSULTA .......................................................................................................... 6 LISTA DE IMAGENS ................................................................................................................ 7 LISTA DE TABELAS.................................................................................................................. 9 ABREVIATURAS E SIGLAS ..................................................................................................... 10 SUMÁRIO ............................................................................................................................ 11 APRESENTAÇÃO .................................................................................................................. 12 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 I.

RESÍDUO, VAZIO, ESPAÇO LIVRE E (IR)RACIONALIDADE............................................. 17 1.1

Vazios urbanos e espaços residuais .................................................................................... 17

1.2

Espaços livres e espaços residuais ...................................................................................... 22

1.3

(Ir)Racionalidade e espaços residuais ................................................................................. 23

II.

CONJUNTOS HABITACIONAIS E AVENIDA ................................................................... 25 2.1

Cajazeira VI e Fazenda de Grande II ................................................................................... 27

2.1.1

Projeto habitacional Fazenda Grande II ......................................................................37

2.1.2

Projeto habitacional Cajazeira VI ................................................................................40

2.2

III.

Avenida Tancredo Neves ................................................................................................... 44

ESPAÇOS RESIDUAIS ................................................................................................... 61

3.1

Cajazeira VI e Fazenda Grande II ........................................................................................ 63

3.2

Av. Tancredo Neves ........................................................................................................... 80

3.3

Cotidiano nos resíduos ...................................................................................................... 86

3.4

Escala e desenho urbano ................................................................................................. 101

3.5 O comum nos espaços residuais: Baixios de Viadutos, Green Guerillas, Esta Es Una Plaza, Jardins Partagés, Canteiros Coletivos .......................................................................................... 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 110 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 113 Bibliografia.................................................................................................................................. 113 Sites consultados ........................................................................................................................ 119 Vídeos consultados ..................................................................................................................... 119

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APRESENTAÇÃO Pesquiso, neste trabalho, espaços residuais em três locais de Salvador, que representam dois contextos particulares desta cidade: os conjuntos habitacionais da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI e entorno de parte da Avenida Tancredo Neves. A intenção é chegar a um entendimento sobre o significado do caráter residual de certos espaços inseridos nestes locais, verificar como e por que eles foram produzidos, observar o que neles acontece ou deixa de acontecer no cotidiano e, ainda, compreender ações que puderam alterar o sentido de resíduo de alguns espaços. Diante das possibilidades de discussões e de entendimentos da cidade encontradas nestes resíduos, espaços ínfimos dentro do contexto em que estão inseridos, e também diante das vastas possibilidades de usos e de apropriações neles latentes, intitulo este trabalho com parte do título do livro do poeta Manoel de Barros, “Tratado geral das grandezas do ínfimo”. No primeiro momento, tento chegar à compreensão do que é espaço residual no contexto urbano, encontrando questões que lhe são específicas, a partir do estudo de modos de abordagem crítica à cidade que se aproximam de algumas características dos espaços aqui estudados. Posteriormente, inicio a aproximação dos locais escolhidos para análise trazendo questões envolvidas do processo de sua produção e buscando compreender a situação em que eles se encontram hoje. Confrontando e articulando os entendimentos sobre espaços residuais num contexto urbano qualquer, com o que foi levantado em situações urbanas específicas de Salvador, e com a base teórica estudada, tento alcançar, no terceiro momento, os objetivos propostos na pesquisa. Ainda neste momento, abordo questões que envolvem a escala e o desenho urbano, no sentido de buscar elementos que possam contribuir para a reversão do sentido negativo que os espaços residuais tenham. Por fim, trago experiências de apropriações de espaços, anteriormente resíduos, que vêm inserindo tais locais à cidade, a partir de ações que constroem o “espaço do sentido comum”.

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INTRODUÇÃO Um pequeno acontecimento fora do seu lugar. Uma ação banal onde não se espera. E, ainda assim, o episódio esteve inserido em certo contexto, como algo que se destaca, que escapa, mas dentro do tom. Algo próximo a isso me fez olhar com estranhamento e curiosidade para certos espaços abertos de um empreendimento de porte em Salvador. Certos espaços que são poeira diante dele. Os percebi porque estavam sendo usados, quando o que se espera é que nenhuma ação se desenvolva neles. Algo fugiu do previsto naquele momento e naquele diminuto espaço esquecido. E toda a intenção desta pesquisa iniciou-se com isso. Que restos de espaços são esses e que situação é essa que conduz à sua utilização? Pensei que a cidade estaria repleta destes pequenos espaços abertos, esquecidos, desprezados, obscuros, que aqui serão chamados de espaços residuais. Compreendo que a utilização da palavra “espaço” requer cuidado, uma vez que em volta dela gravitam complexos entendimentos e conceitos elaborados por várias disciplinas, como, por exemplo, a física, a matemática, a geografia, a filosofia, a arquitetura e urbanismo, a sociologia. Se tomar os entendimentos de Michel de Certeau e de Milton Santos, duas referências nesta pesquisa, o objeto de estudo que proponho não é um espaço, posto que, para o primeiro pensador, espaço só se constitui através de uma prática social. E, para Santos, espaço é “forma-conteúdo”, espaços “são as formas mais a vida que as anima”, ou seja, é forma mais ação sobre essa forma. E, se certos espaços residuais aqui estudados permanecem como resíduos justo porque nenhuma ação acontece neles, como se justifica o uso da palavra “espaço”? Não obstante, mesmo reconhecendo tais restrições, opto por utilizar o termo “espaço residual” ante a dificuldade em encontrar substantivo mais adequado a agregar ao adjetivo “residual”. Recearia, por exemplo, que a palavra “forma” levasse a entendimentos simplesmente morfológicos. Ou ainda, a expressão “lugar” residual implicaria numa evidente contradição, dada a densidade social evocada por esta palavra. Assim, admito que, embora “espaço” não seja a palavra mais adequada, ela é a mais adequada diante das alternativas. Sem muita certeza de que eles de fato existissem em outros locais, muito menos de como seriam, visitei, nos primeiros momentos da pesquisa, o antigo e o novo centro empresarial de Salvador: o bairro do Comércio e a Avenida Tancredo Neves. Fui também à entornos de condomínios de alta renda (Costa Verde e Jaguaribe) e conjuntos populares no centro (conjuntos Horácio Costa e Santa Bárbara, ambos em Brotas) e na periferia (Cajazeiras VI e VIII, Fazenda Grande II) da cidade. Estive, ainda, nas imediações do Shopping Iguatemi – um dos mais antigos da cidade – e do Shopping Salvador Norte – o mais novo de Salvador (imagem 1).

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Imagem 1. Localidades visitadas para definir áreas a serem pesquisadas. Imagem elaborada por Sanane Sampaio.

Estive, portanto, em locais estabelecidos na cidade formal. Esta interessa porque é onde aparecem espaços residuais. Nas ocupações informais está claro que cada mínimo espaço é utilizado e aproveitado de maneiras inconcebíveis na cidade formal. Não há espaço sobrando, ou constrói-se nele ou ele se torna uma área de lazer. Tais ocupações, quando consolidadas, são extremamente compactas e densas. Quando não consolidadas, é apenas uma questão de tempo para que elas adquiram estas características. E estive, também, em locais que representam as dicotomias tradicionais e bastante discutidas em Salvador: antiga e nova centralidade. Áreas habitacionais de alta e baixa renda, no centro e na periferia. Se optasse em pesquisar a condição dos espaços residuais em todos os locais visitados, teria riqueza nas análises comparativas, o que permitiria, de certo modo, chegar a um panorama da situação destes em Salvador. Entretanto não seria possível aprofundar, como pretendo, na compreensão sobre o que são tais espaços, assim como no entendimento dos processos de produção e de apropriação destes em contextos específicos. O interesse inicial se voltou para os conjuntos habitacionais de Cajazeira VI e da Fazenda Grande II. Havia intenção de ir a algum conjunto popular e a principal referência que tinha era o complexo Cajazeira-Fazenda Grande que, talvez por ser o maior de Salvador em termos territoriais e de população, domina meu imaginário em relação aos muitos outros que existem na cidade. Fazenda Grande II fica próxima de uma das vias de comércio mais intenso de Cajazeira-Fazenda Grande, onde há um importante ponto de referência dessa região – a Rótula da Feirinha – por onde passa grande quantidade de linhas de ônibus. Esta foi minha primeira referência para chegar e me localizar em Cajazeira-Fazenda Grande e foi a partir 14

dela que cheguei a Fazenda Grande II. Posteriormente descobri que conhecia três moradores deste local, o que foi determinante na minha escolha em aprofundar os estudos neste conjunto1. Inicialmente não tinha dimensão da complexidade e do tamanho de Cajazeira-Fazenda Grande, assim, acreditava que seria possível estudar boa parte de seus treze conjuntos, o que se mostrou inviável dentro dos objetivos pretendidos e das possibilidades encontradas. Assim, foi possível agregar à pesquisa apenas mais um conjunto habitacional e, como conhecia uma moradora de Cajazeira VI, optei por ele e não por Cajazeira VIII. Embora a decisão por escolher Fazenda Grande II e Cajazeira VI tenha sido tomada após realizar apenas uma visita em cada local pré-selecionado para a pesquisa, acreditei que nestes conjuntos havia um afeto que não foi possível perceber nos demais, e, naturalmente, isso seduz a quem pretende estudar algo por um período de, pelo menos, dois anos. Com afeto tento dizer que apostei que nos conjuntos haveria maiores possibilidades de aproximação com as pessoas que estavam naquele ambiente, que haveria elementos mais estimulantes e ricos para a pesquisa que propus a fazer. As pessoas que estão num local predominantemente residencial variam muito menos do que aquelas que estão num ambiente comercial, e, além disso, havia mais pessoas no ambiente público de Cajazeira VI e Fazenda Grande II do que nas outras áreas de moradia visitadas. Acredito também que tenha sido atraída pela estrutura residencial significativamente diversa daquelas nas quais vivi e, ao mesmo tempo, pelo ambiente de nuances familiares e interioranas. Despertou curiosidade o fato de que, aparentemente, o cotidiano dos moradores eram semelhantes mesmo se desenvolvendo em estruturas urbanas tão diversas quanto o são um bairro tradicional de uma cidade média do interior e um conjunto habitacional composto por edifícios. Além disso, a condição de resíduos de espaços nestes conjuntos mostrou-se, naquele momento, mais evidente do que nos outros locais, ao mesmo tempo em que as causas de sua existência eram menos explícitas. Por outro lado, se estudasse apenas resíduos presentes em conjuntos habitacionais populares, haveria grande risco da pesquisa se tornar apenas uma crítica a este modelo de produção urbana, o que não é o propósito2. Deste modo, foi entendida como necessária a compreensão sobre como são os espaços residuais num contexto que fosse um contraponto às áreas de moradia, o que me fez optar a também estudar os espaços da Av. Tancredo 1

Estes moradores foram fundamentais para que eu conhecesse outros residentes da Fazenda Grande II, abrindo caminhos para que desenvolvesse o conhecimento de algumas características deste conjunto. 2 Numerosos e importantes trabalhos já vêm se dedicando a estudar conjuntos habitacionais populares no Brasil, principalmente aqueles produzidos pelo Banco Nacional da Habitação – BNH. A maioria dirige seus esforços para a elaboração e avaliação de pós-ocupação, verificando alterações no espaço projetado e as contradições entre este e o espaço construído pelos moradores, e para a construção de reflexões sobre a política habitacional brasileira para classe social de menor renda. Ver, por exemplo, a tese “Do espaço projetado ao espaço vivido: modelos de morfologia urbana no Conjunto Rubem Berta”, de Décio Rigatti ou a dissertação “Investigações sobre as alterações do espaço construído: as transformações na Arquitetura e no desenho da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais”, de Agostinho Celso Zanelo de Aguiar. 15

Neves. Este é um local empresarial e de serviços com bastante visibilidade em Salvador, alvo de grandes empreendimentos privados e de significativos investimentos públicos que dão suporte a tais empreendimentos. Considerei que seria importante verificar espaços pouco visíveis inseridos nesse contexto, buscando entender o que poderia significar a sua existência. Isto posto, o que proponho é pesquisar espaços residuais, muitos deles vazios e livres de edificação, mas cujas particularidades escapam dos estudos predominantes sobre vazios urbanos e sobre espaços livres na cidade, em dois contextos específicos de Salvador. Tento verificar as lógicas ou incoerências que os engendraram e quais são as particularidades destes espaços vulgares da cidade. Busco entender o que está presente na cidade, mas cuja existência praticamente não é notada. O que está desenhado e, principalmente, o que não está desenhado, quer – ou pode vir a – dizer, o que o silêncio pode dizer do que não é explícito.

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I.

RESÍDUO, VAZIO, ESPAÇO LIVRE E (IR)RACIONALIDADE

1.1 Vazios urbanos e espaços residuais Um dos primeiros caminhos percorridos para chegar a um entendimento sobre os espaços residuais foi o estudo dos “vazios urbanos”, expressão amplamente usada para definir grandes áreas desocupadas em meio à malha urbana, substituída, a depender do enfoque pretendido, pelas expressões wastelands, friches urbaines3 ou terrain vague. Este último termo foi pensado pelo arquiteto catalão Ignasi de Solà-Morales, e é importante pontuar seus múltiplos e complementares sentidos. Terrain é, en primer lugar, una extensión de suelo de límites precisos, edificable, en la ciudad. [...] Pero la palabra terrain francesa se refiere también a extensiones mayores, tal vez menos precisas; está ligada a la idea física de una porción de tierra en su condición expectante, potencialmente aprovechable pero ya con algún tipo de definición en su propiedad a la cual nosotros somos ajenos. (SOLÀ-MORALES, 2002, p. 186)

Solà-Morales (2002) explica ainda que a expressão traz a ideia de instabilidade e de movimento, posto que a palavra “vague” tiene un doble origen latino además de uno germánico. Este último, de la raíz vagr-wogue, se refiere al oleaje, a las ondas del agua, u tiene un significado que no es ocioso retener: movimiento, oscilación, inestabilidad y fluctuación. (p. 186)

No que diz respeito à sua raiz latina, “vague” deriva de “vacuus, vacant, vacuum”, que traz tanto o sentido de ausência de uso quanto de liberdade e de expectativa, e isso é um aspecto fundamental para entender as intenções de Solà-Morales ao empregar a expressão terrain vague. Quando Solà-Morales desenvolve este termo, ele o faz a partir da reflexão sobre imagens fotográficas de estruturas físicas engendradas e esquecidas pela economia (logo, pelo capitalismo, embora ele não use esse termo) como “áreas industriales, estaciones de ferrocarril, puertos, áreas residenciales inseguras, lugares contaminados, [que] se han convertido en áreas de las que se puede decirse que la ciudad ya no se encuentra allí” (SOLÀMORALES, 2002, p. 187-8). Estes são lugares esquecidos, obsoletos, com predominância da memória do passado sobre o presente, esvaziado da atividade urbana. Também são restos do sistema urbano, “lugares externos, extraños, que quedan fuera de los circuitos, da las estructuras productivas” (p. 187). Espaços residuais são terrain vague, entretanto não são, rigorosamente, estranhos, uma vez que são locais assimilados pela cidade e pelos usuários desta. Estão inseridos em 3

Segundo Merlin e Choay (1985), apud Mendonça (2001), friches urbaines são “‘terras livres e abandonadas no meio urbano e na periferia por não terem sido cultivadas ou construídas, onde há demolições de edifícios, fábricas ou instalações provisórias. Os antigos quarteirões de fábricas e vilas operárias’.” 17

determinado contexto urbano, ainda que muitos estejam excluídos da dinâmica da cidade, posto que não são apropriados ou utilizados. Os espaços residuais tampouco podem ser considerados obsoletos, ultrapassados. São eminentemente contemporâneos, são inerentes a este momento em que escrevo; não representam algo ou alguma situação que resta do que foi extinto, que não mais existe. Foram produzidos em algum momento que já passou, mas são espaços do hoje, dos acontecimentos presentes e quando alguém porventura os olha, não vê uma imagem do passado. No Brasil, verifica-se que pesquisadores que se interessam pelo ausente, pelo esquecido, pelo que sobra na cidade e na arquitetura apropriam-se das expressões acima mencionadas, detendo-se principalmente a estudar espaços abandonados com significativa influência na cidade – ou em parte desta – e que, no momento da pesquisa, são áreas que se caracterizam pela falta de uso, pela obsolescência, pela degradação e, essencialmente, claro, pelo vazio. Vazio de uso, de dinâmica, de gestão, e, muitas vezes, vazio no sentido literal da palavra: não há nada naquela porção de terra urbana que pudesse ser considerado obra do homem, a não ser a determinação do seu limite. Estas áreas são, por exemplo, margens de cursos d’água que atravessam a cidade, terrenos que servem à especulação imobiliária, espaços de antigas ferrovias abandonadas, zonas portuárias que perderam sua importância e áreas industriais desativadas. Por exemplo, Costa (2010) estudou possibilidades de reutilização dos vazios existentes na área portuária de Niterói, de modo que estes venham a ser elementos estruturadores de transformações urbanas nesta cidade. Donadon (2009) interessou-se em avaliar a aplicação do conceito de terrain vague nas áreas abandonadas de Campinas, como regiões ao longo de rios, de estradas de ferro desativadas e de áreas industriais obsoletas. Tarnowsky (2007) pesquisou vazios urbanos de Curitiba, analisando a influência destes na paisagem e na percepção urbana, buscando, com isso, estabelecer subsídios à gestão da cidade e meios para que eles voltem a ser utilizados. Dittmar (2006) se interessou em identificar estratégias de intervenção em vazios urbanos ociosos originados de ferrovias, indústrias desativadas, antigas zonas portuárias, também na cidade de Curitiba. Focando nos remanescentes ferroviários desta cidade, essa pesquisadora traz reflexões referentes à paisagem, à morfologia e à gestão de cidades. Silva (2006) analisa a morfologia urbana de Franco da Rocha, com foco nos vazios urbanos que devem ser preservados ou que devem ser utilizados como áreas de expansão da cidade. Marchi (2002) estuda os vazios de antigas áreas industriais, propondo o que ele chama de “redesenho” para dotar esses espaços de novas apropriações, reinserindo-os na lógica urbana vigente. Ebner (1997) pesquisa a questão fundiária e a situação (tamanho, localização, infraestrutura) dos vazios de Campo Grande, buscando entender essas questões sob o viés do planejamento urbano, com o intuito de elaborar diretrizes para a ocupação das áreas vazias. Meca (1997) se debruçou sobre espaços remanescentes da ferrovia de Bauru, de modo que eles sejam aproveitados na construção de um sistema de áreas verdes públicas. 18

A grande questão das investigações que se interessam pela temática parece ser examinar meios e estratégias de intervenção, de modo que seja viabilizada a “reutilização” dos vazios urbanos, a sua “reinserção” na dinâmica da cidade, o cumprimento da função social destas áreas. Além de Costa (2010), Meca (2007), Tarnowsky (2007), Silva (2006), Dittmar (2006), Marchi (2002) e Ebner (1997), acima mencionados, também Sanches (2011), Andrade (2010), Puntoni (2005), Trevisan (2004) e Souza (2002), orientam suas pesquisas, em essência, neste sentido4. Teixeira e Ganz (2008) observam ainda que a paisagem das grandes cidades é composta por muitos elementos residuais. Regiões vacantes, vazios sub-utilizados e terrenos baldios configuram áreas abertas e sujeitas às pressões econômicas e sociais que produzem a cidade. Áreas vizinhas a ferrovias, regiões desindustrializadas, centros históricos em declínio, portos desativados – todos vêm se transformando num imenso manancial propício para megaintervenções, uma tendência mundial que tem gerado várias formas de revitalizações e transformações urbanas. (p. 62)

Constata-se, portanto, que se tem muita fé nos vazios. Eles são entendidos como elementos potencialmente transformadores da cidade, e, nesse caso, pondera-se em que medida e de que forma eles devem ser tratados como zonas estratégicas de intervenções urbanas. É também uma preocupação recorrente a tentativa em estabelecer subsídios à gestão dos vazios inseridos na malha urbana, assim como ao planejamento pra a reutilização dos mesmos, como é o caso das pesquisas de Sanches (2011), Andrade (2010), Bazolli (2007), Tarnowsky (2007), Dittmar (2006) e Ebner (1997). Em menor medida, tem sido analisada a influência dos vazios na paisagem da cidade, o que é feito, por exemplo, por Dittmar (2006) e por Tarnowsky (2007), sendo que esta última pesquisadora se detém ainda sobre a percepção que os usuários têm das áreas vagas. O trabalho de Pratschke (1996) foge um pouco dessas abordagens ao buscar entender o papel do vazio como elemento conceitual da arquitetura, confrontando aquele resultante de processos urbanos metropolitanos com aquele pensado no processo projetual. Também com direcionamentos menos habituais, podem-se citar os trabalhos de Bazolli (2007) e de Lima (2006). Bazolli (2007) aborda vazios urbanos na área central de Palmas, com o intuito de investigar o efeito destes no custo de urbanização da cidade, o motivo de sua permanência e sua relação com o mercado imobiliário. Lima (2006) ocupa-se sobre interstícios e sobras que envolvem a arquitetura, buscando entender como surgiram, como 4

Sanches (2011) propõe uma estratégia de planejamento através da recuperação de áreas vazias, abandonadas e subutilizadas, as quais devem cumprir função como áreas verdes infraestruturantes. Andrade (2010) intenta relacionar vazios urbanos e políticas urbanas para a sua reinserção na dinâmica urbana. Puntoni (2005) investiga possibilidades de intervenção, de cunho habitacional, em espaços vazios na Avenida Nove de Julho, em São Paulo. Trevisan (2004) analisa formas de “(re)utilização” de vazios urbanos na cidade de Porto Alegre. E Souza (2002) trata os terrenos vagos como espaços abertos à construção de novos espaços públicos. 19

se consolidaram, como são apropriados e, principalmente, identificar o comportamento ambiental destes espaços e a sua influência no entorno. Robert Venturi, no livro “Complexidade e contradição em arquitetura”, trata certos espaços internos ao edifício como resíduos. Em sua abordagem, estes espaços são elementos de menor importância, sobrepujados por um amplo espaço central, os quais permeiam e se opõem a um espaço dominante. Embora ele esteja falando de espaços arquitetônicos, não ignora que suas reflexões possam ser transferidas para o âmbito urbano: O espaço residual de permeio entre espaços dominantes, com diversos graus de abertura, pode ocorrer na escala da cidade e é uma característica dos fora e de outros complexos do planejamento urbano romano tardio. Os espaços residuais não são desconhecidos em nossas cidades. Estou pensando nos espaços abertos sob nossas auto-estradas e nos espaçostampões a sua volta. Em vez de procedermos ao reconhecimento e à exploração dessas espécies características de espaços, convertemo-los em estacionamentos ou gramados raquíticos – uma terra de ninguém entre a escala regional e a local. (VENTURI, 1995, p. 111)

Embora seja muito comum relacionar a ideia de vazio urbano com a ideia de resíduo – sendo que muitas vezes os vazios na cidade são diretamente qualificados como resíduos – percebese a ausência de problematização sobre como os conceitos invocados por estas palavras se relacionam. Isso se torna claro a partir da constatação de que certos espaços na cidade, produzidos por um projeto urbano e/ou inseridos neste, podem ser qualificados como resíduos, mas, não necessariamente, como vazios urbanos, ao menos não no sentido em que esta expressão é correntemente aplicada. Nesses espaços produzidos, entende-se que o caráter de resíduo é preponderante ao de vazio. E é pertinente observar que, quando se estuda as áreas vagas da cidade, como as antigas zonas de ferrovias, portos ou indústrias, a qualificação destas como um resíduo tende a ser feita de maneira secundária e sempre associada ao termo chave “vazio”. Ademais, o termo “resíduo” não é associado com a dimensão física que esta palavra invoca, relação que busco trazer nesta pesquisa. Não tendo encontrado trabalhos que se questionem sobre os possíveis significados de “vazio” e de “resíduo” no âmbito espacial e urbano, tenta-se iniciar esta discussão a partir do que é trazido pelo dicionário 5. Em sua acepção adjetiva, vazio quer dizer, entre outros aspectos, “que não contém nada”; “que contém alguma coisa, mas em quantidade muito inferior à sua capacidade”; “que não há ocupantes ou frequentadores, ou em que os há em pequena quantidade”; “que não é habitado, ou que possui poucos habitantes; despovoado, desocupado, desabitado”; “que é ou se encontra falto, privado ou carente de algo” 6. Como substantivo, vazio é um “espaço não ocupado por matéria, ou o mais esvaziado possível da matéria que continha; vácuo”; “ausência de conteúdo”; “espaço desabitado dentro de uma 5

Certamente, a discussão do vazio não se resume ao que está definido em dicionário. Ela envolve outras complexas e profundas reflexões, desenvolvidas por diversas abordagens filosóficas. 6 Dicionário Houaiss. Disponível em . Acesso em novembro de 2012. 20

área habitada”; “partes não preenchidas ou não ocupadas de algo parcialmente preenchido”7. Resíduo, como adjetivo, é simplesmente o “que resta, que remanesce” 8. Como substantivo, é “aquilo que resta”; “produto parcial”; “qualquer substância que sobra de uma operação industrial e que pode ainda ser aproveitada industrialmente” 9. E, sendo algo que resta, caberá verificar, ao longo da pesquisa, qual a origem desta sobra. Se são restos, são restos de que? Com essas definições, tem-se que a essência do vazio é a ausência. Resíduo é, fundamentalmente, algo que permanece como um resquício, parte de algo que o precedeu, parte de um processo de transformação que continua a existir como um elemento de menor valor e, na maioria das vezes, de menor dimensão física. E esses entendimentos não são excludentes entre si, não há relação de oposição entre vazio e resíduo, mas sim de complementaridade. Um porto, uma fábrica, uma ferrovia desativada, um terreno e uma margem de rio abandonada e/ou desocupada, tudo isso é espaço onde falta algo ou onde alguma coisa deixou de ocorrer, mas também são espaços que permanecem, cuja materialidade continua a existir dentro da estrutura da cidade. Entende-se, por seu turno, que espaços urbanos qualificados como resíduos são pequenas sobras que podem ser produzidas por uma operação urbanística 10 ou por alterações na dinâmica urbana, podendo apresentar ausências e estar vazios (em diversos aspectos) ou não. Assim, vazio e resíduo não são antagônicos, são, na esfera espacial e urbana, a materialização de significados que se combinam em proporções específicas a cada elemento. Há ainda uma definição do substantivo resíduo que é preciso discutir: “parte de um corpo impróprio para consumo ou utilização” 11. Certamente, o caráter “impróprio” de um resíduo está relacionado à forma como ele é utilizado. Porque, aquilo que é impróprio, o é em certa condição, tendo em vista determinado modo de emprego e destinação. Ou seja, é preciso que se pergunte para quem e para qual uso o resíduo é inadequado. Cabe ainda pontuar dois aspectos que diferenciam os vazios urbanos daquilo que estou entendendo como resíduo. Primeiro, todos os elementos caracterizados como vazios, nos trabalhos estudados, não nasceram, claro, com esta característica. Por outro lado, é possível que certo espaço tenha o caráter de resíduo desde o momento inicial de sua produção. Segundo, o abandono é uma qualidade constante nos vazios urbanos, enquanto que muitos dos espaços residuais não poderiam ser abandonados, posto que não foram destinados ao uso.

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Idem. Ibidem. 9 Ibidem. 10 Tal operação envolve diversos aspectos da constituição do espaço da cidade, incluindo projetos arquitetônicos e urbanísticos. 11 Ibidem. 8

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Nesta pesquisa, interessa verificar espaços residuais inseridos em determinados contextos de Salvador, verificando a partir de que e o motivo pelo qual foram produzidos, a sua situação atual, maneiras de reversão de sua situação enquanto resto, assim como a sua transformação em sobras. E, nestes contextos, opta-se por chamar tais espaços de resíduos, e não de vazios, ao se considerar três questões: primeiro, é preciso marcar a diferença com os vazios urbanos comumente estudados; segundo, a palavra “resíduo” traz consigo a ideia de algo menor do que aquilo que o produziu, o que, como se verá, é essencial neste trabalho; terceiro, os espaços estudados podem ou não estar preenchidos, ocupados por uma estrutura, por um cotidiano, por uma atividade relativamente constante. Uma característica fundamental dos espaços residuais que interessam a esta pesquisa é a sua dimensão física, posto que são significativamente menores que aqueles referidos como vazios urbanos, predominantemente estudados. Estes possuem grandeza tal que impõem sua presença na paisagem urbana e sua influência incide sobre um bairro e, por vezes, sobre toda cidade. A influência dos resíduos não extrapola os limites do seu contexto próximo, estando dissolvidos no urbano e na interface entre o local em que se inserem e a cidade. Apenas a utilização de um mapa ou planta não permite identificá-los e dificilmente são perceptíveis através de fotografias aéreas. Nestes espaços residuais, uma pessoa não precisa se afastar para abarcá-lo com o olhar e pode percorrê-lo com poucos passos. Ou seja, são facilmente experimentados pelos sentidos. 1.2 Espaços livres e espaços residuais Segundo Macedo (1995), os espaços livres na cidade são “todas as ruas, praças, largos, pátios, quintais, parques, jardins, terrenos baldios, corredores externos, vilas, vielas e outros mais por onde as pessoas fluem no seu dia-a-dia em direção ao trabalho, ao lazer ou à moradia ou ainda exercem atividades específicas *...+” (p. 16). Espaços residuais são, certamente, espaços livres de edificação. Entretanto não podem ser chamados de nenhum desses tipos relacionados por Macedo, a não ser, e só em certos casos e por certo viés, de terrenos baldios. Os resíduos são pequenos nadas urbanos, que não podem ter estes nomes, posto que, todos designam uma função, indicam o uso a que se destinam na cidade, excetuando, novamente, os terrenos baldios. Os espaços que sobram na cidade, aqui estudados, ainda carecem de classificação dentro da discussão sobre espaços livres, posto que não são, na forma como define Macedo (1995), nem “espaços verdes”, só alguns podem ser considerados “áreas verdes”, nem “áreas de lazer” e tampouco “áreas de circulação” 12, mesmo que, por vezes, tenham sido projetados para o trânsito de pedestres, como adiante se verá.

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As definições dadas pelo autor a estes tipos de espaços livres são: espaço verde é “toda área urbana ou porção do território ocupada por qualquer tipo de vegetação e que tenham um valor social” (p. 16); área verde é “toda e qualquer área plantada, tendo um significado social expressivo ou não” (p. 20); áreas de lazer são locais destinados prioritariamente ao lazer ativo e/ou contemplativo; áreas de circulação é todo espaço destinado “exclusivamente à circulação e acesso de veículos e pedestres” (p. 21). 22

Espaços livres também seriam elementos de conexão da zona habitacional na malha urbana, servindo de ambiente comum para os usuários. Ademais, segundo Maia (2008), “de uma maneira coesa, pode-se dizer que os espaços livres desempenham basicamente três funções, sendo: papel ecológico; integrador de espaços diferentes; fornecedor de áreas para atividades de lazer ao ar livre” (p. 44). O fato dos espaços residuais não desempenharem nenhum destes papéis é outro indicador de que, embora sejam espaços livres na cidade, suas particularidades não estão inseridas nessas discussões. Não obstante, seus estudiosos entendem que muitos espaços livres tornam-se apenas restos da produção da cidade. Como constata Macedo (1995), “o espaço livre como projeto de espaço urbano é praticamente desconhecido pelos profissionais e pela população, que o veem como um espaço residual a ser ajardinado ou simplesmente deixado de lado” (MACEDO, 1995, p. 52). Também nesse sentido, Benvenga (2011), em seu trabalho sobre espaços livres em conjuntos habitacionais, constata que a grande maioria dos espaços livres destes locais apresenta-se como sobras do partido urbanístico. Desse modo, e tendo em vista o que foi possível extrair dos trabalhos estudados que se ocupam dos espaços livres de edificação na cidade, acredito ser pertinente inserir a classificação espaços residuais neste universo de estudo, de modo a explicitar suas especificidades, evitando possíveis imprecisões na sua caracterização. 1.3 (Ir)Racionalidade e espaços residuais O artista e arquiteto Gordon Matta-Clark conseguiu falar dos absurdos e contradições do planejamento, da produção e da regulação da cidade de forma incrivelmente sagaz. Uma de suas obras nos ajuda, particularmente, a ter dimensão de certos aspectos ilógicos da constituição da cidade capitalista, dentro da discussão sobre espaços residuais aqui proposta. Em 1973, a prefeitura de Nova York, então em grave situação financeira, leiloou pedaços minúsculos de terreno, muitos deles inacessíveis. Matta-Clark arrematou quinze dessas indesejáveis lascas de terra – restos urbanos remanescentes do zoneamento do Queens – produzidas por um planejamento racionalista, as quais eram impossíveis de serem utilizadas segundo a lógica deste mesmo modelo de plano. Matta-Clark documentou estas áreas de forma exaustiva e detalhada através de fotografias, e a reunião destas imagens com as escrituras e plantas dos microterrenos resultou na obra Realty Properties: Fake Estates13 (CRAWFORD, 2010). Para que se tenha ideia da dimensão e da situação desses espaços, eles eram, por exemplo, “um quadrado de 30 centímetros em um miolo de quadra, ou uma faixa linear de apenas 1 metro de largura entre duas ruas” (WISNIK, 2010), ou ainda “um quadrado com lados de aproximadamente sessenta centímetros e se encontrava na esquina

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Mais para ilustrar a ampla e complexa significação do título da obra do que para construir uma tradução, trago possíveis entendimentos da expressão. Reality Properties pode significar: propriedades reais; caráter real; direito real de posse. Por seu turno, Fake Estates pode significar: falso espólio; falsa posição social; falso estamento; falso patrimônio. 23

central de quatro propriedades, completamente ilhado” (CRAWFORD, 2010). Segundo Wisnik (2010), a inteligência da obra comenta não apenas a irracionalidade dos processos urbanos oculta sob a aparente disciplina ordenadora das suas edificações, mas também acusa o processo de apagamento de setores menores e mais comunitários da cidade pela impessoalidade desagregadora do processo de modernização capitalista, tal como denunciado por Jane Jacobs desde o início dos anos de 1960. (p. 196)

Esta obra põe em evidência nesgas de terra desprezadas por todos, produzidas por uma pretensa racionalidade urbana. Põe em destaque o lixo territorial que o planejamento que o gerou é incapaz de absorver, através do qual se constata a absoluta dissolução do valor de uso, havendo, tão somente, valor de troca. Do mesmo modo, os espaços residuais aqui estudados não podem ser empregados, a não ser por um modo de agir e construir que subverta os fundamentos ideológicos e formais que o produziu. Utilizando-se de meios financeiros e legais inerentes à forma de produção capitalista do espaço, o artista demonstrou suas contradições, a falta de sentido das formas de regular o espaço e, principalmente, faz pensar o que significa usufruto, posse e propriedade do solo urbano. Diante deste caso extremo, pergunta-se qual o sentido de ter a propriedade do solo, se este não pode ser adequadamente usufruído, se a efetivação da sua posse é inviabilizada pela própria estrutura urbana, pela própria materialidade deste espaço? E, tendo em vista o que é abordado nesta pesquisa, o que significa os espaços residuais serem propriedades públicas, se não se constroem condições para que eles sejam vividos, experimentados? Estes espaços, também restos da construção dominante da cidade, deixados para serem de todos, acabam se tornando de ninguém ou de um só. Ademais, é inevitável certa perplexidade diante deste minucioso controle do solo pelo poder público. Mesma perplexidade que é possível ter diante da expressiva imprecisão, e mesmo descontrole, sobre os espaços que resultam de uma intervenção urbana e que são destinados ao uso público no município de Salvador.

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II.

CONJUNTOS HABITACIONAIS E AVENIDA

Como dito, os locais onde fui procurar espaços residuais em Salvador, de modo a entendêlos, foram os conjuntos habitacionais Fazenda Grande II e Cajazeira VI e a região de trecho da Avenida Tancredo Neves. E é importante pontuar, ainda que brevemente, o contexto urbano e político em que estes locais, que hoje apresentam importância fundamental em Salvador, foram produzidos. A Av. Tancredo Neves foi implantada pela Prefeitura de Salvador durante a gestão de Antônio Carlos Magalhães (ACM), que se deu entre 1967 e 1970, a qual, segundo Dantas Neto (2003), serviu de vitrine para que ele fosse nomeado, pelo governo militar, para o Governo do Estado no período 1971-1975. Foi com ACM na prefeitura que se inicia a implantação de uma “esgarçada rede viária” e quando a lei 2.181/1968 é aprovada pela Câmara Municipal, a qual permitiu que milhões de metros quadrados de terras pertencentes ao município fossem vendidos a particulares (BRANDÃO, 1979). A partir de então, os próximos dez anos vão se constituir como um período de extrema comoção da fisionomia da cidade, reflexo do violento processo de liberação de áreas para a especulação. Do ponto de vista do controle do solo, entra-se numa fase de acomodação – empregando a palavra no sentido usado pelos geólogos – de sedimentação de um novo padrão de posse e uso do solo, como se a cidade estivesse ficando ‘pronta’, como base física e fundiária de um mercado ‘normal’ de valores imobiliários. (BRANDÃO, 1979, p. 141)

Fazendo parte da nova conformação econômica e territorial iniciada com estes processos, temos a produção do complexo de conjuntos habitacionais populares de Cajazeira-Fazenda Grande, cuja concepção, desenvolvimento e construção estiveram a cargo do Estado, durante três diferentes mandatos. A concepção se inicia no governo de Roberto Santos (1975-1979), através da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CEDURB), órgão criado por ele em 1976. Roberto Santos é sucedido por ACM, seu adversário político, que, nesse seu segundo mandato como governador (1979-1983), extingue a CEDURB e incorpora parte deste órgão à URBIS, companhia executora da política habitacional na Bahia, onde são elaborados e finalizados, com alterações, os projetos executivos dos conjuntos habitacionais. A construção destes se dá, por fim, na gestão de João Durval (1983-1987), único dentre os três a ser eleito por voto direto. Ainda que tenha passado por diferentes dirigentes políticos, por vezes adversários, o grande protagonista político da Bahia, no período de produção e de consolidação da Av. Tancredo Neves, da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI, ou seja, entre o final dos anos 60 e o final dos anos 90 foi, indubitavelmente, ACM. Em seus dois mandatos como governador contou com apoio político e econômico do governo militar, impondo seu estilo autoritário, conservador e personalista. Manteve ainda “a sociedade civil baiana sob forte constrição autoritária” (DANTAS NETO, 2003, p. 225), agindo com forte autoritarismo em relação às prefeituras 25

municipais, notadamente a da capital, levando a um “bloqueio da autonomia municipal” que, segundo DANTAS NETO (2012), se observa na incapacidade historicamente constatável de forças políticas (lideranças, partidos, grupos) atuantes na capital da Bahia de darem conta, através da representação política e/ou da gestão do Poder Executivo Municipal, de um contencioso latente em torno de interesses, valores e práticas (estratégias), vinculado à configuração urbana da cidade moderna. Questão, portanto, de práxis local e também de forte condicionamento da sociedade política de Salvador pelo protagonismo da elite política estadual, que tinha na capital ao mesmo tempo um campo de intervenção privilegiado e uma vitrine de justificação do seu domínio sobre o conjunto do Estado. (p.2)

Durante estes mandatos de Antônio Carlos Magalhães, Salvador passou por grandes transformações econômicas e sociais, além de considerável acréscimo populacional 14 , refletidas nas mudanças da estrutura espacial da cidade. É um período caracterizado por uma “modernização conservadora” 15 , por um desenvolvimentismo sem equivalente equidade social e por intensas transformações econômicas e urbanas sem que houvesse alterações equivalentes no poder político local (DANTAS NETO, 2011). Eram em tais questões que a produção da avenida e dos conjuntos habitacionais esteve inserida. E tais locais, com especificidades tão marcantes, apresentam elementos característicos a cada um a serem descritos, os quais conduzem a uma análise, também ela, particular a cada local. Não obstante, o desenvolvimento da descrição e a construção das análises foram feitos do mesmo modo. O processo foi iniciado com visitas a campo, em dias da semana e horários diversos, as quais foram acompanhadas por leituras que iam fornecendo lastro teórico que conduziram a determinada compreensão sobre o que vinha sendo observado. Deste modo, a apreensão do que era observado foi auxiliada pelas leituras, ao mesmo tempo em que tais observações esclareciam muitos pontos abordados pelos autores estudados, ou seja, não houve momento dedicado apenas a observações ou apenas a leituras. Certos estudos teóricos demandavam visitas para que fossem tiradas algumas dúvidas ou para que certas interpretações fossem ou não corroboradas, ao tempo em que o trabalho em campo conduzia a busca por determinados assuntos e por pesquisas já desenvolvidas. Nesse caminho, o olhar inicial, de dúvidas e interrogações, embora não tenha desaparecido por completo, foi sendo sobreposto por um olhar mais dirigido e consciente a respeito do entendimento sobre o que eram espaços residuais nos locais estudados, e, principalmente, em que sentido eles deveriam ser assim caracterizados.

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A taxa de crescimento demográfico de Salvador entre 1970 e 1980 foi de 4% a.a., dinâmica que se mantem até a década de 1990 (CARVALHO; CARVALHO; GÓES, 2001). 15 Segundo Dantas Neto (2003), essa expressão caracteriza as modernizações pelo alto, “em que a autoridade política, enquanto constrange a ação de grupos situados fora da ordem estabelecida, promove mudança social politicamente orientada, compatibilizando interesses e valores de elites modernizantes e conservadoras” (p. 221). 26

Apenas depois de haver apreendido minimamente aspectos empíricos sobre Fazenda Grande II, Cajazeira VI e a Av. Tancredo Neves, e de haver compreendido alguns princípios teóricos, iniciei a busca por documentos que fizeram parte da produção destes locais, pela legislação vigente à época de elaboração dos projetos, por registros em jornais e por pesquisas que construíram reflexões sobre os espaços aqui estudados. Também nesse momento iniciei conversas, dirigidas a esta pesquisa, com moradores da Fazenda Grande II 16 e com técnicos envolvidos na elaboração dos projetos urbanísticos e arquitetônicos de Cajazeira-Fazenda Grande17. Tais documentos e conversas ajustaram as suposições iniciais, ao mesmo tempo em que trouxeram informações que redirecionaram algumas interpretações. Com este arcabouço, novas leituras e observações nos locais se fizeram necessárias, as quais foram conduzidas com olhar mais preciso. A primeira coisa procurada pelo meu olhar era distinguir os cheios e os vazios, o que levava a ponderações sobre as suas relações. Os cheios foram considerados, essencialmente, como volumes que definiam espaços abertos, ao mesmo tempo em que eram envolvidos por eles. Tendo sempre tais volumes na visão periférica, o foco foi direcionado para locais onde nada estava construído, e, nestes espaços, tentei identificar os eventos que nele aconteciam, e, principalmente, o que deixava de ocorrer. Busquei ainda perceber, com maior atenção, locais escondidos, dissolvidos no contexto em que estavam inseridos. Com isso, acredito ter chegado a uma abordagem que envolve os planos ou projetos urbanos que produziram Cajazeira VI e Fazenda Grande II, e que incidiram sobre a Av. Tancredo Neves, e que abrange, ao lado disso, a configuração física atual destes locais e as ações sociais visíveis que neles acontecem. 2.1 Cajazeira VI e Fazenda de Grande II Para explicar a produção dos conjuntos habitacionais de Cajazeira VI e da Fazenda Grande II, é preciso entender três contextos nos quais ela está inserida: a política nacional de habitação; o desenvolvimento industrial metropolitano; a expansão dos limites de ocupação urbana da cidade de Salvador. O Banco Nacional da Habitação – BNH é criado em agosto de 1964, tendo sido posto como uma resposta do recém-instituído governo militar ao intenso adensamento urbano e ao aumento das áreas de ocupação irregular verificados nas principais cidades brasileiras. Segundo Espírito Santo (2002), agia-se “no intuito de angariar simpatia junto aos setores populares e médios porventura descontentes com as mudanças decorrentes da implantação forçada do novo regime *...+” (p. 44). O BNH foi o órgão central da política habitacional do país até a sua extinção, em 1986, atuando como gestor e financiador, fazendo parte do projeto de desenvolvimento 16

Dado que Cajazeira VI e Fazenda Grande II são muito semelhantes em termos físicos e sociais, optei por concentrar as entrevistas nos moradores da Fazenda Grande II. 17 Não foi possível identificar técnicos que tenham trabalhado na elaboração de projetos urbanos na Av. Tancredo Neves. 27

econômico mais amplo pretendido pelo governo federal. Seu papel era formular as normas e orientações técnicas que deveriam ser seguidas pelos estados, assim como financiar a política de habitação. Cabia aos governos estaduais se integrar e operacionalizar esta política através da criação de companhias de habitação e, no caso da Bahia, foi instituída, em 1965, a URBIS – Habitação e Urbanização da Bahia S.A., instituição de economia mista. Apenas em 1973 o BNH aprova as diretrizes do Plano Nacional de Habitação Popular – PLANHAP, passando a atender, com este programa, não apenas a construção de unidades habitacionais, mas também projetos de urbanização, com a implantação de infraestrutura e de equipamentos públicos (ALMEIDA, 2005). Para viabilizar as determinações do Plano, o Governo do Estado da Bahia firmou convênio institutivo do referido plano com o BNH, em dezembro de 1973, no qual entre os objetivos firmados, se ressalta a eliminação do déficit habitacional, no mesmo período de 10 anos. (ALMEIDA, 2005, p. 47)

A partir do PLANHAP, o Governo do Estado da Bahia cria, em 1976, a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia – CEDURB, com o objetivo de implementar as diretrizes definidas nacionalmente por este plano. Com recursos do PLANHAP, a CEDURB coordenou o Plano de Desenvolvimento Urbano e Habitacional do Estado da Bahia, que propunha a produção de habitação em larga escala a partir da ideia de desenvolvimento de alcance metropolitano. A intenção era de, ao invés de construir pequenos conjuntos habitacionais em áreas dispersas na cidade, como aqueles que vinham sendo feitos até então pela URBIS, executar grandes projetos em extensas glebas, integrando habitação, infraestrutura urbana e polos geradores de emprego. Assim, embora se mantenha como objetivo maior, passou-se a encarar a habitação como uma consequência lógica e natural de desenvolvimento urbano, desde que, ordenada uma determinada área e definido o uso do solo, delineiam-se naturalmente as necessidades de infra-estrutura e equipamentos urbanos, como suporte e condição imediata de viabilidades para a moradia. CAJI, CAJAZEIRAS, e NARANDIBA caracterizam-se, em decorrência, como Projetos Urbanísticos Integrados, que visam, precipuamente, atender a carência de habitações na RMS [Região Metropolitana de Salvador]. (GORENDE, 1978, p. 9)

Ao propor os Projetos Urbanísticos Integrados do Caji, de Narandiba e de Cajazeira, a CEDURB se dizia impelida por três fatos hoje já bastante consolidados nos estudos sobre Salvador: pela explosão populacional que teve início na década de 40 e que foi fortemente estimulada pela implantação da Petrobras nos anos 50, do Centro Industrial de Aratu (CIA) em 1967 e do Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC), em 1978; pela implantação do Centro Administrativo da Bahia (CAB), em 1972; e pela degradação do centro tradicional de Salvador (GORENDE, 1978). Tem-se, como consequência do primeiro fato, o aumento do déficit de moradias na Região Metropolitana de Salvador (RMS), estimado, para o ano de 28

1977, em 95.000 moradias (GORENDE, 1978). E, do terceiro, nada além da exclusão do centro tradicional dos planos e projetos urbanísticos e habitacionais promovidos pelo poder público. Tais fatos serviram de justificativa oficial para captar recursos que financiassem os planos elaborados sob coordenação da CEDURB. Mas, segundo Espírito Santo (2002), não teria sido o motivo principal: No caso baiano, esses recursos serviram como elementos úteis, principalmente, a pretensões políticas ocasionais de pessoas e grupos, aos interesses dos governos na captação de recursos federais e aos interesses de setores da construção civil, particularmente das suas parcelas que possuíam vínculos mais estreitos com o poder político vigente. Num plano secundário de objetivos, atenderam às demandas da população. (p. 197)

O Projeto Urbanístico Integrado Cajazeira, que posteriormente incluiu áreas da Fazenda Grande, é o maior dos três que foram elaborados sob gerenciamento da CEDURB (imagem 2). Através deste Projeto, o Governo do Estado tinha, oficialmente, a intenção de disciplinar o processo de urbanização desta parte do território da cidade, atendendo à camada mais carente da população, em consonância com o que determinava a política nacional de habitação. Foi adotado, para isso, um “modelo de urbanização extensiva e descontínua exigido pelas características topográficas da área” (BAHIA, 1977a, p.4). Ainda enquanto discurso, há que “o objetivo primeiro e principal é a habitação. Contudo, na evolução dos estudos manifestou-se, como a opção mais viável, a de encarar-se o problema em termos de desenvolvimento urbano e não exclusivamente habitacionais” (GORENDE, 1978, p. 9).

Imagem 2. Ocupação do território pelos conjuntos de Cajazeira-Fazenda Grande. As encostas e fundos de vale não ocupados são áreas ainda de propriedade da URBIS, tratadas como áreas remanescentes. Fonte da imagem: Sheinowitz, 1998.

O Projeto Cajazeira-Fazenda Grande continha, ainda, a ideia de consolidar a área de expansão ao norte de Salvador e de elaborar um planejamento de alcance metropolitano, tendo em vista a implantação de polos industriais em cidades da RMS. Este foi um 29

pressuposto contido nos documentos oficiais que versam sobre o Plano Urbanístico Integrado Cajazeira-Fazenda Grande: E, ao consolidar núcleos preexistentes, é seu propósito criar um novo polo de atração urbana, com características de um centro regional de oferta de moradias e prestação de serviços para Salvador e sua Região Metropolitana. (BAHIA, 1977b, p. 3)

Grande quantidade dos trabalhadores atraídos pelo desenvolvimento industrial da RMS não se fixaram nas cidades onde as indústrias foram implantadas, mas sim em Salvador, devido às vantagens que a capital oferecia, transformando-a, em certo sentido, numa cidade dormitório. Deste modo, justificou-se, também com isso, a produção dos conjuntos habitacionais de Cajazeira-Fazenda Grande em áreas ao norte de Salvador, próximas às cidades da RMS e, portanto, afastadas do centro tradicional (imagem 3). Gorende (1978) afirma ainda que: Para a locação dos Projetos, verificou-se a disponibilidade de áreas contínuas de grandes dimensões, bem assim o seu posicionamento em função dos vetores de expansão urbana de Salvador. Pela situação da Cidade, ocupando o vértice de um cone invertido, estes vetores definem-se, naturalmente, em razão das vias principais de acesso à área urbana e dos centros periféricos de oferta de empregos, notadamente o Centro Administrativo da Bahia (CAB) e os pólos industriais de Camaçari e Aratu. (p. 9)

A construção dos conjuntos habitacionais de Cajazeira-Fazenda Grande se insere, também, no contexto intramunicipal de expansão de Salvador em direção ao norte, promovida tanto pelo poder público quanto por agentes do mercado. O Governo do Estado inicia, em 1972, a construção do Centro Administrativo da Bahia, que passou a concentrar órgãos do governo estadual, e conclui, em 1974, a Rodoviária. Em 1975 é inaugurado o primeiro shopping center da cidade, e implanta-se um loteamento direcionado à população de alto poder aquisitivo, o Caminho das Árvores (SCHEINOWITZ, 1998), empreendimentos que induzirão a formação da nova centralidade do Iguatemi, onde a Av. Tancredo Neves está inserida. Todo o planejamento e execução dos conjuntos de Cajazeira-Fazenda Grande foram conduzidos pelo Governo do Estado, de forma centralizada, não havendo interlocução oficial com os órgãos da Prefeitura de Salvador. O poder municipal não participava das proposições de novos conjuntos, nem das decisões que eram tomadas, ainda que o Código de Obras de 1972 (Lei 2.473/72) determinasse que apreciação do projeto e a análise estética devessem ser feitas por órgão competente da Secretaria de Urbanismo e Obras Públicas. A legislação municipal da época era lacônica na regulação dos espaços dos conjuntos antes e durante a produção destes, apenas determinando que o afastamento entre blocos de apartamentos deveria ser de, no mínimo, seis metros e que as áreas livres deveriam receber vegetação de

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médio porte18. Espírito Santo (2002) constata que a atuação da URBIS nos municípios era “desvinculada dos trâmites municipais, a ponto dos projetos não se submeterem à aprovação das instâncias de regulação e controle do município” (p. 239). Almeida (2005) afirma ainda que A Prefeitura, por sua vez, embora responsável pelo controle e ordenamento do uso e ocupação do solo, restringia a sua atuação às demandas de licenciamentos para construção, que representavam muito pouco em relação ao construído, e a fiscalizar alguns casos de irregularidades que eram denunciados. (p. 78)

Isso pode ser entendido ante ao histórico “bloqueio da autonomia municipal”, mencionado anteriormente, característico na relação entre Prefeitura de Salvador e Governo do Estado. Atualmente, mesmo com a progressiva retomada do protagonismo do poder municipal no ordenamento do uso e ocupação do solo do município19, ainda não se tem claro quais são as atribuições devidas aos órgãos estadual (URBIS em liquidação ou CONDER 20) e municipal (SUCOM21), havendo certa indefinição no papel de cada instituição. Isto se reflete no fato de que, ainda hoje, se observa uma confusão muito grande entre os moradores sobre quem regula e fiscaliza os espaços livres dos conjuntos e, também, entre as próprias instituições públicas. Com o início do processo de liquidação da URBIS, em 1998, a propriedade das áreas de uso comum dos conjuntos habitacionais produzidos por esta companhia deveria ser passada para a Prefeitura de Salvador, o que, para a grande maioria dos conjuntos, incluindo Fazenda Grande II e Cajazeira VI, não foi feito até o momento. Deste modo, o município ainda não detém a titularidade destas áreas e, não houvesse sido firmado acordo entre a URBIS e a Prefeitura para que o IPTU não fosse pago, ainda hoje esta companhia habitacional pagaria este imposto ao município. O Projeto Urbanístico Integrado Cajazeira foi elaborado pela empresa Hidroservice – Engenharia e Projetos Ltda. em 1977, tendo sido contratado, como dito, pela CEDURB. O projeto da Hidroservice não compreendia as áreas da Fazenda Grande, que só foram agregadas a partir de 1980 pela URBIS. As principais diretrizes que conduziram o plano, e que estão postas nos seus documentos, foram, além de criar um subcentro de oferta de serviços e moradias para Salvador e sua região metropolitana, integrar os novos conjuntos aos núcleos habitacionais existentes – Sete de Abril, Castelo Branco e Pau da Lima –, consolidando-os e interligando-os com o CIA e com o COPEC (imagem 3) e ocupar, 18

Como será visto, esta última exigência não era cumprida nos conjuntos aqui analisados. Esta retomada se dá a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, sendo fortalecida pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). Não obstante, segundo Rolnik (2009), “nas áreas de desenvolvimento urbano a Constituição não estabeleceu qualquer hierarquização de competências de gestão entre os níveis de governo” (p. 19). 20 Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia. 21 Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município. 19

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exclusivamente, as áreas de cumeadas com declividade não superior a 20%, o que resultou numa urbanização extensiva e descontínua (BAHIA, 1977a; GORENDE, 1978), como pôde ser observado na imagem 2.

Imagem 3. Equipamentos que induziram a expansão da ocupação urbana de Salvador e justificaram a localização

de Cajazeira-Fazenda Grande. Imagem elaborada por Sanane Sampaio.

Com a extinção da CEDURB, em 1979, parte do órgão é incorporada à URBIS, que, a partir do plano geral concebido pela Hidroservice, desenvolve os projetos executivos dos conjuntos habitacionais de Cajazeira, inclui as áreas da Fazenda Grande e também licita e fiscaliza as obras. Na passagem do plano da CEDURB para os projetos da URBIS houve modificações, conservando-se, contudo, o que havia sido concebido para o sistema viário e para o modo de ocupação do território. O princípio técnico-ideológico na estruturação do Projeto Cajazeira-Fazenda Grande foi calcado na concepção funcionalista de organização do espaço, materializado, neste projeto, principalmente através do limite da densidade populacional, no zoneamento urbano segregado, na padronização da arquitetura e na rígida hierarquização viária, o que irá influenciar na morfologia dos espaços livres de edificação. Basicamente, foram o número de unidades habitacionais e as especificidades da topografia que levaram a diferenciações entre Fazenda Grande II e Cajazeira VI, as quais, entretanto, não chegam a conferir particularidades aos mesmos. Muito do que se pode dizer sobre um, pode ser dito sobre o outro. A respeito da implantação dos edifícios no terreno, o que foi possível verificar, nos dois conjuntos aqui estudados, é que, além da premissa em se ocupar apenas as cumeadas com 32

declividade inferior a 20%, havia preocupação em deixar espaço entre os prédios, de modo a favorecer um mínimo de ventilação e insolejamento, segundo afirmam os arquitetos responsáveis pelos projetos dos conjuntos. Assim, os edifícios de Cajazeira VI foram implantados com afastamento entre si de dez metros, enquanto que, em Fazenda Grande II, os afastamentos variam entre sete e dez metros. Não houve nenhuma proposição desenhada para estas áreas criadas e, segundo depoimento de Tânia Scofield de Souza Almeida, chefe de departamento da URBIS entre 1978 e 1996, não se cogitava, na época, a possibilidade de fazer muros ao redor dos edifícios e, embora afirme que os espaços abertos entre os prédios eram tidos como locais de convivência, confirma que não havia projeto para tais espaços. Apenas se determinava os caminhos de concreto que davam acesso aos edifícios. Regina Luz, chefe de departamento de estudos e projetos da URBIS, também afirmou, em entrevista, que as áreas livres eram entregues muito mais como espaços vazios. Por sua vez, o arquiteto Emanoel Araújo, que projetou Cajazeira VI, corrobora esta informação ao dizer que não houve projeto que detalhasse as áreas livres entre os prédios. Não deixa de ser importante o fato de que o partido urbanístico dos conjuntos – versão significativamente empobrecida de preceitos modernistas – tenha deixado espaços abertos a uma significação que pode ser particular a cada pessoa que veja, use, esteja nestes espaços. É curioso que tenha deixado espaços abertos à dubiedade, à interpretação, posto que, dentro da concepção funcional de produção da cidade, todos os espaços devem ter um significado claro, objetivo e universal. Novamente segundo Almeida, não havia preocupação com a orientação dos prédios em relação ao sol e à direção dos ventos, posto que, sendo quatro apartamentos por andar, um deles sempre estaria numa orientação desprivilegiada. Ademais, o que os projetos de Cajazeira VI e de Fazenda Grande II nos informam é, essencialmente, onde as unidades habitacionais estão locadas e como serão acessadas. Só. Tudo mais parece ter soado como detalhe supérfluo ante a escassez de recursos e à urgência em se concluir as obras dos conjuntos, detalhe esse que se materializou como espaços que sobram. De modo a se enquadrar na política nacional de habitação, era preciso que a URBIS atuasse com agilidade para captar recursos e que construísse em quantidade (ALMEIDA, 2005). Sobre a relação com o tempo a que os projetos da URBIS estavam submetidos, Espírito Santo (2002) observa, por sua vez, que: a prioridade na captação de recursos e a obediência aos prazos significou o sacrifício do planejamento das intervenções, da definição das áreas e dos seus limites, da quantificação real e racional das carências, da promoção de formas de envolvimento e participação dos moradores. Ações que exigiam maturação e preparação, até porque a empresa não possuía experiência acumulada, foram açodadamente desencadeadas. (p. 228) 33

Embora não justifique, isso é um ponto que ajuda a explicar a ausência de definições mais detalhadas nos projetos de Cajazeira VI e da Fazenda Grande II, principalmente para suas áreas abertas de uso comum. No tempo da urgência, não há lugar para detalhes. Como todo conjunto habitacional popular produzido com recursos do BNH, os projetos da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI apresentam resquícios de ideias modernistas, cujas pretensões técnicas e sociais foram substituídas pelo pragmatismo justificado pela escassez de recursos e pela urgência em se construir em quantidade. Um dos princípios utilizados de maneira significativamente empobrecida e inadequada foi a implantação de edifícios isolados num espaço livre contínuo. Como observa Macedo (1995), quando se tentava aplicar, na medida do possível, os padrões modernos através da construção de conjuntos habitacionais, estes eram de tal modo inadequados e indefinidos morfologicamente que “praticamente obrigaram a população a uma intervenção drástica para adequá-las ao seu cotidiano” (p. 37). Ainda segundo este autor, grande quantidade destes espaços tornaram-se mortos, ou seja, praticamente não são utilizados pela população (p. 37). Outra distorção do paradigma moderno é a “exclusão do projeto de paisagismo, para tratamento das áreas livres, e a exclusão das massas vegetais de grande porte, para estruturação e delimitação espacial do conjunto” (BENVENGA, 2011, p. 64). Há, por outro lado, elementos característicos do urbanismo moderno, já bastante criticados por estudiosos, que são encontrados nos conjuntos habitacionais do BNH, como a ausência de referência e a descontinuidade em relação à cidade preexistente, espaços públicos indiferenciados, dissolução do parcelamento em quadras, além dos já mencionados zoneamento com funções segregadas e uniformização da arquitetura. O sistema viário do complexo de conjuntos Cajazeira-Fazenda Grande foi estruturado a partir de uma rígida hierarquização viária: as vias coletoras são sucedidas pelas vias locais, as quais possibilitam a entrada de veículos no interior dos setores e quadras que compõem os conjuntos habitacionais. Fazenda Grande II conta, ainda, com caminhos de pedestres objetivamente definidos em projeto, que ligam a via local à entrada dos blocos de apartamentos que constituem suas as quadras. Não há esquinas no interior dos conjuntos de Cajazeira VI nem de Fazenda Grande II, e é mais adequado afirmar que eles possuem acessos, e não ruas. Nos documentos que explicam e justificam os projetos de Cajazeira, e que dão os parâmetros para Fazenda Grande, a referência ao pedestre é tão inconsistente que não se sustenta diante de uma breve observação do ambiente atual dos dois conjuntos. Alega-se que se deu “especial” atenção ao pedestre ao se impor limite à circulação de veículos. Entretanto o que se verifica é que os passeios são mesquinhos e sua conformação física varia entre a indefinição e a objetividade restrita da linha reta. Afirma-se que No projeto deu-se um especial destaque às vias de pedestre, limitando a circulação de veículos às vias locais e coletoras. Este critério, embora tenha o inconveniente de não permitir o acesso de veículos a cada lote, foi 34

considerado necessário, face às vantagens econômicas que oferece em relação ao custo de infra-estrutura viária, além de conferir maior flexibilidade à implantação dos lotes na topografia local. (GORENDE, 1978, p. 26-7)

Esta afirmação se mostra contraditória, uma vez que, embora se alegue que houve atenção às vias de pedestre, isso não foi feito para o conforto do caminhante, mas para reduzir custos e facilitar a implantação dos lotes. O que há é que os passeios, tanto aqueles ao longo das vias, quanto aqueles que ligam a via local às entradas dos edifícios, são acanhados e mal cuidados. São elementos desprezados e quase amorfos, pois, embora sejam marcados por uma fina camada de concreto, não se impõem enquanto lugar de percurso, não são convidativos.

Imagem 4. Passeios em Fazenda Grande II.

Foram construídos diversos padrões de habitação nos dois conjuntos aqui estudados: casa térrea, sobrados e apartamentos (URBIS, 1981; URBIS, 1982) 22. Deter-me-ei a estudar os espaços residuais nas áreas onde estão os blocos de apartamento, que, por serem unidades de habitação coletiva, ainda conservam as características definidas no partido urbanístico, ao contrário das áreas onde estão as unidades individuais, que foram significativamente alteradas ao longo do tempo (imagens 7 e 10). Os edifícios de todos os conjuntos do Plano Urbanístico Integrado Cajazeira-Fazenda Grande seguem o padrão de quatro pavimentos (térreo + três andares), com quatro apartamentos por andar, o que significa dezesseis unidades habitacionais por prédio (imagem 5). Cada apartamento possui 45,46m2 de área construída (URBIS, 1981; URBIS, 1982), sendo constituído por dois quartos, sala, cozinha e banheiro.

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Em outros conjuntos de Cajazeira-Fazenda Grande foram construídos, ainda, embriões (imóvel básico com sala/cozinha e sanitário), casas (com um a quatro quartos), unidades mistas de habitação e comércio e lotes urbanizados (ESPÍRITO SANTO, 2002). 35

Imagem 5. Blocos de apartamento padrão URBIS no conjunto da Fazenda Grande II. Fonte da fotografia: Sanane Sampaio

A relação frente-fundo dos edifícios, em ambos os conjuntos, é absolutamente ambígua, não sendo clara nem em planta ou imagem aérea e nem caminhando entre eles, o que dificulta bastante a compreensão dos espaços livres dos conjuntos. Essa relação não é exatamente uma oposição, tampouco uma complementaridade. Porque, a não ser nos edifícios que possuem uma das fachadas voltada para a encosta em declive, qualquer lado poderia ser frente, qualquer lado poderia ser fundo. Não há nada muito além da muito tênue marcação da porta de entrada para distinguir a entrada dos edifícios. Tudo isso dificulta a leitura dos espaços no interior dos conjuntos. Sobre as fachadas dos edifícios, Panerai, Castex e Depaule (1986) afirmam, muito adequadamente, que *…+ la fachada no es únicamente la epidermis de un edifico-objeto, sino también, y en primer término, la envoltura del espacio urbano y la articulación de las relaciones de las viviendas urbanas a través del muro de fachada. El control de las fachadas implica el control de la exterioridad de la ciudad, implica reafirmar la cualidad urbana de la arquitectura. (p. 80)

As fachadas comunicam o edifício com o exterior, contribuindo na composição de um cenário que define o espaço urbano (LAMAS, 2004, p. 96). A despeito disso, constata-se que o projeto dos conjuntos não considerou que as fachadas são partes constituintes de seus locais públicos. Elas apenas separam o interior do exterior dos prédios, nada além de alvenaria rebocada, hoje mal pintada e coberta por umidade na grande maioria dos edifícios. Se a qualidade urbana da arquitetura se vê também nas fachadas (PANERAI; CASTEX; DEPAULE, 1986), este dado ajuda a dar uma dimensão de como são os espaços abertos nos conjuntos.

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Imagem 6. À esquerda, fachada de edifício em Cajazeira VI e, à direita, fachada de edifício em Fazenda Grande II. Fotografias de Sanane Sampaio.

Em Fazenda Grande II e em Cajazeira VI percebem-se três níveis de ocupação do solo: um, ao longo das vias coletoras, bastante adensada e utilizada por comércio (formal e informal) e serviços; outro, no interior das quadras e setores, rarefeito e quase exclusivamente residencial; e o último, nos fundos dos vales, praticamente não ocupado e com remanescente de mata atlântica. Vimos, até aqui, que a primeira concepção do projeto de Cajazeira VI está posta no Plano Urbanístico Integrado Cajazeira, elaborado no final da década de 1970, enquanto que as áreas de Fazenda Grande foram nele incluídas no início dos anos 80. E, também, que a efetivação de algumas determinações deste Plano foi um importante fator de indução da expansão de Salvador em direção ao norte, numa região conhecida como “miolo” da cidade, por estar entre a orla atlântica e a Baía de Todos os Santos. Esta região caracteriza-se, desde então, por abrigar significativa parcela da população de menor renda da cidade e por apresentar diversos problemas de infraestrutura urbana. Em seguida são analisadas as poucas especificidades dos projetos dos conjuntos habitacionais da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI, assim como diferenças entre o que está em projeto e o que foi implantado. 2.1.1 Projeto habitacional Fazenda Grande II Em Fazenda Grande II há três quadras 23, denominadas pelas letras “A”, “B” e “C”, sendo que cada uma foi projetada tendo um único acesso, que serve a pedestres e veículos, o qual liga o interior da quadra à via coletora. Isto faz com que cada quadra seja entendida como uma nucleação independente, com precária articulação “oficial” com seu entorno. Não foram projetadas vias alternativas para um deslocamento mais favorável ao pedestre, assim, os moradores instituíram, ao longo do tempo, diversos caminhos entre uma quadra e outra, cujo traçado pode ser visto nas imagens aéreas (imagem 7).

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Segundo o Dicionário de Urbanismo de Celson Ferrari (2004), quadra é o espaço urbano destinado a construções delimitado por vias públicas, derivando de “quadrado”. Em termos morfológicos, não é o caso dos conjuntos da Fazenda Grande II. Entretanto esta denominação é utilizada tanto pelo projeto quando pelos seus moradores para identificar cada uma das três nucleações formadas pelos blocos de apartamentos. 37

Imagem 7. Blocos de apartamentos do conjunto habitacional Fazenda Grande II. Fonte da imagem: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006.

Adentrando estas quadras, o primeiro que se percebe é o significativo contraste com a via que lhe dá acesso. Ao intenso trânsito de veículos, ao comércio pujante e diversificado, à grande quantidade de ambulantes, aos passeios que não comportam a demanda de circulação de pessoas se contrapõem, sem intermédios, o silêncio, a lentidão e as poucas pessoas transitando no interior das quadras. Passado este estranhamento, nota-se a porosidade da ocupação do solo, a qual é bastante rarefeita. Percebem-se os edifícios de quatro pavimentos, com o mesmo padrão arquitetônico, fachadas descuidadas, espaços de uso comum fragmentados e negligenciados e alguns poucos pontos de comércio informal. Comparando o projeto do conjunto habitacional da Fazenda Grande II, elaborado pela URBIS, com o que está construído, constata-se que a via coletora está como fora projetada, entretanto há outras alterações significativas. No trecho deste conjunto aqui estudado, o número de prédios passou de 40 (que contêm 640 apartamentos) para 59 (que contêm 944 apartamentos) 24 . Tendo em vista que a URBIS estimava cinco pessoas por unidade

24

De um total de 105 prédios (1.680 apartamentos) e de 671 habitações unifamiliares, o que representa 56% do número de apartamentos e 40% da totalidade de moradias construídas. 38

habitacional, e considerando que a poligonal de estudo desta pesquisa tem 11,7ha, tem-se que a densidade prevista aumentou de 274hab/ha para 403hab/ha. Vê-se ainda que a distribuição dos edifícios no terreno está completamente diversa e o traçado da via local foi alterado (imagens 8 e 9). Segundo Elizabete Maia, arquiteta que elaborou o projeto, isso aconteceu devido à imprecisão da base topográfica disponível no momento de sua concepção, o que demandou ajustes no momento da obra.

Imagem 8. Trecho da planta do partido urbanístico da Fazenda Grande II (URBIS S. A., 16/02/1982).

Imagem 9. Blocos de apartamentos na Fazenda Grande II como foram construídos. Fonte: CONDER, INFORMS, 2010.

39

2.1.2 Projeto habitacional Cajazeira VI O conjunto de Cajazeira VI é dividido em setores “A” e “B”, sendo que o primeiro é composto tanto por habitação individual quanto coletiva, enquanto que o segundo contém apenas prédios. Os edifícios do Setor A estão distribuídos ao longo da via coletora, portanto, cada bloco tem acesso direto à via. No Setor B, parte dos edifícios segue a mesma lógica linear do Setor A e outra parte está a glomerada numa nucleação, aproximando-se do que acontece em Fazenda Grande II. Aqui, as atividades de comércio e serviço são menos intensas e isso, associado ao fato de que os edifícios relacionam-se de forma mais próxima e direta com a via coletora, tornam o ambiente residencial e o não residencial menos contrastantes (imagem 10).

Imagem 10. Blocos de apartamentos do conjunto habitacional Cajazeira VI. Fonte da imagem: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006.

Comparando as plantas do partido urbanístico do conjunto habitacional de Cajazeira VI da CEDURB e da URBIS, observa-se que a principal alteração foi no sentido de aumentar a densidade populacional, sem, no entanto, aumentar a área ocupada por edificações, substituindo lotes de moradia unifamiliar por blocos de apartamentos. Assim, dentro da poligonal aqui estudada, ao invés de 98 unidades unifamiliares e de quatro edifícios com 64

40

apartamentos, foram construídos 52 edifícios que contêm 832 apartamentos 25 . Considerando que, também aqui, a URBIS estimou cinco habitantes por moradia, e que a poligonal proposta nesta pesquisa tem 7,3ha, isso significa que a densidade aumentou de 111hab/ha para 570hab/ha. Segundo depoimento de Emanoel Araújo, arquiteto da URBIS que projetou Cajazeira VI, a intenção era, com isso, ter um melhor aproveitamento da infraestrutura instalada. Outra diferença é que, na proposta da CEDURB constam oito praças, enquanto que não há nenhuma no projeto da URBIS (imagens 11 e 12).

Imagem 11. Reprodução da proposta da Hidroservice/CEDURB para Cajazeira VI (BAHIA, 1977b). Em frente aos edifícios em “H” também estava prevista uma praça, a qual não foi representada nesta planta.

25

De um total de 60 prédios (960 apartamentos) e de 1.294 habitações unifamiliares, o que representa 87% do número de apartamentos e 66% da totalidade de moradias construídas. 41

Imagem 12. Trecho da planta do partido urbanístico de Cajazeira VI elaborado pela URBIS (URBIS S.A, 1981).

É muito curioso verificar que uma maior densidade de moradias, por conseguinte de residentes, não resultou num melhor aproveitamento do espaço. Na proposta da CEDURB, majoritariamente constituída por lotes privados com padrões habitacionais unifamiliares, percebe-se claramente a que se destinariam os espaços inseridos na área a ser urbanizada. Exceção apenas onde se implantou quatro blocos de apartamentos. E tal exceção se torna regra na proposta da URBIS. Com a implantação dos edifícios, apenas se define o caminho que liga a via local à sua entrada. Não há qualquer tratamento, no projeto, dos demais espaços em volta dos prédios, o que, infelizmente, não é uma exclusividade dos conjuntos habitacionais analisados nesta pesquisa. Do projeto elaborado pela URBIS para a execução das obras também houve alterações, mas nada que tenha modificado o sentido do partido urbanístico inicialmente proposto pela companhia. Observam-se mudanças no posicionamento dos edifícios e em estacionamentos, necessárias, ainda segundo o arquiteto que o projetou, para melhor adequar o projeto à topografia, diminuindo a necessidade de cortes e aterros. O número de moradias, contudo, permanece o mesmo (imagens 12, 13 e 14).

42

Imagem 13. Blocos de apartamentos em Cajazeira VI. Fonte: CONDER, INFORMS, 2010.

Imagem 14. Cajazeira VI quando da conclusão das obras. Fonte da imagem: SHEINOWITZ, 1998.

*** Embora tenha havido questões particulares aos contextos municipal e metropolitano, além de condicionantes topográficas específicas que conduziram a produção de Fazenda Grande II e de Cajazeira VI, estes conjuntos habitacionais são, eminentemente, produtos de uma política nacional centralizada, ainda que esta tenha sido construída com disputas internas ao BNH. Azevedo e Andrade (1981) afirmam que, “ao contrário das soluções anteriores, onde a ação do Estado era atomizada, a cargo de numerosas instituições [...] o Plano Nacional de Habitação instituiu um centro decisório unificado, com normas e políticas padronizadas” (p. 64). Desse modo, os conjuntos aqui estudados apresentam problemas comuns a conjuntos 43

habitacionais financiados pelo BNH em todo o país. Exacerbação da padronização de sua arquitetura, pobreza na definição, ou mesmo indefinição, dos espaços abertos e públicos, precariedade da infraestrutura instalada, economia em seus acessos viários e, principalmente, de pedestres, além de significativos problemas estéticos. Tudo isso afetando cotidianamente a vida dos moradores desde a conclusão e entrega dos conjuntos habitacionais. 2.2 Avenida Tancredo Neves Na década de 60 e, de forma mais intensa, nos anos 70, são construídas em Salvador diversas avenidas ao longo de vales da cidade26, cujo objetivo e justificativa essenciais eram “desafogar o tráfego do centro da cidade” e “possibilitar o crescimento de Salvador”. A Av. Tancredo Neves27 é umas destas vias, tendo sido concluída em 1968. Sua implantação está inserida num contexto de intenso “rodoviarismo, que priorizava as questões viárias da cidade num claro objetivo de otimizar a implantação e a fluidez de uma estrutura de redes econômica *...+” (OLIVEIRA, 2003, p. 61). Pretendia-se uma modernidade que significasse fluidez, competitividade, eficiência, facilidade de conexão com outros espaços. Esta avenida faz parte do sistema viário do vale do Rio Camurujipe e contorna os limites, ainda hoje perceptíveis, do antigo Jockey Club de Salvador. Tem início em frente ao Shopping Iguatemi, passa pela entrada da Av. Prof. Magalhães Neto, contorna o Salvador Shopping (construído no terreno do antigo Jockey Club), passa pelo acesso da Av. Paralela e tem fim na Rodoviária. Os dois principais acessos à Av. Tancredo Neves – um a partir da região do Iguatemi, outro a partir da Av. Paralela – são viadutos, construídos com a justificativa de eliminar os engarrafamentos na região. O que, evidentemente, não aconteceu, dado que não foram tomadas outras medidas que resolvessem a mobilidade na região. Analisarei, nesta pesquisa, o trecho da Av. Tancredo Neves entre o Desenbahia e o encontro desta com a Av. Prof. Magalhães Neto (imagem 15). Tal trecho é uma via de mão única com aproximadamente um quilômetro de extensão. Via de velocidade, altos edifícios recuados em relação aos limites do lote, calçada de, no máximo, 1,50m de largura. À direita deste intervalo da avenida estão as áreas ocupadas pelo Desenbahia, pelo Jornal A Tarde, pelo Shopping Sumaré e pelos edifícios do loteamento Boulevard Financeiro, cujo projeto foi aprovado em 1984. À esquerda está a via marginal Alceu Amoroso de Lima, a qual dá acesso

26

A maioria destas vias foi planejada na década de 40 pelo Escritório do Plano Urbanístico da Cidade do Salvador (EPUCS), sob coordenação de Mário Leal Ferreira. Outras, como a Av. Tancredo Neves, foram concebidas posteriormente, mas como extensão daquelas projetadas pelo EPUCS. Segundo Sampaio (2010), o Escritório incorporou o “modelo viário radial-concêntrico, muito utilizado na Europa e nos Estados Unidos, como exemplo de ‘boa-forma’ para fluidez do tráfego nas cidades” (p. 53). Ainda de acordo este autor, tal modelo de sistema viário “*...+ ajusta-se de modo criativo e inovador ao sítio em sua morfologia, buscando eficiência na fluidez do tráfego, alargando o mito de um domínio técnico do ‘homem’ sobre a ‘natureza’ *...+” (p. 54). 27 Até a década de 80 esta via era denominada “Avenida Prof. Magalhães Neto”. 44

aos prédios do Loteamento Centro Empresarial Metropolitano e ao Salvador Shopping. Esta rua circunda todo este loteamento e margeia, também, o Rio Camurujipe.

Imagem 15. Localização da Av. Tancredo Neves. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Elaborado por Sanane Sampaio.

Embora muito mais perto do centro tradicional do que Cajazeira-Fazenda Grande, a implantação desta avenida foi também um importante fator de indução da expansão da cidade para o norte. A partir desta intervenção da Prefeitura de Salvador, foi aberta uma importante área para atuação do grande mercado imobiliário na cidade. O espaço da Av. Tancredo Neves é uma materialização de articulações entre poder público e interesses privados. O Governo Estadual contribuiu sobremaneira para a ocupação e valorização de toda a região do Iguatemi com a instalação do já mencionado Centro Administrativo da Bahia, do Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN, em 1973), da Rodoviária (em 1974) e do Desenbahia (em 1979). A implantação destes equipamentos, em associação com as intervenções viárias, leva a concordar com Oliveira (2003) quando ela afirma que o Estado foi responsável por 45

executar as intervenções espaciais e as modificações legais necessárias para esse fim [produção espacial da centralidade do Iguatemi], atendendo às demandas do setor privado, [o que] fez com que esse espaço se constituísse, ao fim do recorte temporal estudado, na mais importante fonte de arrecadação e geração de divisas da cidade do Salvador e do próprio estado da Bahia, o que se mantém até o presente momento. (p. 334)

As análises de Carvalho (1997), ao considerar o processo de descentralização das atividades terciárias em Salvador, têm a mesma avaliação: O Estado assume um papel relevante neste processo, adequando a estrutura urbana às demandas dos setores econômicos e dos grupos de rendas médias e altas. Sua intervenção vai se efetivar através da implantação da base física para a localização industrial, dos incentivos fiscais, e no nível urbano vai adequando a legislação e a infra-estrutura, principalmente a viária aos novos padrões de ocupação do espaço. (p. 35-6)

Somente depois da instalação dos equipamentos públicos citados foi construída a grande maioria dos empreendimentos privados na Av. Tancredo Neves. Segundo levantamento feito no ano 2000 pela Urban Science do Brasil, por encomenda do Jornal Gazeta Mercantil, 86,7% das empresas foram para este endereço a partir de 1994 (MAIA FILHO, 2000). A comparação das imagens aéreas dos anos de 1989, de 1998 e de 2002 corrobora estes dados (imagens 16, 17 e 18).

Imagem 16. Fonte: CONDER, INFORMS, 1989.

46

Imagem 17. Fonte: CONDER, INFORMS, 1998.

Imagem 18. Fonte: CONDER, INFORMS, 2002.

Levou quatro anos, depois de finalizada a construção da Av. Tancredo Neves, e de forma ainda muito tímida, para que a regulamentação do uso e ocupação das áreas seu entorno começasse a ter alguma definição. Ainda assim, o Código de Obras de 1972 apenas determina, de forma genérica a todas as vias de vale, “recuo mínimo de 6,00m (seis metros) em relação às pistas marginais de baixa velocidade obrigatórias para todos os loteamentos nas avenidas de Vale e que manterão o afastamento mínimo de 14,00m (quatorze metros), inclusive passeios, em relação às pistas de alta velocidade” (art. 97, § 1º, inciso I). Em 1976 é finalizado o Projeto Pituba 28, que integra o Plano de Desenvolvimento Urbano (PLANDURB), ambos elaborados pelo Órgão Central de Planejamento (OCEPLAN) da 28

O Projeto Pituba foi feito com o intuito de “absorver, por algum tempo, a demanda do setor imobiliário, e de oferecer, por antecipado, uma área para o desenvolvimento e a localização de atividades econômicas de significativa importância, de acordo com orientação já derivada do PLANDURB” (SALVADOR, 1977, p. 12). 47

Prefeitura de Salvador. Com base nos estudos do Projeto Pituba, é instituída a Zona Homogênea da Pituba, através do Decreto 5.065 de novembro de 1976. Entretanto menciono a existência do Projeto e do Decreto apenas devido ao fato de que o trecho da Av. Tancredo Neves estudado nesta pesquisa faz parte da poligonal sobre a qual estes instrumentos incidem. Entretanto, exatamente este trecho é tratado como área de “uso a definir” posto que, de acordo com o Projeto Pituba, a sua regulamentação “depende, fundamentalmente, tanto em termos de uso quanto de ocupação, das definições, a nível de estrutura urbana e de sistema de transporte, por se tratar de uma área estratégica, cuja utilização definitiva teria, neste momento, fortes implicações com a montagem de hipóteses alternativas a serem examinadas” (SALVADOR, 1977, p. 47). Isso não deixa de ser questionável, posto que, justo por ser uma área estratégica da cidade, se deveria planejar, de forma incisiva, o seu desenvolvimento. E não deixa de ser curioso que, menos de dois anos depois da instituição da Zona Homogênea da Pituba, a sua regulamentação é modificada pelo Decreto 5.505 de agosto de 1978, e nele são normatizadas, afinal, o uso e ocupação do entorno da Av. Tancredo Neves. Afirmou-se que “a revisão do Projeto da Zona Homogênea da Pituba foi um imperativo de ordem operacional, tendo em vista que os resultados dos estudos setoriais de Áreas Verdes, Espaços Abertos e Terciário já permitem um posicionamento e soluções que alteram o referido Projeto” (SALVADOR, 1978). Após tal regulação, em janeiro de 1979, é firmado Termo de Acordo e Compromisso (TAC), entre a Prefeitura de Salvador e a firma Góes Cohabita Construções S/A, para implantação do Loteamento Centro Empresarial Metropolitano, que abrange o trecho inicial da margem esquerda da Av. Tancredo Neves (imagens 19 e 20).

48

Imagem 19. Localização do Loteamento Centro Empresarial Metropolitano. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Elaborado por Sanane Sampaio.

49

50

Imagem 20. Projeto do Loteamento Centro Empresaria Metropolitano. Imagem gerada automaticamente pelo programa LOUOS 1.2.

A ocupação deste loteamento só teve início em meados da década de 80, com a construção do emblemático edifício da Casa do Comércio, em 1985 (imagem 21), havendo significativo impulso nos anos 90, como fora mencionado anteriormente. E é também neste último período que a região do Iguatemi se consolida como centralidade.

Casa do Comércio

Jornal A Tarde

Imagem 21. Av. Tancredo Neves quando da construção da Casa do Comércio. Legenda da imagem: “Inauguração do Iguatemi e construção da Casa do Comércio iniciaram ciclo de mudanças na região da Tancredo Neves, que não para de crescer” (MAIA FILHO, 2000).

A grande maioria dos edifícios da Av. Tancredo Neves está, hoje, no Loteamento Centro Empresarial Metropolitano, os quais têm uso exclusivo de comércio e serviço e possuem entre 10 e 20 pavimentos (imagem 22). As entradas são recuadas e, não raro, elevadas em relação ao nível da calçada, sendo esta a relação mais próxima entre os edifícios e a rua. Como pode ser visto no projeto do loteamento, na imagem 20, o empreendimento conta com quatro quadras 29, sendo que uma seria área pública destinada a uma escola, mas, no entanto, foi ocupada por dois edifícios empresariais. Há também dois grandes estacionamentos públicos, além de outros menores ao longo das vias transversais à Rua Alceu Amoroso Lima. Não fosse o excesso de carros que tornam as vias pequenas e os estacionamentos escassos, o loteamento seria facilmente acessível aos automóveis.

29

Quadra, aqui, representa a definição contida no Dicionário de Urbanismo, de Celson Ferrari. 51

Imagem 22. Edifícios do Loteamento Centro Empresarial Metropolitano.

Percebe-se que o projeto deste loteamento obedeceu a algumas determinações do Decreto 5.505/78: os lotes têm área mínima de 1.500,00m2, a extensão máxima da quadra é de 240m e, elemento muito importante a esta pesquisa, foi reservada uma passagem de pedestre atravessando cada uma das três quadras de lotes comercializáveis. O decreto determinou, apenas para as áreas de uso a definir nele delimitada, na qual o Loteamento se insere, que “quando a extensão da quadra, em qualquer sentido direcional, for superior a 120,00m (cento e vinte metros), seja reservada uma passagem interna para pedestres, devidamente articulada ao sistema de calçadas (passeios) do loteamento, vedado qualquer outro tipo de utilização àquela passagem” (art. 4º, § 3º, inciso I, alínea i). Esta passagem conta com três metros de largura e duas delas cruzam as quadras de sudoeste a nordeste, ligando as duas maiores extensões da Rua Alceu amoroso Lima. O terceiro caminho foi projetado cruzando uma das quadras no sentido sudeste-noroeste, ligando duas ruas transversais ao loteamento. Isso pode ser visto com um pouco mais de detalhe na imagem 23 a seguir.

52

Imagem 23. Caminhos de pedestre nas quadras do Loteamento Centro Empresarial Iguatemi. Fonte da imagem: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Elaborado por Sanane Sampaio.

Tive acesso a alguns projetos de intervenções na Av. Tancredo Neves, todos com o mesmo propósito que tem definido os espaços da avenida desde a sua implantação: dar acesso aos automóveis, fazer fluir o tráfego, diminuir os engarrafamentos. Em outubro de 1978, a Empreendimentos Odebrecht enviou projeto para implantação de estacionamento em uma área da prefeitura, entre o Centro Empresarial Iguatemi e o Desenbahia, que, segundo a empresa, era um espaço “inaproveitável”, “remanescente de desapropriações para o sistema viário local” (EMPREENDIMENTOS ODEBRECHT, 1978). Já naquele momento tratam a região do Iguatemi como subcentro mais importante da cidade, ainda que, em 1978, pouquíssimas de suas áreas estivessem ocupadas. Dentre as justificativas da proposta está a constatação de que o centro tradicional da cidade vem sendo estrangulado pela grande concentração de pessoas e veículos, fenômeno este que, em determinados dias e horários, também já começa a ser observado no novo sub-centro do 53

Iguatemi, dada a ocupação acelerada que aí se desenvolve e o porte dos projetos em implantação e a serem implantados em futuro próximo. (EMPREENDIMENTOS ODEBRECHT, 1978)

Embora se afirme que será feito tratamento paisagístico daquela área “inaproveitada”, isso não está desenhado no projeto. Foram plantadas algumas árvores, talvez a título de paisagismo, entretanto isso não o tornou um local agradável para ser visto ou para estar. Os estacionamentos foram construídos tal como está na proposta da Odebrecht (imagens 24 e 25). O espaço onde foi proposto o estacionamento direito é hoje um canteiro sobre o qual passa um viaduto, do qual falarei adiante. Rio Camurujipe

Área onde futuramente será construído o Desenbahia

Imagem 24. Reprodução da planta da proposta da Empreendimentos Odebrecht (EMPREENDIMENTOS ODEBRECHT, 1978).

Rio Camurujipe

Desenbahia

Imagem 25. Imagem aérea do estacionamento proposto pela Empreendimentos Odebrecht. Fonte: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. 54

Vale frisar que o documento da Odebrecht explicita que os empreendimentos que são implantados naquele momento, e que serão futuramente multiplicados, provocam os mesmos problemas que justificaram o abandono do centro tradicional. Cria-se, na região do Iguatemi, onde a Av. Tancredo Neves está incluída, os mesmos problemas dos quais se diz estar fugindo ou tentando resolver. A CONDER e a Companhia de Renovação Urbana de Salvador (RENURB) apresentaram, em maio de 1983, proposta de intervenção viária para melhorar o fluxo de veículos na interseção entre a Av. Antônio Carlos Magalhães e a Av. Tancredo Neves, usando parte do estacionamento direito proposto pela Odebrecht. Segundo o órgão, isto é necessário ante a existência de “pontos de conflitos e de restrição à circulação de veículos e pedestres, tendo como causa principal o incremento nas implantações ou consolidações de empreendimentos e equipamentos urbanos na área de sua abrangência, sem uma melhor disciplina de seus acessos e uma maior racionalização de sua circulação interna” (BAHIA, 1983). Comparando o projeto, a foto aérea de 1989 e a base SICAR30, que é de 1991, pode-se concluir que este projeto não foi executado (imagem 26). Entretanto é importante mencioná-lo, posto que é um registro das intenções que estiveram postas na conformação da Av. Tancredo Neves. E vê-se que estas intenções giram em torno do automóvel particular, não havendo facilidades à circulação de pedestres, ao contrário do que enuncia a justificativa do projeto.

30

Sistema Cartográfico de Salvador. 55

56 Imagem 26. Elaborado por Sanane Sampaio.

Em dezembro de 1999 a TTC Engenharia de Tráfego e de Transportes S/C. LTDA. entrega o “Projeto Funcional Av. Luiz Viana Filho (‘Av. Paralela’) – Região Iguatemi”. O projeto foi contratado pela Fundação Mário Leal Ferreira, vinculada à então Secretaria Municipal do Planejamento, Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico (SEPLAM) da Prefeitura de Salvador. No trecho da Av. Tancredo Neves aqui estudado, as propostas baseiam-se no aumento do número de faixas de tráfego (SALVADOR, 1999), ou seja, é mais um projeto voltado para os veículos privados. Apesar de ter sido instituído pelo Decreto 12.758, de 31 de julho de 2000, as propostas, deste trecho, também não foram executadas até o momento. A última intervenção de porte na Av. Tancredo Neves foi a construção do viaduto em frente ao edifício Desenbahia, passando por cima do estacionamento direito proposto pela Odebrecht. Sua função é ligar a região do Iguatemi até o início da avenida, eliminando o cruzamento entre a Av. Tancredo Neves e a Rua Marcos Freire (FERNANDES, 2006). Foi concluído em dezembro de 2006, sendo executado pela Secretaria dos Transportes e Infraestrutura (SETIN) da Prefeitura de Salvador, mediante aporte de recursos da União. A SETIN afirmou que, com a construção do viaduto, os engarrafamentos seriam eliminados, o que foi questionado por especialistas já naquele momento. Eles argumentaram que a intervenção apenas transferiria o engarrafamento para outros locais, posto que a obra não estava sendo acompanhada de outras medidas (FERNANDES, 2006). Não foi preciso muito tempo para constatar que os especialistas estavam certos, uma vez que os engarrafamentos tornaram-se, hoje, maiores e mais frequentes. O viaduto tem 252m de comprimento e três pistas e, nas plantas que tive acesso não há indicação do que seria feito nas áreas livres que não seriam utilizadas pelos automóveis (imagem 27).

RIO CAMURUJIPE

DESENBAHIA

57

Imagem 27. Projeto do viaduto que liga a região do Iguatemi à Av. Tancredo Neves. Fonte do projeto: Prefeitura de Salvador, Superintendência de Trânsito e Transporte. Elaborado por Sanane Sampaio.

Rio Camurujipe

Desenbahia

Jornal A Tarde Imagem 28. Situação atual do viaduto que liga a região do Iguatemi à Av. Tancredo Neves. Fonte: Google Maps. 58

Duas características são comuns a todos estes projetos, tendo eles sido executados ou não. Primeiro, são propostas voltadas à velocidade e ao automóvel particular. Segundo, restam sempre canteiros, como ilhas entre as vias de velocidade, que, como áreas que não podem ser utilizadas por carros, não são objeto de maior detalhamento no projeto. A avenida é hoje uma das mais importantes vias de Salvador, sendo o atual centro empresarial e financeiro da cidade, e está na convergência da área mais tradicional, consolidada e antiga da cidade e as valorizadas áreas de expansão desta. É uma importante ligação entre a região do Iguatemi, a Avenida Paralela e a orla atlântica. Faz parte, portanto, do cerne do que hoje é o principal centro de negócios do município, dando acesso, também, a um dos bairros mais nobres da cidade, o Caminho das Árvores. É orgulhosa e constantemente chamada de Avenida Paulista baiana, de “pólo de negócios *que+ é o fiel retrato da transformação da cidade” (MELO, 2000). E é precisamente esta a imagem da avenida que interessa, a certos agentes, promover e reproduzir. A Av. Tancredo Neves é o símbolo adotado, por empresários e pelo poder público, da presumida modernidade e pujança econômica de Salvador e, por tabela, da Bahia. Ter um negócio estabelecido nesta avenida tornou-se, assim, estratégico não só pela localização ou pelos serviços de suporte que oferece, mas, essencialmente, pelo status que proporciona. A Av. Tancredo Neves é um corredor de trânsito rápido, o que significou que todas as intervenções que nela têm ocorrido vão, sempre, no sentido de tentar fazer o tráfego de veículos fluir o mais rápido possível. Resultou também que a avenida não se constituiu num ambiente favorável à circulação de pedestres e, muito menos, propício à permanência das pessoas nos espaços públicos. A largura das calçadas não é suficiente para atender à demanda dos caminhantes e isso, associado ao intenso fluxo de veículos e à pouca arborização, torna o ato de se deslocar a pé bastante desagradável. Este local de Salvador é um endereço nobre e, portanto, caro. Não obstante, por ele circulam pessoas de todos os estratos sociais da cidade, cada uma ocupando sua devida posição no espaço e exercendo o papel que lhe cabe na organização social: executivos, ambulantes, profissionais liberais, funcionários públicos, estudantes, trabalhadores com pouca ou nenhuma qualificação, etc. A Av. Tancredo Neves pode ser definida como o “espaço luminoso” por excelência de Salvador. Não obstante, ou mesmo por isso, há inúmeros subespaços “opacos” 31 inseridos neste local, nos quais há muita informalidade, escapes, permeando toda ostentação 31

“Espaços luminosos” e “espaços opacos” são categorias propostas por Milton Santos e segundo ele, espaços luminosos são “aqueles que mais acumulam densidades técnicas e informacionais, ficando assim mais aptos a atrair atividades com maior conteúdo em capital, tecnologia e organização. Por oposição, os subespaços onde tais características estão ausentes seriam os espaços opacos. Entre esses extremos haveria toda uma gama de situações. Os espaços luminosos, pela sua consistência técnica e política, seriam os mais suscetíveis de participar de regularidades e de uma lógica obediente aos interesses das maiores empresas” (SANTOS; SILVEIRA, 2003, p. 264) 59

econômica da Av. Tancredo Neves (imagem 29). Sobre isso, a reflexão de Santos (1994) é precisa: À cidade informada e às vias de transporte e comunicação, aos espaços inteligentes que sustentam as atividades exigentes de infraestruturas e sequiosas de rápida mobilização, opõe-se a maior parte da aglomeração onde os tempos são lentos, adaptados às infraestruturas incompletas ou herdadas do passado, os espaços opacos que, também, aparecem como zonas de resistência. É nestes espaços constituídos por formas não atualizadas que a economia não hegemónica e as classes sociais hegemonizadas encontram as condições de sobrevivência. (p. 39)

Imagem 29. Avenida Tancredo Neves. Fotografia à esquerda: Sanane Sampaio. Fotografia à direita: Aratu Online.

O objeto desta pesquisa, são subespaços opacos, são locais desprezados pela ordem hegemônica que os geraram e onde, via de regra, não há investimento técnico ou informacional. São os locais onde estão guardadas as possibilidades de que se desenvolvam ações que vão de encontro à ordem que domina a Av. Tancredo Neves.

60

III.

ESPAÇOS RESIDUAIS

Tudo o que foi dito até aqui sobre o cenário geral de determinados locais da Av. Tancredo Neves, de Cajazeira VI e de Fazenda Grande II foi com intuito de nos levar a uma aproximação de certos espaços excluídos de qualquer discurso, descrição, menção ou representação própria sobre a avenida e os conjuntos. Como uma tentativa de chegar a um entendimento acerca de pequenos retalhos de espaço que sobraram do processo de produção destes três locais de Salvador. Este processo é entendido não apenas como a constituição física dos espaços, mas de todas as relações sociais e produtivas que também determinam a configuração destes. Os conjuntos habitacionais Fazenda Grande II e Cajazeira VI são o extremo oposto da Av. Tancredo Neves, em quase todos os aspectos. Em termos de parcelamento do solo, da morfologia da ocupação, do uso do espaço, da rotina diária, do estrato da população que domina o espaço. Na avenida predominam o tempo rápido, o desejo por velocidade, o deslocamento motorizado, o trabalho, a tecnologia, as relações sociais hierarquizadas de forma mais explícita, o som de automóveis e buzinas, o anonimato. No interior dos conjuntos o tempo é vagaroso, há a lentidão, as pessoas caminhando, a moradia, o ócio, hierarquização social mais uniforme, pessoas que se reconhecem, o som de conversa, de crianças e de vento na árvore. Não obstante, estes locais de Salvador, tão díspares entre si, foram originados no mesmo período, década de 80, com técnicas equivalentes e tendo como fundamento a mesma concepção de produção da cidade – desenvolvimentismo e expansão –, e tendo como objetivo dotar a cidade de espaços que servissem a propósitos bastante específicos. E, em ambos, constatou-se a existência de espaços residuais, assim como modos de apropriação que incorporaram estes espaços à dinâmica urbana, revertendo, assim, seu caráter residual. De modo a compreender o sentido do caráter residual que determinados espaços apresentam, foram utilizadas algumas reflexões que Henri Lefebvre (1991) desenvolveu no livro The production of space. Elas são necessárias porque, claramente, não é possível entender o espaço pensando que ele é o que está no projeto. Do mesmo modo, não é possível reduzir a compreensão do espaço à sua concretização, à sua morfologia. É isso também, mas aceitando a “interdependência e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e o seu uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política” (SANTOS; SILVEIRA, 2003, p. 247). E, ainda nesse sentido, é preciso ter em vista que o espaço não se constitui à parte das relações sociais, das práticas que nele acontecem, do mesmo modo que estas relações e práticas são definidas, também, pelo espaço onde são travadas. Como afirma Massey (2009), relações e espacialidade são co-constitutivas (p. 30). Para Lefebvre (1991), o espaço se constitui tendo em vista três momentos. A concepção, a percepção e a vivência, os quais só teriam sido um todo coeso em determinado período histórico. Segundo ele, 61

entre o século dezesseis (o Renascimento – e a cidade do Renascimento) e o século dezenove, existiu um código ao mesmo tempo arquitetônico, urbanístico e político, que constituía uma linguagem comum para as pessoas do campo e da cidade, para as autoridades e os artistas – um código que permitia não só ‘ler’ o espaço, mas também construí-lo. (p. 7, tradução nossa).

Este código configuraria o “espaço social”, ou “espaço do sentido comum”, no qual há um vínculo intrínseco entre as práticas e experiências sociais e políticas e a configuração física concebida deste espaço. No “espaço do sentido comum” há uma harmonia entre o espaço concebido pela matemática e pelo desenho (espaço mental) e as percepções e vivências que este espaço possibilita (espaço físico e social). Em termos espaciais, o concebido, o percebido e o vivido se relacionam, respectivamente, com a representação do espaço, com a prática espacial e com o espaço de representação. A prática espacial se dá com a apreensão sensível e não mediada do espaço. Para praticar o espaço precisamos percebê-lo com nossos sentidos, ou seja, é preciso que o vejamos, que o toquemos, que ouçamos seus sons e sintamos seus cheiros. Segundo Lefebvre (1991), no momento histórico em que estamos, a prática espacial encarna uma associação próxima, dentro do espaço percebido, entre a realidade cotidiana (rotina diária) e a realidade urbana (as rotas e redes que conectam os lugares reservados para o trabalho, a vida privada e o ócio). [...] Uma prática espacial deve ter certa coesão, mas isso não implica que seja coerente (no sentido de trabalhada intelectualmente ou concebida logicamente). (p. 38, tradução nossa)

A representação do espaço domina qualquer sociedade, é o espaço concebido intelectualmente, cientificamente, sendo o “*...+ espaço dos cientistas, planejadores, urbanistas, subdivisores tecnocráticos e engenheiros sociais, assim como certo tipo de artista com uma inclinação científica *...+” (p. 38, tradução nossa). Dentro disso estão, por exemplo, os planos e projetos urbanísticos. Por seu turno, o espaço de representação é o espaço vivido diretamente pelas pessoas, implicando numa experiência espacial e envolvendo simbolismos complexos, codificados ou não, sendo “o espaço dominado – e portanto experimentado passivamente – o qual a imaginação busca mudar e apropriar. Este superpõe o espaço físico, fazendo uso simbólico de seus objetos” (p. 39, tradução nossa). O espaço de representação é de compreensão menos imediata e também sua apreensão se faz bastante complexa. Este espaço é uma elaboração mental, mas de natureza completamente diversa do espaço concebido mentalmente, que é a representação do espaço. Esta elaboração só é possível depois de se ter praticado o espaço físico, depois de ter sido possível experimentá-lo e percebê-lo. O espaço de representação, o espaço vivido, é construído a partir de uma experiência com o corpo, e, certamente, esta experiência é 62

influenciada pela cultura e pela história de vida das pessoas. É ainda um processo cognitivo que organiza e decodifica os espaços para que estes sejam incorporados à memória e às estruturas de representação, contendo objetos e eventos que estão fora do alcance da apreensão imediata (SERPA, 2007, p, 173). Com isso, o espaço de representação não é tangível nem visível. Ele está na memória, nas referências de mundo, e, talvez, nas palavras soltas sem que se perceba. Ao mesmo tempo, o espaço de representação que certa pessoa ou grupo constrói se dá a partir de suas memórias, a partir de suas referências. É com estes instrumentos de análise que tento compreender o sentido dos espaços residuais identificados nos locais estudados. Tendo como fundamento que o caráter residual destes espaços depende de qual dimensão da produção do espaço proposta por Lefebvre está sendo abordada: representação do espaço, prática espacial ou espaço de representação. E tendo em vista, também, que os eventos que neles acontecem e se sucedem são capazes de transformá-los. Recuos entre edifícios, afastamentos entre estes e o sistema de circulação, canteiros que tentam disciplinar o trânsito, intervenções viárias, forma de parcelamento, caminho de pedestre numa ideologia rodoviarista. É surpreendente que tudo isso possa se concretizar como uma mesma coisa: resíduos na cidade; resquícios, a princípio, imprestáveis. 3.1 Cajazeira VI e Fazenda Grande II Os blocos de apartamentos dos conjuntos da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI estão implantados pontualmente no terreno segundo uma lógica que não foi possível apreender apenas com observações in loco. Esta lógica só se tornou mais inteligível ao se verificar a planta de situação dos conjuntos e ao ler os documentos que explicam e justificam o projeto, elementos estes que são instrumentos técnicos, são instrumentos da produção intelectual do espaço. Os únicos elementos do projeto a que tive acesso foram as plantas dos partidos urbanísticos dos conjuntos habitacionais e o memorial do Plano Urbanístico Integrado de Cajazeira, o qual determinou diretrizes à ocupação de Cajazeira-Fazenda Grande. É tudo o que foi possível encontrar nos órgãos públicos, e é provável que o projeto, de fato, não fosse além do que está posto nestes documentos. Arquitetos que projetaram os conjuntos habitacionais informaram que o máximo de detalhe a que chegavam era, além do que está nas plantas, no detalhe de implantação dos edifícios e no desenho do greide das ruas, não havendo projeto paisagístico para as áreas livres. Fato sintomático, há apenas quatro elementos representados nestas plantas: as vias de circulação, os blocos de apartamentos, os estacionamentos e as curvas de nível 32, como se pode ver nas plantas dos partido urbanísticos de Cajazeira VI e da Fazenda Grande II (imagens 30 e 31).

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As plantas não apresentam poligonal delimitando a área de intervenção. 63

Imagem 30. Reprodução da planta do partido urbanístico do conjunto habitacional de Cajazeira VI (URBIS S.A., 1981)

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65 Imagem 31. Reprodução da planta do partido urbanístico do conjunto habitacional da Fazenda Grande II (URBIS S.A., 1982).

De resto, há um retumbante silêncio no projeto, o que, certamente, não significa neutralidade. Pergunta-se, o que está ausente nesta representação do espaço e, no entanto, é definido por ela? Aqui, os espaços residuais se fazem presentes a partir da sua ausência e, principalmente, porque os procuro. Como o personagem Fritz no filme “O céu de Lisboa”33, que está presente mesmo não estando em cena. Está presente nos momentos em que o sonoplasta Philip o procura e pergunta por ele, quando o Philip assiste às filmagens feitas por Fritz, quando lê o livro de Fernando Pessoa que este deixa na cabeceira da cama, quando vê a pichação na parede do quarto de Fritz. Este silêncio do projeto, essa ausência na representação do espaço que será constituído, são espaços que sobraram do processo de projetação dos conjuntos. Isso quer dizer que os espaços que foram formados, mesmo não tendo sido projetados, são espaços residuais no âmbito do espaço concebido, da representação do espaço, na forma como Lefebvre define estes termos. Significa também dizer que os espaços residuais estão sendo mostrados a partir do que não é dito no projeto. Resíduo, aqui, é uma ausência de representação, o que denota uma lacuna na reflexão acerca do que aconteceria nestes espaços. Importante notar que tais espaços podem ou não continuar sendo caracterizados como resíduos nas outras dimensões da produção do espaço de Lefebvre, ou seja, na esfera da prática espacial e do espaço de representação. Os espaços residuais no âmbito da concepção do espaço, não estão representados, e nem poderiam ser, porque, se o fossem, já não seriam, na perspectiva do projeto, sobras. E, volto a mencionar, é importante notar que os resíduos, nas plantas, só estão presentes porque intento vê-los. Da mesma forma que Fritz, no filme mencionado, só está presente porque Philip o procura. Não obstante, muitos desses espaços residuais têm nome e função determinada, sendo importantes elementos dos projetos urbanístico e arquitetônico. São os recuos entre os edifícios, que têm por objetivo possibilitar que os apartamentos sejam iluminados e ventilados. Poderíamos pensar, com isso, que os recuos estavam inseridos no processo de concepção dos projetos urbanísticos. Mas, na verdade, pensou-se no conforto mínimo necessário às habitações, não no espaço livre que resultaria dos recuos. Assim, o fato dos espaços entre os edifícios terem uma função importante, não resulta que eles tenham sido elementos pensados para significar algo nos conjuntos habitacionais. Além dos recuos, há outros espaços dentro dos conjuntos que são sobras da implantação dos blocos de apartamento. Foi-se distribuindo os prédios, estabelecendo os acessos e os afastamentos necessários e restaram espaços onde não caberia outro edifício e que, afinal, não tiveram destino definido. Não consta, nos documentos do projeto, nenhuma indicação 33

Filme do diretor Win Wenders, lançado em 1994, cujo título original é Lisbon Story. Narra a história da ida do sonoplasta Philip à Lisboa, atendendo ao chamado do diretor de cinema Fritz. Chegando à cidade, Philip leva semanas para encontrar Fritz e, durante este tempo, percorre a cidade de Lisboa captando seus sons. Numa passagem do filme, Philip grava o som da ausência de Fritz. 66

sobre a que se destinariam estes espaços. Ademais, os projetistas dos conjuntos afirmaram, em depoimento, que não eram feitos projetos paisagísticos dos espaços livres dos conjuntos. E não é possível identificar o significado desses espaços que parecem, de fato, esquecidos pelo projeto ou, no mínimo, deixados de lado (esquema de imagens 1 e esquema de imagens 2).

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IMAGENS ESPAÇOS RESIDUAIS FAZENDA GRANDE II Esquema de imagens 1

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IMAGENS ESPAÇOS RESIDUAIS CAJAZEIRA VI Esquema de imagens 2

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Assim como a esmagadora maioria dos conjuntos habitacionais produzidos segundo os preceitos do BNH, os conjuntos aqui estudados desviam-se, negativamente, do princípio modernista de que o térreo deveria ser um espaço livre tratado como área verde de uso comum, que envolveria o volume dos objetos edificados e que conectaria a zona residencial a outras áreas da cidade. Comprova-se isso ao analisar os projetos, em depoimentos dos arquitetos que os projetaram e verificando a situação atual da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI. Como afirma Benvenga (2011), ao refletir sobre o paradigma do BNH, Os espaços livres desses conjuntos verticais eram sempre espaços coletivos, não compartimentados e não distintos, isto é, espaços livres abundantes de domínio público, não hierarquizados e residuais da implantação dos edifícios. Outra característica desses espaços livres era a falta de definição e proposição de usos e de tratamento paisagístico específico. (p. 55)

Lamas (2004) também constata o caráter residual dos espaços deixados livres entre os edifícios nos espaços urbanos concebidos sob influência modernista: A forma urbana irá decorrer das considerações habitacionais, em detrimento da composição de espaços urbanos. O espaço urbano não é considerado como objeto de investigação e torna-se no ‘resíduo’ resultante das exigências habitacionais: o bloco, a banda, a torre, o complexo, a moradia. Estas, por sua vez, dispõem-se no terreno em função de necessidades higiénicas, de insolação, de arejamento e de acessos. [...] Os edifícios deixam de pertencer à estrutura superior do quarteirão e autonomizam-se. As ruas deixam de pertencer às relações físico-espaciais da cidade e reduzem-se a traçados de circulação e serviço. As implantações dos edifícios decorrem das melhores condições para a habitação, e não da posição no quarteirão. E toda a cidade será pensada em função da unidadebase – o alojamento – e do seu agrupamento em hierarquias superiores. Como se viu, tanto na cidade tradicional como na urbanística formal, o alojamento e o edifício de habitação eram determinados pelo lote – portanto gerados pela posição e implantação previamente determinados pela forma urbana. Na cidade moderna, pelo contrário, será o alojamento e as tipologias de sua agregação (edifícios, blocos, torres) que determinarão as formas urbanas. Neste caso, o espaço entre os edifícios torna-se apenas um espaço residual. É o resultado que sobra da implantação dos edifícios no terreno. Já não é objeto de desenho urbano. (p. 302-3)

Também se percebe que a negligência do projeto com as fachadas dos edifícios, assim como o seu atual estado mal cuidado, certamente reforça o caráter de resíduo dos espaços por ela envolvidos. As fachadas, como dito anteriormente, não são mais do que uma superfície vertical que separa o ambiente público do ambiente íntimo, sem qualquer apuro formal ou estético que dê caráter significativo à arquitetura do edifício e ao ambiente público. É outro 70

elemento espacial que leva a concluir que não se dá qualquer importância com o que acontece no espaço ao redor de, pelo menos, três das quatro fachadas dos blocos de apartamentos, posto que, na quarta há, ao menos, a marcação da porta de entrada e, em alguns prédios, há ainda um caminho cimentado de acesso. Quando passamos da análise do projeto para o que está construído, observam-se os blocos de apartamentos e diversos espaços abertos, fragmentados, sem hierarquia e mal definidos pelo volume dos edifícios, pelas vias de carros e pelos incertos caminhos de pedestres. Tendo em vista as possibilidades e limitações desta pesquisa 34, o que foi possível constatar é que, para as pessoas que estão nos conjuntos, a maioria dos espaços delimitados pelos afastamentos entre os edifícios, e entre estes e o sistema de circulação, não demonstra ter um sentido, não demonstra ser um “espaço” no sentido dito por Certeau (2012). Para esse estudioso, “*...+ espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito” (p. 184). Entende-se que, no que diz respeito à prática espacial, explicada por Lefebvre (1991), as áreas entre os prédios se configuram como elementos residuais da ambiência dos conjuntos habitacionais. Porque, via de regra, não são entendidos como aproveitáveis, sendo espaços que sobram na dinâmica social dos conjuntos. Alguns moradores de Fazenda Grande II afirmaram categoricamente que os espaços entre os edifícios não servem para nada, são inúteis. Outros, quando perguntados se eles se lembravam de algo que acontecia ali respondiam, sempre, negativamente. O que foi possível entender é que os recuos entre os edifícios, e entre estes e o sistema viário, são espaços onde não há elementos que estimulem a sua experimentação. Assim, não sendo percebidos nem experimentados, não se fixaram na memória das treze pessoas com as quais conversei, todas moradoras de Fazenda Grande II desde os primeiros anos de existência do conjunto. Estas pessoas foram indicadas por moradores que eu conhecia, que, mesmo sem haver essa exigência, sugeriram os residentes mais antigos que conheciam, os quais também recomendaram outras pessoas a serem entrevistadas. Houve ainda entrevistados encontrados a partir de um olhar interrogador deles diante de meu comportamento35 em Fazenda Grande II, e, com isso, esclarecia o que eu estava fazendo e iniciava uma conversa. Todas essas pessoas eram, em meados da década de 80, crianças ou eram adultos que criaram seus filhos no conjunto habitacional. Buscava iniciar a conversa 34

Reconheço, por exemplo, que uma pesquisa quantitativa com aplicação questionário que complementasse os dados qualitativos seria de enorme importância. Entretanto, considero que apenas ao final do tempo do mestrado foi possível alcançar um mínimo de maturidade na pesquisa que pudesse gerar uma forma de abordagem adequada no questionário e, neste momento, já não havia tempo hábil para sua formulação, aplicação e análise. Teria sido importante também uma estadia de pelo menos um mês em um dos conjuntos habitacionais, o que não foi possível diante da impossibilidade de encontrar alojamento. Não obstante, o desenvolvimento de qualquer pesquisa encontra limitações, e é preciso ponderar as análises e interpretações a partir delas. 35 Tirando fotos ou fazendo anotações, o que não é comum no contexto e no cotidiano daquele ambiente residencial. 71

perguntando, essencialmente, quando haviam chegado à Fazenda Grande II, como era o local quando começaram a morar lá, o que achavam do conjunto nos dias atuais e quais eram as grandes diferenças entre a situação do local nos anos 80 e a forma como ele se encontra atualmente, em quais espaços dos conjuntos as pessoas costumam permanecer. Todas falaram da extrema precariedade do transporte público quando da inauguração dos conjuntos, da então inexistência de comércio e serviços, da necessidade que tinham em se deslocar para realizar qualquer atividade, da proliferação do comércio que hoje se verifica, do crescimento do bairro, do aumento da insegurança nos dias atuais, que os moradores costumam se concentrar no estacionamento e nos bares. Ao falar sobre o conjunto onde moram há mais de vinte anos, nenhuma destas pessoas mencionou, espontaneamente, os espaços entre os entre os edifícios. Falaram sobre os espaços delimitados pelos afastamentos dos edifícios apenas quando induzidas, e, ainda assim, com expressão de estranhamento ante a pergunta. Uma moradora, que vive na Quadra A da Fazenda Grande II desde 1985, afirmou que os espaços entre os prédios e os passeios não são usados, “porque não tem como usar”. Um morador da mesma quadra, que nos anos 80 era uma criança, fala de dois espaços que hoje são resíduos, mas os menciona porque, na época de sua infância, neles havia elementos para brincadeiras e exercícios físicos. Outra residente, adulta nesta época, lembra-se destes pequenos parques apenas quando perguntada sobre eles, e porque seus filhos costumavam brincar aí. Não houve manutenção deste local, as atividades que nele aconteciam desapareceram e o espaço acabou permanecendo como um resíduo no conjunto e um resquício na memória. Macedo (1995) afirma que A duração – vida útil – de um determinado espaço livre urbano pelo tempo afora, está diretamente vinculada à possibilidade constante de apropriação que este permite ao seu público usuário. Quanto mais e melhor possa ser apropriado, desde que convenientemente mantido, maior vai ser sua aceitação social e por mais tempo será mantida sua identidade morfológica. (p. 24)

Um casal morador da Quadra B da Fazenda Grande II há 25 anos afirmou, de forma incisiva, que no conjunto não tem espaço para as crianças brincarem, que “criança não tem espaço para nada”. Tudo o que tenho leva a entender que estes espaços não se agregam ao repertório dos espaços de representação dos moradores entrevistados, sendo, também nesse aspecto da produção do espaço, resíduos. A disposição dos edifícios expressa, sobre alguns espaços, que estes são locais de convergência, que por ali se deve passar para entrar nos prédios. E, sobre outros, parece dizer que eles não existem, que aquilo não interessa, que o esqueçam, que não passem por ali. Entretanto estes outros espaços estão lá, materializados pela estrutura urbana que os negam, sendo atravessados por pessoas e por olhares. Por mais indefinidos que sejam os espaços residuais nos conjuntos, eles têm uma existência física, concreta (MAIA, 2008, p. 72

43). Veja-se, por exemplo, as construções formais da Quadra A do conjunto da Fazenda Grande II e de parte do Setor A do conjunto de Cajazeira VI nas imagens 32 e 33 a seguir.

Imagem 32. Construções formais na Quadra A da Fazenda Grande II: edifícios e acessos. Elaborado por Sanane Sampaio.

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Imagem 33. Construções formais em parte do Setor A de Cajazeira VI: edifícios e acessos. Elaborado por Sanane Sampaio.

Ainda que a maioria dos espaços intersticiais nos conjuntos não tenha tido destino determinado e esteja sem uso regular, porções dela são apropriadas, sempre de modo privativo. Tornam-se garagem ou estacionamento, bares, barracas de lanche e de bebida, varal, pequenas hortas ou jardins particulares, benfeitorias estas que passam a compor o cenário dos conjuntos e o patrimônio privado de determinado morador, sendo que as garagens, bares e barracas, por serem construções, se destacam na paisagem em relação aos outros elementos. Isso evidencia o potencial de uso que tais espaços, residuais no âmbito da concepção do espaço, guardam. Certo contexto permite e favorece que eles sejam apropriados, mesmo que o projeto não tenha previsto. Ou, por outro lado, pode-se indagar 74

se a apropriação foi possível justo porque o projeto não pensou aquele espaço para ser utilizado de maneira definida. Em tais casos, considera-se que, no que diz respeito à prática espacial e ao espaço de representação, esses espaços não podem ser qualificados como resíduos, embora no domínio da representação do espaço, da concepção do projeto, sejam assim caracterizados. Parece ser impossível habitar o tipo de moradia produzida pelo BNH sem nela introduzir adaptações, e os espaços encontrados, para isso, são os recortes de espaços não ocupados que sobraram da produção formal dos conjuntos habitacionais. Segundo Macedo (1995), Na cidade convencional estes padrões [prédios isolados sobre áreas livres contínuas], quando aplicados, praticamente obrigaram a população a uma intervenção drástica para adequá-las ao seu cotidiano. Este é um fato perceptível em qualquer cidade do país, que possua um conjunto habitacional construído por cooperativas ou companhias de habitação estatais (as conhecidas Cohabs). Nestes lugares, na medida do possível projetados dentro de cânones modernos, os primitivos espaços livres foram ocupados e re-hierarquizados, transformado a antiga configuração, de caráter modernista, em um espaço urbano, cuja configuração é similar ao da cidade tradicional. Criaram-se para tanto os planos verticais necessários redividindo-se ou reparcelando-se os primitivos planos horizontas de piso. (p. 37).

Acontece algo como isso em Fazenda Grande II e em Cajazeira VI. Contudo não se chegou a uma similaridade com a morfologia da cidade tradicional, esta entendida como aquela cujo tecido urbano é formado por lotes que compõem quadras, as quais são circundadas por ruas e passeios. A forma urbana de influência modernista ainda é bastante perceptível e predominante, ainda que se constatem construções que a alteraram. A observação de Espírito Santo (2002), que em sua pesquisa fez um panorama do que foi produzido pela URBIS no período de sua existência (1965 a 1998) em toda Bahia, também leva a concluir que essas apropriações privadas é uma constante nos conjuntos construídos por esta companhia habitacional: Os blocos de apartamentos se distribuíam em quadras abertas, sem delimitação entre eles, geralmente com áreas para jardins no entorno dos blocos. Entretanto, muitas dessas áreas coletivas, e pertencentes à fração ideal dos apartamentos, foram paulatinamente privatizadas, tornadas garagens fechadas, áreas de comércio, ou foram apropriadas coletivamente, delimitadas por muros e portões, de forma isolada ou em grupos de blocos. (p. 216)

Precisamente o que acontece nos conjuntos escolhidos nesta pesquisa. Observa-se ainda que, em Fazenda Grande II, há uma inversão nos espaços abertos dos conjuntos. O local definido em projeto para estacionamento coletivo é utilizado predominantemente para 75

lazer: jogar bola, andar de bicicleta, brincadeiras de criança, encontro nos bares que estão às suas margens. E o lugar dos carros vem sendo construído pelos moradores o mais próximo possível de seus apartamentos, mediante a privatização de algumas das áreas livres e residuais no âmbito do espaço concebido. Novamente há indícios que levam a considerar que esta é uma situação generalizada nos conjuntos da URBIS, posto que Almeida (2005), ao analisar os espaços produzidos pela companhia em toda Cajazeira, constata a mesma situação em relação ao lugar dos carros nos conjuntos habitacionais: Os estacionamentos, na sua grande maioria, não eram utilizados, uma vez que, sendo abertos, não se constituíam em espaços de segurança. Logo, os moradores foram construindo garagens ou delimitado vagas nos terrenos vazios, limítrofes aos prédios. (p. 78)

Espírito Santo (2002), especificamente sobre o complexo habitacional Cajazeira-Fazenda Grande, observa ainda, a respeito da situação do comércio no bairro quando da inauguração dos conjuntos, que: O que existia era muito precário, improvisado nas próprias habitações e em barracas, que, autorizadas para venda de jornais, revistas e produtos similares, iam se transformando em bares, mercados, revendas de toda sorte de alimentos e produtos. (p. 109)

Isso conduz ao entendimento de que os pequenos arranjos informais de comércio acontecem desde a inauguração dos conjuntos, como forma de suprir a sua ausência durante os primeiros anos de existência dos conjuntos. Muitos de tais comércios estão, hoje, consolidados, tanto em termos construtivos quando de inserção na dinâmica dos conjuntos de Fazenda Grande II e de Cajazeira VI. Algumas das primeiras barracas transformaram-se em pequenos mercados e um dos primeiros bares a funcionar em Fazenda Grande II, é, agora, uma construção de dois pavimentos, onde também há habitações de aluguel. Muitos dos edifícios dos conjuntos tiveram seu entorno imediato murado pelos seus moradores, transformando áreas comuns dos conjuntos em locais de domínio restrito aos condôminos. Talvez isso seja uma busca por dar significado aos espaços “de ninguém” ao redor dos prédios. Ao se definir, fisicamente, a quem pertence a área ao redor do edifício, torna-se mais fácil identificar qual a sua posição na hierarquia que vai do público ao privado. Além disso, os muros acabam definindo lotes, ficando os prédios no centro deles. Isso denota uma não aceitação ao ideal modernista da moradia verticalizada envolta por um espaço coletivo e de livre acesso. A julgar, novamente, pela constatação de Almeida (2005) isso não é algo que acontece apenas nos conjuntos aqui estudados: Também, os condomínios dos prédios marcaram a sua área de ocupação cercando-se com muros altos. Como não havia legislação aplicada, cada condomínio criou o seu limite de acordo com suas necessidades e interesses. (p. 78) 76

Serpa (1997) também constata esta situação em um conjunto habitacional na cidade de São Paulo, ao afirmar que “no Conjunto Habitacional José Bonifácio, a privatização de espaços considerados no projeto original como ‘públicos’ resulta do fato de que os mutuários cercam o lote do prédio depois de quitarem o imóvel junto à Cohab” (p. 202). As observações e análises levam a entender que a questão não é que não há distinção entre o que é público e o que é privado nos conjuntos habitacionais da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI. Está claro que o privado é aquilo que se comprou, os apartamentos, e aquilo que se ocupou irregularmente, principalmente as garagens e os bares. O que não está posto é o que é o público, o que significa o espaço que é, ou deveria ser, comum. Porque, se o morador ou condomínio não cerca o espaço e o toma como seu, os usuários, via de regra, não se sentem donos nem responsáveis por ele. Não há a ideia de que a propriedade do espaço pode ser compartida, que os benefícios e os ônus que isso traz podem ser divididos. Por outro lado, tampouco o poder público – municipal e estadual – assume esses espaços como sendo de sua responsabilidade, nem no sentido de regular e fiscalizar, muito menos no sentido de cuidar de modo a torná-los agradáveis. Disso resulta que o espaço, que deveria ser público, se constitui, na verdade, como terra de ninguém.

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IMAGEM DAS APROPRIAÇÕES DA FAZENDA GRANDE II Esquema de imagens 3.

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IMAGEM DAS APROPRIAÇÕES DE CAJAZEIRA VI Esquema de imagens 4.

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3.2 Av. Tancredo Neves Na Av. Tancredo Neves há espaços residuais que foram produzidos a partir de duas formas de atuação na cidade bastante diversas. Ou são resultado de intervenções viárias voltadas ao automóvel ou resultam de uma bem intencionada, porém sem poder alcançar seus objetivos num contexto rodoviarista, regulamentação que incide sobre a ocupação do solo. Em comum, entre ambas, há o fato de não haver possibilidade de uso desses espaços pelos usuários não motorizados que circulam pelo local. Foram projetadas três passagens de pedestre atravessando as quadras do Loteamento Centro Empresarial Iguatemi, já mencionadas, que não são mais que mesquinhos intervalos de espaço entre os lotes. Estes becos estão no projeto do loteamento porque assim determinou um decreto. O projeto não foi além de cumprir a letra fria da lei, sem maiores problematizações sobre como a espacialização de uma determinação legal poderia vir a funcionar36. No primeiro caminho, aqui designado pela letra “A”, há uma laje, com aproximadamente 3x4m, no acesso que dá para a Av. Tancredo Neves. Esta entrada foi privatizada e fechada por alguém que a utiliza para vender almoço a preço popular. Este restaurante improvisado só funciona nos dias úteis, entre, aproximadamente, 11:30hs e 14:00hs, e, fora deste período, o acesso fica trancado por um portão. Não bastasse isso, a laje não avança sobre toda a extensão do caminho, o que deixa exposta uma vala por onde passa uma tubulação, sendo impossível, também por isso, o trânsito de pessoas. Esta vala só é coberta por terra quando alcança os lotes do outro lado da quadra. Ocorre que, a partir daí, o espaço reservado à passagem de pedestre não foi demarcado e, em meados de 2012, os dois lotes que faziam limite com o beco foram remembrados para que neles seja construído um empreendimento, cujo projeto desconsidera que entre eles havia uma área de circulação pública37. Deste modo, este caminho de pedestres será, muito brevemente, definitivamente fechado (imagem 34).

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Cabe esclarecer que considero que a exigência trazida pelo Decreto 5.505/78, obrigando a existência de caminhos atravessando o meio das quadras do Loteamento Centro Empresarial Metropolitano, trouxe uma relevante regulamentação para a construção da cidade. Entretanto verifica-se, também aqui, que são necessários outros fatores, além da legislação, para produzir um ambiente urbano de qualidade. E, no caso específico aqui discutido, faltaram elementos que integrassem, de modo adequado, os caminhos ao seu entorno. 37 Não foi verificado se a inclusão do espaço do caminho na área remembrada passou por algum trâmite legal dentro dos órgãos públicos competentes. 80

Imagem 34. Foto 1: acesso para a Av. Tancredo Neves Fechado; foto 2: vala exposta em parte do Caminho A; foto 3: Caminho A interrompido pelo remembramento dos lotes; foto 4: Caminho A interrompido pelo remembramento dos lotes. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio.

A situação do Caminho “B” também se divide em duas metades. A metade que dá acesso à Av. Tancredo Neves seria acessível, não fosse o mato que chega a dois metros de altura e de, eventualmente, estar fechado por um contêiner de entulho. De forma oposta, a outra metade está aberta e transformou-se num jardim cuidado por um dos condomínios vizinho ao beco, havendo grama aparada e arbustos ornamentais. Ainda assim, ninguém entra neste local para passar um momento e, posto que a sua extremidade oposta está fechada por um matagal, atravessá-lo também não é possível (imagem 35). 81

Imagem 35. Foto 1: acesso para a Av. Tancredo Neves; foto 2: Caminho B entre muros; foto 5: acesso para o Rio Camurujipe. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio.

No Caminho “C” aconteceu que edifícios construídos nos lotes que margeiam a passagem, nos dois lados da quadra, invadiram a área pública que estava destinada à circulação de pedestres. Ou seja, esta passagem já não existe e, não fosse o registro que se tem do que foi projetado no final da década de 70, dificilmente se saberia que mais um espaço público da cidade fora privatizado (imagem 36). 82

Imagem 36. Foto 1: Caminho C ocupado por edifícios de escritório; foto 2: Caminho C ocupado por edifícios, onde hoje funcionam instituições públicas. Fonte da imagem aérea: Prefeitura de Salvador, SICAD, 2006. Fonte da imagem do projeto da Quadra C: Prefeitura de Salvador, Fundação Mário Leal Ferreira, LOUOS 1.2. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio.

Em síntese, os espaços para circulação de pedestre foram projetados e materializados, estavam lá, mas não houve condições mínimas (acesso livre e aberto, por exemplo) para que ele cumprisse a função a que fora destinado e, menos ainda, para que ele se tornasse um lugar que possibilitasse a construção de uma apropriação, a constituição de uma experiência. Estes becos são um interstício com três metros de largura entre lotes, em que não há nenhum estímulo para que seu uso seja efetivado, muito pelo contrário. Há todo um contexto que impede que os becos sejam percebidos e vividos, uma vez que eles estão fechados, inacessíveis ou desapareceram ao serem ocupados por prédios. No contexto da região desta avenida, onde o estímulo ao uso do automóvel individual está no âmago da 83

produção deste local, aquelas tiras de espaço, que deveriam ser reservadas ao caminhante, acabaram sendo tomadas por particulares ou inutilizadas. Tendo em vista os processos de produção do espaço teorizados por Lefebvre (1991), entende-se que estas “passagens de pedestres” não podem ser consideradas espaços residuais no que diz respeito à representação do espaço, posto que estavam inseridas na concepção do loteamento, tendo sido pensadas para que algo – a circulação – acontecesse nelas. Por outro lado, não havendo possibilidade para que estes becos sejam praticados nem vivenciados, eles se tornam resíduos se pensarmos em termos da prática espacial e do espaço de representação. Isto, entretanto, é revertido no momento em que tais espaços são apropriados, ainda que de forma privada. É preciso ressalvar, por exemplo, a situação do espaço onde funciona o restaurante improvisado no acesso do Caminho “A”. É uma apropriação privada de um espaço público, a qual escapa à lógica de ocupação predominante da avenida. E é preciso considerar que pessoas só podem usufruí-lo em momentos muito restritos: hora do almoço dos dias úteis. Assim, entende-se que o caráter residual deste espaço varia com o tempo. Ou seja, especificamente neste reduzido trecho, de, aproximadamente, 3x4m do caminho “A”, e no intervalo de tempo mencionado, tal espaço não restou do projeto urbano nem da dinâmica daquele local, não sendo, portanto, um espaço residual. Por outro lado, terminado o horário de funcionamento do restaurante e ele é fechado com grade, a vivência neste espaço já não é possível, o que lhe confere o caráter residual. O Decreto 5.505/78, no mesmo artigo em que determina a existência de passagem de pedestres nas quadras, estabelece que, “quando da implantação de edificações nos lotes, não se construam muros, cercas ou qualquer outro elemento divisório nas áreas correspondentes aos recuos voltados para as via públicas, inclusive passeios, calçadas ou outras passagens de pedestres” (art. 4º, § 3º, inciso I, alínea g). Isto não foi cumprido, posto que os limites dos lotes que dão para os becos são fechados com muros cegos e altos. É também importante notar que a única utilização que o referido decreto permite aos caminhos é a circulação de pedestres. Certamente estes fatos induziram à não utilização e apropriação do espaço pelas pessoas, o que facilita sobremaneira a sua privatização ou abandono. No que diz respeito às sobras de espaço resultantes de obras viárias, considera-se que tanto os canteiros que direcionam os veículos, quanto a área sob o viaduto construído em frente ao Desenbahia, guardam um claro caráter residual. A forma dos canteiros é resultado da definição de como o fluxo de veículos deve ser conduzido. De modo semelhante ao que acontece nos espaços gerados pela definição de recuos entre os edifícios dos conjuntos habitacionais, absolutamente não interessa o que poderia acontecer na superfície delimitada pelo traçado dos canteiros. Não há qualquer intencionalidade para este espaço, espera-se, apenas, que seu traçado auxilie na organização do tráfego. Deste modo, são espaços residuais no que se refere à representação do espaço. 84

E se pensarmos na dinâmica cotidiana da avenida, a maioria destes canteiros é, também, algo que resta, posto que não são praticados ou vividos pelas pessoas que estão na Av. Tancredo Neves. Alguns devido à localização destes espaços, como é o caso dos canteiros que estão entre duas pistas de veículos. Outros por não haver atividades na sua proximidade que os tornem apropriáveis (imagem 37). O espaço sob o viaduto que liga a região do Iguatemi à Av. Tancredo Neves, em frente ao Desenbahia, não é mais que um produto que restou de sua implantação. Assim, é um resíduo se pensarmos em quaisquer das três dimensões de produção do espaço propostas por Lefebvre. Não é um espaço que fora objeto de projeto e não foi verificada qualquer apropriação ou uso deste espaço. E infere-se que, diante da não observação de eventos neste espaço, que ele não se oferece à elaboração de um espaço de representação. Nada acontece na área sob o viaduto, que é, sem mais, uma ilha. E é pertinente trazer uma das definições que o dicionário dá a esta palavra: “aquilo que, por seu isolamento ou incomunicabilidade em relação ao que o cerca, se assemelha a uma ilha” 38. Acessar este espaço é difícil e perigoso, não há qualquer conexão deste espaço com seu entorno. E, para que se tenha dimensão da qualidade dos demais espaços públicos da Av. Tancredo Neves, é plausível considerar este local como o mais agradável da avenida. Ele é amplo e sombreado, e não há outra área pública no local que chegue perto destas características (imagem 37). E o fato de nenhuma atividade relativamente constante acontecer num espaço com tais privilégios dá uma ideia da sua não integração com os demais espaços da Av. Tancredo Neves. A Av. Tancredo Neves é uma área bastante valorizada em Salvador, onde estão instalados comércios e serviços que atendem à classe de maior renda da cidade. Como tal, não se sustenta sem o afluxo diário de trabalhadores que recebem até três salários mínimos. Para atendê-los, dezenas de ambulantes39 se instalam nos espaços públicos da avenida, em calçadas ou em canteiros que estão na rota do fluxo de pedestres. Estes locais são bastante disputados, tanto pelos comerciantes quanto pelos clientes, atraindo pessoas durante todo o período de atividade comercial da região 40 . São espaços, portanto, praticados e experimentados por certo estrato de usuários que estão na avenida. Diversamente dos canteiros onde nenhuma atividade acontece, estes não podem ser considerados resíduos se considerarmos a dimensão da prática espacial e do espaço de representação, posto que são regularmente praticados, possibilitando a construção de uma vivência sobre o local. A ideologia de produção da cidade que tem conduzido a estruturação da Av. Tancredo Neves resulta numa urbanização absolutamente perdulária, e isso falando apenas em termos de

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Dicionário Houaiss. Disponível em . Acesso em dezembro de 2012. Vendem produtos diversos, mas, principalmente, alimentos e bebidas. 40 Como um local de uso exclusivo de comércio e serviço, esse período vai, predominantemente, de segundafeira à sexta-feira, das 7:00hs às 20:00hs. 39

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espaço desperdiçado. Esbanjam-se áreas, fragmenta-se o solo de uma forma que ele já não pode ser utilizado. E isso numa das áreas de maior valor por metro quadrado da cidade.

Imagem 37. Fonte da imagem aérea: CONDER, INFORMS, 2010. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio.

3.3 Cotidiano nos resíduos A geógrafa Doreen Massey compreende o espaço mediante três proposições: o espaço é um produto de interações entre as diversas escalas, “desde a imensidão global até o intimamente pequeno”; o espaço é a esfera da coexistência de distintas trajetórias e da multiplicidade; e, por fim, o espaço está, sempre, em construção, “jamais está acabado, 86

nunca está fechado” (MASSEY, 2009, p. 29). Para Santos (2009), outro geógrafo, a materialidade do espaço é, “ao mesmo tempo, uma condição para a ação; uma estrutura de controle, um limite à ação; um convite à ação. Nada fazemos hoje que não seja a partir dos objetos que nos cercam” (p. 321). E, também, nada fazemos no espaço urbano que não haja um mínimo de relação com o outro. Os moradores e usuários dos conjuntos e da avenida são agentes que, na construção do seu cotidiano, vêm transformando continuamente determinados espaços, residuais no âmbito da representação do espaço. Isto ilustra peremptoriamente a terceira proposição de Massey para compreensão do espaço. E esta transformação tem se dado a partir de um diálogo com o que está posto na estrutura formal da cidade, na forma entendida por Santos, e, também, mediante articulações com o outro. O cotidiano, neste trabalho, foi sendo apreendido mediante o que estava materializado, através do que era visível nos locais estudados. Em outras palavras, a partir do que foi concretizado no espaço e de seus acontecimentos perceptíveis 41. No caso de Fazenda Grande II, estas assimilações foram relacionadas, ainda, com depoimentos de alguns moradores. Com isso, a rotina diária em locais públicos da Fazenda Grande II, de Cajazeira VI e da Av. Tancredo Neves foi sendo compreendida como o desenvolvimento de ações concretizadas e consolidadas no tempo, as quais vêm adaptando a estrutura urbana existente. Constatou-se que, no momento em que as pessoas passaram a ocupar os conjuntos da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI, certos espaços esquecidos no processo de concepção do projeto foram incorporados às suas práticas cotidianas, revertendo, assim, o caráter residual destes. No caso da Av. Tancredo Neves, não foram encontrados registros sobre como as pessoas utilizavam seus espaços públicos nos primeiros anos de sua implantação. Entretanto acredita-se ser mais provável que o uso e a transformação destes espaços pelos usuários, e não apenas pelo poder público ou por construtoras, tenha tido impulso no mesmo período em que a ocupação por empreendimentos imobiliários tenha ganhado força, ou seja, nos anos 90. E isto foi feito construindo formas e modos de usar que adequaram o espaço dado, formal, às necessidades diárias, às necessidades da vida, mediante constantes construções e reconstruções que são “actos minúsculos, cada uno en manos de la persona que mejor los conoce y es más capaz de adaptarlos a las circunstancias locales” (ALEXANDER, 1981, p.270). Mas apenas alguns locais foram escolhidos para abrigar certas atividades e usos. Certamente, esta escolha não foi aleatória, ela perpassa por considerações de ordem tanto objetiva quanto subjetiva. Todas as práticas observadas nos espaços esquecidos na concepção do projeto são usos e apropriações informais inseridos nos interstícios que sobraram da cidade formal, 41

Evidentemente, algo tão complexo como a rotina diária de um ambiente urbano não se reduz a isso. Entretanto são elementos essenciais no entendimento do cotidiano, sendo o que foi possível abordar no âmbito desta pesquisa. 87

excetuando-se apenas a ocupação do Caminho C do Loteamento Centro Empresarial Metropolitano na Av. Tancredo Neves por edifícios. São entendidas, ainda, como pequenas ações e reações que foram capazes de alterar o caráter residual de alguns espaços. Isso foi possível a partir de uma construção cotidiana, no âmbito da pequena escala. E só deste modo isso poderia ser alcançado, posto que, na escala em que os projetos aqui estudados foram concebidos, estes espaços são poeira, no sentido físico e metafórico desta palavra. Estas práticas são “táticas” de uso dos espaços tecnocraticamente produzidos, que, de acordo com Certeau (2012), são “‘maneiras de fazer’ *que+ constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sóciocultural” (p. 41); são “*...+ operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os ‘detalhes’ do cotidiano *...+” (p. 41). As práticas cotidianas, enquanto táticas, carregam um potencial de criatividade e de “astúcia” (CERTEAU, 2012) capazes de construir, nas áreas que sobraram da produção capitalista dominante, um espaço pleno de uso, um espaço que signifique, que expresse algo. São formas de escapar do poder dominante, sem, no entanto, deixá-lo, posto que tudo é feito a partir do que ele materializa. Estas táticas manipulam e alteram o que está posto, e são dependentes das necessidades, das oportunidades e das circunstâncias. Observa-se, ainda, que têm antes um caráter de ajustamento à estrutura física e social da cidade formalmente produzida do que de resistência. Para Certeau (2012) a leitura é uma reapropriação do texto do outro, diretamente influenciada pela memória, pelo repertório trazido. E “texto”, na argumentação que o autor constrói, pode ser compreendido como uma reportagem, como uma mercadoria do supermercado ou como a estrutura urbana. Essa reapropriação produz algo que modifica o que está posto. Esta mutação torna o texto habitável, à maneira de um apartamento alugado. Ela transforma a propriedade do outro em lugar tomado de empréstimo, por alguns instantes, por um passante. Os locatários efetuam uma mudança semelhante no apartamento que mobíliam com seus gestos e recordações; [...]. (CERTEAU, 2012, p. 48)

Certeau (2012) afirma ainda que, “se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades (por exemplo, por um local onde é permitido circular) e proibições (por exemplo, por um muro que impede prosseguir), o caminhante atualiza algumas delas” (p. 164). Estas atualizações se constituem em “combinatórias de operações”, em “modelos de ação característicos dos usuários” que também compõem uma cultura (CERTEAU, 2012, p. 37-8), sendo criações anônimas, algumas vezes perecíveis e não capitalizáveis.

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As apropriações feitas através das garagens, dos estacionamentos e dos varais refletem uma busca dos moradores dos conjuntos em suprir uma necessidade que o projeto arquitetônico e o planejamento urbano não satisfizeram. A exiguidade do tamanho dos apartamentos não comporta espaço para secar roupa e a má qualidade do transporte público, que aflige toda Salvador e é ainda pior em bairros populares e distantes do centro tradicional como Cajazeira-Fazenda Grande, faz com que famílias adquiram seu próprio automóvel sempre que isso é financeiramente possível 42, e os moradores preferem estacioná-lo num lugar privado, fechado e junto à sua moradia. Os espaços escolhidos para improvisar os varais são os fundos dos edifícios, de modo a não deixar as roupas tão expostas, e geralmente quem os utiliza são os moradores do pavimento térreo. São feitos simplesmente com arames ou cordas amarradas na parede dos edifícios e em paus fincados no solo. Aqueles que constroem garagens o fazem quase sempre entre o fundo do prédio e a encosta que dá para os vales, e o mais próximo que se consiga do apartamento. Algumas são apenas uma cobertura de fibrocimento sustentada por varas de madeira, outras, mais consolidadas, têm paredes em alvenaria rebocada e pintada, portão em metal e cobertura em fibrocimento. Entre um extremo e outro há variações na qualidade da construção, mas sempre com o padrão de serem edificações baixas, de um único vão com espaço suficiente para abrigar um carro.

Varal na Fazenda Grande II.

Varal e garagens em Cajazeira VI.

Garagem na Fazenda Grande II.

Garagens na Fazenda Grande II.

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O que tem se tornado mais frequente, dada a facilidade de crédito e aos incentivos fiscais dados no período recente. 89

Imagem 38. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio.

Os bares, as barracas de lanche e de bebida, os ambulantes, assim como o restaurante improvisado que serve almoço na Av. Tancredo Neves, representam um necessário arranjo informal que objetiva garantir uma alternativa de renda e de consumo. Tanto nos conjuntos habitacionais quanto na avenida encontram-se instalados, por motivos óbvios, em locais que estão no percurso dos moradores e pedestres, estando bastante visíveis. Há apenas um bar com um pouco mais de estrutura em Cajazeira VI, localizado na entrada da nucleação do conjunto, e conta com cozinha, área coberta e descoberta. Neste mesmo conjunto, uma moradora instala, aos domingos, um toldo (que não chega a ser um bar nem uma barraca), mesas e cadeiras na frente do prédio onde mora, próximo à via coletora, e nele serve feijoada. Em Fazenda Grande II há, em cada uma de suas três quadras, tanto bares mais estruturados, com cozinha e banheiro, quanto pequenas barracas com estrutura e vedação em ferro. Estes comércios funcionam como locais de congregação dos moradores. São os locais, dentro dos conjuntos, mais frequentados, assim como os espaços abertos ao seu redor são os principais espaços de permanência dos conjuntos habitacionais.

Toldo instalado aos domingos em Cajazeira VI.

Bar em Cajazeira VI.

Bar na Fazenda Grande II. Barraca na Fazenda Grande II. Imagem 39. Comércio nos conjuntos habitacionais. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio.

Na Av. Tancredo Neves, para montar o restaurante improvisado que há na entrada do caminho “A” foi posta uma lona sobre uma estrutura tubular em alumínio. O almoço não é preparado no local, posto que nele há estrutura apenas para colocar mesas para os cliente e as bandejas onde é exposta a comida. Os vendedores ambulantes da avenida se instalam, 90

principalmente, em três locais: no ponto de ônibus em frente ao Jornal A Tarde, no canteiro e na calçada próximo ao Shopping Sumaré e, principalmente, no canteiro central da rua transversal que liga a Rua Alceu Amoroso Lima ao Shopping Salvador. Apenas as atividades realizadas nos canteiros são apropriações de espaços residuais, portanto, me limitarei a elas. No canteiro próximo ao Shopping Sumaré uma vendedora de cachorro-quente instala seu carrinho no espaço da calçada. O canteiro é utilizado para colocar equipamentos de apoio, como cadeiras, mesas, lata de lixo, e, também, como área de descanso para a comerciante (imagem 40).

Imagem 40. Canteiro próximo ao Shopping Sumaré. Fonte da fotografia: Sanane Sampaio.

O canteiro da rua transversal à Rua Alceu Amoroso Lima é o principal acesso dos pedestres que saem da Av. Tancredo Neves em direção ao Shopping Salvador, e onde está a passarela que liga os dois lados da avenida. A circulação de pessoas é intensa durante todo período de atividades na região. Assim, para os ambulantes, este é o melhor local na avenida para comercializar seus produtos, havendo dezenas de vendedores neste canteiro (imagem 41).

Imagem 41. Canteiro ocupado por vendedores ambulantes. Fonte da fotografia: Sanane Sampaio.

Para Certeau (2012), as táticas são operações sutis e quase silenciosas do mais fraco. Indo nesse sentido, Santos (2009) afirma que Por serem ‘diferentes’, os pobres abrem um debate novo, inédito, às vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já presentes. É assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos 91

usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva. (p. 326)

Justamente o que se deduziu nesta pesquisa e que foi verificado através dos dados de renda do censo do IBGE43 para os conjuntos de Cajazeira VI e da Fazenda Grande II. No caso da Av. Tancredo Neves, os ocupantes dos espaços residuais moram em outras partes da cidade, pois, como dito, não há residências na área em estudo. Sabe-se, entretanto, que a atividade do comércio ambulante não gera grandes lucros. Como pode ser visto na Tabela 1, 16% dos responsáveis pelos domicílios 44 de Cajazeira VI não têm nenhum rendimento, enquanto que 71% ganham até três salários mínimos. Para Fazenda Grande II esses números são, respectivamente, 10,5% e 76,9%. Ou seja, apenas 13% dos responsáveis de Cajazeira VI têm renda superior a três salários mínimos, o que ocorre com 12,6% dos que residem na Fazenda Grande II. Comparando estes números com a distribuição de renda da Pituba, bairro de classe média 45, constata-se, a partir de dados da Tabela 2, que, dentre aqueles que auferem algum rendimento, esta condição se inverte de maneira quase simétrica. Ou seja, 15,6% dos responsáveis pelos domicílios da Pituba ganham até três salários mínimos e 75,4% têm renda superior a este valor. Em relação à cidade como um todo, vê-se que a situação da renda nos conjuntos habitacionais é um pouco menos favorecida, não chegando, contudo, a apresentar a drástica diferença que se observa em relação à Pituba. Vê-se que, em Salvador, 13,5% dos responsáveis não têm rendimento, 65,5% recebem até três salários mínimos e 21% ganham acima disso. Tabela 1. Rendimento nominal mensal dos responsáveis pelos domicílios: Cajazeira VI e Fazenda Grande II.

Sem rendimento nominal mensal Até 2 salários mínimos (sm) Mais de 2 a 3 sm Mais de 3 a 5 sm Mais de 5 a 10 sm Mais de 10 sm TOTAL

Cajazeira VI nº absoluto % 222 813 170 117 55 7 1.384

16,0 58,7 12,3 8,5 4,0 0,5 100

Fazenda Grande II nº absoluto % 98 10,5 627 66,8 95 10,1 83 8,9 30 3,2 5 0,5 938 100

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

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Seria importante verificar também o nível de instrução dos residentes, entretanto o IBGE ainda não divulgou estes dados para o Censo Demográfico 2010. 44 O Censo Demográfico 2010 traz ainda dados sobre a renda nominal mensal de todas as pessoas acima de 10 anos. Opto por não utilizar esta informação uma vez que o número de pessoas sem rendimento poderia ser superestimado, posto que muitas pessoas entre 10 e, pelo menos, 18 anos apenas estudam. 45 Salvador não conta com uma delimitação oficial de bairros. Assim, a delimitação do bairro da Pituba aqui utilizada é uma aproximação, tendo como referência os limites dos setores censitários. 92

Imagem 42. Delimitação dos setores censitários computados na quantificação dos dados de renda. Fonte da imagem: CONDER, INFORMS, 2010. Fonte dos setores censitários: IBGE, Censo Demográfico 2010. Elaborado por Sanane Sampaio.

Tabela 2. Rendimento nominal mensal dos responsáveis pelos domicílios: Pituba e Salvador.

Sem rendimento nominal mensal Até 2 salários mínimos (sm) Mais de 2 a 3 sm Mais de 3 a 5 sm Mais de 5 a 10 sm Mais de 10 sm TOTAL

Pituba nº absoluto 1.982 2.275 1.206 2.791 6.336 7.608 22.198

% 8,9 10,2 5,4 12,6 28,5 34,3 100

Salvador nº absoluto % 115.760 13,5 490.305 57,0 73.293 8,5 71.534 8,3 67.496 7,8 42.227 4,9 860.615 100

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

Imagem 43. Delimitação dos setores censitários computados na quantificação dos dados de renda da Pituba. Fonte dos setores censitários: IBGE, Censo Demográfico 2010. Elaborado por Sanane Sampaio.

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Aqueles que encontraram formas de usar os espaços que restaram na avenida e nos conjuntos foram os mais pobres, moradores de conjuntos populares afastados do centro e vendedores ambulantes, excetuando-se, novamente, aqueles que ocuparam o Caminho C na Av. Tancredo Neves. Com isso quero também dizer que, via de regra, estes pequenos espaços que sobram não interessam, não servem aos grandes empreendedores. Os espaços expressam e materializam as relações de forças que o compõem, sem, no entanto, haver qualquer garantia de que estas não possam ser transmutadas (GUIZZO, 2008). Os espaços se alteram, portanto, com a dinâmica das forças neles atuantes. Práticas do/no espaço representam relações de forças que incidem em determinado local e, como dito, carregam a possibilidade de subverter e atualizar o que está posto por determinada ordem, o que faz entender a reversão do caráter residual de alguns espaços. Por outro lado, se nada acontece num determinado espaço, se ele continua como algo que sobra, isso não quer dizer que nele não há forças atuando. Significa que a articulação das forças induz a que nada ocorra neste espaço. O arquiteto, o planejador, o tecnocrata, são agentes da produção do espaço concebido da cidade e representam apenas uma das forças que a constrói, as quais se conectam, em maior ou menor medida, com outras, menos evidentes. A conformação física do espaço concebido, que materializa uma organização de forças, induz a determinados acontecimentos, a certos modos de ação e de comportamento na cidade. O que, certamente, não significa que esta estrutura de formas seja o único determinante do que venha a acontecer no meio urbano. Alexander (1981) defende que um padrão de espaço é a precondição que permite que aconteça determinado padrão de acontecimento (p. 86). Não obstante, afirma que o espaço não causa um acontecimento, e nem vice-versa, uma vez que espaço e acontecimentos são criados e transmitidos conjuntamente pela cultura. As apropriações e os usos observados em alguns dos espaços dos conjuntos e da avenida mostram que as subversões da estrutura oficial da cidade, que tem seu grande exemplo nas ocupações irregulares, também acontecem na cidade formal. Os eventos que acontecem nos espaços não pensados na concepção do projeto produzem um “contra-espaço”, posto que revelam forças que vão na contramão daquilo que, predominantemente, ocorre na cidade formal (LOPES; PULHEZ, 2008, p. 69). Constituem-se indo contra espaços especializados, contra funções estreitamente localizadas (LEFEBVRE, 1986, p. 28, apud LOPES; PULHEZ, 2008). Santos (2009) afirma que “o espaço se dá ao conjunto dos homens que nele se exercem como um conjunto de virtualidades de valor desigual, cujo uso tem de ser disputado a cada instante, em função da força de cada qual” (p. 317). Ao lado desta disputa, observa-se que o uso compartilhado do espaço é determinado também pela interdependência. Disputa e interdependência se combinam e conduzem as práticas que ocorrem nos espaços, transformando-os. 94

As relações de disputa e interdependência são mais explícitas na Av. Tancredo Neves. Os ambulantes disputam o privilégio de comercializar no canteiro da rua transversal à Rua Alceu Amoroso Lima, disputam o tamanho do espaço que ocuparão no canteiro, disputam os clientes. A interdependência se faz perceptível na relação vendedor e consumidor, posto que os comerciantes informais são necessários para atender o afluxo de trabalhadores de menor renda que circulam na área, ao mesmo tempo em que estes trabalhadores precisam de comerciantes que vendem produtos numa faixa de preço compatível ao seu rendimento. Mas também se faz notar no momento em que, havendo diversos ambulantes no canteiro, eles o tornam referência de local que vende alimentos a preços acessíveis. Embora de modo mais sutil, os espaços abertos dos conjuntos também são objeto de disputa, ao mesmo tempo em que a sua apropriação passa pela interdependência entre os moradores. Disputa-se, por exemplo, o espaço mais adequado para construir uma garagem ao mesmo tempo em que esta ocupação depende da aceitação dos vizinhos. As informações obtidas junto a alguns moradores do conjunto da Fazenda Grande II, a respeito da regulamentação das ocupações dos espaços residuais na esfera do espaço concebido, são bastante desencontradas. Há quem afirme que para construir (muros, garagens, comércio) é necessária licença do poder público – e aqui alguns dizem que é a Prefeitura Municipal, através da SUCOM, outros afirmam que é o Governo do Estado, através da CONDER. E, também, há quem declare que as construções são executadas sem autorização dos órgãos competentes, o morador apenas vai ocupando e se estabelecendo. O que foi informado pela Gerência de Patrimônio (GEPAT) da CONDER é que não há emissão de qualquer autorização para que os espaços abertos no interior dos conjuntos sejam ocupados. O que já houve foi permissão para que condomínios que solicitassem construíssem muros distando, no máximo, 15 metros da fachada dos edifícios, a qual já não é concedida pela CONDER, ainda segundo a GEPAT. Foi também informado que o órgão só é capaz de atuar no sentido de coibir as ocupações no interior dos conjuntos mediante denúncia, posto que não dispõe dos meios necessários para fiscalizá-los regularmente. Assim, os espaços deixados de lado no projeto, quando apropriados, o são de forma irregular. Contam, para isso, tanto com a tolerância dos demais moradores quanto com a omissão dos órgãos fiscalizadores. Os moradores mais antigos, assim como aqueles que construíram uma boa relação com os vizinhos, adquirem algumas prerrogativas na apropriação dos espaços abertos dos conjuntos. Convencionou-se que o direito dos moradores mais antigos se sobrepõe aos dos recém-chegados. Como afirmou uma moradora da Fazenda Grande II, “antiguidade é posto”. Essa mesma moradora, que chegou ao conjunto logo depois de finalizada a sua construção, ao falar sobre a vaga de estacionamento que sua família detinha junto ao prédio onde viviam, afirma que não colocaram “uma placa na vaga do carro dizendo que tinham chegado primeiro e que, por conta disso, a vaga era deles. As pessoas simplesmente respeitavam”. 95

Outro morador do mesmo conjunto informou que a possibilidade de ocupar os espaços abertos e comuns depende da relação que se tem com outros moradores. Ilustrou afirmando: “você ocupa um espaço, se alguém não gostar de você, pode te denunciar à CONDER, que então faz a fiscalização e demole a construção”. Ou seja, aqueles que constroem uma reputação que lhes conferem uma respeitabilidade, que são bem quistos, minimizam a possibilidade de que alguém denuncie a ocupação que esteja sendo feita sem autorização dos órgãos competentes. Para essas pessoas há condescendência, tolerância à privatização de espaços públicos. Ou seja, se depende do outro para ocupar os espaços abertos da Fazenda Grande II. Diante disso, verifica-se que o processo de regulação do uso e ocupação dos espaços residuais de Fazenda Grande II, e, muito provavelmente também de Cajazeira VI, é, na verdade, uma prática social exercida pelos próprios moradores. E nesta regulação entram questões que passam pelo processo de reconhecimento, pelas práticas da negociação e pela construção de códigos de conveniência. Dentro do que tento problematizar, o reconhecimento pode ser ilustrado ao imaginar duas ou mais pessoas num mesmo espaço público. Nesse momento, elas se veem e se reconhecem, inconscientemente, como distintas e semelhantes, sabem que têm capacidade de se comunicar, de raciocinar, de se mover, de sentir e que, ao mesmo tempo, têm histórias particulares. Parece-me que apenas a partir do reconhecimento mútuo é possível perceber a composição subjetiva e social que tornam o outro uma pessoa, e, sem isso, não haveria possibilidade de compartilhar nem de negociar nada. Então, a partir do reconhecimento, tem-se este ponto fundamental que é preciso reter: o compartilhamento e a construção de acordos fazem-se possíveis e sem isso, o estar-junto, especialmente num espaço público da cidade, tornar-se-ia, talvez, inviável. Conviver, praticar um espaço público com outras pessoas, implica na construção de um contrato com o outro e, para isso, é preciso negociação, o que, como se viu, depende de um reconhecimento recíproco. Não se negocia com quem não se reconhece enquanto interlocutor, no sentido mais amplo que a palavra “reconhecer” pode ter. Negocia-se, a todo o momento, o estar-junto na cidade e isso é ainda mais necessário quando se está no contexto de um cotidiano relativamente estável. O que, certamente, não significa que as disputas e conflitos sejam eliminados. As negociações não deixam de ser “práticas comuns” que, como observou Certeau (2012), estão inseridas em processos de “solidariedades e lutas que organizam o espaço” (p. 35, grifo meu). Também Santos (2009) afirma que “cooperação e conflito são a base da vida em comum” (p. 322). As negociações apenas possibilitam que haja um equilíbrio, ainda que tênue, entre as relações que acontecem num determinado espaço.

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As regulações sociais estabelecem o que é ou não legítimo em determinado espaço, sendo, na maioria das vezes, definidas mediante negociações tácitas. Mayol (2009) ajuda a pensar sobre o caráter latente, talvez dissimulado, desses acordos: O que está à origem da eficácia social do bairro é um verdadeiro contrato social implícito: ninguém possui totalmente seu texto, mas todos dele participam de uma maneira ou de outra. Não há nenhuma tábua da lei onde estão afixados os artigos deste contrato, pois ele está muito mais inscrito, de um lado, numa tradição oral que se transmite através da educação, e, de outro, no jogo estereotipado dos comportamentos (sinais de polidez, tom de voz, olhares). (p. 164)

Massey (2009) também contribui para a reflexão do caráter pouco explícito das negociações que regulam o espaço público, sem, no entanto, deixar de considerar que estes acordos também podem adquirir contornos mais evidentes: Tais espaços ‘públicos’, desregulamentados, permitem que uma população urbana heterogênea decida, por si mesma, quem, realmente, vai ter o direito de estar ali. Todos os espaços são, de algum modo, regulados socialmente, se não por regras explícitas (são proibidos jogos de bola, vagabundagem), então pelas regulações, potencialmente mais competitivas (mais semelhantes ao mercado?), que existem na ausência de controles explícitos (coletivos? públicos? democráticos? autocráticos?). (p. 217-8)

As negociações, que aqui interessam, são processos ininterruptos, cotidianos, silenciosos e persistentes. Constituem-se a partir das práticas realizadas entre as pessoas no espaço, que, ao ajustar o uso das áreas que sobraram nos conjuntos e na avenida, os transformam e os organizam continuamente. Deste modo, são um elemento que conduzem a produção do espaço, produção feita através de uma prática social, com o intuito de ajustar o modo de utilizar o espaço posto por determinada ordem dominante. E esta adequação é, também, uma tática cotidiana, nos termos propostos por Certeau (2012) anteriormente mencionados. Massey (2009), ao entender o espaço público como um evento, como uma “constelação temporária de trajetórias”, coloca o tempo como uma dimensão inerente às questões espaciais. Isso ajuda a entender a ideia desta autora, já referida, de que o espaço nunca está finalizado. Se os espaços não são estáticos, variam temporalmente, as negociações neles travadas também variam. Essas constelações temporárias de trajetórias, essas eventualidades que são lugares, requerem negociação. Ashi Amin (2002)46 escreve sobre tal política de lugar sugerindo um vocabulário diferente: de ajustamento local, um vocabulário que se dirija diretamente aos direitos de presença e confronte o fato da diferença. Seria um vocabulário irredutível a uma 46

Amin, A. 2002. ‘Ethnicity and the multicultural city living with diversity’. Environmentand Planning A, vol. 34, n. 6, pp. 959-80. 97

política de comunidade e articularia uma política sem garantias. Além disso, lugares variam, e assim também varia a natureza da negociação interna que eles demandam. ‘Negociação’ aqui quer dizer o uso dos meios através dos quais o ajustamento, de qualquer forma sempre provisório, pode ou não ser alcançado. (p. 219)

As negociações ajustam o que convém ou não em cada ocasião, em cada espaço. Por outro lado, é preciso lembrar que entendimentos sobre o que é ou não conveniente em certa situação, neste espaço, são parâmetros que conduzem, talvez medeiem, as negociações. Assim, é válido pensar que negociação e conveniência se influenciam mutuamente. Podemos pensar as práticas nos espaços residuais dos locais aqui estudados, na forma como Mayol (2009) define a prática do bairro, que, para ele, é uma convenção coletiva tácita, não escrita, mas legível por todos os usuários através dos códigos da linguagem e do comportamento. Toda submissão a esses códigos, bem como toda transgressão, constitui imediatamente objeto de comentários: existe uma norma, e ela é mesmo bastante pesada para realizar o jogo da exclusão social em face dos ‘excêntricos’, as pessoas que ‘não são/fazem como todos nós’. Inversamente, é ela a manifestação de um contrato que tem uma contrapartida positiva: possibilitar em um mesmo território a coexistência de parceiros, a priori ‘não ligados’. Um contrato, portanto uma ‘coerção’ que obriga cada um para que a vida do ‘coletivo público’ – o bairro – seja possível para todos. (p. 47)

Via de regra, todos sabem o que costuma se passar num certo espaço público da cidade, sabe-se o que é esperado e o que seria um imprevisto nos conjuntos habitacionais e na Av. Tancredo Neves. A vida cotidiana nesses locais se organiza, se articula, através da conveniência, através de certos códigos de comportamento que são compreensíveis aos seus usuários. E, quanto maior a frequência deste usuário em determinado local, mais conhecedor das nuances e sutilezas destes códigos ele se torna. Mayol (2009) observa que a vida cotidiana se organiza segundo os comportamentos, cujo sistema se torna visível no espaço social da rua e que se traduz pelo vestuário, pela aplicação mais ou menos estrita dos códigos de cortesia (saudações, palavras ‘amistosas’, pedido de ‘notícias’), o ritmo do andar, o modo como se evita ou ao contrário se valoriza este ou aquele espaço público. (p. 38)

A conveniência seria, também ela, um ajustamento do convívio social cotidiano, do estarjunto num espaço público, que visa obter benefícios simbólicos mediante a maneira de se portar neste espaço (MAYOL, 2009), sendo um parâmetro fundamental que direciona sua apropriação ou uso. É uma limitação dos impulsos e vontades egocêntricos em favor do

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outro, do comum, da vida coletiva, não sendo, contudo, um elemento altruísta e desinteressado do comportamento. Espera-se obter algo em troca: A conveniência é grosso modo comparável ao sistema de ‘caixinha’ (ou ‘vaquinha’): representa, no nível dos comportamentos, um compromisso pelo qual cada pessoa, renunciando à anarquia das pulsões individuais, contribui com sua cota para a vida coletiva, com o fito de retirar daí benefícios simbólicos necessariamente protelados. Por esse ‘preço a pagar’ (saber ‘comportar-se’, ser ‘conveniente’), o usuário se torna parceiro de um contrato social que ele se obriga a respeitar para que seja possível a vida cotidiana (MAYOL, 2009, p. 39).

E, sobre o significado de “possível” para o mesmo autor: ‘Possível’ deve ser entendido no sentido mais trivial do termo: não tornar ‘a vida impossível’ por ruptura abusiva do contrato implícito sobre o qual se fundamenta a coexistência do bairro. A contrapartida desse tipo de imposição é para o usuário a certeza de ser reconhecido, ‘considerado’ por seus pares, e fundar assim em benefício próprio uma relação de forças nas diversas trajetórias que percorre. (MAYOL, 2009, p. 39)

Essa explicação do autor é particularmente interessante ao propósito destas reflexões, pois deixa explícito o quão estreitamente relacionadas estão a arte da conveniência, a prática da negociação, o fato da coexistência (ou estar-junto) e o desejo/necessidade de reconhecimento. Conveniência é uma arte de se relacionar que se faz necessária a partir da coletividade inerente à vida na cidade, e se institui com o fato de que as pessoas precisam achar um equilíbrio entre a proximidade das relações e a privacidade. É algo que induz, a todos, a uma sujeição ao reconhecimento, à influência e à jurisdição do outro. Tendo em vista o espaço de um bairro, Mayol (2009) afirma que este aparece “*...+ como o lugar onde se manifesta um ‘engajamento’ social ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição” (p. 39). E esta “arte de conviver” é um entendimento que precisa ser feito em comum, em comunhão. Reconhecimento mútuo e conveniência guardam entre si uma conexão fundamental, e, sobre isso, Mayol (2009) faz as seguintes considerações: Sair à rua significa ser reconhecido, e portanto apontado com o dedo. A prática do bairro implica aderir a um sistema de valores e comportamentos que força cada um a se conservar por trás de uma máscara para sair-se bem no seu papel. Insistir na palavra ‘comportamento’ significa indicar que o corpo é o suporte primeiro, fundamental, da mensagem social proferida, mesmo sem o saber, pelo usuário: sorrir/não sorrir é por exemplo uma oposição que reparte empiricamente, no terreno social do bairro, os 99

usuários em parceiros ‘amáveis’ ou não. Da mesma maneira, a roupa é o indicador de uma adesão ou não ao contrato implícito no bairro, pois, a seu modo, ‘fala’ sobre a conformidade do usuário (ou do seu desvio) àquilo que se supõe ser a ‘maneira correta’ do bairro. O corpo é o suporte de todas as mensagens gestuais que articulam essa conformidade: é um quadro-negro onde se escrevem – e portanto se fazem legíveis – o respeito aos códigos ou ao contrário o desvio com relação ao sistema dos comportamentos. [...] “Em suma, o corpo, na rua, vem sempre acompanhado de uma ciência da representação do corpo cujo código é mais ou menos, mas suficientemente, conhecido por todos os usuários e que eu designaria pela palavra que lhe parece mais adequada: a conveniência” (p. 47-8).

É no cotidiano que o reconhecimento se faz mais denso e preciso, que as conveniências são mais sólidas e onde a negociação se faz categoricamente essencial. Se alguém está num espaço só de passagem, não estará aí nos dias nem nas semanas seguintes, ele não está impelido a seguir à risca todos os códigos de conveniência que o regem, até mesmo porque estes podem não ser explícitos. Do mesmo modo, talvez não seja preciso negociar para usufruir este ambiente. Ou, caso isso seja necessário, o compromisso acordado com a negociação é muito mais fugaz, atende a uma demanda de caráter mais imediato, que se desfaz logo que se deixe o espaço. É diferente se se trata de um morador ou de um camelô que precisa se estabelecer em determinada esquina da cidade. Nestes casos, é preciso constantes acordos (tácitos ou explícitos) com demais moradores, com outros comerciantes (formais e informais), com outros trabalhadores que passam por aquela esquina. Assim, tendo em vista os locais aqui estudados, há duas coisas que é preciso pontuar. Primeiro, tem-se que, diante do fato de se estar junto num mesmo espaço, que a princípio é de todos, de haver a intenção em ocupá-lo para suprir determinada necessidade privada, e havendo ainda o reconhecimento do outro enquanto alguém com legitimidade para questionar e resistir a tal ocupação, não há alternativa, caso não se queira utilizar da força, em buscar entender os códigos de conveniência pertinentes e travar uma negociação. Segundo, que as apropriações observadas nos espaços que restaram no processo de concepção dos conjuntos e da avenida é um ajustamento do uso do espaço público, sempre no sentido de privatizá-lo. Ainda que neste ajustamento estejam inseridos processos de negociação, e dentro do que é ou não conveniente numa rede de relações sociais, ele conduz à privatização. A constituição do comum, nos espaços em algum sentido residuais, se efetivaria quando a negociação, a conveniência e o reconhecimento, ou seja, as relações travadas com o outro no espaço, conduzissem ao bem de todos, num espaço que é de todos. Talvez seja isto esteja sendo feito na forma como agem alguns grupos organizados, como será adiante mostrado.

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3.4 Escala e desenho urbano As escalas são aqui abordadas a partir do confronto. Observa-se a escala trabalhada pelos agentes dominantes que produziram os locais estudados e confronta-se isso, a escala técnica e abstrata, com a escala dominável pelo corpo, abordável através dos sentidos e dependente das percepções. Está posta, de um lado, a escala do discurso (escrito e desenhado) hegemônico e, do outro, a escala 1/1 da cidade, que não pode ser representada, apenas vivida. Observou-se que, nos espaços residuais, tais escalas diametralmente opostas encontram convergência, podendo ser entendidos como o ponto onde a sua confluência pode ser problematizada: na Av. Tancredo Neves, a escala do projeto urbano e a escala da pessoa que vive a experiência do cotidiano nesse projeto; nos conjuntos da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI, a do plano urbanístico e, novamente, a da pessoa. E observa-se que os espaços que sobraram, pequenos em relação à área de abrangência da intervenção que os originaram, aproximam tensões entre a grande e a pequena escala 47 , explicitam a problemática de suas relações e são a expressão concreta da precária, ou mesmo inexistência, articulação entre elas. Constata-se que tais espaços configuram-se como restos também devido ao fato de que a menor escala não foi elemento de reflexão no processo de produção dos espaços. As ações humanas, as práticas do homem, se realizam em âmbitos espaciais mais limitados ou mais amplos (CORRÊA, 2011). No nível mais amplo, tais ações são efetivadas por empreendedores privados e pelo Estado, o qual também tem a autoridade para atuar nos níveis mais restritos e prosaicos da vida urbana. No entanto, nos casos aqui estudados, a menor escala foi preterida pelo Estado, o qual abdicou dessa sua competência. O poder público foi o principal agente que atuou no sentido de definir, de modo bastante contundente, qual seria a relação da Av. Tancredo Neves e dos conjuntos habitacionais com o restante da cidade, operando, para isso, com significativos recursos financeiros, técnicos e legais. Não obstante, não se verificou qualquer reflexão, qualquer investimento, que incidisse sobre a maneira com que a vida das pessoas se desenvolveria no interior destes espaços. A produção do espaço no âmbito da pequena escala, quando é realizada nos locais aqui estudados, o é por outras “ações do homem”, para usar o termo de Corrêa (2011), cuja complexidade é mais sutil e menos tangível, posto que envolvem, dentre outras questões, o cotidiano, a memória e a cultura. Por outro lado, este homem é um agente que assume um significado muito mais palpável que o Estado, muito mais elementar, posto que é o morador e/ou usuário dos espaços. Suas ações são difusas e têm seu lugar privilegiado numa escala mais limitada, não conseguindo atuar numa dimensão mais abrangente.

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Na arquitetura e urbanismo considera-se como pequena escala aquela mais próxima ao que será construído. Quanto menor a escala, maior o detalhe, mais próximo se chega ao que será edificado. 101

Os projetos da avenida e dos conjuntos habitacionais foram concebidos partindo da maior escala e não chegaram à escala da pessoa. Buscou-se, no máximo, chegar ao pedestre, mas não à pessoa. Com isso quero dizer que locais para circulação de pedestre estão no projeto e foram construídos: há becos e passeios. Apenas isso. Não se pensou em construir um local minimamente agradável às pessoas, que fizessem com que o caminhar não fosse apenas um ato funcional, que favorecessem a ocorrência de atividades paralelas à necessidade de circulação. Também não foram propostos ambientes que fossem favoráveis à permanência dos moradores e usuários nos locais públicos. Os espaços públicos que seriam – ou deveriam ser – diariamente usufruídos não foram incluídos na relação das necessidades estratégicas que se buscou concretizar através dos planos e dos projetos urbanos. Nada do que tive acesso aponta para algo que demonstre uma articulação entre a escala macro de concepção e ordenamento do território e a escala do cotidiano dos moradores e usuários dos espaços. Tudo o que foi verificado em termos de projeto e de ambiente construído da Av. Tancredo Neves demonstra que aquele é um local pensado para a escala e velocidade do automóvel, sem que houvesse preocupação sobre como a pessoa, com a dimensão e celeridade que são inerentes ao caminhante, poderia experimentar e perceber os espaços da avenida. Os becos reservados para a circulação de pedestres não chegaram nem perto de ser algo além de um espaço concebido por tecnocratas, empreendedores ou planejadores, com intuito de cumprir o que estava determinado num decreto. Neles não foi permitida qualquer outra atividade além da circulação, os muros que os limitam são cegos e altos. Isto, associado à proporção que há entre a altura dos edifícios que os cercam, profundidade da quadra e a largura dos caminhos, faz com que sejam percebidos demasiadamente estreitos e inóspitos. Utilizando os temos de Alexander (1981), se construiu com padrões cuja linguagem gerou um espaço morto. Tudo contribuiu para que se chegasse a uma situação atual em que uso destas passagens é impossível, evidenciando o desprezo que há com a coisa pública e com o espaço destinado à circulação não motorizada. A título de comparação, observa-se que, no bairro do Comércio, local tradicional de Salvador onde também predominam atividades de comércio e de serviço, há diversas passagens exclusivas para pedestres entre suas quadras, muitas das quais apresentam fluxo constante de pessoas. Nele há uma conformação muito mais favorável ao trânsito de pedestres. Os edifícios abrem-se diretamente a estas passagens, há comércio formal e informal no seu percurso e a proporção entre sua largura, a profundidade da quadra e a altura dos edifícios os tornam mais permeáveis e francos (imagem 42).

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Entrada do Caminho A na Av. Tancredo Neves. Imagem 44. Fonte das fotografias: Sanane Sampaio.

Beco no Comércio.

Os projetos dos conjuntos habitacionais foram pensados a partir de um planejamento de abrangência metropolitana (ALMEIDA, 2005) e fica evidente que nem o projeto nem a construção alcançaram a pequena escala, estando, do mesmo modo que na Av. Tancredo Neves, claro que esta não foi pauta do projeto. A rapidez exigida para que se conseguisse captar recursos junto ao BNH e a intenção em produzir habitação de maneira maciça (ALMEIDA, 2005) é um dos fatores que levaram à ausência de definições de projeto para os espaços livres e de uso comum dos conjuntos de Cajazeira VI e da Fazenda Grande II. Também os recursos, sempre alegadamente escassos, eram destinados apenas para o essencial: acessos, infraestrutura básica48 e moradia. Ademais, os moradores tinham outras urgências a reivindicar junto ao poder público, como a abertura de linhas de transporte regulares, a instalação de equipamentos sociais públicos (lazer, segurança, saúde, educação), a oferta de comércio e serviços, o que deixava pouco espaço para que se exigisse que as áreas entre os edifícios fossem adequadamente cuidadas. A respeito da importância das relações entre escalas, Gehl (2006) afirma que: Las decisiones de escala grande (los proyectos regionales y urbanos), de escala mediana (los conjuntos de edificios) y de escala pequeña están indisolublemente unidas. Si no se cumplen los requisitos para que haya espacios públicos que funcionen razonablemente y se usen bien, mediante decisiones en el nivel primario del proyecto, difícilmente existirá una base para trabajar a escala pequeña. Esta interrelación es muy importante porque, en todos los casos, la pequeña escala – el entorno inmediato – es donde cada persona encuentra y evalúa las decisiones tomadas en todos los niveles de proyecto. La batalla en favor de la alta calidad en las ciudades y los conjuntos edificatorios se debe ganar en la escala más pequeña, pero los preparativos para lograr el éxito a este ámbito se deben hacer en todos los niveles de proyecto. (p. 95)

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Ainda assim, diversas matérias de diferentes jornais denunciam, na década de 80, a precariedade dos serviços públicos e da infraestrutura instalada. 103

Ainda de acordo com este arquiteto, “lo que determina si la superficie de contacto es monótona o interesante no es la integración formal de los edificios y las funciones urbanas primarias, sino la integración real de diversos acontecimientos y personas a una escala muy pequeña” (p. 113). Houve, nos conjuntos e na avenida, preocupação em ordenar a expansão da ocupação da cidade dentro dos princípios ideológicos já mencionados, com os acessos viários e em se determinar claramente qual o papel destes espaços em Salvador. Por outro lado, não há registro de intenções em propor ambientes agradáveis à permanência das pessoas, que proporcionassem eventos que as relacionassem. Não há desenhos ou diretrizes que demonstrem uma reflexão sobre possibilidades de construção do cotidiano pelos moradores e usuários. Permaneceram, diante disso, pequenos nadas espaciais. O plano e o projeto têm sua cota de responsabilidade na qualidade do espaço construído e, se as atividades externas são bastante influenciadas pela sua configuração física (GEHL, 2006), o são, portanto, por decisões de projeto. Os detalhes definidos em projeto, à pequena escala, são um dos instrumentos que se tem para alcançar a qualidade de um espaço. O mau tratamento da menor escala, das fachadas e de cada pedaço de rua compromete negativamente os espaços públicos. O conteúdo programático dos projetos da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI, assim como da Av. Tancredo Neves, foi posto de forma clara, mesmo que tivesse um caráter superficial. Dever-se-ia construir determinada quantidade de moradias e implantar certo número de lotes, com seus devidos acessos, assim como produzir uma estrutura na cidade que comportasse o afluxo de automóveis. Naturalmente, os desenhos dos projetos refletem tais exigências, não chegando, entretanto, a uma aproximação mais próxima à pequena escala. Lamas (2004) afirma que, Para dar forma ao meio urbano, não é possível ter apenas como níveis de produção do espaço a programação e o projecto. Para que exista forma, tem que existir o desenho urbano. [...] Em toda transformação do território, é indispensável uma operação que defina as relações e interligue os elementos construídos, as diferentes arquitecturas. Esta operação é essencialmente urbanística e tem como instrumento o desenho urbano. (p. 125).

O desenho urbano se aproxima da escala da pessoa e a ausência dele reforça sobremaneira o caráter residual dos espaços. Há um problema espacial nas sobras do planejamento e do projeto, e a aplicação do desenho urbano poderia ser um dos elementos utilizados para torná-lo menos crítico. É possível que, através disso, possam ser encontrados meios para melhor definir os espaços residuais dos conjuntos e da avenida, como, apenas exemplificando, elaborando transições suaves entre o público e o privado ou construindo um espaço que possa agregar usos complementares. 104

Reconheço, todavia, que há limitações ao desenho urbano. Seria uma simplificação ingênua, além de exagerada confiança na disciplina da arquitetura, pensar que, havendo um desenho adequado nos espaços residuais, eles se tornariam ambientes apropriáveis e significativos. Certamente, há aspectos menos tangíveis que precisam ser considerados. É preciso que o sentido do público tenha meios para ser desenvolvido. É preciso que, o que for construído através de um desenho urbano seja entendido como propriedade efetiva – e afetiva – de todos, moradores e usuários. 3.5

O comum nos espaços residuais: Baixios de Viadutos, Green Guerillas, Esta Es Una Plaza, Jardins Partagés, Canteiros Coletivos Há espaços residuais em toda parte da cidade, cujo caráter assume todos os sentidos aqui abordados. E isto é percebido, entre outros, por pessoas comuns, por artistas, por instituições. Percebem o potencial que tais resíduos guardam e a contradição que é o seu desperdício. Mediante ações concretas sobre eles, promovem a produção do “espaço social”, do “espaço do sentido comum”, nos termos pensados por Lefebvre (1991). Segundo esse teórico, "o espaço social 'incorpora' ações sociais, as ações de sujeitos tanto individuais como coletivos que nascem e morrem, que sofrem e que atuam" (p. 33, tradução nossa). E, ao lado das atividades práticas que propõem e/ou executam, elaboram problemáticas mais amplas sobre a cidade. Nas experiências aqui trazidas há reflexões e questionamentos que, tendo como objetivo a apropriação de espaços residuais, abordam, dentre outros aspectos, a forma como a mobilidade vem sendo predominantemente tratada nas cidades brasileiras, o modo com que a gestão de áreas públicas é e pode ser conduzida, maneiras de promover eventos culturais e compartilhar conhecimento sobre educação ambiental. Inicio mencionando o Projeto Baixios de Viadutos, proposta conjunta do Escritório de Integração do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Minas, da Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, do Rua Viva/Instituto de Mobilidade Sustentável, da ONG Associação Arquitetos sem Fronteiras e do estúdio de arquitetura Vazio S/A, tendo sido financiado pelo Ministério das Cidades. É uma iniciativa da sociedade civil em parceria com instituições públicas, que promove a discussão sobre espaços não utilizados, ou subutilizados da cidade, e, mediante uma crítica à implantação de viadutos na cidade, objetivam lançar um plano de programas – com fins de implementação real – para uma parcela específica dessas áreas ociosas nunca vistas como locais com potencial de ocupação planejada. Estas são as áreas lindeiras aos doze viadutos e seis passarelas de pedestres ao longo dos dezoito quilômetros de extensão da Via Expressa Leste-Oeste, uma das principais vias arteriais da grande BH e que conecta o município de Belo Horizonte ao município de Betim. (TEIXEIRA; CAJADO; AGOSTINI, 2006).

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Entendem que os viadutos são enormes estruturas que devoram os espaços da cidade, que, ao tentar resolver (equivocadamente) o problema do trânsito, criam espaços vagos e intersticiais que não são incluídos no plano funcional da intervenção. De acordo com as potencialidades destes espaços vagos e residuais sob o viaduto, elaboram um plano de intervenções urbanas, através do qual se busca dar função social aos baixios. Aliado a isso, duas noções essenciais conduziram o projeto: adequação do plano aos usos e demandas que já vinham sendo realizadas sob o viaduto e no seu entorno, assim como ser exequível tecnicamente, socialmente e institucionalmente. O plano demonstra ter tido especial cuidado na definição do programa de cada um dos doze baixios de viaduto e das seis passarelas da Via Expressa. Foram coletados dados sobre os inúmeros agentes que atuavam sob o viaduto e adjacências – dos sem-teto às donas de casa e empresários –, de modo a identificar suas necessidades e de organizar uma hierarquia de prioridade das demandas que deveriam ser atendidas. Estes dados subsidiaram a definição de possíveis programas que deverão ser adequados à conformação dos baixios. Embora a proposta não tenha sido executada, sua relevância está no fato de que ela parte de uma crítica ao modo sobre como o problema do trânsito vem sendo resolvido e das consequências disso na estrutura física e social da cidade e da análise de como as pessoas buscam resolver seu cotidiano dentro desse elemento criado por uma ordem dominante. Percebem também que, para que o plano seja viável, é necessário congregar as pessoas que vivem sob o viaduto e no seu entorno, os agentes que exercem suas atividades nas vizinhanças, além do poder público. Diversas iniciativas da sociedade civil organizada têm atuado em espaços esquecidos da cidade com intuito de transformá-los em hortas e jardins, embora não se restrinjam a esse objetivo. Uma das pioneiras é a organização Green Guerillas, que auxilia pessoas e grupos de vizinhos a cultivar lotes vagos na cidade de Nova York. Suas ações tiveram início em 1973, no Lower East Side, e hoje distribui mudas, realiza eventos, capacitações e workshops nas hortas/jardins, além de ajudar pessoas a se agregar a um determinado grupo. A Green Guerillas não gere as hortas/jardins, mas sim ajuda comunidades a se auto-administrar e a conduzir o uso dos espaços, os quais devem ser abertos em momentos pré-determinados. Em Madri atua, desde 2008, o grupo Esta Es Una Plaza, congregado através de um curso sobre novas formas de ocupação de espaços urbanos. A partir de então começaram a desenvolver atividades num terreno público, fechado havia 30 anos, em Lavapiés, bairro tradicional no centro da capital espanhola (HUERTO, 2012). Em setembro de 2009 o grupo se institui como associação e, em dezembro deste mesmo ano, conseguem, junto à Prefeitura de Madri, oficializar a cessão do uso do espaço pelo período de cinco anos. A associação se pretende autogestionada e autossuficiente, e buscam financiamento em instituições que apoiam projetos experimentais e através da venda anual de almoços populares (HUERTO, 2012). Realizam plantio de alimentos tendo em vista de que não há propriedade individual, ou seja, o cultivo e a coleta é comunal. Promovem também ações que envolvem oficinas de 106

plantio, eventos teatrais e cinematográficos, além de diversas atividades lúdicas, culturais, educativas, ambientais e festivas. Segundo consta no projeto apresentado à Prefeitura de Madri, o método que deve conduzir o uso do espaço é a autogestión vecinal del solar con carácter temporal: todo el espacio está a disposición de todos; cada uno será responsable del cuidado del espacio evitando que las actividades desarrolladas molesten a los vecinos; todas las actividades son gratuitas; cada vecino pone a disposición de los demás una parte de su tiempo para desarrollar y mantener vivo el proyecto. (ESTA ES UNA PLAZA, 2010)

As decisões que conduzem a gestão e o uso do espaço são tomadas em assembleias. Têm como desafio tornar o espaço popular e sustentável e, também, encontrar meios para que o trabalho demandado se torne rotativo entre os participantes da associação e os moradores do bairro. De caráter bastante institucionalizado, há o programa Jardins Partagés da Prefeitura de Paris, que se inspirou no programa Green Thumb da cidade de Nova York. O Jardins Partagés é uma política pública instituída em 2002, tendo como objetivo estimular a criação e a gestão de jardins em áreas públicas e vagas da cidade, as quais possuem variadas dimensões. Estes espaços são confiados a uma associação de moradores por um período determinado, sendo que o gerenciamento do espaço é compartilhado com a prefeitura. O município fornece alguns insumos para o jardim/horta, mas a associação deve pagar pela água consumida, como forma de aumentar a sua responsabilidade com o programa. Também deve ser enviado, à prefeitura, um relatório anual das atividades realizadas nos espaços cedidos. Apenas os associados podem cultivar o jardim/horta, sendo obrigados a fazê-lo sem o uso de agrotóxico ou quaisquer produtos que contaminem o solo. Também se comprometem abrir o espaço à comunidade em geral por, pelo menos, dois turnos por semana, além de realizar eventos de socialização regulares. Dentro do jardim/horta, há áreas de cultivo individual e coletiva, diferente do Esta Es Una Plaza. Em Salvador há o grupo Canteiros Coletivos, que começou a atuar em fevereiro de 2012, a partir de ações articuladas em redes sociais. Tem o objetivo pragmático de recuperar e cuidar de canteiros abandonados da cidade, mas entende que a essência do que propõe “é recuperar a cidadania, porque estão cuidando de um espaço que é coletivo. [...] A ideia é que as pessoas recuperem o senso cidadão e de gestão de sua própria cidade” (CONFIRA O TRABALHO [...], 2012). Este grupo se forma num momento de dramática crise de gestão institucional pública, de flagrante incapacidade (ou desinteresse) técnica e política do poder público, especialmente o municipal, em agir no controle de interesses do mercado privado, notadamente o imobiliário, em prol de uma cidade minimamente menos individualista e mais adequada ao 107

bem comum. Disso resulta, por um lado, na extrema voracidade com que muitos espaços são disputados e utilizados para além do que a cidade suporta e, por outro, no abandono e desinteresse com que outros espaços são tratados. O início do ano de 2012 é também um momento de intensas (dado o contexto de Salvador) movimentações e discussões em torno de questões urbanas, suscitadas a partir do questionamento de ações da Prefeitura, como, por exemplo, alterações na legislação urbana e concessões de espaços públicos a empresas privadas, sem os devidos debates com a população e sem que estivessem postas, de forma clara, as motivações destas ações. Isso agregou pessoas e suscitou debates (em redes sociais, na mídia tradicional e nos espaços físicos de Salvador) sobre a cidade com raros precedentes na história recende de Salvador. Inserido neste contexto, o Canteiros Coletivos tem atuado dentro da ideia de que as pessoas precisam se entender como gestores ativos da cidade, a partir do desejo partilhado em reformar e transformar espaços públicos esquecidos. Moradores de diversos bairros de Salvador aderiram ao projeto ao compartilharem o incômodo com o fato de os canteiros da cidade estarem sempre abandonados, com entulho, lixo e mato, e a insatisfação com o descuido de áreas públicas de cidade. No decorrer de 2012 executaram ações de limpeza, plantio e pintura em quatro locais de Salvador: Gantois, em parceria com o escritório modelo da Faculdade de Arquitetura da UFBA e com moradores; Engenho Velho de Brotas, em parceria com o Cine Solar Boa Vista; Valéria, em parceria com a ONG Estrela da Paz e com moradores; e Vale do Canela, em parceria com voluntários diversos. Este último local, um resquício de espaço entre um viaduto e uma avenida de vale, é o canteiro piloto do projeto, tendo recebido alguns eventos, como feira e festa junina. O cultivo – tanto no sentido de arar a terra quanto de produzir saberes – nos espaços públicos, vagos e esquecidos na cidade, em todos estes exemplos, não parece ser um fim em si, mas um catalisador para se chegar a amplos benefícios sociais na cidade. Além da aproximação com a natureza, constroem-se espaços amigáveis, mais seguros, criam-se laços afetivos, estimula-se o sentido da vida em comum na cidade. Estes exemplos não se constituem, em si, como movimentos sociais, entretanto são ativismos sociais49 que, indo além de atitudes reivindicatórias, têm uma atuação crítica em relação à cidade, tendo como ponto de partida ações sobre espaços residuais. Não obstante, mesmo considerando em alguma medida o conjunto da cidade, não chegam a propor transformações que abalem as estruturas desta. As transformações que propõem e que realizam, e que reconfiguram o espaço, são pequenas, mas extremamente importantes, talvez sendo proporcionais à dimensão física e social dos espaços sobre os quais agem. Esses 49

Segundo Souza e Rodrigues (2004), os ativismos são uma categoria mais abrangente, indo desde aquelas apenas reivindicatórias, sem aprofundamento crítico, até lutas mais ambiciosas e complexas que questionam as estruturas da sociedade. Um movimento social seria um modo de ativismo com “um grau razoavelmente elevado (ou até bastante elevado) de organização e de contestação da ordem social vigente [...]. Estão voltados para transformações mais ou menos profundas da sociedade, têm o horizonte de luta ampliado, ou seja, não fazem reivindicações puramente pontuais; [...+” (SOUZA; RODRIGUES, 2004, p. 84). 108

ativismos propõem ou efetivam práticas sociais em espaços esquecidos que conduzem ao comum, criam espaços de discussão que ajudam a alargar os horizontes de participação política e socialização de inúmeras pessoas, contribuindo para a conquista e o exercício da cidadania no interior da sociedade. Nesse sentido, possuem uma dimensão políticopedagógica extremamente importante, em que a participação ajuda a ampliar a consciência das pessoas em relação a seus direitos como cidadãos e, em especial, ao seu direito à cidade (SOUZA; RODRIGUES, 2004, p. 93, grifos no original)

Avaliar em que medida estas práticas alteram a cidade e as pessoas demandaria uma pesquisa específica. Não obstante, o inegável é que há aí uma produção conjunta da cidade, sobre espaços residuais, e, se concordarmos com Harvey (2004) quando ele diz que “ao produzirmos coletivamente nossas cidades, produzimos coletivamente a nós mesmos” (p. 210), se está, também, produzindo seus habitantes. Assim, é possível que estas práticas, tão pequenas diante de todo contexto urbano em que estão inseridas, tenham a capacidade de afetar não apenas o espaço sobre o qual se debruçam, mas também o meio social em que estão envolvidos. E, ainda com auxílio de Harvey, podemos pensar que, mais no que dizer qual cidade se está produzindo, talvez seja pertinente entender que se está mostrando qual cidade não se deseja. É difícil afirmar, principalmente no âmbito desta pesquisa, quais têm sido – ou serão – os resultados e qual a dimensão destas ações. Para Harvey (2004), somos todos arquitetos no sentido de que a todos é facultado “agir como arquitetos de nosso próprio destino em vez de como ‘impotentes marionetes’ dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos” (p. 211), e acresce a isso o entendimento de que, “como nunca podemos ter inteira certeza das plenas implicações de nossas ações, as trajetórias de mudança histórico-geográficas resultantes sempre fogem ao controle total de nossa vontade – individual e coletiva” (p. 302). Contudo, são ações, com diversos níveis de institucionalidade, que movimentam, que saem da inércia, que constroem teias de relações que produzem urbanidade, apontando caminhos de utilização de espaços pouco visíveis da cidade além da lógica privatista ou hegemônica.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS É sempre bom advertir para o fato de que o caminho percorrido nesta pesquisa é um dentre vários possíveis. Tentou-se considerar, aqui, a concepção abstrata do espaço, a materialidade deste espaço que nosso corpo pode ocupar e se mover, a interação perceptiva que temos com este espaço a partir dos sentidos do corpo, as construções simbólicas e cognitivas que construímos através de nosso corpo neste espaço e as relações travadas com o outro a partir da presença cotidiana nestes espaços. Talvez precise ser explicitado o entendimento de que o retrato aqui elaborado da Av. Tancredo Neves, da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI é algo muito fugidio. Novamente lembrando Massey (2009), o espaço está em permanente transformação, sendo “uma simultaneidade de histórias-até-agora” (p. 190) e, portanto, o panorama observado, o universo empírico estudado, será, certamente, alterado. Garagens podem ser demolidas, novas serão construídas, podem se transformar em habitações. Pequenas barracas podem ser transformadas em mercados, bares podem ser autuados pelo poder público e ser demolidos. Arranjos viários continuarão a acontecer, seja para comportar mais carros, seja para restringir o seu acesso. Não se sabe em que a criatividade, a necessidade ou as oportunidades poderão interferir no que fora um dia pensado para ser passagem de pedestre ou no que é uma ilha entre o fluxo de automóveis. Contudo, ainda que porventura haja drásticas transformações nos locais estudados, as reflexões teóricas que deram subsídio ao seu entendimento permanecem válidas para compreender estas mesmas transformações. Acredita-se também que o caminho que conduziu ao entendimento do sentido dos espaços residuais no contexto observado da Av. Tancredo Neves, da Fazenda Grande II e de Cajazeira VI, pode ir além destes locais. O sentido dos espaços residuais foi compreendido a partir de um contexto específico, observado em determinado período, entretanto este entendimento passa a transcender deste contexto de tempo e espaço. Isto é importante, uma vez que, certamente, a ocorrência de espaços residuais, em todos os sentidos observados, não é uma exclusividade dos locais estudados nesta pesquisa, e nem de Salvador. Num esforço para trazer uma síntese comparativa, observa-se que, enquanto na Av. Tancredo Neves os espaços residuais produzidos relacionam-se com a mobilidade, nos conjuntos habitacionais eles se relacionam com o objetivo em alcançar determinada densidade populacional sem que isso resulte no aumento da área ocupada por edificações. Significa que, em ambos, os resíduos são consequência de decisões tomadas em projeto, e, se este é parte do processo de produção da cidade, são sobras desta produção. Na avenida, eles são menores e menos acessíveis, ou mesmo inacessíveis, o que não deixa de ser curioso, posto que foram gerados a partir do discurso de que se estava tentando promover a mobilidade. Nos conjuntos, os espaços residuais são fisicamente permeáveis, embora haja obstáculos, não materiais, que limitam o acesso a eles e que impedem que sejam apropriados. Em comum, além do que já foi discutido, há que os resíduos são 110

fragmentos de espaço, pedaços soltos na cidade esperando quem os aproveite. São retalhos que sobram da gestão institucional, onde há subversão da norma. E, tentando ir além da comparação, e tendo em vista que o espaço nunca está acabado, é pertinente perguntar qual a capacidade da cidade, com seus cotidianos que se sobrepõem, que coexistem e que se sucedem, em ocupar espaços em algum momento residuais. Talvez seja a mesma que tem em gerar novos espaços residuais. Isso não significa que tais espaços sempre irão existir no contexto urbano, não tenho meios para confirmar ou negar isso, embora, dada a dimensão e complexidade cada vez maiores e menos tangíveis das cidades, cabe pensar que não há como todos os seus espaços serem plenamente significativos, serem inteiramente alcançados pelos seus moradores e instituições. Entretanto, quero, antes, dizer que haverá sempre a possibilidade de que espaços residuais sejam produzidos, do mesmo modo que sempre será possível que camadas de cotidianos revertam essa condição, que sejam elaborados códigos que induzam à apropriação destes espaços. Pontuando algo que pode acontecer, mas não foi observado nos locais estudados, é possível que certo espaço seja um resíduo no âmbito da prática espacial e do espaço de representação, mas não o ser no que diz respeito à representação do espaço. O exemplo mais claro que posso trazer é uma praça que não é utilizada. É um espaço produzido a partir de um mínimo de investimento intelectual e financeiro, que representa intenções – sejam elas dignas ou não – de determinada organização de forças. E, em tal praça, ocorre que uma outra organização de forças induz a que as pessoas não a frequentem, não a pratiquem, não a vivenciem, sendo ela de tal modo ignorada que sequer conduza à constituição de um espaço de representação em seu aspecto negativo, ou seja, sequer represente medo ou rejeição para as pessoas. Se um espaço de representação é produzido, isso significa que ele fora antes percebido, fora possível produzir uma prática espacial. Se certo espaço se fixa na memória, nas referências de vida (individual ou coletiva), se ele é vivido, é porque foi, primeiro, percebido com os sentidos e praticado. Deste modo, houve mediação da prática espacial na relação entre a representação do espaço e o espaço de representação. Assim, se um espaço não é um resíduo em termos do espaço de representação, ele não o será no que diz respeito à prática espacial. Fica a questão, não resolvida, de buscar compreender se é possível um espaço ser residual no âmbito do espaço de representação e não o ser em relação à prática espacial, e, principalmente, o que isso significa. Porque pode-se perceber sem viver o espaço, na forma com que Lefebvre (1991) trabalha estas dimensões. É possível, talvez seja até comum, que pratiquemos um espaço sem que ele se fixe em nossa memória, sem que ele se torne uma referência para nós, sem que elementos simbólicos ou cognitivos sejam produzidos. Por exemplo, quantas não terão sido as ruas nas quais estivemos um par de vezes, onde estava a casa de um amigo, um bar ou um contato de trabalho, sem que essa experiência neste espaço tivesse conduzido a um processo de construção simbólica. Podemos, ainda, circular numa praça, sentar num banco, notar sensorialmente seus aspectos particulares, e, ao 111

deixá-la, ela se apaga de nossas referências. Com isso quero atentar para a ideia de que nem todas as ruas ou outros espaços urbanos pelos quais passamos por algum processo perceptivo e que de algum modo praticamos tornam-se referenciais para nós. Ou, talvez, nem todos os espaços da cidade tornam-se significativos para a memória coletiva de seus habitantes. Retomando uma das acepções dada à palavra “resíduo” pelo Dicionário Houaiss, no qual ele a define como algo impróprio para o uso ou o consumo, vimos que isso não cabe, em termos absolutos, ao que foi analisado. É preciso relativizar, uma vez que o caráter impróprio dos resíduos está intrinsecamente relacionado à lógica com que determinado agente intervém na produção da cidade, e, consequentemente, ao modo com que este agente se apropria do espaço urbano. Ou seja, pode ser impróprio àquele que tem meios e que pretende construir um conjunto residencial, mas não o ser para aquele que quer construir um bar num conjunto. Além de serem elementos concretos que explicitam as dificuldades de relação entre escalas, os usos e apropriações nos espaços residuais confrontam a lógica posta pelo projeto e a lógica dada por um cotidiano. Ou seja, a partir deles é possível refletir sobre a recorrente questão sobre como se relaciona o projeto e a forma com que ele é absorvido (ou não) pela dinâmica urbana. Evidenciam, ainda, a relação propriedade e usufruto destes espaços, posto que, embora sejam propriedade pública, eles não são efetivamente oferecidos ao usufruto de todos, não é possível se dispor por inteiro desse bem. Um ponto importante constatado neste estudo refere-se a que espaços residuais, no que se diz respeito à representação do espaço, são uma ausência de representação, que na maioria das vezes resultou na produção de um resíduo no âmbito do espaço de representação e da prática espacial. Vale pensar, entretanto, que esta ausência de representação pode ser uma intenção projetual, e, claro, neste caso não se está produzindo um resíduo na esfera do espaço concebido. Acredito que não haja necessidade absoluta de se ocupar em desenhar tudo, de forma cabal, no sentido de ter o domínio completo sobre o que será edificado. O que é preciso é conceber espaços que sejam acessíveis à elaboração de uma experiência, à construção de um espaço de representação. Porque, se isso é conseguido, significa que o espaço concebido foi percebido, foi praticado, ou seja, a percepção realizou uma mediação entre o concebido e o vivido.

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