Grotão, Parque Proletário, Vila Cruzeiro e outras moradas: história e saber nas favelas da Penha - Parte I
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Universidade F ederal F luminense Centro d e E studos S ociais A plicados Faculdade d e E ducação
Grotão, Parque Proletário, Vila Cruzeiro e outras moradas: história e saber nas favelas da Penha
Apresentação Parte 1 Por Caminhos, atalhos e pistas Mestranda: M arize B astos d a C unha Orientador: P rof. D r. V ictor V .Valla Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do grau de M estre e m E ducação N ITERÓI 1995
Sementinha, Sangue Novo, Moradores do Grotão e da Chácara do Céu. Quatro histórias, múltiplos sujeitos, faces de uma mesma luta. A eles, este trabalho é dedicado A Iracema, minha avó, que na dor ensinou-‐me a estranhar as tramas da vida.
Agradecimentos
Iniciamos pelo fim, relembrando os encontros tecidos em meio à
caminhada.
A começar pelos meus pais, Jair e Maria Helena. Nos momentos em que
muitos desconfiavam de minhas aventuras profissionais, eles apostaram no caminho, contribuindo com a infra-‐estrutura material ao trabalho, e especialmente compartilhando comigo as tensões emocionais da vida de professora e p esquisadora.
Aos meus irmãos Monica e Marcio, no jeito torto de compartilhar,
ensinando-‐me a estranhar e reconhecer o outro. E a Natália, Alexandre e Isadora, na interrogação, as pistas e as possibilidades daquilo que não está em lugar a lgum.
A Geraldo, mais do que “pajé tecnológico”, indispensável à administração
da máquina, companheiro também no projeto de trilhar os meandros acadêmicos, c om s uas f rustrações, i mpasses e b uscas p ossíveis.
No caminho, muitos amigos. Rubens, nos momentos de tensão e da dor, o
cuidado solidário, acenando com o avesso. Ana Paula e Laura, parceria na travessia pelos caminhos da educação e na busca do projeto possível dentro do espaço q ue p arece i mprovável.
Amigos da equipe de pesquisa na Chácara do Céu, entre brigas e risos,
perseguindo a vida: Marcia e Gerson, Paulo Roberto e Luís Augusto. Patrícia, companheira de trabalho e de projetos de vida, dividindo os problemas e a intensidade d a o usadia d o t rabalho c oletivo.
Aos alunos da Escola Muncipal Maria de Cerqueira e Silva e do curso de
História das Faculdades Integradas Augusto Motta( SUAM ), pela intensidade vivida em m eio a os a tropelos d os e spaços d e e ncontros f elizes.
Ao CEPEL. Aqueles que foram: Margareth, Ernani, Luiza de Marilac.
Aqueles que estão: Ângela, Edson, Kita, Lídia, Marcia, Homero e Rosely. Nos encontros tecidos, a presença nas pistas, conclusões e reconclusões do trabalho. E a Débora, pelo cuidado e respeito no acompanhamento da dissertação, na forma c om q ue l eu s uas p rimeiras m il l inhas.
No momento em que o trabalho ainda era uma simples intuição, contei
com a experiência e o cuidado profissional da Professora Maria Manuela, do IFCS/UFRJ, i ndicando c aminhos q ue a inda n ão e ram b em c laros p ara m im
Alguns professores da UFF, trazem a lembrança do mestrado. A
Gaudêncio Frigotto pela contribuição quando a dissertação ainda se fazia idéia e à Clarice Nunes, por sua particular forma de nos inquietar e adentrar por nosso trabalho, p otencializando-‐o.
À Nazira Vargas, pelo acompanhamento na pesquisa, encorajando-‐me no
risco de ousar. Minha admiração e respeito pelo trabalho de quem coloca a luta na r ua.
Aos colegas das turmas de 93 e 94 , pelo tanto de riso e força entre as
tensões do projeto de mestrar-‐se. Em especial a Dylma e Flávio, no caminho acadêmico, e ncontros d e v ida, a migos p ara s empre.
No grupo de orientação coletiva, múltiplas interlocuções. Rafael, pelas
contribuições no projeto de dissertação. Rosa, companheira incansável no grupo. Beno, compartilhando inquietações, interlocutor fundamental ao processo de pesquisa, co-‐orientador nas tramas das histórias do Complexo da Penha. A Adir e Monica, companheiras de trabalho, não raros foram os momentos em que se tornaram co-‐autoras desta dissertação; amigas de vida, constituindo-‐se e m p arceiras d e o utros p rojetos c oletivos.
Na reconstrução da História em minha vida, o encontro com o amigo,
companheiro de trabalho e orientador, Victor Valla. Mestre no ofício de estranhar, acenou com o caminho que me fez resgatar as possibilidades de
atuação a partir de minha formação e experiência de trabalho, na contramão das “tiranias d a r azão h istórica”.
No processo de trabalho de pesquisa, a presença dos sujeitos das lutas na
Leopoldina: aquelas que aqui não são contadas, atores dos movimentos na região, com os quais encontrei durante o último ano; e, em especial, aquelas que atravessam a pesquisa. Agradeço aos participantes do Movimento Sangue Novo, particularmente aos que entrevistei, pela cumplicidade no processo de recuperar a memória, registrar a história e pela intensidade com que reiventam a luta. E a cada mulher do Sementinha, pelo carinho, atenção e pela força que, muitas vezes sem saber, traziam-‐me a cada momento do trabalho, através da forma s olidária e h umana c om q ue r ecriam a v ida.
Resumo
A partir da recuperação da história de três movimentos ocorridos nas
favelas da região da Leopoldina ( subúrbio do município do Rio de Janeiro)-‐ a formação da favela do Parque Proletário do Grotão, a trajetória de um grupo de agentes comunitárias em saúde, e um movimento de luta pela eletrificação em algumas comunidades do Complexo de Favelas da Penha-‐, a dissertação faz uma reflexão a respeito do saber histórico popular, investigando a forma como as classes subalternas percebem a sua história, particularmente as lutas das quais participam, e o s s ignificados a e las a tribuídos.
A história dos movimentos é contada através de versões que trazem
predominantemente as interpretações dos atores sociais, recuperando sua autoria na narrativa histórica. O trabalho analítico enfatiza os elementos que aparecem de forma recorrente como fundamentais à mudança histórica nos relatos dos participantes dos movimentos, e procura também problematizar o significado de algumas visões produzidas a respeito dos fatores e dos atores históricos: o h erói e o a contecimento.
Synopsis
A partir de la reconstruction historique de trois mouvements sociaux
arrivés dans les bidonvilles de la région de la Leopoldina ( faubourg de Rio de Janeiro ), la dissertation fait une réflexion sur le connaissance historique populaire, en investigant la façon dont les classses subalternes appercevoient son h istoire, p articulièrment s es l uttes q uotidiennes p our l es d roits b asiques.
Les rapports historiques des mouvements sont basées sur les propres
interprétations des acteurs sociaux, de façon a réccupérer leur participation comme des auteurs dans le narrative historique. Les analyses relèvent les éléments qui sont essentiels aux changement historique dans les rapports des personnages qui ont participé des luttes traitées. Cette réflexion discute encore le signifié de quelques representations a l’égard des facteurs et des sujets historiques: l e é vénement e l e h éros.
U M D IÁLOGO
L.R.: (...)É tão séria, a esquerda... J.S.M: Não podem compreender uma revolução que seja ao mesmo tempo um carnaval(...) L.R.: Vamos perguntar assim, tu pega um padrão do PT: Quem foi João Cândido? O que foi a Revolta da Chibata? O que Zumbi de Palmares fez? Não vão te responder. Não esta história. Você pergunta assim: Quem foi Lenin? Quem foi Trotsky? Como foi mesmo a Revolução Russa? Eles sabem no detalhe. J.S.M.: A periferia ainda não conseguiu revolucionar o centro. Os olhos de camponeses são de pedra, mas também os olhos dos outros. L.R.:
Não
conhecem
a
nossa
história,
não
conhecem.
Sou
superinternacionalista mas reconheço isso, que a esquerda brasileira não conhece a história do seu país. E quem não conhece a história do seu povo, não vai fazer a Revolução nunca. J.S.M.: Qual revolução? Uma revolução para libertar os olhos, o ouvido, a palavra que nos tomaram. L.R.: Eu acho que a esquerda desaprendeu a sentir dor. Assim: ‘eu não carrego água, tomo banho de chuveiro...’. Ela olha na janela. Ela está na janela, está olhando, a vida está passando, estão acontecendo coisas, ela olha...Porque desaprendeu a sentir J.S.M.: E termino com uma pergunta que me parece resumir a vossa tarefa: é possível libertar o outro sem ser libertado da cadeia da razão?
L.R.: Luiza Rocha, participante do Movimento Sangue Novo, militante do Partido dos Trabalhadores e do movimento funk, e funcionária do Partido no Rio de Janeiro. ( depoimentos r etirados d a e ntrevista f eita e m m aio/95) J.S.M.: José de Souza Martins, in: A Chegada do Estranho, Hucitec, 1993, São Paulo, p .26
Sumário APRESENTAÇÃO PARTE 1 -‐ C AMINHOS, A TALHOS E P ISTAS
1
Capítulo 1 -‐ As primeiras pistas: do ponto de chegada ao
2
ponto d e p artida
1.1. P ista I : u m e xame d e c orpo d elito
3
1.2. T iranias d a R azão H istórica
10
Capítulo 2 -‐ O s C aminhos e A talhos
19
2.1. Dos personagens, de suas ações e de como insistem em lhes t irar d e c ena
21
2.2. Aquilo a que chamamos destino sai de dentro dos homens, ao invés de entrar neles: sobre a subjetividade da
37
história h umana 2.3. Das teias ao ato de tecer: costurando uma abordagem da cultura
39
2.4. A t eia d a e xclusão: s obre a s ubalternidade
53
2.5. U m e lo q ue n ão p ode f altar: a e xperiência
56
Capítulo 3 -‐ Encontros de meio de estrada: dando rumo à
63
caminhada
3.1. O quebra-‐cabeça de imagens de um espaço: entre caracterizações, a nálises, e xperiências e i nterpretações
65
3.2. U m e spaço d e v ida s ubalterna: a f avela
74
3.3. Solidarizar-‐se: um verbo regular, uma voz reflexiva: experiência d e v ida e p rática p olítica
81
3.4. Os Sujeitos da Trama: movimentos comunitários no Complexo d e F avelas d a P enha
86
3.5. Na Trilha do Excepcional Normal: uma possibilidade de análise
PARTE 2 -‐ A T RAMA
Capítulo 4 -‐ Quero morar num lugar onde ninguém me
92 99
100
pertube, v ou m orar n a C hatuba: u ma h istória d o G rotão
Capítulo 5 -‐ Combatendo a dor, semeando a vida: caminhos
148
do S ementinha
Capítulo 6 -‐ Combatendo a baixa tensão, Construindo em
169
alta t ensão: o m ovimento d o S angue N ovo
238
PARTE 3 -‐ R ECONSTRUINDO
239
Capítulo 7 -‐ O F azer H istórico
7.1. A n ecessidade: d a p recisão à i nvenção
240
7.2. O s m ediadores: e stranhamento e p arceria
259
7.3. A L uta: e xperiência d e v ida e p rática p olítica
313
Capítulo 8 -‐ A I magem H istórica
366
8.1. I magens H eróicas
8.2.O l ugar d o a contecimento
E s e q uisermos c ontar o utra...: c onsiderações f inais
395
PARTE 4 -‐ FONTES
403
Apresentação
Este é um trabalho resultante de várias experiências e múltiplos
encontros. De certa forma, ele vem se tecendo há algum tempo, desde a graduação em história, época de inquietação com as imagens que associavam o trabalhador brasileiro à preguiça e ociosidade. 1Passando pela experiência de elaboração de cursos de história para as classes populares e de pesquisa de reconstrução da história da comunidade da Chácara do Céu, e também pelas salas de aula das escolas públicas do Município e também Estado Rio de Janeiro 2. Chegando aos encontros de orientação coletiva na UFF e a ao trabalho no C entro d e E studos e P esquisas d a L eopoldina ( CEPEL ) 3.
A região da Leopoldina é aqui, como que o solo final da investigação.
Palco de múltiplos encontros, onde procuro levar adiante reflexões, minhas e de tantos outros, surgidas nas encruzilhadas destas experiências diversas. É daí que saio em busca da temática deste trabalho: um estudo do saber histórico das classes subalternas, tendo em vista as suas percepções a respeito das próprias mudanças q ue v ivenciaram.
Na proposta original, o projeto de dissertação iniciava-‐se pela
reconstrução dos impasses que me moviam, adentrava pela trama que configurava a problemática da temática a ser investigada e finalizava com os
1
Preguiça e Ociosidade do Trabalhador: A formação da ideologia do trabalho no Brasil 1888-1920. (CUNHA, 1988) 2A
elaboração dos referidos cursos deu-se na Universidade Popular da Baixada, através do trabalho de assessoria dos Contadores de História, um grupo de pesquisa em história, de que eu então fazia parte. 3
O grupo de orientação coletiva na área de Movimentos Sociais e Políticas Públicas teve sua origem no encontro sistemático de um grupo de alunos que frequentaram as disciplinas do Prof. Victor Valla durante alguns semestres seguidos, percebendo aí o compartilhamento de determinadas inquietações. Surgiu então a idéia de se dar continuidade aos encontros, sob a coordenação de Valla, cúmplice das mesmas inquietações, sem que tais encontros se constituissem numa disciplina. Eram encontros informais mas disciplinados quanto a sua sistematicidade e à densidade das reflexões, onde discutíamos não só nossas dissertações mas também questões pertinentes a nossa experiência de trabalho.
caminhos, atalhos e pistas que delineavam os eixos teóricos a serem explorados e a s q uestões m etodológicas q ue s e a nunciavam.
Aqui, o m ovimento s e i nverte e a v iagem p roduz u m o utro m apa.
É na PARTE I da dissertação -‐ Por Caminhos, atalhos e pistas -‐, que procuro
recuperar inicialmente algumas das experiências vividas como pesquisadora e professora. Elas aparecem como as primeiras pistas que movem as inquietações iniciais do trabalho. Caminhos e Atalhos trazem os principais eixos teóricos e conceituais que perpassam a travessia da pesquisa. Encontros de Meio de Estrada configuram as pistas que se colocaram ao longo da pesquisa, tensionando questões emergentes em relação às histórias trabalhadas e a seus sujeitos. São três os movimentos aqui abordados, todos no Complexo de Favelas da Penha: a formação da favela do Grotão, do grupo de agentes comunitárias -‐ Sementinha Serviços Comunitários e o Movimento Sangue Novo que lutou pela entrada d a L ight e m a lgumas c omunidades d o C omplexo.
A Trama aqui são as três histórias, contadas na P ARTE II . As informações a
respeito dos movimentos e a compreensão necessária à análise das percepções da história, são colocadas através de versões que trazem e sistematizam as falas dos atores em cena, recuperando sua autoria na narrativa histórica, onde procuro assumir o lugar da mediadora das interlocuções entre os diversos protagonistas.
Por fim na última parte, Reconstruindo, debruço-‐me sobre a análise das
falas, em dois momentos. O Fazer Histórico traz aqueles elementos que aparecem recorrentemente nos relatos dos atores como fundamentais à mudança histórica. Na A Imagem Histórica procuro tensionar o significado de algumas visões produzidas a respeito de fatos e atores em cena: o herói e o acontecimento.
Anunciado o r oteiro, b oa v iagem...
Parte 1 Por Caminhos, Atalhos e Pistas
Só s e a prende a c aminhar, c aminhando ( ...) D. C reusa -‐ S ementinha 1 . A s p rimeiras p istas: d o p onto d e c hegada a o p onto d e p artida
O ponto de partida é, portanto distante de qualquer originalidade, mas é um ponto de partida simplesmente humano e existencial -‐não o existencial que causaria horror aos " cientistas”, mas sim aquele reservado ao ser político, transformador das coisas e das vidas. (Sidney Chalhoub, 1986, p.232)
O ponto de partida da pesquisa é o ponto de chegada de algumas
reflexões geradas em minha prática profissional e de várias discussões com os companheiros, c úmplices d e i nquietações e c onstruções.
A formação em história trouxe-‐me um certo vício pela busca da origem. E
na busca desta origem concluo que ela se reatualiza em meu presente mas ao mesmo tempo se situa num ponto de ruptura da experiência profissional e acadêmica onde, junto ao outro, percebo que ele pode ser mais do que um objeto de desconfiança, investigação e descrença política. A capacidade de se deixar surpreender e estranhar começa a me parecer uma importante arma profissional, p olítica e p or q ue n ão d izer, e xistencial?
E e stranhando, v amos e m b usca d e p istas p erdidas...
1.1. P ista I : u m e xame d e c orpo d elito
Graças a Deus minha vida tá boa. Quem visse o que eu já tive lá em Minas... Minha vida tá boa sim. (Sebastiana, moradora da Chácara do Céu, Morro do Borel, 1991)
Como h á d e s e c omeçar, b uscamos o s p rimeiros i ndícios...
Na época, participava com uma equipe de pesquisa de um projeto de
reconstrução da memória histórica da comunidade da Chácara do Céu, situada no M orro d o B orel ( Zona N orte d o R io d e J aneiro). 4
Quando ouvi a avaliação que Sebastiana fez de sua vida, já não mais
estranhei. Não era a primeira vez que me diziam coisas semelhantes. Agradecendo a Deus, destacando o fato de ter saúde ou forças para o trabalho, diversos moradores, afirmavam que suas vidas estavam boas. É claro, havia também aqueles que negavam, apontando o que lhes faltava, como dinheiro, emprego. Estes, eu compreendia perfeitamente. Afinal, pareciam ter “consciência” d a r ealidade q ue o s c ercava.
Quanto aos que, como Sebastiana, afirmavam que a vida estava boa,
associava suas falas a conceitos recorrentes em minha formação acadêmica: alienação, falta de consciência histórica e de classe. Afinal, tais conceitos pareciam se adequar perfeitamente às declarações , especialmente aquelas seguidas de um “graças a Deus”. Assim, numa espécie de “cacoete acadêmico” equacionava, como numa fórmula matemática aquilo que os moradores me falavam com aquilo que as teorias diziam a respeito da consciência ( ou inconsciência) p opular. Projeto em questão era No Fio da Navalha: Memória Histórica, Conflito Social e Cidadania na Chácara do Céu. formado por uma equipe de seis pesquisadores, voltados para diferentes temáticas. A parte por mim desenvolvida era A Marginalidade em Questão: Conflito Social, Condições de Vida e Cotidiano na Favela. (1992) 4O
No entanto, havia alguns “poréns” que vinham complicar a história.
Refletia. A autoridade nos gestos, no tom e mesmo no conteúdo da afirmação de Sebastiana e outros tantos moradores, confrontada com a evidente precariedade de suas condições de vida, levava-‐me a desconfiar que não a estava entendendo, percebendo alguma coisa em sua fala e que, portanto, podia haver algo “errado” comigo, com minha formação acadêmica e profissional. A desconfiança levava-‐me a um impasse e uma inquieta necessidade de soluções. Se intuía que havia algo na fala da moradora que eu não entendia, os conceitos com os quais trabalhava não eram então suficientes para compreender toda a complexidade de depoimentos como aqueles? Caso não fossem, como dar conta destas falas? Querendo respostas imediatas, pensava: se a moradora não era alienada, e la e ra o q uê???
O desenrolar da pesquisa que então realizava não me dava alternativas a
tais questionamentos. Ao contrário, parecia aprofundá-‐los mas felizmente vinha também s ugerir-‐ m e a lguns c aminhos p ossíveis.
Os objetivos do trabalho eram estabelecer uma crítica a concepções como
a da marginalidade e também reconstruir a história da comunidade através de sua própria fala. Avançava no entendimento das condições de vida e nas estratégias de sobrevivência das classes subalternas urbanas, compreendendo suas vivências cotidianas e afastando-‐me das perspectivas que concebem o universo da favela enquanto marginal à sociedade. Refletia sobre a excludência enquanto uma forma particular de inserção e parte integrante do padrão de desenvolvimento capitalista presente em nossa sociedade. E recuperava dados relativos à história da favela, suas lutas e formas de organização mas tinha dificuldade em sistematizar este material pois faltava-‐me aquilo que descobri ser fundamental: uma maior compreensão das representações que os subalternos fazem de sua história. Concluía que se desvendasse como eles pensam a história, como avaliam sua própria história entenderia melhor falas como a da moradora e as alternativas de condução da vida das classes subalternas que, aos olhos dos pesquisadores e mediadores políticos, parecem "essencialmente" c onformistas.
Começava a desconfiar que a declaração de Sebastiana podia ser mais do
que uma visão conformista de sua realidade presente. Talvez configurasse uma leitura e representação de sua história, referenciadas em sua experiência de vida e q ue, s em d úvida o rientava s ua f orma d e e star n o m undo.
Não tinha uma resposta imediata para "o que era a moradora". Porém
aprendia uma lição. Levantava a hipótese de que a minha não compreensão da fala da moradora estava associada aos limites de meus referenciais, no que se refere à análise da forma como as classes subalternas percebem sua história. Aprendia também que o esforço de reconstrução da memória histórica popular exigia mais do que a recuperação de suas falas. Exigia a interpretação e compreensão d e s uas v ersões a r espeito d a h istória.
No entanto, todo este questionamento e a possível reconstrução dos
referenciais de análise era uma tarefa que exigia uma boa dose de desprendimento e coragem, pois implicava uma redefinição da pesquisa, num momento e m q ue e la j á e ncontrava-‐se e m s ua f ase f inal.
Não foi possível voltar-‐me para esta questão mas ela permaneceu,
digamos, como um trauma. Uma desconfiança em relação a projetos de pesquisa voltados para a recuperação da memória histórica das classes populares, sem um esforço paralelo de compreensão das versões por elas colocadas. Desiludida, nas minhas reflexões imaginava um quadro ilustrativo: o pesquisador subindo o morro de gravador na mão, “generosamente dando voz ao povo”, para depois voltar a seu gabinete a fim de enquadrar as informações recebidas em seus modelos c ristalizados.
Tamanho ceticismo provinha da descoberta de que as interpretações que,
ao trabalharem com determinados conceitos, procuravam enquadrar a realidade em modelos fechados eram bastante perigosas, no caso de arquivos empoeirados. Mas, em se tratando de pessoas de carne e osso que adentram por nossa pesquisa, o problema parecia se agravar, soando como uma espécie de mutilação do objeto ( que afinal era sujeito!) e felizmente me fazendo
recordar aquela velha máxima de que “a realidade é bem mais complexa do que queremos a creditar”.
E provavelmente dialética. Foi preciso que me sentisse quase uma
assassina do sujeito que usava como objeto para concluir que era necessário investigar s ua m orte e e sforçar-‐me p ara d escobrir v ida a onde s ó v ia “ coisa”.
Volto ao local do crime. De certa forma, me “absolvi” do assassinato ao
concluir que aquela era a avaliação que me foi possível, com os referenciais que possuía. Ou enquadrava Sebastiana nos conceitos de alienação e conformismo, os únicos que estavam ao meu alcance, ou a tomava como louca (algo que minha observação logo descartou). Afinal, era difícil conceber que uma mulher, moradora da região mais pobre do morro (parcialmente servida por luz, água encanada e onde ainda não existia rede de esgoto) pudesse avaliar que sua vida estivesse b oa. A a lienação e ra a ú nica e xplicação p ossível.
Bem, não estava completamente equivocada. Não podemos dispensar o
conceito de alienação para compreender a experiência social nas sociedades capitalistas uma vez que ela é parte integrante dos processos de dominação presentes nesta sociedade. Porém, enquanto processo fundamental à reprodução do capitalismo, a alienação não atinge apenas as classes subalternas, m as o t odo s ocial. R ecordo-‐me d as p alavras d e M arilena C hauí:
(...) Estas observações pretendem apenas sugerir que o apelo ao conceito de alienação para determinar a situação da cultura popular merece cuidado, a fim de que não se atribua a uma esfera da sociedade algo que define o próprio todo social (...) uma precaução contra a mania dos intelectuais de imputar aos explorados uma alienação que é sua, como por exemplo, quando falam numa 'cultura da pobreza' dotada de 'estoque simbólico' restrito, decorrente (valha-‐me Deus!) de experiência de vida 'muito simples'.(C HAUÍ , 1 989, p .66/67)
Pensar a alienação enquanto processo que atinge o todo social faz com
que confirme minhas suspeitas de que “vítima” da alienação, eu percebia, e percebo, a realidade de forma fragmentada, o que limitou meu entendimento da visão i nscrita n as p alavras d e S ebastiana.
Não. Não pretendo descansar no lugar da vítima. Volto ao local do crime
enquanto i nvestigadora, p rocurando r econstituí-‐lo.
Ah, me lembro! Sebastiana não me disse apenas que sua vida estava boa.
Falou também de Minas Gerais . Em sua avaliação, havia duas dimensões temporais: o presente, do qual afirmou sua vida está boa, e o passado, em Minas Gerais, onde, sugeriu, sua vida estava bem pior. Contou também que passava fome lá em Minas e que veio para o Rio de Janeiro com o marido e os nove filhos pequenos, sendo um de criação. Morava em uma casa de estuque, onde criava porcos para complementar sua renda, mas afirmou que não pagaria prestações por muitos anos para ter uma casa fora do morro porque não tinha condições. E declarou que o Brasil não é um país democrático porque “uns trabalham, e o utros n ão t rabalham n ada”.
Sebastiana é mais uma nas estatísticas dos migrantes que chegam às
metrópoles. É mais uma, entre os sujeitos de um processo que sabemos estar muito mais associado ao movimento de expropriação no campo do que aos atrativos d as g randes m etrópoles.
A não percepção por esta mulher deste processo em sua totalidade, a não
compreensão das suas condições de vida na cidade enquanto parte integrante do movimentos que marcam também a expropriação e a miséria no campo, nos levam a o c onceito d e a lienação.
Mas Sebastiana não é apenas número, produto “excluído” do movimento
de expansão do capital. É sujeito, que vivência este processo e talvez seja esta a chave p ara a c ompreensão d e s ua f ala.
Assim, em seu depoimento, mais importante do que a reprodução da
miséria do campo, parece ser a forma como ela experimentou esta mudança e o
significado a ela atribuído. O que parece estar em jogo em sua fala não é apenas a referência às suas imediatas condições “presentes” de vida. Ela não faz uma interpretação referenciada apenas no que vive, mas também naquilo pelo qual passou, que experimentou historicamente e que é interpretado segundo seus valores, visão de mundo. Por isso, provavelmente, lhe seja possível afirmar que sua vida está boa. Onde vemos somente reprodução de miséria, provavelmente ela percebe mudança, melhoria. Visão fragmentada? Talvez. Mas sua avaliação é válida em termos de sua própria experiência histórica de vida. Parafraseando Marilena Chauí, avaliações não se julgam, precisam ser interpretadas 5. Deslocar o eixo da questão nos permite pensar na necessidade de compreender a sua visão de mudança e melhoria , investigando as mediações que informam esta visão.
Sebastiana cria porcos para complementar a renda familiar. Certamente
um aprendizado que adquiriu em sua terra de origem. Apego ao passado? Ou reatualização de uma prática necessária a sua sobrevivência material no urbano? Reafirmação de um saber em meio ao movimento de pulverização de conhecimentos p roduzido n a c idade?
Sebastiana tem 59 anos. Já construiu com o marido duas casas no morro e
não almeja uma casa no “asfalto”, comprada com o sacrifício de muitas prestações. Afirma que não tem condições. Falta de projetos? Acomodação? Ou experiência e saber de quem já lutou contra a maré e que prefere não embarcar numa canoa que sabe de antemão que, para ela, é furada? Afinal, num país que não é democrático, em que a desigualdade fica por conta do fato de “uns trabalharem muito”, “outros não trabalharem nada”, ter casa no asfalto não significaria t rabalhar a inda m ais, a lém d as “ condições” q ue s abe n ão t er?
Sim. Na reconstituição do crime, vejo mais impasses. Impasses imbricados
no trabalho com grupos populares, onde é relativa a importância de determinadas questões como, por exemplo, que a auto construção ou a prática 5
A afirmação de Marilena Chauí é “promessas não se julgam, precisam ser interpretadas...”, no prefácio ao livro de Eder Sader, Quando Novos Personagens Entraram em Cena (1988).
de criação de porcos signifique a superexploração do trabalhador, ou que os migrantes não percebam a reprodução de sua exclusão na cidade, no âmbito do processo d e a cumulação.
Este é o tipo de conhecimento que o pesquisador não pode dispensar mas
ao qual não pode apelar sistematicamente para compreender a fala popular. Isso porque ele não é suficiente para dar conta da percepção das classes subalternas, da forma como conduzem sua vida e de seu comportamento político.
Insistindo em tais cristalizações, continuaremos a incidir em conclusões
do tipo: o "povo não sabe votar porque não tem memória" ou "porque é alienado", sem nos aprofundarmos na compreensão desta memória, nos elementos que forjam o pensar popular, ou na forma como a alienação se manifesta e é e xperimentada c oncretamente p elos s ubalternos.
Se nos colocarmos diante da necessidade de não perder o "bonde da
história" é fundamental considerar que o "povo" não reage mas vivencia as mudanças sociais e as interpreta, não somente segundo os processos mais amplos de dominação ideológica burguesa mas também referenciado em sua particular e xperiência h istórica d e e xcluído.
Experiência histórica dos subalternos. Esta era uma das pistas
encontradas. Refletindo sobre os encontros desencontrados 6 vividos na Chácara do Céu, chegava à idéia de que era necessário estudar o saber produzido pelos subalternos, considerando a forma como vivenciam e percebem sua particular experiência h istórica.
...E f alando d e h istória, é o m omento d e r econstruir a o utra p ista
1.2. P ista I I.: T iranias d a R azão H istórica
A noção de encontrados desencontrados foi trazido pela companheira de trabalho Adir da Luz Almeida ao grupo de orientação coletiva para configurar a relação entre intelectuais e mediadores políticos com as classes subalternas, bem como os impasse aí imbricados. 6
(...) processo: dá um sentido para um acontecimento isolado; define a relação entre fatos e situações; põe a história em linha de evolução e movimento em que se encadeiam origem-‐ maturação-‐superação; muitas vezes é a própria forma para a idéia de progresso.(Adalberto Marson)7
Estava no ônibus. Ao meu lado, dois adolescentes uniformizados, com
seus cadernos e livros conversavam sobre as aulas. Ouvia atenta, esperando que eles se referissem a aula de história. Não conhecia o colégio onde estudavam e tampouco os conhecia, mas sempre me mantenho curiosa quando o assunto é falar s obre e scola, p rincipalmente d e a ulas d e h istória.
E eles falaram. Falaram mal. Não particularmente do professor mas da
disciplina, reclamando irritados das dificuldades que sentiam, especialmente em relação ao “tal de processo”. Por um breve instante, apenas sorri pois identifiquei-‐me com eles. Eu também, durante muito tempo não entendia o “tal do processo”. Lembro-‐me que os professores repetiam: o processo disto, o processo daquilo, o importante é o processo. E eu pensava: mas afinal de contas o que é o processo? Eu não entendia mas os professores achavam que eu entendia pois sempre me davam boas notas. Ou eu enrolava muito bem, e os fazia acreditar que eu sabia o que não conseguia entender, ou eles se enrolavam e a chavam q ue e u s abia o q ue e les a chavam q ue e ra o p rocesso.
Passada a identificação inicial, retornei ao outro lado: o de professora de
história que era. Também falava de processo com meus alunos. E suspirava com certa complacência quando os ouvia perguntar pela Marquesa de Santos enquanto eu me esmerava em lhes explicar o processo de independência. E finalmente também lhes dizia que o importante era o processo . O apego dos alunos às ações individuais, aos pequenos acasos, aos acontecimentos não me 7
Polemizando com as “autênticas regras de como proceder corretamente, na linha de critérios de objetividade e racionalidade que governam o ato de conhecer” em história, A. Marson destaca algumas categorias e noções, entre elas o processo, cuja definição mais corrente é, segundo o autor, a acima citada.
irritava. Apenas me fazia pensar na força da representação de uma concepção de história que atribui o desenvolvimento da humanidade à ação heróica de alguns poucos. Me fazia pensar também nas dificuldades que nós, professores, precisamos enfrentar em sala de aula se procuramos romper com tais representações.
Mas esta questão não era exatamente uma novidade para mim. Minha
formação acadêmica me apontava para a idéia de que um dos maiores desafios de um professor de história de primeiro e segundo graus era facilitar aos alunos um determinado raciocínio histórico, no sentido de fazê-‐los perceber o significado da história enquanto uma reconstituição do passado da humanidade que, a partir de questões colocadas no presente , nos permite analisar as sociedades humanas no tempo e interrogar sobre seu fluxo futuro. Este desafio implicava uma luta contra uma longa tradição da história factual que atribui o desenvolvimento da humanidade à ação heróica de alguns e na construção de uma concepção onde os alunos pudessem se perceber enquanto sujeitos da história e d o c onhecimento.
Trabalhar com tal perspectiva na sala de aula logo se revelou uma tarefa
árdua, complexa, quando não impossível. Desdobramento problemático do abismo produzido entre a pesquisa e ensino, entre academia e escola, entre construção d e c onhecimento a cadêmico e d o c onhecimento n a e scola.
Mas a final p or q ue á rdua e c omplexa?
Desnecessário falar em todas as condições objetivas que dificultam o
exercício profissional do professor em qualquer disciplina, especialmente nas escolas das redes pública, como era meu caso. Vamos nos voltar então para os impasses diretamente resultantes da proposta de se trabalhar com a concepção exposta a cima, a d a b agagem u niversitária.
Uma das questões que minha experiência me indicava era que existia um
desencontro entre a lógica temporal inscrita na perspectiva histórica que instrumentalizava na sala de aula e a percepção de tempo dos alunos. Inicialmente, conclui que de certa forma esta constatação era previsível. Afinal,
havia uma diferenciação de lugares histórico-‐sociais. De resto, achava que buscar soluções para o desencontro era exatamente uma das minhas tarefas enquanto professora. Assim, concluía que devia orientá-‐los no sentido de fazê-‐ los apreender uma nova lógica temporal, necessária ao entendimento da disciplina.
Porém, o que logo verifiquei é que este desencontro não podia ser
solucionado em termos de um aperfeiçoamento didático. Constatava que pouco adiantava selecionar conteúdos a partir da realidade dos alunos, usar filmes, fotos, músicas ou me esmerar em estimulantes aulas expositivas. Podia conseguir a atenção dos alunos, até mesmo despertava seu interesse mas o tal raciocínio histórico que deveriam atingir não parecia se concretizar. Neste momento, o “tal do processo” parecia um monstro que iria engoli-‐los, e reprová-‐ los na disciplina e na “vida”, ou então mais um “troço” qualquer, pelo qual eles tinham que passar e que driblavam, procurando reproduzir a “fala” do professor, q ue n o c aso e ra e u.
Percebia então que a historiografia marxista e os livros didáticos por ela
influenciados haviam expulsado o fato inaugural e o acidente da interpretação histórica, valorizando, através do tal conceito de processo as mudanças macro-‐ estruturais e as conjunturas político-‐econômicas. No entanto, em sala de aula, os pequenos fatos retornavam na fala dos alunos através do significado que eles atribuíam aos acontecimentos inaugurais (o primeiro aniversário, o primeiro ano na escola etc) e aos fatos cotidianos. Debruçando-‐me sobre esta questão, revia minhas perspectivas e interrogava-‐me se o apego dos alunos ao acontecimento era apenas o resultado da longa difusão de uma concepção da história e da sociedade que atribui o devir e o porvir social à ação heróica de alguns poucos. Intuía que não, perguntava-‐me se este apego não encontrava referência em suas experiências de vida, e refletia sobre a construção de um referencial e instrumental de trabalho que incorporasse o acontecimento sob uma nova perspectiva, que possibilitasse aos alunos a elaboração de um saber crítico. O esforço, entretanto, enfrentou os mesmos limites do desencontro com
Sebastiana e da pesquisa na Chácara do Céu: a total ignorância em relação às formas a través d as q uais a s c amadas p opulares p ensam a h istória.
A experiência refletida em sala de aula começava a me mostrar que era
preciso reconstruir minha prática. Era necessário mais do que um reconhecimento condescendente da realidade dos alunos, um reconhecimento que apela para a bagagem dos alunos apenas enquanto recurso didático, para vestir os conteúdos previamente selecionados e definidos pelo professor. Questionava então até que ponto não dispensávamos o saber dos alunos enquanto conteúdo que devia ser considerado na construção do conhecimento. Até que ponto a nossa prática não traduzia uma concepção, onde o saber trazido pelos alunos não passava de um simples recurso para atingir conteúdos gerais, esgotando-‐se num movimento que vai do particular ao universal, do concreto ao abstrato, sem o necessário retorno ao particular e ao concreto, agora refletido? Será que esta prática não implicava a produção de um conhecimento acrítico, fragmentado ?
O que estava em jogo ali não podia ser simplificado pois não se tratava de
um desencontro entre professor e aluno, entre a consciência histórica e uma espécie da tábula rasa que eu, no fundo, pensava ser a cabeça dos alunos. A sala de aula me mostrava que havia um desencontro entre diferentes formas de perceber o mundo, fundadas em experiências sociais diferenciadas, tradições e valores culturais diversos. Eu não podia simplesmente, referenciada em minha bagagem cultural, e em nome da razão histórica, ignorar o que os alunos me traziam, a s ua b agagem.
Reconhecer o desencontro sim. Mas passar por cima dele, cética e
naturalmente, apelando para a diferenciação ( social, cultural, de formação etc), não seria negar que o outro tem algo a dizer? E que este algo pode ser fundamental na construção do conhecimento a que me propunha construir com os a lunos?
O desencontro que se dava em sala de aula me fazia recordar o
desencontro com a moradora da Chácara do Céu. Hoje, procuro tecer a trama
que os articula. Avalio que ambos os casos tratam de situações que indicam mais do que uma distância econômica, social e cultural, pensada em termos de presente. Eles apontam também para diferentes formas de se perceber a história, de tratar historicamente a experiência social, a partir de vivências e valores q ue t raduzem o p róprio c aráter c onflituoso d e n ossa s ociedade.
Refletindo sobre as diferenciadas percepções históricas, interrogo-‐me a
respeito de minha concepção de história. Não se trata de dispensá-‐la, nem negá-‐ la m as d e r ecuperar s ua h istoricidade, p ensando n as i mplicações n ela i nscrita.
O historiador Hayden White em uma entrevista à Folha de São Paulo
(11/09/94) destacava que "a consciência e o conhecimento histórico ocidentais nasceram no momento em que se formavam as nações no século XIX", com a história tendo a função de oferecer genealogias às novas configurações políticas. Ele alertava também para o fato de que "o realismo cultural e político do Ocidente está crucialmente ligado ao conhecimento histórico que serviu a partir do s éculo X IX c omo u ma e spécie d e g rau z ero d o r ealismo".
A reflexão sobre as origens do conhecimento histórico ocidental, e em
especial sobre a sua formação enquanto uma área particular do conhecimento, nos leva a uma interrogação sobre a sua relação com o realismo político ao qual H.White se refere. Até que ponto esta relação, considerada a partir de seu surgimento no século XIX deixou marcas na formação dos intelectuais, e particularmente do historiador? Até que ponto o iluminismo presente neste encontro histórico não se reatualiza no âmbito das relações entre o conhecimento histórico e a política, até mesmo no campo que onde tais relações são explicitadas criticamente -‐ no marxismo? E até que ponto o surgimento deste "conhecimento histórico ocidental", bem como seu desenvolvimento e institucionalização nas academias, e outras instituições da sociedade civil e política, e svaziou e d espolitizou a s d emais f ormas d e s e p ensar a h istoricidade?
São apenas questões, cujas respostas talvez contribuíssem para esclarecer
determinados impasses da prática do pesquisador e do professor de história. Será que ela não ajudaria, por exemplo, a entender os motivos que levam o
professor de história a atuar (não só com os alunos mas com os professores das demais disciplinas) como se tivesse o privilégio da razão, como se a consciência fosse u ma p rerrogativa d e s eu c onhecimento h istórico?
Esta é uma das dimensões desta pesquisa. Não que ela pretenda se voltar
para a análise do processo de formação e desenvolvimento deste conhecimento histórico ocidental, abarcando as múltiplas e conflitantes concepções aí inscritas. Mas ela se propõe a investigar o outro, um saber histórico dissonante, que fala de outro lugar mas que é produzido no mesmo tecido histórico e social e que deve ser compreendido também como instituinte da dinâmica da sociedade.
Pensamos que este olhar para o outro abre espaço para a compreensão
de nossas concepções e pode fertilizar nossa prática profissional e política, e em especial n ossa r elação c om o s g rupos p opulares.
Não estou negando aqui a particularidade do trabalho do pesquisador e
os elementos em jogo na produção do conhecimento por ele produzido mas afirmando a existência de um conhecimento muitas vezes ignorado em nossa prática de pesquisa e ensino. E neste sentindo, vêm-‐me a mente as palavras de Thompson:
Mas fora dos recintos da universidade, outro tipo de produção de conhecimento se processa o tempo todo. Concordo que nem sempre é rigoroso. Não sou indiferente aos valores intelectuais nem inconsciente da dificuldade de se chegar a eles. Mas devo lembrar a um filósofo marxista que conhecimentos se formaram, fora dos procedimentos acadêmicos. E tampouco eles têm sido, no teste da prática, desprezíveis. Ajudaram homens e mulheres a trabalhar os campos, a construir casas, a manter complicadas organizações sociais, e mesmo, ocasionalmente, a
questionar eficazmente as conclusões do pensamento acadêmico ( 1 981 p .17)
Penso que os conhecimentos que se formaram, aos quais se refere
Thompson, conformam um saber histórico que atravessa a prática social e política, bem como a visão de mundo de homens e mulheres. Um saber, não só necessário a sua sobrevivência cotidiana. Mas que também lhes orienta na condução de suas vidas e em suas opções sociais e políticas. Um saber da história uma vez que envolve uma determinada forma de perceber as mudanças ocorridas na sociedade. Um saber histórico sim, já que acumulado na experiência histórica destes homens e mulheres. Um saber coletivo, e pleno de contradições, já que produzido nas teias do social, em meio aos conflitos que marcam as formas de sociabilidade e luta em nossa sociedade. Um saber dissonante que fala de outro lugar, mas que é produzido no mesmo tecido histórico e social e que deve ser compreendido também como instituinte da dinâmica da sociedade. Um conhecimento sobre o qual é necessário se debruçar.
Ponto de chegada. Começo de outra partida. As pistas que persegui me
levam a concluir que é necessário se voltar para o conhecimento produzido pelas classes subalternas. Me levam também a outros encontros, no grupo de orientação coletiva do mestrado, com quem descubro que o saber destas classes é f undamental n a c onstrução d e u m c onhecimento c rítico.
Uma construção que exige um esforço de ruptura com determinadas
concepções i nstituídas, p ois:
Isso passa pela nossa conversão à condição de objeto dele, no s entido d e t omar c omo p remissa o p ensamento r adical e simples das classes exploradas, meio e instrumento (ao invés de instrumentalizá-‐lo) para desvendar o lado oculto das relações sociais com os olhos dele, revelando-‐lhe
aquilo que ele enxerga mas não vê; completando, com ele, a p rodução d o c onhecimento c rítico q ue n asce d a r evelação do subalterno como sujeito, na medida em que lhe restituímos a condição de objetivo e lhe abrimos a possibilidade de resgatar o pleno sentido de conhecimento alternativo que ele representa e propõe na sua prática. (M ARTINS , 1 989, p .137)
Construção na qual o olhar para o outro abre espaço para a compreensão
de nossas concepções, podendo fertilizar nossa prática profissional e política, em especial no que se refere à relação com os grupos populares. Relação que, concluímos, n ão s ão e m n ada “ naturais”, j á q ue:
Desencontros entre população e profissionais decorrem, então, muito mais devido a relações de poder que produzem interdições, que produzem “a população carente”, “a população fragilizada”, que reifica o mito da incompetência p opular ( A LMEIDA , 1 995 a ). (...)E mais, que a negação do conhecimento e participação popular no interior das instituições da sociedade civil ( que lidam com direitos essenciais da população), está organicamente articulada à negação da realização plena da cidadania,
enquanto
possibilidade
de
participação
(P EREGRINO , 1 994, p .11).
Olhar para o outro que nos parece fundamental para compreender o
comportamento político destes grupos num momento em que, por exemplo, se fala em refluxo dos movimentos sociais, sem uma reflexão mais aprofundada a respeito da temporalidade inscrita na dinâmica de tais movimentos. Um olhar necessário a qualquer projeto de construção de uma nova sociedade e de
produção de uma nova vida. Mas um olhar que não pode ser encarado como uma convocação mais democrática ao povo, e sim como uma necessidade profissional e política, levantada a partir de uma constatação prática. Isso porque consideramos que o trabalho com grupos populares exige um tipo de conhecimento que só pode ser construído com a participação destes grupos (V ALLA , 1 992 b ).
A compreensão da classes populares é um requisito obrigatório, não para poder melhor reiterar as propostas dos profissionais e /ou intelectuais, mas para completar uma equação capenga que inclui apenas uma das partes do conhecimento. A incorporação das massas nas propostas da sociedade civil significa também a incorporação de seu conhecimento. ( Valla, 1 993, p .10)
As pistas reconstruídas e os encontros construídos nos indicam alguns
caminhos. É n ecessário c omeçar a t ecê-‐los...
2. O s C aminhos e a talhos
(...) O jargão sociológico, em que fui formado e com o qual trabalho intelectualmente e exprimo as minhas análises, leva-‐ me a ser afirmativo e a defender como verdadeiros pressupostos e as conclusões a que chego. Nas entrelinhas, porém, esconde-‐se a dúvida e busca, a angústia da incerteza e a necessidade de recomeçar a pesquisar. A relatividade da análise social reside no fato de fixar o que se move. Esta parece ser a sina de quem pesquisa.(C.Grzybowski, 1987, p.12)
Já destacamos que as experiências de trabalho vividas enquanto impasses
teórico-‐metodológicos e as posteriores reflexões e discussões no mestrado, em especial no grupo de orientação coletiva, estiveram na origem desta pesquisa. Podemos afirmar que elas caminham no mesmo sentido e, recuperando as palavras de Grzybowski, estão tomadas pela dúvida, a angústia da incerteza mas também p ela b usca e p ela n ecessidade d e r ecomeçar a p esquisar.
O recomeço que nos move aponta a necessidade de buscar elementos
para a construção de um referencial de análise que nos possibilite uma maior compreensão da forma como os processos culturais, experimentados pelas classes subalternas, e em especial a produção de seu conhecimento, se manifestam e m s ua p articularidade. M as c omo c omeçar a v iagem ?
Bem, tecemos nossos caminhos e atalhos a partir de pistas reconstruídas
e encontros construídos. E é claro, esperamos não afundar. Não os tecemos sobre “o nada”. Trabalhamos sobre um terreno que vem sendo mexido e remexido. Qual o terreno? Falamos aqui da discussão no campo das ciências sociais que, nas últimas décadas, tem se voltado para as relações entre intelectuais e classes subalternas. Uma reflexão que procura interrogar-‐se sobre
o lugar social da produção intelectual, a fim de perceber como este lugar referencia tal produção, condicionando suas opções teórico-‐metodológicas e seus temas, bem como a prática social e política dos pesquisadores e sua relação com as classes subalternas. Uma reflexão que se volta para o processo de constituição destas classes, trazendo a ruptura com a imagem instituída de classe “atrasada” e “despreparada” e apontando seu papel enquanto sujeitos históricos 8.
Talvez agora caiba perguntar : qual o lugar histórico deste terreno? Ou
seja, quais as condições histórico-‐sociais que tornaram possível este movimento de questionamento das diferenciadas práticas de intelectuais e classes populares e das relações aí estabelecidas? Pensamos que, no caso da sociedade brasileira, é importante considerar a experiência da própria intelectualidade frente à repressão do Estado autoritário e às mudanças ocorridas a partir dos anos 70 que apontavam para novos padrões de prática coletiva popular. A identificação da historicidade deste movimento que levou, por parte de um conjunto de trabalhos, a uma reinterpretação do lugar histórico-‐social das classes subalternas, vem nos mostrar que, se hoje nos é possível perceber tais grupos enquanto sujeitos da história, isso é resultado em grande medida da própria intervenção destes mesmos grupos na cena política e social brasileira nas ú ltimas d écadas ( C UNHA , 1 993)
É neste sentido que podemos pensar que o terreno de nossa caminhada
foi, e é, fertilizado pelos movimentos sociais das últimas décadas. E por essa razão, que em relação ao percurso aqui proposto, uma reflexão em torno dos movimentos sociais, particularmente no que se refere às visões produzidas a seu respeito, se impõe como uma necessidade teórica e metodológica, já que é esta discussão que referencia nossos eixos de análise e conceitos, bem como a aproximação com a temática a ser estudada. E impõe-‐se sobretudo como uma Permeados por esta discussão no Brasil, estão, entre outros, os trabalhos de Marilena Chauí - Cultura e Demcracia (1981) e Conformismo e Resistência (1986); José de Souza Martins - O Modo de Pensar Capitalista (1978), Caminhada no Chão da Noite (1989) e A Chegada do Estranho (1993); e ainda a reflexão feita por E.de Decca em O Silêncio dos Vencidos (1981). 8
necessidade profissional e política, uma vez que ela nos orienta na compreensão e enfrentamento dos problemas que nos são colocados na luta pela produção coletiva d e u ma m elhor q ualidade d e v ida.
Portanto, v amos à r eflexão?
2.1. Dos personagens e de suas ações, e de como insistem em lhes tirar de cena: u ma r eflexão s obre o s m ovimentos s ociais. 9
(...)Gostaríamos de dizer para o mundo inteiro que: o Complexo do Alemão não é feito só de “violência”. É que a violência é a Imprensa se omitir de mostrar o outro lado da moeda. Estamos nos referindo ao I Seminário do Morro do Adeus realizado no dia 11 de fevereiro do corrente e que só recebeu o apoio da rádio Tupi e do Cepel. A grande imprensa não ligou a mínima. Esse grito ficou preso em nossas gargantas. Isso é injustiça? O Morro do Adeus -‐ Complexo do Alemão não aguenta mais ser mostrado ao mundo como se fosse o “caldeirão do inferno”. O poder público precisa se dar conta da sua parcela para esse quadro de isolamento total do ser humano. Não nos deram a oportunidade de mostrar a cara que existe no outro lado da moeda. Isso prova que não querem repensar uma nova forma de política social. Fazem tudo sem nos consultar como se fossem eles os donos da verdade. Depois nos taxam d e v iolentos ( ...) ( A ntônio C assiano d a S ilva) 10
Recuperamos aqui o título do livro de Sader , Quando Novos Personagens Entraram em Cena (1988). A intenção, esperamos, fica clara ao longo de nossa reflexão. 9
10Carta
escrita pelo presidente da Associação de Moradores do Morro do Adeus e publicada na coluna “Fique por dentro”do Se liga no Sinal, informativo do Cepel (Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina), no 21, ano 4, março/abril.95. Situado na região da Leopoldina, o Complexo do Alemão abriga em suas 11 favelas uma população de aproximadamente 52.000 habitantes , entre elas a Nova Brasília e o Morro de Adeus. Nos últimos meses, frequentemente, as favelas do Complexo tem ocupado as páginas policiais da grande imprensa sendo mostradas como redutos do tráfico de drogas. A imprensa, silencia-se, no entanto, a respeito do estado de abandono em que vivem estas favelas no que se refere aos serviços públicos.
Esta é uma citação que, propomos, enriqueça, nossa reflexão. Poderíamos
dizer, a fala, não de uma voz silenciada, mas de uma voz mal escutada. Literalmente ignorada pelo poder público e algumas entidades civis que se propõem a i nterlocutar c om o s m ovimentos p opulares 11.
O carta de Antônio Cassiano marca o protesto de sua comunidade diante
da crescente omissão do poder público, bem traduzida na ausência dos representantes dos órgãos governamentais convidados para o I Seminário do Morro do Adeus: A comunidade, suas lutas e desilusões, seus problemas e soluções. No Seminário, durante todo o dia, estiveram presentes em torno de cem pessoas, em sua maioria moradores e lideranças de outras comunidades da região, que participaram de grupos de trabalho para debater os problemas da comunidade, bem como soluções a estes e , em seguida, reuniram-‐se em uma plenária final. Nesta, decidiram pela elaboração de um relatório, onde contaram sua experiência de realização do Seminário, e sistematizaram as soluções e reivindicações p ara o s p roblemas d a c omunidade. ( A MMA/CEPEL, 1 995).
Mas p or q ue e stamos a qui a f alar s obre o M orro d o A deus?
O Seminário ocorrido e a carta de Antônio Cassiano nos parecem
significativos do momento em que vivemos. A ausência do poder público não é exatamente uma novidade, mas parece assumir uma dimensão ainda mais perversa e assustadora nestes tempos neo-‐liberais em que se decide culpabilizar e penalizar a maioria da população em prol da reprodução de um modelo de sociedade que já é nosso velho conhecido. 12 E a violência? Bem, esta é mais do que um fenômeno urbano. Ela se imbrica em nosso cotidiano, traduzindo muito bem o padrão das relações que permeiam nossa sociedade. Para lá da ameaça constante que nos espreita dia a dia no asfalto, o que dizer da realidade que dia 11Foram
convidados para o Seminário representantes das Secretarias de Desenvolvimento Social ( Município do Rio de Janeiro) e de Obras e Meio -Ambiente ( Estadual ), além do Movimento Viva Rio e da Abrapia. 12
Compreende-se aqui que o modelo neo-liberal longe de redefinir as relações entre o privado e a esfera pública vem reforçar o processo de privatização do público sobre o qual o capitalismo tem se desenvolvido historicamente em nossa sociedade, contribuindo assim para acirrar os processos de exclusão econômico-social e reforçar o movimento de neutralização política dos grupos populares.
e noite atinge grande parte da população moradora das favelas e periferias da cidade, invadindo suas casas, cerceando seus passos, fiscalizando suas ações , e segmentando seu existir? Não por acaso, esta população é, em sua maioria, aquela que cotidianamente trabalha sob precárias condições, colocando sua vida em risco, debaixo de guindastes, em cima de andaimes, no alto das janelas, no fogo-‐cruzado d os t iroteios e tc.
Esta é uma das dimensões do momento em que vivemos. Mas a
declaração de Cassiano nos faz pensar em outras tantas. Por isso, trazemos seu protesto aqui. Enquanto presidente da AMMA, desanimado com o descaso do poder público, e sobretudo morador e liderança comunitária combatendo a precariedade de uma realidade que bem conhece, ele nos parece autorizado a falar d os m ovimentos s ociais u rbanos e d as l utas d a p opulação.
E estas lutas não são exatamente uma novidade mas parecem causar
surpresa, num momento em que, mais ainda, as adversidades se intensificam: omissão da esfera pública se traduzindo numa total falta de interlocução com os grupos organizados da sociedade civil de caráter popular 13; e a violência como parte integrante do cotidiano das classes subalternas, desfavorecendo suas lutas ao cercear suas ações e a articulação entre as comunidades; a violência também como instrumento usado, pelo poder público e privado, para reproduzir a exclusão destas classes , estigmatizando-‐as e confinando-‐as a um “lugar do crime e d a d esordem”. 14 13Recuperamos
aqui uma distinção feita por Valla, em referência aos movimentos populares organizados da sociedade civil, para qualificar os grupos dos quais estamos tratando. Segundo Valla, a amplitude do termo sociedade civil não dá conta da diferenciação qualitativa dos interesses das entidades civis que surgem no âmbito daquela. Daí a necessidade de qualificar as entidades civis voltadas para as lutas populares, diferenciando-as de outras entidades civis, como por exemplo, o Rotary Club. Esta distinção é mais atual do que nunca, num contexto em que, nos parece, há uma dissonância entre os interesses de algumas entidades civis que vem interlocutando com o Estado, e os interesses da maioria da população. O descaso de algumas destas entidades com o Seminário do Morro do Adeus é significativa deste fato. 14Reconhecemos
aqui não só o caráter violento dos processos de exclusão econômica-social que subalterniza de forma crescente amplos segmentos sociais, produzindo o que Valla chama de população descartável (1993) mas também a atuação pontual do Estado e da iniciativa privada no que se refere aos mecanismos de repressão e controle social, como a ação da imprensa denunciada pelo presidente da Associação do Morro do Adeus e da polícia que atua na favela como se esta fosse o “caldeirão do inferno”.
É sem perder de vista estas adversidades que lançamos nosso olhar para o
movimento organizado pelo Morro do Adeus. No Seminário, o primeiro (I) anuncia de certa forma, a disposição de boa parte da comunidade em intensificar suas lutas apesar da falta de respostas dos órgãos públicos. A proposta concretizada de se fazer um seminário traduz um esforço de discussão entre os moradores, de articulação destes com outras comunidades, e de interlocução com o poder público e com algumas entidades civis. Finalmente, a carta do presidente da Associação reflete a indignação da comunidade e a necessidade d e t orná-‐la p ública.
Não queremos ver heróis onde só existe gente lutando pela humanização
da vida. Mas há de reconhecer mais do que incômodos e iniciativas isoladas num movimento que reúne aproximadamente 100 pessoas durante todo um sábado, numa região bastante visada pela ação policial, que inibe qualquer movimento individual e, mais ainda, mobilizações coletivas. Percebemos aí combate, reflexão e o rganização.
Com o Morro do Adeus na mente ( um exemplo, entre outras evidências)
nos interrogamos: será que os atores coletivos dos anos 70/80 estão renascendo das cinzas?; voltando à cena política?; ou jamais teriam saído do palco e deixado de integrar a cena; e nós, é que, atentos sobretudo ao cenário, perdemos o movimento d os p ersonagens?
A cena política no país vem sofrendo alterações e, com ela, parece se
alterar também a perspectiva do pensamento intelectual a respeito dos movimentos sociais urbanos, acumulando-‐se um conjunto de questões: como se constituem os movimentos?; quais suas características?; de que forma se articulam c om o i nstituído?; q ual s eu p otencial d e t ransformação d a s ociedade?
Os anos 70 marcaram o surgimento de toda uma literatura a respeito dos
chamados novos movimentos sociais urbanos, cuja visibilidade política, especialmente dos acontecimentos dos anos 78/80, inspirava em muitas análises, a aposta no potencial destes movimentos em relação a uma radicalização d o p rocesso d emocrático.
Concordamos com Sader & Paoli quando, em relação a esta nova
literatura, assinalam a ruptura das representações aí subjacentes com um imaginário que vinha pontuando o modelo de interpretação da história e da sociedade brasileira. Um imaginário que colocava o Estado como razão única, lugar exclusivo e sujeito de realização de um projeto para o país e percebia as classes populares como meros objetos, seja deste Estado ordenador, seja da intelectualidade q ue a s g uia ( 1986).
A emergência destas novas representações, reinterpretativas dos
processos e d os a tores s ociais d a s ociedade b rasileira é c ompreendida n o â mbito das mudanças que ocorriam nesta última. Mudanças que indicavam o fechamento do Estado à experiência social e a perda da ilusão de que uma boa política rearticularia uma sociedade desigual e impolitizável (S ADER , 1988). Um fechamento que abre caminho à redescoberta da sociedade civil, de onde emergiam relações de sociabilidade potenciais no enfrentamento com o Estado autoritário (W EFFORT , 1984). E uma desilusão que era reforçada pelos processos que marcavam, internacionalmente, uma revisão da teoria marxista e um reposicionamento político, particularmente face ao caráter do Estado Burguês e ao chamado socialismo real. Processos que vinham amadurecer as discussões a respeito d o E stado e d a c onstrução d emocrática 15.
Estas mudanças, condições fundamentais ao alargamento do campo de
perspectivas e da ação política da intelectualidade acadêmica e militante, não podem ser entendidas enquanto um dado “objetivo” que se impôs à esquerda, determinando um sentido para sua produção. Se a atenção for dada somente a elas, enquanto móveis do processo de reinterpretação da sociedade brasileira, perdemos parte significativa da cena. Assim, pensamos que a possibilidade histórica de reelaboração teórica realizou-‐se mediada pela própria experiência dos intelectuais no âmbito das mudanças que ocorriam na sociedade e que não se esgotavam na dominação do Estado e do capital. É importante assinalar, 15No
que se refere a este último processo destaca-se a influência do trabalho de Althusser que vinha reforçar a desilusão com o Estado Burguês e seus aparelhos ideológicos e a crescente leitura e reinterpretação da obra de Gramsci, revelando-se os conceitos de hegemonia e sociedade civil.
então, a gestação de novos padrões de prática coletiva e a recriação de novas representações no seio da classe trabalhadora que vão apontar alternativas para a p rodução a cadêmica e a a ção p olítica d e e squerda 16.
Neste período, predomina, assim, uma visão profundamente permeada
pela desilusão com o Estado e pela aposta no potencial dos movimentos e em sua prática política, marcada pela defesa da autonomia, pelo exercício da democracia participativa e pela importância dada à organização de base. Os trabalhos enfatizam o espontaneísmo dos movimentos e a ruptura que traziam em relação aos tradicionais canais de participação política, bem como sua ação anti-‐Estado.
Na primeira metade dos anos 80, contudo, configura-‐se uma nova visão
do espaço público entre os intelectuais. A mudança no quadro institucional, com a retomada do pluripartidarismo, a formação do Partido dos Trabalhadores, a eleição de quadros oposicionistas para os govenos do Estado em 1982, resgata a potencialidade da intervenção na esfera pública, percebida agora enquanto espaço de conflito, onde pode se enfrentar a luta política. Fertilizando esta percepção, há o reconhecimento da luta pela hegemonia, indicado pela reinterpretação d a o bra d e G ramsci.
Deste modo, ao longo da chamada transição democrática, delineia-‐se uma
nova visão do Estado. Nem o Estado ordenador, lugar exclusivo de ação política, nem o Estado essencialmente perverso, reflexo dos interesses burgueses e impermeável à experiência social. O Estado passa a ser percebido enquanto espaço de conflito e luta, materializando-‐se em agentes e ações visíveis e 16É
neste sentido, que E.Sader, examinando os procedimentos dos "antigos" centros organizadores ( Igreja católica, esquerda marxista e sindicato ) neste período e procurando analisar como experimentaram a crise pela qual passavam, destaca que as três agências abrem espaço para a reelaboração de suas matrizes discursivas, incorporando as práticas e representações culturais populares, procurando assim novas vias para reatar suas relações com os públicos respectivos. Surgem, pois, as comunidades de base, o "novo sindicalismo" e as novas formas de integração com os trabalhadores, no caso da esquerda desarticulada pela derrota política. Dessa forma, “a potencialidade das novas matrizes está, portanto, tão ligada à consistência interna de suas categorias e modalidades de abordagem do vivido quanto à sua abertura, às fissuras que deixa para poder incorporar o novo, aquilo que era ainda indizível e para o que não poderia necessariamente haver categorias feitas” (Sader, 1988, p.143).
palpáveis. Surgem novas interpretações a respeito da relação dos movimentos com o Estado, vista como uma relação dinâmica, de conflito mas também de negociação, onde os dois pólos são passíveis de se transformar. O Estado começa a ser percebido como propulsor dos movimentos, não em função de sua ausência ou inoperância na provisão de um serviço mas porque o aceno concreto de implantação de um serviço, e a seletividade específica na resposta, funciona como fator de mobilização e organização da população excluída deste serviço ( J ACOBI , 1 989).
Porém, diante das mudanças político-‐institucionais do período e dos
desafios apontados na relação com o instituído, os movimentos sociais urbanos são c omo q ue d esaprovados n o t este d o p otencial d e i ntervenção e m udança p or várias análises que enfatizam a dispersão, debilidade e corporativismo das demandas de muitos destes movimentos. Ressaltam-‐se a sua dimensão local e sua inata incapacidade para dimensionar a sua ação na sociedade como um todo e implementar um projeto de transformação. As análises passam a apontar, então, para a sua frágil visibilidade enquanto fenômenos políticos capazes do comando d o p rocesso d e d emocratização n a s ociedade b rasileira ( S ILVA , 1 994).
De forma geral, dos anos 70 a fins dos anos 80, os movimentos sociais
passam de redentores da ordem a mobilizações débeis e cooptadas, incapazes de enfrentar o desafio da institucionalização. Interrogamo-‐nos então o que levou a esta mudança de percepção. A alteração no contexto político institucional e os desafios por ela trazidos seriam suficientes para nos levar a uma m aior c ompreensão a r espeito d esta m udança? O u e sta t ambém n ão e staria referenciada na experiência da intelectualidade diante do processo da chamada transição democrática e nas expectativas lançadas em relação ao potencial dos movimentos sociais? Assim, além das mudanças no cenário político-‐social, coloca-‐se como fundamental à alteração em tais representações, a forma como a intelectualidade experimentou a “transição democrática”, quando se revalorizam os antigos canais de intervenção política, agora, se não mais vistos como lugares únicos da mudança social, pelo menos como principais espaços de
luta e conflito, por onde devia passar tal mudança e onde os movimentos estariam l egitimados.
Pensamos que ao longo dos anos 70, na percepção da cena que então se
delineava, vê-‐se o movimento dos atores. Mas até que ponto, apesar da ruptura com antigas representações, nas novas interpretações, este movimento dos atores ainda não aparece condicionado à atuação do Estado e do capital, a quem são atribuídos à direção da cena? Não seria este o caso das análises que enfatizam o fechamento imposto pelo Estado autoritário como elemento definidor na constituição dos movimentos? Ou daquelas que reduzem a emergência dos movimentos à pauperização crescente das classes subalternas, resultante do processo de industrialização? De certa forma, o movimento dos atores aparece aí como um intervalo, um momento possível que deveria evoluir para formas mais plenas e transformadoras de atuação política. Ou aparece como u m m ovimento f atal, c apaz d e t razer o g olpe f inal à s ociedade b urguesa.
Face a tal perspectiva a respeito dos movimentos sociais, não é
surpreendente pois, que, nos anos 80, eles comecem a ser vistos como débeis, fragmentados e em refluxo. Uma vez que o referencial não deixara de ser o Estado, então apresentado como espaço de luta, ou a dinâmica imposta pelo capital, e a expectativa da intelectualidade ainda repousava na ruptura com eles, os novos atores já não são mais vistos em movimento pois não correspondiam às apostas de parte da intelectualidade de esquerda: que fossem móveis de uma transformação radical da sociedade, agora percebida na efetividade da resposta aos desafios do que se acreditava ser o jogo político-‐ institucional. De movimentos, eles deveriam passar a organizações, ou delas serem instrumentos. 17 Na memória, restaram suas promessas não cumpridas e o
imagem aqui utilizada recupera uma distinção analisada por J.Souza Martins em A Chegada do Estranho quando destaca que há uma grande disputa que marca as organizações políticas e os movimentos sociais. “As organizações sindicais e partidárias têm insistido que os movimentos sociais são espontâneos e, por serem espontâneos, não contém um projeto político. (...) Trabalharam em favor das mediações políticas das quais os movimentos sociais deveriam ser instrumento. (...) A concepção que domina é a de que os movimentos sociais são transitórios, devem existir apenas na fase de mobilização dos trabalhadores.” ( 1993, p.92) 17A
que parece esquecido é que se a formas de interlocução com o institucional se alteraram e se os antigos canais de ação política são reabertos e novos surgem, isto foi em resultado em grande medida da pressão exercida pelos movimentos sociais.
Assim, interrogamo-‐nos se a avaliação dos movimentos sociais a partir
das noções de refluxo e crise, não se relaciona a uma certa forma de pensar sua visibilidade política de acordo com antigas referências que marcam tais movimentos enquanto mobilizações em enfrentamento direto com o Estado, sem considerar a dinâmica de suas formas de organização e a temporalidade de suas lutas. Até que ponto ao se relevar uma unidade para o ponto de chegada -‐ a conquista do Estado segundo a tradição jacobina da qual somos tributários -‐ não se imputa também uma identidade para os pontos de partida e para a forma como t ais m ovimentos s e d esenvolvem? 18
As reflexões até aqui colocadas traduzem o esforço de compartilhar a
construção de um referencial que interprete os movimentos sociais para além das noções de refluxo ou crise, buscando alternativas que, sem cair em uma perspectiva heróica, não os aprisione nos marcos tradicionais de ação política e considerem a particularidade da dinâmica e dos significados políticos inscritos nestes m ovimentos.
Neste caminho algumas reflexões nos parecem fundamentais e vamos
aqui abordar aquelas mais implicadas com a temática de nossa pesquisa e que nos conduzem particularmente ao processos culturais imbricados nos movimentos s ociais
Começamos apontando uma questão colocada por J.Souza Martins em
referência a sua experiência de mais 15 anos em pesquisa sobre os movimentos sociais no campo quando observa que provavelmente vai ser aposentado antes de terminar o trabalho e que a pesquisa ainda não fechou pois “há coisas que 18
A referência à tradição jacobina recupera a questão apontada por Francisco de Oliveira, entre outros, que destaca que tendo em vista o fato de termos nos formado na tradição jacobina que prega a reforma do Estado para que este reforme a sociedade, é problemático invertermos o encaminhamento e percebermos o movimento em que a sociedade redefine , dá novos limites e desenha o Estado (1994,p.5)
estou acompanhando desde o começo, que começaram a acontecer e ainda não acabaram de acontecer”. O autor faz tal avaliação para ilustrar a dificuldade de acompanhar os movimentos no campo, uma vez que seu tempo da luta é outro. E nos dá vários exemplos significativos, entre eles o caso dos Xavantes, no Mato Grosso, que foram expulsos de suas terras, onde fazendas foram instaladas, com suas sedes construídas em cima dos cemitérios dos índios, que aparentemente estavam c onfinados e c onformados c om s eu t erritório r eduzido m as q ue:
O que os fazendeiros não viram e, aliás, ao que parece, os pesquisadores também não, é que de vez em quando um xavante escapava da aldeia e ia visitar terras ancestrais (...) Resultado, depois dessas visitas aparentemente turísticas, todos conformados, os fazendeiros, felizes, recebendo os incentivos fiscais do governo federal, os Xavante se organizaram e começaram a tomar as fazendas, com sede e tudo. Foi o caso da Fazenda Xavantina, que construiu sua sede s obre o a ntigo c emitério x avante. ( 1993, p .37/38)
A história dos Xavante revela a particular dimensão temporal da luta no
campo, onde os processos são demorados e que é “no âmbito desta demora que o teor mais profundo dos movimentos sociais se revela”. Por isso é que se impõe a necessidade de meditar sobre uma concepção de tempo diferente da nossa que “envolve uma idéia ampla de espera. E a Espera perturba a situação da pesquisa”.(p.39/40). É assim que a temporalidade das lutas no campo torna-‐se uma questão teórica mas também metodológica para pesquisa, pois mais do que nunca o conhecimento se produz parcial e provisoriamente, com interpretações inacabadas.
Na análise da particularidade dos movimentos no campo, Martins critica,
pois, as interpretações prisioneiras do universalismo que definem o tempo do camponês por imputação, “decorrente da transformação ‘a priori’ da
temporalidade do capital da grande indústria em medida de tempo de outras relações sociais” (1989, p.102). Aponta então a necessidade de considerar a especificidade da relação do camponês com o capital que propõe e revela aspectos f undamentais d o c aráter d esumanizador d esta r elação.
Ainda que atentos às distintas formas de relação com o capital no campo
e na cidade, e às especificidades das lutas no campo, pensamos que a análise de J.S.Martins pode ser levada a uma abordagem a respeito das lutas urbanas que envolvem as populações mais pobres que vivem na periferia das grandes cidades. As relações de tais grupos com o capital se processam sob uma forma e uma dinâmica diversa daquelas que marcam as relações entre o operariado e o capital, e cuja referência tem servido como eixo para se pensar a mudança histórica e s ocial.
O próprio Martins ao retomar a concepção de desenvolvimento desigual,
sob sua forma mais antiga que considera mais rica e dialética, discute a relação entre formas de exploração consideradas atrasadas e o próprio processo de acumulação capitalista que no seu entender “explicam a natureza diversa das lutas e das organizações de luta, dos movimentos sociais no campo e também entre a s p opulações m ais p obres d as c idades b rasileiras” ( 1993, p .111).
A literatura sobre Movimentos Sociais urbanos tem se voltado para a
forma como as contradições do capitalismo vem se desenvolvendo historicamente na cidade, dando particular atenção ao papel desempenhado pelo Estado na acumulação de capital no espaço urbano. Muitas destas análises têm sido fundamentais para a compreensão do processo através do qual o capital reproduz dialeticamente o arcaico no moderno, articulando relações com formas históricas aparentemente inconciliáveis, e produz a exclusão crescente e ampliada de grandes parcelas das classes trabalhadoras19. Da mesma forma, importantes têm sido as abordagens a respeito do lugar do Estado no processo de acumulação através da privatização do que é público, com o repasse financeiro sob a forma de subsídios, reservas de mercado, intervenção 19
A este respeito Francisco de Oliveira (1972 e 1978) e Lucio Kowarick (1975, 1979 e 1988).
financeira etc, e também da socialização dos custos de reprodução da força de trabalho, que vem viabilizar a superexploração da força de trabalho 20. Significativas são também as análises que apontam a esfera pública enquanto espaço de conflito e a importância da disputa pelo controle e manejo do fundo público n a c onstrução d e u ma s ociedade e fetivamente d emocrática 21.
Tais abordagens têm se revelado pontuais na busca de linhas
interpretativas que, buscando alternativas a concepções clássicas da luta de classes, procuram contemplar a heterogeneidade das classes subalternas, bem como os processos que marcam suas formas de mobilização e organização. E neste âmbito que o conceito de reprodução assume um lugar importante, relacionando movimentos sociais às relações de classe. Porém, o conceito de reprodução da força de trabalho tem se mostrado restrito para explicar integralmente a heterogeneidade social e a complexidade de objetivos que caracterizam tais movimentos, enquanto o conceito de reprodução das condições d e r eprodução p arece s er d emasiado g eral ( D URHAM , 1 984b).
Estas linhas de análise são fundamentais na compreensão dos processos
que marcam a exclusão do trabalhador urbano do processo de trabalho capitalista e sua integração a formas indiretas de subordinação do trabalho ao capital e que se traduzem nas condições de vida das populações mais pobres da cidade. Porém, são insuficientes se nos colocarmos diante do desafio de entender a dinâmica específica dos movimentos através dos quais tais populações se expressam politicamente. Isso porque não contemplam os elementos de inventividade política e de criatividade histórica que se referem a um âmbito muito mais amplo, onde talvez o mais importante não seja a tomada do Estado mas a luta por uma porção de mudanças que apontam para a humanização d a v ida ( M ARTINS , 1 993, p .57).
Pensamos que a construção de um caminho que contemple tais
elementos exige uma maior compreensão da forma como os chamados 20
Kowarick (1979) e Oliveira ( 1988)
21
Oliveira (1988)
processos histórico-‐sociais objetivos são experimentados e interpretados pelas classes subalternas. Isso nos leva ao campo da cultura, aos processos de produção do saber subalterno e a seus elementos explicativos e interpretativos do real. Leva-‐nos a incorporar na construção do conhecimento, e pontualmente na p esquisa, o c onhecimento p roduzido p or e stas c lasses.
Assim, se nos debruçarmos somente sobre a forma como vem se dando a
espoliação urbana através do Estado, e atentarmos apenas para visibilidade pública dos movimentos populares, perdemos parte substancial da experiência popular, de suas relações com a sociedade e do que vem sendo historicamente construído p elas c lasses s ubalternas.
Um exemplo ilustrativo deste desencontro, que faz com que
pesquisadores, mediadores políticos e técnicos deixem de lado a experiência e as interpretações produzidas pela população, vem das lideranças das favelas na região da Leopoldina. Elas não aceitam a recomendação de mediadores, baseada numa acumulada discussão teórica, de que o Estado, isto é a CEDAE (Companhia Estadual de Água e Esgoto) deva assumir e dirigir a distribuição de água nas favelas. E mesmo recebendo água no máximo três vezes por semana, argumentam:
Se nós moradores entregarmos a responsabilidade de distribuir água à CEDAE, vai ser o fim de nossa água. Se as favelas têm água é por causa das Associações de Moradores, mesmo com todos os seus problemas. (V ALLA , 1994)
A este respeito, Valla analisa que o que está por trás da orientação dos
mediadores é uma concepção do que o Estado deveria estar fazendo, ou seja uma concepção de previsão, de futuro enquanto do lado da liderança o que está presente é uma concepção de provisão, do presente, isto é a certeza de que a CEDAE não existe para os moradores destas favelas, a não ser a partir da pressão
permanente exercida por eles. O que se percebe neste embate é que Estado tem s ignificados d iferentes p ara o s d ois l ados.
Assim, se considerarmos as condições de vida da população apenas
enquanto condições objetivas, neste caso materializadas no acesso a um serviço público de baixa qualidade, não damos conta, por exemplo, da dinâmica de sua forma de enfrentamento do Estado e numa avaliação redutora, vemos apenas apatia e conformismo onde talvez exista uma avaliação rigorosa da sobrevivência na cidade. E neste sentido é que se faz necessário refletir sobre as condições de vida da população subalterna em sua dimensão subjetiva, ou seja considerando que a forma como experimentam historicamente estas condições produz um conhecimento, uma determinada percepção de sua realidade e de sua i nserção n a s ociedade, b em c omo a lternativas d e c ondução d e s uas vidas.
Isso nos leva a outra questão que também nos parece importante e que é
apontada pelo já citado J.S.Martins: a consciência dupla das populações do campo. Esta noção contempla o duplo código que regula a fala das populações indígenas e camponesas com o estranho. Duplo código que marca a existência destas populações que, passando por um amplo e profundo processo de repressão, ocultam elementos de sua cultura e revelam apenas o que é sancionado pelos que as dominam. Mas a dupla consciência não é uma manifestação da incapacidade de perceber o que ocorre. É uma estratégia de sobrevivência e uma arma de luta pois põem juntos o afirmar e o negar, o obedecer e o desobedecer Muitas vezes se materializa numa linguagem do silêncio que fala mais do que qualquer outra coisa e que coloca desafios metodológicos a o p esquisador ( 1989 e 1 993).
Mais uma vez podemos considerar a questão colocada por Martins no
âmbito urbano, onde as populações mais pobres vivem cotidianamente um violento processo de exclusão. O processo de repressão pelo qual passam não possui as mesmas características dos processos que atingem, por exemplo, as populações indígenas que não perdem apenas a terra mas às vezes muito concretamente sua língua, como os Xokó que não conhecem mais nenhuma
palavra de sua língua -‐ após serem expulsos de suas terras, cada vez que abriam a boca e diziam uma palavra em sua língua, levavam uma surra dos jagunços dos fazendeiros que os explorava. (Martins, 1993, p.35). Mas o reconhecimento desta diversidade não nos leva a conceber uma escala de intensidade em termos de e xploração n o c ampo e n a c idade.
Por isso, pensamos que não cairíamos em nenhuma aberração se
começássemos a refletir sobre esta dupla consciência em relação aos grupos subalternos das grandes cidades. Uma melhor compreensão da forma como estes grupos subalternos experimentam e interpretam o processo de repressão que historicamente os tem atingido cotidianamente, nos daria pistas importantes para decifrar não só suas falas, mas também suas formas de estar no mundo. Um caminho necessário especialmente se considerarmos o aprofundamento e a sofisticação dos mecanismos de repressão, num momento em que, particularmente no Rio de Janeiro, a investida contra o tráfico de drogas se confunde com o controle social sistemático das populações faveladas e d a p eriferia d a c idade.
O misto de desconfiança e complacência presente na forma com que tais
populações tratam o estranho, não é uma novidade para os técnicos ou pesquisadores que procuram uma interlocução com elas, mesmo antes destes agudos tempos de desconfiança trazidos pela ação policial contra o tráfico de drogas. Se considerarmos que historicamente estes grupos têm sido alvos de promessas e barganhas políticas e constituídos como cobaias científicas, compreendemos melhor a desconfiança, expressa no olhar e nos gestos curtos, nas meias palavras e evasivas, que contrasta com a difundida imagem de generosidade do povo brasileiro. E provavelmente não percebemos tal generosidade na complacência uma vez que esta última nos parece muito mais um sinal de uma espera incerta em relação ao que o estranho tem a oferecer, da expectativa q ue e fetivamente t raga a lguma c oisa.
A noção de igualdade que atravessa o esforço de pesquisadores e técnicos
na sua relação com os grupos subalternos referencia-‐se em uma expectativa
daqueles, forjar igualdade numa relação que é socialmente desigual. Uma expectativa não compartilhada pelos grupos subalternos, não porque não lutem por relações de iguais mas porque sabem, referenciados em sua experiência de vida, que aqueles que possuem dinheiro ou saber não são seus iguais. Assim, desconfiança e complacência, mais do que visão fragmentada da realidade, afirmam e denunciam relações de poder e, uma vez que constituem-‐se em interpretação do social, inscrevem o pesquisador ou técnico no lugar de objeto do c onhecimento, d o c onhecimento d eles.
Lembro-‐me da minha experiência de pesquisa na favela da Chácara do
Céu. Perguntados se achavam que suas vidas estavam boas, muitos entrevistados respondiam categoricamente que sim, mas depois acrescentavam alguns apesares seguidos de problemas que identificavam em suas vidas. Referenciada na idéia de a criticidade estar sempre na consciência dos problemas, percebia nos apesares a criticidade dos entrevistados. Mas, ao mesmo tempo, interrogava-‐me se ela não podia se inscrever também na afirmação categórica de estar tudo bem. Hoje reflito se esta afirmação talvez não traduza a idéia de Martins de que “o sociólogo não vai ouvir deles senão aquilo que eles decidiram que devem dizer-‐lhe” e não indique a dimensão de resistência inscrita na prática dos subalternos, através da percepção do que o outro deve ouvir e pela afirmação combativa de que está tudo bem, ainda que este o utro v eja c arências p or t odos o s l ados.
Assim, o tensionamento da fala popular, entendida na expressividade de
seus gestos, silêncios e nas contradições de seu ditos, e um aprofundamento do que Martins chama de dupla consciência, decifrando-‐a enquanto parte de um conjunto da situação social que leva à duplicidade, é fundamental à percepção dos significados políticos inscritos na experiência e na luta popular. Significados que talvez não estejam aquém do que classicamente se concebe como luta política. Q ue p rovavelmente e stão e m o utro l ugar.
Olhar além da visibilidade pública dos movimentos sociais exige mais do
que boa vontade. Exige a construção coletiva de um caminho que incorpore as
massas na sociedade civil, incorporando seu conhecimento (Valla, 1993). Exige o esforço de busca de referenciais de análise que, sem deixar de lado os chamados processos histórico-‐sociais objetivos, contemple uma maior compreensão da forma c omo e stes s ão e xperimentados e i nterpretados p elas c lasses s ubalternas.
Seguir nossa viagem por este caminho implica reconhecer a dimensão
subjetiva d os p rocessos h istóricos. M as o q ue q ueremos d izer c om i sso?
2.2. Aquilo a que chamamos destino sai de dentro dos homens, em vez de entrar n eles 22: s obre a s ubjetividade d a h istória h umana
Em sua obra Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Sader
manifestava sua insatisfação no que se referia aos modos dominantes de caracterização dos processos de reprodução social no Brasil. Destacava que esta última ora aparecia assegurada pela coerção do Estado Militar, ora pelos automatismos econômicos da acumulação capitalista ou então pela alienação ideológica produzida nas classes dominadas. E avaliava que em todos os casos, as ações das classes sociais aparecem como simples atualizações das estruturas dadas ( 1988, p .37).
Sader, e outros estudiosos que se debruçaram sobre o entendimento dos
processos de mudança histórico-‐social, vêm contrapondo-‐se a concepções estruturalistas da história, em especial ao estruturalismo althusseriano, e destacando a necessidade de romper com esquemas interpretativos fechados e resgatar a presença humana no fazer histórico 23. Como nos afirma, Chalhoub, numa c rítica à s t endências d e “ coisificação d a h istória”:
Maria Rilke. Cartas a um Jovem Poeta, Rio de Janeiro, ed.Globo, 1988, citado por Chalhoub (1990, p.10). 22Rainer
23
Em relação tal discussão no Brasil são ilustrativos desta perspectiva os trabalhos de E.De Decca (1994) e de S.Chalhoub (1986 e 1990), entre outros. Fora do país, destaca-se, por exemplo, a obra de E.P. Thompson ( 1984, 1981, 1987).
(...) trata-‐se da postulação de uma espécie de exterioridade determinante dos rumos da história, demiurga de seu destino -‐ como se houvesse um destino histórico fora das intenções e das lutas dos próprios agentes sociais. (1990, p.19)
Procuramos seguir tal perspectiva em nosso estudo. Ela fertiliza o terreno
sobre o qual pretendemos nos mover: valoriza a ação dos homens no devir histórico e social e abre espaço para uma reflexão a respeito das classes subalternas e nquanto s ujeitos d a p rodução d o c onhecimento.
Assim, a idéia de subjetividade da história, presente no subtítulo,
pretende assinalar a dimensão humana, o caráter processual e a relativa imprevisibilidade d o f azer h istórico.
N ão se trata de supervalorizar a ação humana, numa perspectiva heróica,
que no fundo reproduz uma dicotomia sujeitos/estruturas. Sem deixar de considerar a existência do mundo objetivado, lembramos que este não é exterior aos homens mas encontra-‐se atravessado pelo seu fazer e impregnado de significados por eles atribuídos a suas ações. Desta forma é que podemos resgatar o velho Marx e pensar os homens enquanto produtos sociais, determinados pela realidade objetiva mas também com criadores desta realidade.
A contrapartida da recuperação humana no desenvolvimento histórico é a
concepção de uma dimensão processual e imprevisível neste desenvolvimento. Se reconhecemos que o movimento da história é resultante da ação humana, ele não é predeterminado, dependendo pois da forma como os homens agem sobre sua realidade objetiva, vivenciam suas experiências e as elaboram em termos culturais.
Considerando também que os homens agem atravessados por sua
historicidade, a mudança social não pode ser pensada apenas em termos das condições existentes no presente, como se o desenvolvimento da humanidade
caminhasse por etapas, de forma que a instalação de um novo período fizesse morrer o outro. Assim a dinâmica imbricada na mudança social aponta para uma ação humana que encontra sua referência numa realidade que é histórica e que, portanto, configura não só as condições e experiências emergentes, mas também aquelas que nos remetem ao passado e que se r eatualizam no presente, adquirindo a í n ovos s ignificados.
Esta visão da mudança histórico-‐social é significativa para nossa temática
pois, ao conceber a ação dos homens, em sua totalidade, na criação do mundo objetivo, nos leva a pensar os fatos culturais como produções humanas e também instituintes do social e não como meros reflexos da realidade material, produtos reificados desta realidade. Leva-‐nos também a considerar fundamental ao trabalho junto às classes subalternas a percepção do saber por elas produzidos. Um saber que é referenciado em sua experiência de vida mas que t ambém i nforma s ua p rática e s ua f orma d e e star n o m undo.
O estudo deste saber, das mediações que o produzem, nos levam ao
campo da cultura, ao encontro de uma reflexão a respeito dos processos que marcam a p rodução d a c ultura s ubalterna e m n ossa s ociedade.
2.3. D as t eias a o a to d e t ecer: c osturando u ma a bordagem d a c ultura
Este é um caminho que nos inquieta. Não é exatamente um terreno plano
e cheio de árvores onde podemos tranqüilamente passear, colhendo frutos, despreocupados quanto a sua procedência. Terreno pantanoso e ardiloso, onde mais do que nunca é necessário investigar os frutos encontrados, percebendo-‐os enquanto n ada n aturais.
Historicamente, a demarcação de um lugar para a reflexão sobre a cultura
se dá no âmbito do processo que marca de forma geral a expansão capitalista dos países centrais, em particular das potências européias ocidentais. E mais particularmente, a discussão em torno dos valores, códigos e comportamentos do povo se coloca enquanto referência num movimento onde se inscreve
também a reação ao Iluminismo, o processo de auto-‐definição e construção nacional, em especial nas sociedades periféricas da Europa, bem como o delineamento da chamada questão social que, paralelamente à expansão industrial e urbana, repõe no centro da política o potencial de explosão social das populações pobres das cidades européias. Apresentado enquanto símbolo da p ureza o riginal d os c ampos, d o c omunitarismo e d as v irtudes c onservadoras e da tradição, o povo vai sendo constituído enquanto objeto da ciência, objeto que era necessário conhecer, incorporando-‐o à auto-‐imagem da Nação em construção e estabelecendo o controle das chamadas classes perigosas. ( B URKE , 1989 e C ERTEAU & J ULIA , 1 989). 24
O conhecimento se dá aqui enquanto coleção de curiosidades, das
tradições e crenças populares, configurando o chamado folclore, e subentendendo uma clara separação entre o estudioso e seu mundo, de um lado, e a s c lasses p opulares, d e o utro ( S ATRIANI , 1 986).
O uso do termo cultura na discussão dos desníveis culturais no interior
das chamadas sociedades civilizadas é tomado emprestado da antropologia cultural, de forma que foi só através do conceito de cultura primitiva que se chegou de fato a reconhecer que aqueles que eram definidos como “camadas inferiores dos povos civilizados” possuíam cultura. Supera-‐se, ao menos verbalmente, a concepção antiquada de folclore como mera coleção de curiosidades. É dentro deste movimento que começa a discussão entre a cultura das classes subalternas e das classes dominantes. ( G INZBURG , 1987). Discussão que, até pelo menos a segunda metade deste século, era vista como domínio exclusivo d a a ntropologia s ocial.
Foi somente nas últimas décadas que outras disciplinas aproximaram-‐se
desta discussão. A aproximação foi feita particularmente por historiadores, 24
Já no século XVI, as práticas e costumes populares eram do interesse dos eruditos , pelo menos naqueles países onde já se configurava o processo de formação do Estado Nacional, como era o caso da França. A este respeito Natalie Z.Davis destaca que o estabelecimento do francês como língua culta e literária implicava a assimilação de formas do discurso popular. (1990). No entanto, a passagem do povo enquanto alvo de interesse para objeto da ciência só se dá ao longo do século XIX quando desenvolvem-se as condições históricas para a demarcação das ciências sociais.
sociólogos, educadores e intelectuais de outros campos do conhecimento social, desiludidos com os esquemas interpretativos globalizantes , dentro dos quais os fatos culturais assumiam reduzida importância para a mudança histórica e social e a cultura subalterna constituía um acúmulo de fragmentos residuais submetidos à cultura dominante. 25Dentro deste processo são particularmente fundamentais as contribuições de determinadas linhas de análise da historiografia marxista, preocupadas em romper com a ortodoxia das interpretações mecanicistas, da Escola dos Annales e dos estudos desenvolvidos pela E scola d e F rankfurt.
É também sob o impacto deste processo que na produção antropológica
há o desenvolvimento de uma crítica ao funcionalismo positivista, abrindo-‐se perspectivas diferenciadas de valorização da análise da dimensão simbólica da vida s ocial.
Podemos situar aí o trabalho do antropólogo simbólico norte-‐americano,
C.Geertz. Recuperando Max Weber, Geertz afirma em uma de suas obras que “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” e completa que assume a cultura como sendo essas teias e sua análise, defendendo assim uma ciência interpretativa, à procura do significado.(1989, p.15). Esta busca do significado não implica, segundo o autor, em “afastar-‐se dos dilemas existenciais da vida em favor de algum domínio empírico de formas não emocionalizadas: é m ergulhar n o m eio d elas”.
A preocupação com a dimensão simbólica da ação social é uma das pistas
importantes que Geertz vem fornecendo a diversos trabalhos no campo da cultura. A sua proposta de descrição densa , em busca da interpretação dos significados, tem o mérito de romper com as leis causais de explicação e chamar a a tenção p ara o s s ignificados i nscritos n as p ráticas s ociais, o q ue d e c erta f orma vai de encontro às nossas perspectivas. Recuperando o exemplo usado por
O interesse pelos temas culturais se dava no âmbito dos processos históricos que marcavam a decepçào com a experiência histórica do “socialismo real” e o desenvolvimento da chamada cultura de massa no mundo capitalista. 25
Geertz, a descrição densa permitiria-‐nos diferenciar um tique nervoso de uma piscadela.
No entanto, o contato com o caminho de Geertz nos traz algumas
interrogações: como contemplar o movimento que leva à piscadela ou ao tique nervoso, bem como a sua diferença? Como compreender o processo que pode levar piscadelas se tornarem tiques nervosos? Esta, sem dúvida, é uma questão que não se coloca para a antropologia interpretativa de Geertz, para quem a vocação desta disciplina não é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar a nossa disposição respostas que outros deram. (1989 ). Geertz não está preocupado em compreender a produção das piscadelas e sua relação com os tiques nervosos. “As teias, não o ato de tecer; a cultura, não a história; o texto, não o processo de textualização” é que atraem sua atenção. ( B IERSACK , 1992).
Parece-‐nos, pois, que a perspectiva de Geertz silencia-‐se em relação à
dinamicidade inscrita nas práticas e significações culturais historicamente produzidas pelos homens. Mas esta dimensão é particularmente importante em nosso trabalho já que aqui o olhar está voltado para a forma como se produz o saber subalterno, em especial sua percepção das mudanças. Mais do que interpretação dos significados, interessa-‐nos o processo, ou seja: investigar os elementos q ue c ontribuem p ara f orjar o s aber h istórico d estes s ujeitos s ociais. 26
Mas o que vem significando para nós este processo? Quais as implicações
de entender a cultura enquanto processo? E como trilhar uma caminho de investigação q ue c ontemple t al p erspectiva?
No esforço de responder a tais questões chamou-‐nos atenção o trabalho
de E.Durham a respeito da experiência dos migrantes na cidade de São Paulo e da forma como recriam padrões culturais de forma a sobreviver no urbano (1984a). E especialmente, nos pareceu fundamental a crítica que a mesma 26A
observação destacada foi resultante de uma questão colocada pela companheira de grupo de orientação coletiva, e parceira de investigação, Mônica Peregrino, que despertou-me para o fato de que o eixo comum de nossos trabalhos é a ênfase no processo e não só no produto cultural.
autora desenvolveu em relação às concepções que abordam a cultura de forma autônoma, reduzindo-‐a a seu conteúdo normativo (1977). Contrapondo-‐se a elas, E.Durham assinala a necessidade de explicar o modo pelo qual a cultura é produzida, analisando que “padrões culturais sobrevivem na medida em que persistem as situações que lhes deram origem ou alteram seu significado para expressar novos problemas”. Dentro desta perspectiva, padrões ou representações apresentam-‐se como noções essencialmente sintéticas, já que referem-‐se à ação e a seu significado, englobando aspectos cognitivos e valorativos. Relacionando sua concepção de cultura à concepção de Marx a respeito do trabalho morto, E.Durham destaca que a lógica de conduta inscrita em padrões e instituições só possui eficácia na medida em que é acionado pelo trabalho v ivo, i sto é a bsorvido e r ecriado p ela a ção s ocial c oncreta. E a valia:
Nesse sentido, toda análise de fenômenos culturais é necessariamente análise da dinâmica cultural, isto é, do processo permanente de reorganização das representações na
prática
social,
representações
estas
que
são
simultaneamente c ondição e p roduto d esta p rática ( p.34)
Piscadelas podem então se tornar tiques nervosos, ou vice-‐versa! Mas é
necessário assumir a possibilidade de pensar os significados em ação, absorvidos e recriados pela ação social concreta dos homens, considerar que os significados são recriados pela ação humana diante dos próprios problemas que a realidade coloca. Ação e significado não são dimensões de campos autônomos. Estão em relação dialética, conjugados dinamicamente nos padrões e instituições c ulturais.
Seguindo esta linha de análise nos parece importante a contribuição da
antropologia histórica de M.Sahlins que, debruçando-‐se sobre sociedades insulares (Hawaí, Fiji), busca a dialeticidade da relação entre estrutura e história, concebendo a estrutura enquanto objeto histórico. A mudança cultural
nativa é vista a partir da interação recíproca entre as ilhas e a história global, encontros através dos quais “(...) o mesmo tipo de mudança cultural, induzida por forças externas, mas orquestrado de modo nativo, vem ocorrendo há milênios” ( 1990,p.9).
Para M.Sahlins, a cultura é historicamente reproduzida na ação, pois
“como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhes são atribuídos por grupos específicos, sabe-‐se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais” (p.8). O autor contrapõe-‐se assim às análises que priorizam as formas sociais sobre as práticas a elas associadas, e desenvolvem-‐se apenas nesta direção: derivando o comportamento dos grupos envolvidos de uma relação preexistente. E busca uma abordagem que apreenda forma social e ação numa relação d ialética.
A amizade produz o auxílio material: o relacionamento normalmente ( e normativamente) prescreve um modo apropriado de interação. Entretanto, se ‘os amigos criam presentes’, ‘os presentes também criam amigos’, ou talvez como melhor diriam os esquimós, ‘dádivas criam escravos -‐ como os chicotes criam cachorros’. A forma cultural ( ou morfologia social) pode se produzida ao avesso: a ação criando a r elação a dequada ( ...) ( p.12)
As indicações apontadas por Sahlins nos parecem férteis não só porque
enriquecem uma perspectiva dinâmica e dialética da cultura, ao incorporar a dimensão da ação, mas também porque procura resgatá-‐la enquanto ação criativa de sujeitos históricos, uma vez que “agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram o s c onsensos, c ada q ual a s ua m aneira” ( p.10).
Sahlins nos leva a pensar nas piscadelas enquanto signos em ação,
acionados pelos homens que, em seus “projetos práticos e arranjos sociais”, e diante das “circunstâncias contingentes”, reelaboram significados culturais que “sobrecarregados pelo mundo” são alterados, mudando daí a relação entre as categorias c ulturais, d e f orma q ue a e strutura é t ambém t ransformada.
No entanto, sua perspectiva nos desperta alguns cuidados. A concepção
de signos submetidos a “riscos empíricos” , e considerados em sua relação com circunstâncias contingentes, pode levar aos perigos de um mecanicismo, perdendo-‐se a dimensão histórica que o próprio Sahlins intenciona enfatizar. Nossa reserva é em relação às perspectivas que de diferentes formas concebem a mudança de forma absoluta e pragmática, esvaziando-‐a de seu fluxo passado e de sua potência futura, pensando-‐a em termos de uma sucessão de rupturas ou de continuidades. Estamos enfatizando aqui a necessidade de trilhar um caminho, no qual os chamados fenômenos culturais sejam abordados enquanto fenômenos históricos, e onde se evite a sedução de articular mecanicamente mudança c ultural à s c ircunstâncias c ontingentes d o p resente, p ois:
(...) não estamos passando em revista uma série de instantâneos, cada qual mostrando um momento do tempo social transfixado numa única e eterna pose: pois cada um desses instantâneos não é apenas um momento do ser, mas também um momento do vir-‐a-‐ser: e mesmo dentro de cada seção aparentemente estática, encontrar-‐se-‐ão contradições e ligações, elementos subordinados e dominantes, energias decrescentes ou ascendentes. Qualquer momento histórico é ao mesmo tempo resultado de processos anteriores e um índice da direção de seu fluxo futuro. ( T HOMPSON , 1 981, p .58)
A necessidade de uma compreensão da dinâmica histórica imbricada nos
processos culturais nos levou ao encontro de alguns estudos, que no campo da História, e stão v oltados p ara e ste t ema.
A leitura da obra de C.Ginzburg, em especial O Queijo e os Vermes, nos
parece fundamental a esta abordagem (1987). Voltado para o chamado campo da micro-‐história, o historiador procura valorizar fenômenos aparentemente marginais, como os ritos de fertilidade, feitiçaria e a cosmogonia, de forma a ter acesso a c ultura s ubalterna d as c hamadas s ociedades p ré-‐industriais.
Porém, a particularidade do trabalho de Ginzburg não reside tanto em
seus objetos inovadores, mas em sua abordagem teórico-‐metodológica a respeito de questões que vêm sendo desenvolvidas pela historiografia. Aqui nos interessa particularmente sua leitura das relações entre cultura subalterna e dominante. Afastando-‐se criticamente da noção indeterminada e interclassista da "mentalidade coletiva", Ginzburg aponta um novo caminho para a análise do universo cultural das classes subalternas, compreendido não enquanto expressão passiva de uma mentalidade coletiva que se impõe em determinado período histórico, mas a partir de seu movimento relacional, através do qual interage com a cultura dominante. Procura se contrapor também às dicotomias que o põem c ultura p opular/oral X c ultura d e e lite/ e scrita.
Na análise do processo inquisitorial contra Menocchio -‐ um moleiro
friulano -‐, e de sua cosmogonia, a convergência das posições de Menocchio e dos intelectuais de seu tempo coloca a questão da relação entre cultura subalterna e dominante. No enfrentamento da questão, Ginzburg destaca, pois, a circularidade da cultura, noção que resgata de M.Bakhtin, e que se diferencia da relação passiva e em sentido único entre cultura dominante e subalterna. Assim, o autor destaca que as afirmações de Menocchio em defesa da tolerância religiosa e seu desejo de renovação radical da sociedade não parecem resultado direto de influências externas passsivamente recebidas. Se a interpretação de Menocchio partira dos textos, aos quais tivera acesso, suas raízes eram mais profundas: “a rede interpretativa era de longe mais importante do que a fonte”
(p.101). Portanto, na compreensão da cosmogonia do moleiro, Ginzburg dá destaque à forma como ele triturava e reelaborava suas leituras, ao encontro da página escrita com a cultura oral que formava, na cabeça de Menocchio, uma mistura explosiva(p.116). Um encontro que se localiza no terreno, ainda quase inexplorado de relações e migrações culturais e que nos remete a um estrato obscuro, de remotas tradições camponesas (p.127). Encontro que é referenciado nas possibilidades históricas forjadas pela Reforma, pela difusão da imprensa mas q ue a e las n ão p ode s er r eduzido.
Nos discursos de Menocchio, portanto, vemos emergir, como que por uma fenda no terreno, um estrato cultural profundo, tão pouco comum que se torna quase incompreensível. Este caso, diferentemente dos outros examinados até aqui, envolve não só uma reação filtrada pela página escrita, mas também um resíduo irredutível de cultura oral. Para que essa cultura d iversa pudesse vir à luz, foram necessárias a Reforma e a difusão da imprensa. Graças à primeira, um simples moleiro pôde pensar em tomar a palavra e expor suas próprias opiniões sobre a Igreja e sobre o mundo. Graças a segunda, tivera palavras a sua disposição para exprimir a obscura, inarticulada visão de mundo que fervilhava dentro dele. Nas frases ou arremedos de frases arrancadas dos livros, encontrou os instrumentos para formular e defender suas próprias idéias durante anos, junto aos seus concidadãos num primeiro momento, e depois, contra os juizes armados de doutrina e poder. ( p .128)
O que nos desperta a atenção na análise de Ginzburg é a forma como
reconstrói a cosmogonia de Menocchio, bem como seu tempo social, articulando
os diferentes tempos históricos aí inscritos, sem reduzir o universo cultural subalterno a uma sobrevivência heróica de um passado remoto ou a um mero reflexo da difusão das idéias dominantes num determinado período histórico. O potencial explosivo da visão de mundo de Menocchio situa-‐se então na encruzilhada de passado e presente , na mistura explosiva de uma cultura oral reelaborada no encontro com a página impressa. Cultura oral camponesa de remota tradição que encontra no período histórico em questão, marcado pela difusão da imprensa e pela Reforma, as possibilidades de emergir enquanto interpretação contestadora da ordem e afirmação de um desejo de mudança radical n a s ociedade.
Assim, na construção de nosso caminho, a abordagem de Ginzburg nos
indica que a compreensão da cultura enquanto processo significa mais do que entendê-‐la como ação. Significa também entendê-‐la enquanto ação no tempo. Tempo que não nos remete a uma dimensão unívoca, linear e evolutiva, mas à articulação dinâmica de tempos históricos distintos, no âmbito da qual inscrevem-‐se m ovimentos d e c ontinuidade e r uptura.
Pensar os processos culturais a partir da articulação destes diferentes
tempos históricos significa também pensá-‐los no âmbito das relações de força e da dinâmica de poder presente na sociedade. Desta forma é que nos é possível conceber aspectos da cultura subalterna, não enquanto resquícios de um passado morto, mas como formas de recriação do passado histórico , através das quais padrões e valores culturais se reatualizam respondendo às contradições que a travessam a r ealidade s ocial d as c lasses s ubalternas.
A compreensão da dinâmica de poder e dos conflitos inscritos na
produção cultural, e em especial a reflexão sobre a cultura subalterna numa sociedade de classes, nos leva a considerar as relações de força que permeiam os processos de criação e recriação cultural, configurando o tecido dentro do qual os diversos sujeitos sociais atuam, a partir de diferenciados lugares histórico-‐sociais. Nesta perspectiva nos é fundamental o conceito de hegemonia cultural que remete à estruturação e dinâmica histórica das relações sociais num
determinado período, considerando o exercício de dominação da classe hegemônica, seja através do consenso e (ou) da repressão. Considerar o universo cultural subalterno no âmbito das relações de hegemonia tecidas na sociedade, de certa forma contribui ainda para nos afastar das armadilhas do relativismo cultural, cuja sedução é bastante comum nos trabalhos voltados para a produção cultural subalterna. O reconhecimento da diferenciação cultural vem acompanhada, portanto, de uma perspectiva que compreenda esta diferenciação, enquanto resultante de processos histórico-‐sociais e não como obra do acaso, e que considere a troca desigual de bens materiais e simbólicos. Assim, as diferenças culturais aparecem, não como simples expressão de particularidades do modo de vida mas como manifestação de oposições ou aceitações que implicam um constante reposicionamento dos grupos sociais na dinâmica d as r elações d e c lasse ( D URHAM , 1 977, p .35)
As formas como a dominação se exerce, procurando uniformizar
consciências, valores e padrões culturais, têm sido objeto de estudo de vários autores. Para nós, no entanto, tendo em vista as questões implicadas em nossa temática e o caminho que nos propomos a construir, interessam-‐nos as contradições inscritas nos processos de hegemonia cultural, percebendo aí não só o exercício da dominação mas os embates e as lutas das classes subalternas que, não raras vezes, propõem experiências alternativas a esta hegemonia e redefinem seu exercício segundo novos termos. Nossa preocupação se dá no sentido de nos aprofundarmos também sobre o que não implica a hegemonia. A este r espeito, r ecuperamos a a valiação d e T hompson:
Esta h egemonía p udo h aber d efinido l os l ímites e xternos d e lo que era políticamente y socialmente practicable e, por ello, influir sobre las formas de lo practicado: ofrecía él armazón desnudo de uma estructura de relaciones de dominio e subordinacíon, pero dentro del trazado
arquitectónico podían montarse muchas distintas escenas e desarrollarse d ramas d iversos (...) Pero mientras que esta hegemonía cultural pudo definir los límites de lo posible, e inhibir el desarrollo de horizontes y expectativas alternativas, este proceso no tiene nada de determinado ou automático. Una hegemonía tal sólo puede ser mantenida por los governantes mediante un constante y diestro ejercicio, de teatro y concesíon.( (Thompson, 1 984, p .58/59)
Nosso interesse se volta, então, usando a imagem de Thompson, para “as
distintas cenas e dramas diversos”. Assim, no caso particular de nossa sociedade, mesmo reconhecendo a produção da hegemonia no capitalismo, forjando e reproduzindo práticas e valores que fundamentam o ordenamento burguês, avaliamos que estes não podem ser lidos de forma unívoca, pois o próprio caráter conflituoso da sociedade garante leituras divergentes destas mesmas práticas e valores. Segundo esta ótica, processos que são vistos apenas enquanto expressão da produção da hegemonia burguesa podem ser abordados também a partir de suas contradições, através dos significados e visões divergentes produzidos pelos diferentes sujeitos sociais. Na verdade, a existência de versões e leituras divergentes é que torna possível ao pesquisador ter acesso às lutas e contradições presentes na realidade social ( C HALHOUB , 1986, p .23)
Refletir sobre esta divergência de leituras e interpretações, de certa
forma, nos leva de volta ao início, às teias de significados de C.Geertz. Mas podemos agora olhá-‐las enquanto ação, atravessadas por tempos históricos distintos e inscritas num tecido social permeado por lutas e contradições. São pois, produtos históricos e sociais, cuja análise supõe a consideração não apenas do ato de produzir, mas de todos os passos de um processo produtivo: a produção, a c irculação e a r ecepção ( C ANCLINI , 1 983, p .33).
Pensamos, porém, que numa reflexão a respeito destes passos do
processo produtivo é necessário considerar a avaliação daqueles que, como Ginzburg, indicam a necessidade de romper com dicotomias que opõem cultura de e lite/cultura p opular , c ultura e scrita/cultura o ral.
Saber se pode chamar -‐se popular ao que é criado pelo povo ou àquilo que lhe é destinado é, pois um falso problema. Importa antes de mais nada identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam, se imbricam diferentes formas culturais ( C HARTIER , 1 990, p .56)
Outra armadilha se encontra na dicotomia que opõe produção/ consumo
cultural. Subjacente a ela, nos lembra Chartier, está o postulado que as idéias ou as formas têm um sentido intrínseco, totalmente independente da sua apropriação por um sujeito ou grupo de sujeitos (p.58). Se procurarmos seguir na contramão desta concepção dicotômica, a noção de apropriação trabalhada por C hartier s e r evela f undamental p ois:
(...)tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais ( que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo atenção às condições e aos processos que, muito concretamente, determinam as operações de construção de sentido ( na relação de leitura, mas em muitas outras também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as inteligências não são desencarnadas e, contra as correntes de pensamento que postulam o universal, que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser
construídas nas descontinuidades das trajetórias históricas. (p.27)
Apropriação e circularidade constituem-‐se em atalhos importantes na
construção de nosso caminho, um caminho que contemple a dimensão histórica, relacional e dialética da produção cultural, e que a considere enquanto invenção criadora d os s ujeitos s ociais.
A noção de circularidade trabalhada por Ginzburg nos aponta as trocas
subterrâneas existentes entre cultura subalterna e a dominante, afastando a concepção de uma autonomia entre elas e resgatando seu movimento relacional. Assim, podemos considerar que a chamada cultura de massa incorpora valores e padrões populares, reintroduzindo uma heterogeneidade nos produtos culturais oferecidos às classes populares. Nesta ótica, é possível pensar, por exemplo, na forma como a indústria cultural recupera o funk e o reproduz, lançando-‐o no mercado, através da comercialização de shows, artistas e objetos. Talvez caiba recuperar a avaliação de quem acompanha de perto a trama, o m ovimento f unk e o m ovimento d a i ndústria c ultural:
(...)como a classe dominante não pode sufocar, ela vai e se apropria. O que ela está fazendo com o reggae e o funk agora? Pinça o homem branco, classe média alta, “Gabriel, O Pensador”, que é totalmente diferente do que foi a fonte (Luiza R ocha, 1 994) 27
Mas seguindo a indicação de Ginzburg e dando ênfase à rede
interpretativa e não tanto a fonte, podemos também chegar não só às trocas subterrâneas mas à dimensão criadora inscrita na forma como as classes subalternas se apropriam das idéias dominantes, dando-‐lhes novos significados. 27
A avaliação de Luiza Rocha, ativista e conhecedora do Movimento Funk e integrante do Movimento Sangue Novo( Ver parte II e III).
Recorrendo mais uma vez ao funk podemos pensar em como os funkeiros se apropriam de produtos culturais, típicos da chamada indústria cultural, redefinindo-‐os segundo seus impasses, valores e experiências. Nesta reflexão buscamos a intensidade das falas daqueles que afirmam seu espaço numa sociedade:
No p é, o m eu R eebook, Na c abeça o b oné, agora, e u s ou f unkeiro e n ão u m q ualquer Z é. Funkeiros c ariocas, somos m ais d e u m m ilhão fazendo c ultura arte e d iversão ( e xtrato d o r ap A F orça d o F unk, L uiz A rnaldo C ampos)
E que, ao fazê-‐lo, denunciam as trocas desiguais desta sociedade e
invertem s ua o rdem, p ropondo a lternativas a e la:
“Nós não somos estrume, nós não somos porcaria. Favelados sim! A gente espera uma oportunidade, através de uma peça, um musical, uma palestra, para estar diante da sociedade que nos recriminou. Então quando temos essa oportunidade, através de uma peça, de um musical, uma palestra, para estar diante da sociedade que nos recriminou. Então quando temos essa oportunidade, nós
mostramos que eles estão enganados; o morro vive do asfalto, e o a sfalto v ive d o m orro” ( funkeiro d o B orel) 28
As falas citadas nos parecem um terreno inesgotável de reflexões a
respeito dos atos de tecer, dos riscos empíricos de Sahlins e das misturas explosivas, como a visão de mundo do moleiro Menocchio. Mas elas nos sugerem, sobretudo, a afirmação de J.S.Martins de que “a duplicidade na cultura popular retém, justamente, uma interpretação da luta de classes forjada na gênese das relações que opõem as classes, no próprio movimento em que se define quem é vencedor e quem é vencido, dominador e dominado, explorador e explorado. A cultura das classes subalternas prolonga e codifica o confronto na condição d o v encido”. ( M ARTINS , 1 989, p .115)
As falas dos rapazes do Funk e as avaliações de Martins indicam o
próximo destino: sair em busca de algumas teias que atravessam a produção da cultura s ubalterna.
2.4. A T eia d a E xclusão: s obre a s ubalternidade
Chamou-‐nos atenção no depoimento do funkeiro do Borel a afirmação de
sua identidade de favelado e a denúncia da forma como ele, e seus companheiros, são recriminados, vistos como estrume, porcaria. E mais ainda: nos surpreendemos. De certa forma, nos admiramos com sua afirmação final contundente de “que o morro vive do asfalto e o asfalto vive do morro”. Surpresos porque talvez não esperássemos que um funkeiro pudesse identificar uma trama que articula o morro ao asfalto, o asfalto ao morro. Mais uma vez constatamos que de fato o saber popular comparece não só como objeto de análise, recurso ilustrativo mas como parte integrante da produção do conhecimento.
28As
duas citações acima foram retiradas da revista Rio Funk /1995.
A trama destacada pelo rapaz do funk nos indica a necessidade de
compreender e demarcar o processo histórico-‐social que forja os sujeitos sociais de nossa pesquisa, bem como explicitar a nossa opção pelo conceito de classes subalternas.
Neste percurso nos é fundamental a discussão de J.S.Martins a respeito
da noção de subalterno (1989). O autor observa que " o legado da tradição gramsciana, que nos vem por meio desta noção, prefigura a diversidade das situações de subalternidade, a sua riqueza histórica, cultural e política" (p.98). A subalternidade traduz, em uma concepção mais ampla, a teoria da superpopulação relativa, entendida enquanto "criação de excedentes populacionais úteis, cuja utilidade está na exclusão do trabalhador do processo de trabalho capitalista e sua inclusão no processo de valorização por meio de formas indiretas de subordinação do trabalho ao capital" (p.99). Assim, ela não expressa apenas a exploração mas também a dominação e a exclusão econômica e p olítica.
N esta perspectiva, a subalternidade não pode ser vista como uma etapa
do desenvolvimento capitalista e o subalterno como uma condição, "figura que o desenvolvimento capitalista supostamente extinguiria com o correr do tempo"(p.100). A subalternização é parte integrante da forma através da qual o capitalismo se desenvolve articulando uma diversidade de relações, trazendo para as determinações de seu tempo, "os tempos das diferentes relações que foi reproduzindo na sua própria lógica ou, mesmo, produzindo" (p.108). Sendo assim, as classes e grupos subalternos devem ser entendidos numa perspectiva dinâmica, supondo a noção de relação histórica, pois sua constituição se forja no âmbito d o d esenvolvimento d o c apitalismo.
Ainda segundo o autor, o desconhecimento sobre esta diversificação
interna das classes subalternas, empobrece a compreensão de suas lutas e possibilidades históricas, pois omite seus dilemas e debilidades. Por isso, "um discurso que unifique retoricamente as classes subalternas não produz a unidade e a f orça r eais d essas c lasses e g rupos s ociais".(p.107)
As reflexões de J.S.Martins são fundamentais, porque apontam um
conceito, cuja amplitude 29 abre possibilidades para se abordar as experiências de vida e os processos culturais relativos aos moradores das favelas urbanas, sujeitos s ociais d e n ossa p esquisa.
Pensamos que o conceito tem o mérito de ser atravessado pela marca da
universalidade e da particularidade. Universalidade, porque deve ser compreendido no âmbito do processo de subalternização, que produzido pelo desenvolvimento capitalista atinge parcelas crescentes da população. Particularidade, porque só pode ser interpretado a partir da forma historicamente específica através da qual se desenrolam as relações entre os diferentes g rupos s ubalternos e o c apital.
A noção de subalternidade permite que consideremos a atualidade de
sujeitos sociais vistos enquanto “arcaicos”, como os camponeses, ou “produtos desviantes” da chamada modernização trazida pelo capital, como os favelados. Numa perspectiva que considera as contradições do tecido social e seu fluxo dinâmico, o desenvolvimento capitalista pode ser visto a partir de sua possibilidade de reproduzir-‐se, articulando tempos históricos distintos, "uma recriação contínua de relações sociais arcaicas juntamente com a progressiva criação de relações sociais cada vez mais modernas" (M ARTINS , 1989, p.100). Assim, o "arcaico" é uma dimensão reatualizada e integrada ao capitalismo, tanto q uanto o " moderno", e n ão u m s imples r esquício " paralisado" n o t empo.
Recorrer ao conceito de subalterno significa aqui também compreender
as múltiplas faces do processo histórico-‐social no âmbito do qual tais sujeitos sociais se constituem. Assim, quando nos referimos ao desenvolvimento capitalista e ao movimento de subalternização nele inscrito, não consideramos apenas a reprodução da acumulação do capital, mas também os processos históricos de seu desenvolvimento e de reprodução de sua hegemonia política e 29Entendemos
que a amplitude não significa que o conceito de subalterno seja vago e genérico. Ao contrário, usamos amplitude para expressar o fato do conceito incorporar a diversidade de experiências sociais e produções culturais dos diferentes grupos subalternos.
cultural, fundamentais à própria acumulação. Assim, o subalterno não traduz somente a face econômica e sociológica da exploração da força de trabalho sob o capitalismo mas a imagem histórica de sujeitos sociais que experimentaram e experimentam a e xclusão e m s uas m últiplas f aces.
O conceito abre espaço também para uma abordagem não mecanicista
dos processos culturais que marcam as heterogêneas experiências históricas dos sujeitos sociais com os quais trabalhamos. Isso porque sugere uma perspectiva de análise que, interpretando a subalternização como um processo histórico, dinâmico, relacional e múltiplo, nos permite conceber não só diversas formas de exploração e de exclusão econômica e político-‐social, bem como diversas formas de e xperimentá-‐la h istoricamente e d e t ratá-‐la e m t ermos c ulturais.
A dimensão processual do movimento histórico nos leva a considerar que
a complexidade do universo material, ou imaginário, está em muito associada às diferentes temporalidades que nele podem estar incritas, ou seja que uma determinada realidade pode conjugar elementos que em sua historicidade nos remetem a t empos h istóricos d istintos.
Neste sentido, pensamos que sendo produzido no histórico-‐social, o
processo de subalternização não é imposto pelo capital como se fosse algo exterior aos homens. Os grupos subalternos vivenciam tal processo enquanto experiência de vida e o interpretam segundo suas tradições, crenças e valores culturais. A subalternidade, enquanto experiência histórica dos sujeitos sociais de nossa pesquisa, nos parece, portanto, um caminho importante para a compreensão do conhecimento histórico por eles produzidos, bem como para um m aior e ntendimento a r espeito d e s uas a lternativas s ociais e p olíticas.
A esta altura podemos voltar ao depoimento do rapaz do funk, do Borel.
Ele fala do lugar do subalterno, daquele que foi excluído mas que não é produto desviante da modernidade capitalista. Fala do lugar de quem é parte integrante das contradições da sociedade, a parte “recriminada”, da qual a sociedade se alimenta. Afinal, “o morro vive do asfalto e o asfalto vive do morro”!. A subalternidade é, então, o solo de onde ele fala. Mas entre seu solo e o
conhecimento que tem dele, há um teia... Uma mediação que costura esta história...
2.5. U m e lo q ue n ão p ode f altar: a e xperiência
Buscar um caminho de compreensão da fala popular, intuindo a respeito
do saber histórico que ela traduz, nos levou a interrogar explicações mecanicistas que apreendem a produção cultural, e em particular o conhecimento subalterno, apenas em termos macro-‐estruturais. Insistir em tais explicações seria dar às costas ao referido caminho, pois de antemão não haveria mais o que compreender na fala popular. A moradora do Borel seria simplesmente alienada e o rapaz do funk... Bem, este teria repetido retoricamente alguma interpretação ouvida de alguém consciente.. Ou então seria u ma e xceção q ue n ão v ale a p ena p esquisar.
Bem, já deu para concluir que nós decidimos trafegar na contramão.
Decidimos pela exceção, desconfiando que podemos encontrar outras pelo caminho. E conscientes de que não estamos sozinhos. Há parceiros e interlocutores, o q ue n os f az p ensar q ue a c ontramão é u m c aminho c oletivo.
Mas o percurso não é tão simples, nem tão repleto de frutos que
possamos nos apropriar tranqüilamente . Sem nosso porto seguro -‐ o mecanicismo macro-‐estrutural -‐ corremos o risco de ceder às armadilhas de um historicismo ingênuo, especialmente se considerarmos a temática com a qual trabalhamos.
De certa forma, procuramos nos prevenir contra tais armadilhas
mergulhando numa reflexão a respeito dos movimentos sociais, sem deixar a contramão, mas atentos aos desvios heróicos da discussão. Fomos ao encontro também de uma maior compreensão dos processos culturais, considerando
algumas das perigosas heranças históricas do conceito de cultura. E tecemos nosso s olo, b uscando o c onceito d e s ubalternidade.
Contudo, concluímos que em nosso caminho há um vazio. Como construir
um eixo de análise do saber histórico dos subalternos que, sem perder de vista as determinações mais amplas colocadas pelas relações de produção ( não mais vistas como porto seguro ), contemple os elementos particulares que atuam como mediadores da produção cultural subalterna? Como chegar à compreensão da subalternidade enquanto um processo vivenciado pelos sujeitos sociais e por eles i nterpretada s egundo s ua c ultura?
Este me parece um elo perdido, um caminho em construção para a
contramão coletiva. No esforço de contribuir na busca, uma resposta para o impasse nos veio através da leitura da obra do historiador E.P.Thompson, e em especial do conceito de experiência por ele trabalhado e que vem sendo apropriado por diversos pesquisadores na área das ciências sociais, voltados para a v alorização d as c lasses s ubalternas e nquanto s ujeitos h istóricos 30.
Debruçando-‐se sobre temáticas articuladas à constituição da classe
operária inglesa, a obra de Thompson (1984, 1981, 1987) teve o mérito de apontar a necessidade de que as pesquisas sobre as ações coletivas das massas investigassem não apenas seus antecedentes sócio-‐econômicos, mas também os padrões ou rituais do próprio conflito, a fim de se descobrir a percepção que seus p articipantes t êm d e s eu s ignificado e d e sua v alidade. 31
A ênfase do autor no papel da cultura enquanto mediadora das relações e
estruturas sociais está articulada a sua própria concepção da mudança histórica a partir da ação dos homens. A constituição da classe operária inglesa aparece em sua obra como um processo ativo. Afinal "a classe operária não surgiu tal Brasil, lembramos do já citado livro de Sader (1988) e o trabalho de Vera Telles in: Kowarick, L. (1988), entre outros. 30No
O mérito do trabalho de Thompson aqui destacado explica-se pelo fato de A Formação da Classe Operária Inglesa ter sido publicado originalmente em inglês em 1963, época em que as questões desenvolvidas pelo autor (as noções da cultura enquanto mediadora das relações e estruturas sociais, e dos homens como agentes ativos da história) eram, de certa forma, controvertidas no campo marxista. Neste sentido, Thompson foi um dos pioneiros da chamada história social no mundo anglo-saxão. 31
como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-‐ se".(1987, p.9). Seguindo este eixo, o acento recai não tanto sobre a classe e a preocupação em defini-‐la quase que matematicamente, mas sobre a luta de classes, p rocesso n o â mbito d o q ual a s c lasses s e c onstituem.
Ademais, a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-‐la num dado momento e dissecar sua estrutura. A mais fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de classe, como tampouco um do amor ou da submissão. A relação precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não podemos ter duas classes distintas, cada qual com um ser independente, colocando-‐ as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe acontece quando alguns homens, como resultado experiências comuns ( herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses e ntre s i, e c ontra o utros h omens c ujos i nteresses diferem ( e g eralmente s e o põem) d os s eus ( 1987, p .10)
Esta concepção de Thompson tem sido fundamental àqueles estudos onde
“a avaliação do que ‘as classes populares’ são perde o sentido, para se transformar numa avaliação daquilo que os grupos estão enfrentando e estão sendo”( S ADER &P AOLI , 1988, p.62). Ele é particularmente importante na construção de um referencial que contemple a complexidade da dinâmica social e política em nossa sociedade. Uma vez que a ênfase é posta no conflito e na luta, abre-‐se caminho para uma maior compreensão do potencial político dos
movimentos sociais, e em especial das experiências políticas daqueles que não traduzem o “ exemplar p uro d e c lasse”.
Ainda dentro da forma como Thompson concebe a constituição das
classes sociais, destaca-‐se a relação que ele estabelece entre a experiência de classe e a consciência de classe. Contrapondo-‐se às perspectivas que procuram deduzir uma consciência de classe ideal, a partir de sua definição quase matemática, Thompson nos fornece uma visão menos mecânica da consciência de c lasse:
A experiência de classe é determinada, em grande medida, pela relações de produção em que os homens nasceram -‐ ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais
semelhantes
que
vivem
experiências
parecidas, m as n ão p odemos p redicar n enhuma l ei.(p.10)
Embora não seja nossa intenção trabalhar com o conceito de consciência
de classe, pensamos que a observação do autor nos dá algumas indicações importantes. O conceito de experiência contempla a dimensão relacional e subjetiva das práticas sociais e políticas, considerando a ação dos sujeitos frente aos acontecimentos e a outros grupos sociais. As experiências, embora determinadas, são vivenciadas e reelaboradas diferentemente, de forma que o significado q ue o s d iversos a gentes l hes a tribuem n ão s erá t ambém u nívoco.
Em outro trabalho (1981), em polêmica com o pensamento de Althusser,
Thompson alarga o conceito de experiência, tomada enquanto experiência humana, e stabelecendo s uas r elações c om o s p rodutos d a c onsciência.
Os homens e mulheres retornam como sujeitos, dentro deste termo -‐ não como sujeitos autônomos, 'indivíduos livres', mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades, interesses e antagonismos, e em seguida 'tratam' essa experiência em sua consciência e sua cultura ( as duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras ( sim, 'relativamente autônomas') e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, s obre s ua s ituação d eterminada. ( 1981, p .182)
Seguindo a reflexão proposta, chama-‐nos atenção o fato de que entre a
experiência determinada em grande medida pelas relações de produção e o experimentar desta experiência há um conjunto de mediações que não são menos determinantes à prática histórica e social, uma vez que atravessam as ações dos homens referenciando o seu agir sobre uma situação determinada. E neste sentido, tais mediações, que nos remetem ao campo da cultura, podem ser v istas t ambém c omo i nstituintes d a m udança h istórica e s ocial.
A este respeito, o autor introduz um conjunto de elementos que vem
sendo relegado pela maior parte das análises a respeito da experiência política das c lasses s ubalternas:
As pessoas não experimentam sua própria experiência como idéias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou (como supõem alguns praticantes teóricos) como instinto proletário etc. Elas também experimentam sua experiência como sentimento na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidade, como valores ou (através de
formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura ( e é uma metade completa) pode ser descrita como consciência afetiva e moral" ( p.189).
Em uma destas mediações, o próprio Thompson se aprofunda. Referindo-‐
se à questão moral, procura recuperar seu significado na experiência social e sua importância para a reflexão teórica e política, criticando as concepções que tratam tal questão como sendo essencialmente ideológica e destacando que “toda contradição é um conflito de valor, tanto quanto um conflito de interesse, que em cada “necessidade” há um afeto, ou “vontade”, a caminho de se transformar num “dever” (e vice-‐versa); que toda luta de classes é ao mesmo tempo u ma l uta a cerca d e v alores” ( p.189/190).
A questão da complexidade e a relativa autonomia das formas através das
quais homens e mulheres tratam da experiência parece fundamental ao nosso estudo, ao entendimento das percepções que os subalternos têm de sua história e do saber que eles produzem a seu respeito. A experiência seria, neste caso, uma mediação entre estrutura e processo, e nos daria a chave para entender a experiência vivida dos sujeitos sociais ao abrir-‐se para o que Thompson chamou de consciência afetiva e moral. No centro do acontecer histórico, a experiência pode relacionar processos macro-‐estruturais com a forma como eles são experimentados pelos sujeitos. Nossa leitura do conceito de Thompson nos leva à avaliação de que, se a experiência das classes subalternas aponta para o processo comum de subalternidade, a forma como elas se apropriam desta experiência não pressupõe uma identidade, pois depende de mediações da consciência e d e a travessamentos c ulturais p articulares.
Interrogamo-‐nos se estas mediações culturais não seriam as chaves para
compreender porque nem sempre a ação sobre uma situação determinada se dá através das estruturas de classes resultantes. Porque o saber e conhecimento produzidos pelas classes sociais não se relacionam mecanicamente à estrutura
de classes. Uma reflexão sobre esta questão poderia nos levar a uma maior compreensão sobre o comportamento social e político das classes subalternas, talvez nos mostrando que nem sempre o potencial crítico do saber destas classes pode estar onde insistentemente pensamos estar. Como nos diz Perry Anderson, "é apenas na noite de nossa ignorância que todas as formas desconhecidas t em a m esma c or" ( 1985, p .548)
3. E ncontros d e m eio d e e strada: d ando r umo à c aminhada
Sinto decepcionar aqueles praticantes que supõem que tudo o que é necessário saber sobre a história pode ser construído a partir de uma aparelho mecânico conceptual. Podemos apenas retornar, ao fim dessas explorações, com melhores métodos e um melhor mapa (...)Nas margens do mapa, encontraremos sempre as fronteiras do desconhecido. O que resta fazer é interrogar os silêncios reais, através do diálogo do conhecimento. E, à medida que esses silêncios são penetrados, não cosemos apenas um conceito novo ao pano velho, mas vemos ser necessário reordenar todo o conjunto de conceitos. Não há nenhum altar mais oculto que seja sacrossanto de modo a obstar a indagação e a revisão. (E.P.Thompson, 1981, p.185)
Mais uma citação. Esta longuíssima vem para introduzir aquele que nos
parece ser o caminho dos silêncios, das “fronteiras dos desconhecido” e também do diálogo possível e potencializador da produção do conhecimento: as nossas pistas.
Já discutimos algumas delas. As iniciais, aquelas que moveram os
primeiros passos do trabalho e que nos fizeram concluir sobre a necessidade de um estudo sobre o saber produzido pelas classes subalternas. Vamos, portanto, às outras, as que nos levam de impasses e intenções ao caminho do estudo. São nossas referências no diálogo com as questões teóricas e conceituais que estivemos e xaminando a té a gora.
De certa forma, elas não são exatamente novas. São reatualizações e de
questões anteriores, reelaboradas diante de novas experiências. Uma dessas, já mencionada, foi o encontro com alguns companheiros, mestrandos e professores, em especial no grupo de orientação coletiva, com os quais pude dividir minhas inquietações teórico-‐metodológicas e políticas. Mais do que dividir, compartilhava com eles meus impasses, descobrindo que vivíamos os
mesmos aprisionamentos e perseguíamos as mesmas respostas. E juntos, procurávamos r espondê-‐las.
Outra experiência, veio do contato e posterior inserção de trabalho no
Cepel ( Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina). Inicialmente assistemático, este encontro tornou-‐se convívio com parceiros, de inquietações e propostas. E tornou-‐se contato com aqueles que fazem a trama a ser estudada. Um encontro que é, portanto, a possibilidade de realização do estudo. E de onde falamos, p ara d efinir e d ecifrar a s p istas p erseguidas.
Podemos então afirmar que esta pesquisa está particularmente integrada
a um conjunto de estudos desenvolvidos pelo Cepel, ou por pessoas a ele ligadas, estando pois voltada para uma maior compreensão do universo daqueles que vivem na região da Leopoldina. Assim, ela é também um fio numa teia maior que vem sendo construída por diversos pesquisadores nos últimos anos e q ue, p or i sso, r ecupera p arte d o t rabalho d estes. 32
Nosso fio, por assim dizer, procura ir ao encontro de algumas lutas que
ocorreram na região da Leopoldina no início dos anos 80. E busca também estudar o saber histórico de seus protagonistas, procurando compreender como eles percebem a mudança histórica. Mas entre os movimentos ocorridos e o seu estudo muitas vezes se coloca um vazio, um vazio da memória não registrada, perdida para a Razão Histórica, mas talvez não para aqueles que a vivenciaram
32
Entre os trabalhos a respeito da região destacam-se aqueles ligados à diferentes departamentos e programas da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) em integração com o Cepel: Projeto Educação, saúde e Cidadania desenvolvido no âmbito do Departamento de Ciências Sociais, sob a coordenação de Victor V.Valla (ver referências bibliográficas Valla & Stotz -1994); Programa de Investigação sobre Condições de Vida na região da Leopoldina ligado ao Departamento de Endemias, dentro do qual se destaca a dissertação de mestrado de Rosely Magalhães de Oliveira (1993); Monografias finais de Residência, dentre as quais a de Márcia Valéria Cardoso (1995). Há também as pesquisas que vem sendo desenvolvidas cotidianamente pela equipe do Cepel através da coleta de dados no contato com várias organizações populares da região e também com moradores. Tais pesquisas têm sido fundamentais no levantamento das condições de vida na Leopoldina, instrumentalizando as informações a respeito da região (ver referências bibliográficas CEPEL - 1994 a e 1994 b). Além das investigações acima referidas, há aquelas desenvolvidas por pesquisadores próximos ao Cepel, como a dissertação de mestrado em Educação apresentada por José Augusto Ortiz Alexandre (UFF, 1995) e os trabalhos de Marcio de Oliveira.
enquanto ação. Uma memória que se repõe no tempo, nas ações e relações dos sujeitos d a t rama e q ue a ssim s e c oloca n o c entro d o acontecer h istórico..
Por isso, a necessidade de buscar parte desta memória. Muitas das lutas
ocorridas na região não foram registradas, são desconhecidas ou relegadas enquanto ações espasmódicas, conflitos localizados sem maior significação. Reconstruir a história de alguns destes movimentos através dos depoimentos daqueles que os vivenciaram, buscando recuperar o seu significado histórico é parte do trabalho a que nos propomos. 33 Mas nossa intenção aqui não é tanto trazer tais lutas para a História mas, especialmente, compreender os significados que seus protagonistas lhes atribuem, considerando que esta compreensão é fundamental ao próprio entendimento de suas experiências sociais e práticas políticas.
Procuramos trazer aqui algumas questões que identificamos enquanto
tecemos o fio a que nos referimos, particularmente no contato direto, ou indireto, com os sujeitos das lutas que procuramos estudar. Estas questões são como p istas q ue n os g uiam n o p ercurso d e n ossa p esquisa.
3.1. O Quebra-‐Cabeça das imagens de um espaço: entre caracterizações, análises, e xperiências e i nterpretações 34
As pistas encontram-‐se na região do município do Rio de Janeiro
conhecida como Leopoldina, um conjunto de bairros cortados pela ferrovia da Leopoldina e pela Avenida Brasil, de Manguinhos a Vigário Geral, parte da área metropolitana que faz a passagem do centro a Baixada Fluminense 35. Na 33
Na base desta proposta encontra-se a perspectiva do Cepel de construçào de um Centro de Memória Popular e a nossa busca por uma forma para reconstruir a história de movimentos populares, que pretendemos explicitar no capítulo seguinte. 34
O termo quebra-cabeça recupera uma imagem utilizada por Valla, em sua referência à produção coletiva do conhecimento (1993). Nas próximas páginas esperamos clarificar tal imagem, articulada no caso à definição do espaço da Leopoldina. 35Compõem
a região da Leopoldina os seguintes bairros: Jardim América, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil, Brás de Pinha, Penha Circular, Penha, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Manguinhos.
configuração física da cidade, é a área localizada numa faixa de planície entre a Baia da Guanabara e os maciços de Caricó, que faz divisa ao norte com a Baixada Fluminense. Na estrutura político-‐administrativa do Município congrega quatro das Regiões Administrativas existentes: a X ( Ramos), XI (Penha), XXIX (Complexo do Alemão) e a XXX ( Complexo da Maré). No mapa político-‐eleitoral, tanto da cidade, quanto do município, é região de destaque com aproximadamente 600.000 habitantes, ou seja 11% do total do município do Rio de Janeiro. No inventário dos recursos econômicos, é região que concentra 14,87% dos estabelecimentos industriais da cidade e que é palco de grandes projetos de viabilização econômica, como a ferrovia Leopoldina, a Avenida Brasil e a Linha Vermelha. Nas manchetes da imprensa é signo do mundo da violência urbana, que se espaira das mais de 70 favelas existentes na região, perigosamente próximas do asfalto. Na memória da cidade, é um dos resquícios da lembrança de u ma é poca o nde o s ubúrbio e ra u ma r egião l ongínqua m as n ada a meaçadora.
Estas são caracterizações com as quais os moradores da região
defrontam-‐se cotidianamente em suas experiências de vida e trabalho e em suas lutas por melhores condições de existência. Como é o caso, por exemplo, da associação de moradores de uma favela da região, situada no limite entre os bairros de Olaria e Penha, e que portanto permanece “flutuando” entre as X e XI R.A.
Ano passado, fui procurar a R.A da Penha, e ele disse lá que eu não tinha nada que procurar ele lá não. Tinha que procurar o daqui de Olaria. Aí eu conversei com ele, expliquei a ele, que a maior parte da Associação frente era Penha, fundo era Olaria. Aí ele disse então você procura os dois. Eu falei: “justamente, estou procurando o senhor para depois procurar o outro, né?” Só que ele estava mandando procurar o chefe que tinha na comunidade. Aí ele levou aquilo na brincadeira mas eu me irritei com ele. Estou trabalhando sério, eu falando sério com ele sobre as melhorias da comunidade e já que ele estava lá como
administrador e nossa Associação participa das duas, eu me achei no direito de procurar ele, né? Mas ele não levou a sério não, ele levou tudo na base da brincadeira. ( presidente da Associação de Moradores -‐ março/95) 36
Mais do que mostrar o confronto de moradores e lideranças com as
caracterizações que fazem a respeito de suas comunidades ( aqui no caso a inserção da favela na estrutura político-‐administrativa do Município), o depoimento nos revela o esforço feito por eles no domínio das “regras do jogo” político-‐institucional e na reivindicação de seus direitos e o conhecimento que é aí produzido. Para a liderança, o espaço onde vive e pelo qual luta, não é um lugar perdido na cidade mas uma comunidade com uma determinada localização dentro do espaço físico e político-‐administrativo. Ao afirmar isso, no entanto, não se vê reconhecida por aqueles que sancionam este código de identidade ( a definição físico-‐espacial e político-‐administrativa).“Brincando”, o administrador inverte as “regras do jogo” e dilui a comunidade, e também o conhecimento que a liderança tem dela, em meio a uma outra referência de poder, obviamente não para reconhecê-‐lo mas para desqualificar o espaço em que a liderança vive e a reivindicação d e s eus d ireitos.
Interrogamo-‐nos então se na experiência de confronto com estas
caracterizações, os moradores e lideranças não constroém novas referências. Representações de um espaço que vai além das definições dos anuários, levantamentos sócio-‐econômicos e das páginas policiais da imprensa, e onde o acento recai sobre o conflito, humanizando tais definições e muitas vezes as invertendo. Denunciando, por exemplo, as implicações do fato de a região abrigar várias indústrias, sem um maior controle sobre os danos por elas causados:
36Relatórios
de encontros com as Associações de Moradores, a partir de entrevista concedida à equipe do CEPEL- CEPEL- RJ /1995.
Nós já tínhamos tido uma luta pela defesa ecológica em nome da Fazendinha. Depois, pela poluição do Cortume Carioca. É a movimentação da comunidade em defesa de sua própria saúde. É como se nós estivéssemos inseridos num trabalho junto aos médicos em defesa de nossa saúde aqui na comunidade. (Depoimento de José Maria Cruz -‐ 1992) 37
Denunciando o estigma da violência presente na forma como se
caracterizam as áreas faveladas, como no já citado depoimento do presidente da Associação d e M oradores d o M orro d o A deus, q uando d esabafa q ue “ o M orro d o Adeus -‐ Complexo do Alemão -‐ não aguenta mais ser mostrado ao mundo como se fosse o “caldeirão do inferno”. Ou expressando o reconhecimento da discriminação sofrida quando o assunto é a distribuição dos recursos públicos no espaço u rbano:
Você via na Barra da Tijuca, e a CEDAE está construindo obras que não precisava. Só investem em área de elite. Se metade do dinheiro aplicado na Barra fosse aplicado na minha comunidade, seria mais útil. 38
Recolocando uma definição do espaço, tecida na luta, que afirma um
compartilhamento e que, não raras vezes, vai além do âmbito do local de moradia e m esmo d a r egião d a L eopoldina:
37
A luta contra a poluição ambiental gerada pela atividade industrial da S.A Cortume Carioca foi encabeçada pela Associação de Moradores da Penha (AMAP) em meados dos anos 85 e culminou com a retirada da região das unidades da fábrica responsável pela poluição química. O depoimento de Sr.Cruz encontra-se no Se Liga no Sinal, ano 2, no7, setembro/outubro de 1992, Cepel/RJ. Em relação à luta contra o Cortume, Carioca, grande parte da documentação encontra-se no Centro de Documentação das Condições de Vida na Leopoldina do Cepel/RJ. 38Depoimento
de liderança comunitária da região, citado na dissertação de Mestrado de Rosely Oliveira(1993), p.75.
E nós dissemos: : “nós vamos correr atrás. Nós não vamos deixar que a comunidade seja posta pra fora porque nós não temos para onde ir”. Mas nós fomos na Merendiba, fomos no Parque Proletário, fomos no Cruzeiro, fomos na Marcílio Dias, em Parada de Lucas. Telefonamos pra uma comunidade perto de Cascadura, também uma comunidade que a gente estava sempre junto por causa da Igreja, né? (...) a gente queria que viesse gente pra nos dar apoio. E isso aconteceu. Cada comunidade, aqueles que puderam (...) Olha, aquela que mandou menos, mandou 10, 15, 20 pessoas sabe? (...) De Caxias, veio mais ou menos, acho que umas 100 pessoas prá nós. ( Depoimento de moradora do Grotão) 39
Ao lugar coisificado nos levantamentos físicos e sócio-‐econômicos,
contrapõe-‐se a comunidade, a afirmação de um espaço construído nos embates enfrentados, na luta pela ocupação do solo, pela luz, pela água e pelos serviços de educação e saúde. A afirmação de um coletivo e da dignidade dos sujeitos da luta, a qualificação da diferença no próprio enfrentamento cuja dinâmica, em seus percalços, neutraliza o conflito e coloca no mesmo campo interesses diferenciados.
Esta talvez seja uma dimensão importante na reflexão sobre as
ambigüidades da categoria de comunidade que historicamente tem sido apropriada por agentes sociais diferenciados, incorporada para usos nem sempre atravessados por ideais comunitários. Recuperar a forma como a noção influenciou o discurso político das classes subalternas urbanas, seja via o modelo de desenvolvimento de comunidade que vem desde os anos 50, seja através do ideário da Igreja Católica progressista, é um eixo necessário na
39O
trecho da entrevista refere-se à luta do Parque Proletário do Grotão contra a ameaça de expulsão da terra ocupada pelos moradores. Projeto Educação, Saúde e Cidadania - ENSP/CEPEL, junho,1987. Movimentos Sociais/ Centro de Documentação das Condições de Vida, Cepel, Rio de Janeiro.
reflexão sobre esta noção 40. Um eixo que talvez nos clarifique a denúncia inscrita na confusão crítica do aluno que interroga: “Afinal, aonde eu moro? Num conjunto, numa favela, ou numa comunidade?”. E na resposta atualizada de s ua c olega: “ Numa c omunidade f avelada?” 41
Mas para perceber as várias contradições imbricadas no uso do termo, é
importante ir até a forma como as classes subalternas, e em especial, as organizações comunitárias se apropriam desta noção, atribuindo-‐lhe um significado que talvez não passe necessariamente pelo que os agentes externos reconheçam como comunidade e que pode apontar para um coletivo maior do que a visão limitada da localidade, que atribuem aos movimentos populares. Ao lado da definição de um espaço local que nos remete a uma particularidade, viria também uma compreensão da construção coletiva do próprio espaço que nos l eva à u niversalidade d a l uta s ubalterna.
O que queremos enfatizar com as falas trazidas é que estas percepções
dos moradores nos revelam pistas importantes quando se trata de analisar caracterizações e dados físicos, bem como sócio-‐econômicos, e interpretá-‐los segundo processos históricos mais amplos que marcam as contradições da ocupação e desenvolvimento do espaço urbano. Neste caso, a visão e o conhecimento detido pelos moradores da região situam-‐se num caminho de encruzilhada entre os dados oficiais veiculados e os referenciais de análise trazidos pelo pesquisador. Não se trata de dispensar os dados oficiais, importantes na luta política uma vez que é a fala pública, que precisa ser conhecida para ser desconstruída. Nem de jogar pela janela as perspectivas teóricas de análise acumuladas, fundamentais à compreensão dos processos de produção da desigualdade e da miséria, na maioria das vezes mal traduzidas nos dados oficiais. Trata-‐se de reelaborá-‐los, tendo em vista um outro eixo de
40
Nesta reflexão, é fundamental o trabalho de Valla a respeito das políticas propostas para as favelas, baseadas no modelo de desenvolvimento comunitário (1986). 41
Diálogo presenciado em minha experiência como professora numa escola da Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, localizada em Manguinhos, numa comunidade da região.
conhecimento, um eixo que subverte os dados, porque os humaniza e os relativiza, e a mplia a t eoria j á q ue a f lexibiliza.
Esta é a perspectiva que vem orientando a proposta do Cepel em relação
ao seu Centro de Documentação das Condições de Vida da Leopoldina, compreendido enquanto um banco de dados alternativo que contemple o ponto de v ista d a p opulação.
De certa forma, a construção do banco de dados alternativo é a montagem de um quebra-‐cabeça, a partir de fragmentos dos dados oficiais, artigos de jornais, entrevistas e conversas informais com moradores e debates com autoridades. O que prevalece nesta busca é o ponto de vista popular, ou seja, a perspectiva das classes populares (V ALLA , 1993)
Tal concepção nos permite lançar um novo olhar sobre determinadas
informações oficiais, como por exemplo, a distribuição de água na região. No 5 o DAE ( Distrito de Água e Esgoto) que responde pela operação e manutenção das redes de água e esgoto na Leopoldina afirma-‐se que o maior problema da área é o desperdício de água que é muito grande, alegando que o desperdício maior ocorre na favela porque “lá ninguém tem caixa d’água, e a água fica jorrando o dia todo no latão”. Conhecendo as condições de vida da população moradora das f avelas,
Podemos dizer que esta afirmação essa afirmação é ‘meia-‐ verdade’ porque, o que se constata é que na favela, uma grande parte da população realmente coleta água direto no latão, porém, por lá a água não chega 24 horas por dia durante os sete dias da semana, portanto não tem como ficar jorrando o dia todo. A contestação à afirmativa de que a população da favela é a principal responsável pelo desperdício de água é apresentada nas diversas falas de moradores da região que se referem a
baixíssima frequência do abastecimento de água nas favelas (O LIVEIRA , 1993)
Diante desta situação, a interpretação dos dados e a análise teórica nos
aponta a necessidade de que a CEDAE assuma a responsabilidade da distribuição de água nas favelas, retirando o ônus das mãos das Associações de Moradores. No entanto, como já foi afirmado anteriormente. lideranças de favelas na região percebem n esta p roposta o f im d efinitivo d a á gua, p ois “ se a s f avelas t êm á gua é por causa das Associações de Moradores, mesmo com todos os seus problemas” (V ALLA , 1 994).
Este é um dos exemplos que demonstra a necessidade do “quebra-‐
cabeça” ao qual se refere Valla. No ponto de partida deste quebra -‐ cabeça reside a constatação acumulada na prática profissional e na experiência de vida de que o saber popular é uma das dimensões fundamentais na construção de um conhecimento que tem como horizonte a superação das condições de vida das classes subalternas. Na base do quebra-‐cabeça, tece-‐se o esforço de profissionais que buscam as experiências que estas classes vivenciam cotidianamente, seus embates com o poder público e suas condições de vida, suas alternativas aos problemas que lhe são colocados e suas lutas por melhorias na comunidade. Esforço que se faz, por exemplo, no sentido da compreensão da distribuição dos serviços de água e esgoto na região, onde destacam-‐se a s v árias f aces d os o rgãos p úblicos j á q ue:
Na lógica empresarial, a cidadania só pode ser conquistada no mercado consumidor: onde há renda a rede de serviços é “oficial”, onde não há renda a rede é “ilegal” e a mediação é o favor . (O LIVEIRA , 1993)
Ou então, no campo da educação, seguindo a experiência das
explicadoras, “professoras de reforço ou coadjuvantes do processo de ensino”, procurando:
(...) saber como e porque as crianças vão parar nas aulas das explicadoras, além da vontade de conhecer mais seu trabalho educativo e verificar quais seriam as lacunas que a escola oficial estaria deixando na educação dessas crianças (G ARCIA & R IBAS ) 42
Ou ainda nas pistas da mobilização popular, buscando o fortalecimento
do movimento comunitário e sua tradição de luta, por exemplo, em Vigário Geral, o nde, a pós a t ragédia d a c hacina d e a gosto d e 1 993, u ma:
(...) história de luta vem sendo construída por homens e mulheres que se levantam para reivindicar, para exigir o que é seu por direito e que tem sido negado sistematicamente. Dentre eles, estão o Sr.Naildo ( que foi presidente da Associação de Moradores por muito tempo), o Sr. Farias, o Sr. Antônio de Pádua, o Sr. José Pires Ferraz, e agora, uma nova geração vem se somando à luta (L OPES ) 43
Esforço que nos possibilita ir aprofundando nosso olhar e percebendo
que:
A Leopoldina de Vigário Geral, dos confrontos entre policiais e traficantes é também a Leopoldina da Casa da Paz, da Folia de Reis, da Semana de Ramos, da Festa da Penha, da bicampeã do carnaval 42
carioca,
a
Imperatriz
Leopoldinense,
e
dos
Explicando as Explicadoras in: Se Liga no Sinal , Ano 4, no 21, março/abril de 1995, Cepel/RJ.
43Vigário
Geral, um ano depois in: Se Liga no Sinal , Ano 3, no 18, agosto/setembro de 94., Cepel/RJ.
movimentados bailes funks. E isto que pode parecer contraditório a distância, se olhado mais de perto, torna-‐se expressão de vida de uma gente que teima diariamente em inventar a sobrevivência. Mas este olhar diferenciado, esta disposição de ver diferente o diferente, não se aprende nas escolas... (C ARDOSO , 1995)
Enfim, esforço que deve buscar amarrar as pontas do quebra-‐cabeça. Uma
construção crítica e compartilhada, onde imbricado aos dados oficiais sistematizados e aos eixos teóricos problematizados e amadurecidos, o conhecimento p opular c ompareça, t rabalhado d e f orma s istematizada.
3.2. U m e spaço d e V ida S ubalterna: a f avela
Com uma população de aproximadamente 600.000 habitantes, a região da
Leopoldina possui 32,9 % da população distribuídos nas 70 favelas da região, 22,6% vivendo nos conjuntos habitacionais populares e 44,5% no chamado “asfalto”.
As histórias com as quais trabalhamos se desenrolaram nas favelas da
região. Em sua maior parte, favelas que ocupam a parte alagadiça, próxima ao mar e às margens dos pequenos rios que compõem a rede hidrográfica da região, como aquelas localizadas nos Complexos da Maré e Manguinhos, respectivamente. Ou então que se formaram nas encostas dos morros, como as que e stão s ituadas n o C omplexo d o A lemão e d a P enha. 44
É sobre as comunidades situadas no Complexo da Penha que nossa
pesquisa se debruça. Complexo formado por um conjunto de seis favelas situadas em uma encosta em sua maioria irregular, onde existem três pedreiras e q ue a presenta r iscos c onstantes d e d esabamento e d eslizamentos d e p edras.
informações acima foram retiradas do documento CEPEL, Conhecendo a Leopoldina, 1995, e da dissertação de mestrado de Rosely de Oliveira. 44As
COMPLEXO D E F AVELAS D A P ENHA COMUNIDADE
ANO DE
C AIXA D’Á GUA
OCUPAÇÃO 1931
1991 3.146
1980 1221
C ARACOL 45
1951
1.851
2446
G ROTÃO
1979
1.823
944
M ERENDIBA
1944
4.125
4777
P ARQUE P ROLETÁRIO DA P ENHA
1941
8.029
13.564
V ILA C RUZEIRO
1941
19.163
8538
TOTAL
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46
HABITANTES HABITANTES
) Fontes: Cadastro das Favelas do Município do Rio de Janeiro -‐ IPLAN Rio/1993
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Anuário Estatístico do IPLAN RIO 1993
A ocupação da região deu-‐se predominantemente num período histórico
em que o desenvolvimento capitalista começa a avançar no país sob um modelo urbano-‐industrial, assumindo aí o Estado um importante papel enquanto viabilizador da infra-‐estrutura necessária ao processo industrial. A construção da Avenida Brasil, inaugurada em 1946, é um dos exemplos expressivos desta associação Estado -‐ Indústria na área metropolitana da cidade e em especial na região da Leopoldina. Com a nova Avenida, procurava-‐se não só diminuir os custos de circulação das mercadorias , como também incorporar novos terrenos ao tecido urbano, disponíveis para ocupação industrial. E foi esta mesma 45
Em relação ao ano de ocupação da favela do Caracol, há uma grande disparidade nos dados. No Anuário Estatístico do Iplan-Rio, 1993, a ocupação data de 1980. No entanto, no Cadastro de favelas do mesmo orgão, consta que a ocupação se deu em 1951. No entanto, no Centro de Documentação do Cepel há um documento da Associação de Moradores da Comunidade, onde consta como 1971 o ano de fundação desta última. A controvérsia nas informações é reveladora da dificuldade de definir os limites entre as comunidades no Complexo da Penha e a partir daí caracterizá-las historica, fisica e socialmente com precisão, sem que se considerem as informações trazidas pelos moradores. 46
No cadastro de Favelas do Iplan-Rio, não há registro da comunidade da Merendiba.que é conhecida pelos orgãos oficiais como Morro do Cariri. Merendiba é o nome de uma das ruas principais da favela e foi por ocasião da formação da Associação de Moradores, em 82, que seu nome foi usado para dar nome à comunidade.
ocupação industrial que levou ao crescimento das áreas faveladas na região. O chamado setor secundário absorvia então boa parte dos trabalhadores assalariados -‐30% ( A BREU , 1988, p.105 ) 47. A intensidade do processo de favelização do período, e o potencial de explosão social e política dos chamados conglomerados marginais, faz com que a favela configure-‐se como uma questão de análise urbana e social e um problema de “política”, aumentando-‐se o controle social sobre a população que aí vivia, e dando início às primeiras, e não sistemáticas, a ções v oltadas p ara a s f avelas 48.
O Parque Proletário do Grotão foi ocupado em fins do anos 70. Junto com
outras favelas que surgiram na região da Leopoldina no mesmo período e, particularmente, com o adensamento de antigas áreas faveladas, a ocupação do Grotão é expressiva da intensidade do processo de favelização da época 49. A acumulação urbano-‐industrial, garantida pelo projeto político implementado durante os anos da ditadura militar, em sua dinâmica, revelava de forma evidente as contradições de sua expansão, e a crise econômica que vinha se delineando, agravava ainda mais as condições de vida da populações pobres do país. Ao mesmo tempo teciam-‐se as lutas dos grupos e classes subalternas pela melhoria das condições de vida e de trabalho, forjando novas práticas de ação coletiva . A intensidade política destas lutas, o acirramento das contradições da expansão capitalista no espaço urbano e o reordenamento das forças políticas que então se operava no governo estadual levavam a uma redefinição das ações
47
Segundo Maurício Abreu, a década de 40 foi um período de significativo crescimento das áreas faveladas no Município como um todo. Segundo o censo de 1948, a área suburbana, onde está incluída a Leopoldina, concentrava 44% das favelas e 43 % dos favelados do Município e a Leopoldina contribuía aí com 19 % e 21 % respectivamente. 48Nestas
ações destaca-se especialmente a atuação da Igreja Católica, preocupada com o avanço dos comunistas nas favelas e interessada no controle destas. É neste período que se dá a formação da Fundação Leão XIII. A este respeito, ver Valla (1986). 49Em
1980, a população residente em favelas representava 14,2% da população do Município e em 1987, este índice aumenta para 18%, sendo que a região dos subúrbios é que apresenta índices mais altos ( IPLANRIO, 1988). Das cinco R.As responsáveis pelos maiores índices de crescimento absoluto da população favelada, as Regiões Administrativas de Ramos (X) e Penha (XI) estão entre as primeiras, respectivamente com 17,2% e 13,7 %.
do poder público no Estado do Rio de Janeiro e à criação de uma política social voltada p ara a s f avelas e p ara a p eriferia d a c idade.
Entre aquele período histórico que marca as primeiras ocupações no
Complexo d a P enha e e ste, n o q ual s e i nscreve a f ormação d o G rotão, d esenrola-‐ se um conjunto de processos, entre os quais se destacam o avanço do desenvolvimento capitalista que mostrava suas outras faces, excluindo econômica e socialmente parcelas crescentes da população, e o crescimento concentrado e ampliado das favelas, que se afirmam, não como “enclaves” na cidade modernizada mas, juntamente com outras formas de moradia, como expressão, e enfrentamento, da exclusão no espaço urbano. 50. O entremeio marca então o reconhecimento do “fenômeno” de favelização, compreendido no âmbito de um processo no qual se inscrevem as contradições urbanas . Um fenômeno que não podia mais ser visto como um distúrbio, um desvio “corrigível” d a u rbanização. 51
Pensar a favelização no âmbito das contradições urbanas é um passo
fundamental à compreensão deste processo. Mas caminhar por esta perspectiva, sem atenção a outras dimensões, pode nos levar a olhar para a favela apenas enquanto um “produto” da acumulação do capital garantida pelo Estado, a materialização espacial desta acumulação. Por isso a necessidade de voltar-‐se também para as contribuições das ciências sociais, em especial da antropologia,
50Referimo-nos
aqui aos chamados loteamentos clandestinos na periferia da área metropolitana que, embora surgidos anteriormente, expandiram-se de forma expressiva nos anos 60 e 70 no Rio de Janeiro. E também aos conjuntos habitacionais populares que, a despeito de integrarem-se a programas públicos, são “reconstruídos’ por seus moradores de forma atender a seu modo de vida. 51O
conceito contradições urbanas nos remete ao conjunto de estudos que na segunda metade dos anos 70 apontava a especificidade do padrão monopolista de acumulação do capital desenvolvido nos países da periferia capitalista, onde o Estado vinha garantir as condições desta acumulação. As contradições urbanas são compreendidas a partir da dinâmica deste padrão, e mais pontualmente resultantes da privatização da esfera pública, e dos limites do Estado no sentido de assegurar as condições de reprodução da força de trabalho urbana. A este respeito destacam-se os trabalhos de J.Álvaro Moisés (1978) e Francisco de Oliveira (1978), influenciados pelos estudo de pesquisadores europeus, entre eles Castells (1983).
no que se refere ao estudo da favela e outras moradias populares enquanto expressões d o m odo d e v ida e o pções c ulturais d as c lasses s ubalternas. 52.
Na trilha de um duplo olhar podemos analisar a formação de uma favela
sob uma perspectiva mais ampla que contemple os processos de subalternização aí inscritos, bem como a forma como estes são vividos. Assim, a ocupação de uma região por grupos subalternos é expressão de um processo de exclusão, resultante das contradições do padrão de acumulação do capital e do papel que o Estado aí assume. Mas, se examinada em sua particularidade, na experiência dos sujeitos da ocupação , será ela só isto? Uma moradora, que participou do processo de formação do Parque Proletário do Grotão, contribui para nossa resposta, relembrando a conversa que tivera com o marido na época da ocupação:
(...) “Mulher, você é louca”. Aí eu falei: “olha, diante de pagar aluguel...Não só sou eu, são muitas pessoas, muitas famílias. Agora, eu quero que você vá olhar, ver o que você acha(...)”. Ele disse: “mas você já pensou no sacrifício que a gente vai passar aqui?” E eu falei: “quer sacrifício maior do que nós passamos lá naquela favela? Quando chove a maré enche, enche tudo dentro de casa”. Lá muita gente perdeu as coisas. 53
O depoimento nos aponta uma outra dimensão imbricada na formação de
uma favela, e também em sua verticalização: ocupar um determinado terreno pode significar também a realização de um projeto de melhoria de vida. Insatisfeita com o local onde vivia com seu marido ( lugar onde muita gente perdeu as coisas), a moradora coloca em prática o projeto de melhorar de vida, ainda que o faça com sacrifício. A insatisfação é vivida enquanto necessidade na 52Destacam-se
o trabalho de E.Durham (1988) e Teresa Pires Caldeira (1984), entre outros.
com moradora do Grotão, Projeto Educação, Saúde e Cidadania , ENSP/CEPEL, 1987, Movimentos Sociais- Centro de Documentação das Condições de Vida da Leopoldina, CEPEL, Rio de Janeiro. 53Entrevista
medida em que o lugar de moradia apresentava vários riscos a sua saúde e de sua família 54. O sacrifício da mudança é percebido enquanto projeto alternativo a um sacrifício maior, aquele de pagar aluguel e “perder suas coisas” e arriscar sua saúde. Mas entre a insatisfação vivida e o projeto de melhoria a se concretizar, coloca-‐se uma importante mediação, uma das chaves para compreender a possibilidade de a moradora viabilizar seu projeto Não era só ela que era “louca”. Diante da necessidade de pagar aluguel, muitas pessoas, muitas famílias corriam atrás da melhoria de vida. O projeto tecia-‐se então enquanto coletivo, na medida em que insatisfações vividas particularmente traduziam necessidades que se colocavam para muitos outros e expectativas que podiam s er r espondidas a través d e u ma l uta c oletiva.
Estas reflexões nos levam a levantar a possibilidade de pensar a favela
não enquanto tradução de uma carência, uma falta de moradia, mas como uma necessidade, experimentada enquanto condição de vida e dinamizada por sujeitos que agem, referenciados em certas determinações sim, mas também atravessados por suas expectativas e projetos de vida e que encontram coletivamente caminhos para concretizá-‐los. As possibilidades dos projetos se viabilizarem
estariam
então
menos
associadas
à
intensidade
do
descontentamento do que ao encontro que permite que insatisfações e projetos vividos p articularmente s ejam r econhecidos e m s ua d imensão c oletiva.
O encontro, contudo, não pode ser reduzido nem ao clímax de um
processo acumulativo, nem a um acaso abrupto. Ele se coloca para os sujeitos enquanto oportunidade no meio da estrada, num percurso que aparentemente parecia “conformado” e neste sentido aparece como um ponto de ruptura que possibilita o deslanchar compartilhado de um projeto e a instituição da luta . Mas ele é também potencializador de caminhos que vinham se tecendo e por isso signo de experiências acumuladas que definem alternativas e práticas no encaminhamento d este p rojeto. 54Num
momento anterior de seu depoimento, a mesma moradora refere-se a pneumonia que tivera associando-a às condições da moradia anterior e conta também sobre as constantes doenças que atingiam seu filho.
Isto nos leva a pensar na importância dada pelos atores da luta a
determinados fatos e também na complexidade da temporalidade inscrita nestas lutas. Pensá-‐las segundo uma visão linear que liga mecanicamente condições de vida e experiência acumulada à realização de projetos nos parece uma perspectiva redutora que não contempla os “acidentes de meio de estrada” que, ao se colocarem enquanto possibilidade de mudança para os agentes da luta, potencializam esta última e a afirmam abrindo espaço ao reconhecimento da identidade de necessidades e de projetos muitas vezes vividos particularmente. Considerar a dimensão instituinte daqueles fatos que apenas parecem acasos, ou acontecimentos sem maior importância, significa conceber a complexidade do ritmo destas lutas, seus códigos de mudança, compreendendo que entre a experiência acumulada e a luta inscrevem-‐se algumas mediações: entre elas, os significados atribuídos a determinados acontecimentos pelos sujeitos destas lutas. Uma complexidade que talvez nos clarifique, por exemplo, a experiência de uma comunidade que a partir do atropelamento de uma criança, se mobiliza pela melhor sinalização de uma rua ou que, diante da morte de um morador conhecido, num hospital público, denuncia a falta de qualidade do serviço público de saúde e se organiza na reivindicação pela melhoria deste serviço. A potencialidade de tais “acontecimentos” levarem a um deslanchar coletivo de projetos articula-‐se à experiência acumulada dos sujeitos em luta e também à forma como esta é percebida num momento em que se vive uma situação de injustiça, a possibilidade de uma mudança. No momento mesmo em que a vivência é reconhecida em sua dimensão subalterna mas também subjetiva e coletiva. Tal situação talvez carregue o que J.Souza Martins chama de tranfiguração:
É significativo que na cultura popular brasileira, como provavelmente de outras sociedades, a injustiça constitua, como a morte, o acontecimento que inverte a leitura dos fatos correntes e revele o transcendente, uma outra realidade, e a possibilidade do universal. Essa transfiguração revela o novo
que está oculto no que é velho, o universal escondido no particular, a humanidade no desumanizado. (M ARTINS , 1989, p.122)
É com o mesmo olhar que nos voltamos para os movimentos que marcam
as mobilizações pelos chamados bens de consumo coletivo. Inscrito nesta luta não está somente a necessidade de um equipamento de infra-‐estrutura urbana e a melhoria da comunidade. Está também a possibilidade de concretização de um caminho longo e gradual, um projeto que viabiliza a luta pelo morar, por uma melhor qualidade de moradia e pela afirmação da dignidade dos sujeitos que ali moram . Assim, por exemplo, a reivindicação coletiva pela luz traz também a possibilidade de acesso aos chamados bens de consumo individuais que são conquistados gradualmente através do esforço coletivo da família e quase sempre t ambém u sufruídos d e f orma c ompartilhada. 55
Seguindo esta pista, pensamos buscar na favela a vida inscrita na
subalternidade. Subalternidade que coloca seus moradores diante de determinadas necessidades e que referencia sua experiência histórica. E Vida subalterna que não anula as possibilidades de criação humana e de recriação do espaço. E spaço s ubalternizado e r einventado n a l uta.
3.3. Solidarizar-‐se, um verbo regular, uma voz reflexiva: da experiência de vida à p rática p olítica
A ocupação do Grotão, já anteriormente referida, configurou-‐se enquanto
uma ação coletiva referenciada nas necessidades de sobrevivência colocadas e, como vimos, movida também por projetos de melhoria de vida. Na base desta 55Os
chamados bens coletivos individuais, como geladeira, televisão, ferro de passar etc só são predominantemente individuais para as classes médias e altas pois para as classes subalternas urbanas, em muitas situações, eles são usufruidos coletivamente. Na experiência na Chácara do Céu, identifiquei várias casos em que não só se compartilhavam estes bens, como também os equipamentos de infraestrutura urbana. Não foram poucas as situações em que um morador não tendo acesso à água encanada, usava a do vizinho, usando com frequência seu banheiro.
ação, encontravam-‐se experiências que apontavam para práticas também coletivas d e v iver n o e spaço u rbano.
A dimensão coletiva inscrita no movimento político pela ocupação não
nascia no momento desta luta, diante da necessidade de unir esforços para enfrentar um inimigo em comum e para produzir o espaço ocupado. Ela vinha imbricada na história de vida dos protagonistas da luta. Vinha enquanto parte integrante da experiência cotidiana subalterna no urbano. Experiência que se potencializava ao longo da mobilização, afirmando a identidade dos seus sujeitos e a pontando a p ossibilidade d e u ma c onstrução c oletiva.
Mas q ue e xperiência é e sta, f ertilizadora d a a ção p olítica?
Uma das protagonistas do Movimento Sangue Novo, ocorrido na região, e
moradora do Parque Proletário da Penha, nos sugere uma resposta a nossa questão:
Eu não sei o que é o poder, eu acho que o poder também muitas vezes sobe a cabeça, aí modifica muito as pessoas. Porque tudo eu posso... Eu acho que existe um conjunto de coisa, de pessoa...porque você sozinha também você não faz nada. Você tem que ter, ao seu redor, você vai sempre ter duas ou três pessoas que você vai poder contar... 56
O conjunto de pessoas com quem se pode contar, que estão ao redor, de
que nos fala a moradora apontam as redes de sociabilidade existentes na favela. Redes referenciadas numa experiência em comum e movidas por uma prática de solidariedade tecida no cotidiano e cujo horizonte é a própria sobrevivência no urbano. Referência que não se esgota no local e que atravessa a própria percepção q ue a m oradora t em d o p oder. com P.Penha, Movimento Sangue Novo, 1995, Movimentos Sociais -Centro de Documentação das Condições de Vida da Leopoldina, Cepel, Rio de Janeiro. A História do Movimento Sangue Novo será vista na segunda parte deste trabalho. 56Entrevista
Duas razões se colocam aqui na opção pela noção de solidariedade.
Primeiro, recuperamos seu sentido de “ser responsável por alguém”, que nos remete à dimensão subjetiva, relacional e ética inscrita na prática social à qual nos referimos. Subjetiva por referir-‐se à prática de sujeitos que agem segundo suas necessidades objetivas mas atravessados por significados por eles atribuídos a suas ações. Relacional porque tece-‐se na numa relação na qual se forja o reconhecimento do outro. Ética porque nela estão inscritos valores que referenciam a existência social dos sujeitos, e apontam as possibilidades da condição e da convivência humana. É tendo em vista estas dimensões que preferimos esta noção a outras que vêm sendo utilizadas por alguns estudiosos, como por exemplo, a ajuda mútua. Outra razão não menos fundamental é o fato de que a noção de solidariedade é usada pelos grupos os quais pesquisamos que, em suas falas, nos alertam para o fato de que ela está em e além das relações recíprocas de ajuda entre eles, constituindo-‐se mesmo em uma referência e m s uas r elações n as e spaços e xternos à f avela. 57
Assim, p ara a queles q ue v ivenciam a s ubalternidade e nquanto e xperiência
cotidiana, solidariedade não se apresenta como substantivo abstrato, ou retórica cristã. Significa mesmo a possibilidade de viver no espaço urbano, situando-‐se no caminho entre as necessidades que lhe são colocadas no dia-‐a-‐ dia e a constatação das impossibilidades de respondê-‐las individualmente. Antes de apresentar-‐se como "“essência"” própria ao espaço da favela, ela constitui-‐se numa prática social, cuja dinâmica é reatualizada em função das necessidades mais imediatas colocadas na experiência social mas também porque os sujeitos desta prática a reconhecem enquanto alternativa fundamental a seu viver. As trocas que se configuram no cuidado das crianças, no uso de mantimentos, na construção e na melhoria da casa etc são ilustrativas da sociabilidade local que se tece no espaço de vida e moradia e da experiência social dos grupos subalternos.
57A
nossa interpretação da noção de solidariedade na fala dos protagonistas das histórias pesquisadas será contemplada na parte três deste trabalho.
Solidarizar-‐se então vai constituindo-‐se numa prática fundamental à
dinâmica da favela e, uma vez que reelaborada, em alguns casos institui-‐se enquanto meio de vida de alguns de seus moradores. É a situação, por exemplo, das mulheres que tomam conta de crianças cujas mães trabalham fora, em troca de uma quantia que complementa o orçamento familiar, ou que até mesmo chega a ser sua única fonte de rendimentos, garantindo pois sua sobrevivência. Este “arranjo”, por um lado configura um meio de vida para aquelas mulheres que não estão inseridas no mercado de trabalho e, por outro, constitui-‐se como uma alternativa usada pelas mães que precisam assegurar seu emprego mas que não têm com quem deixar os filhos. 58. Se considerarmos as poucas ( ou nenhuma) creches existentes na favela, compreendemos a importância desta prática p ara a o rganização e a d inâmica i nterna d a f avela. 59
Talvez agora possamos voltar ao início e nos interrogar a respeito do
desdobramento desta prática social na luta política das comunidades. Quais as mediações do caminho que leva a solidariedade, de prática cotidiana dos grupos subalternos, a se forjar enquanto dimensão fundamental na organização e mobilização política destes grupos. Mais uma vez recorremos ao depoimento dos sujeitos desta história. Uma moradora do Grotão, que participou da ocupação desde seu início, relembra alguns impasses vividos e a luta seguinte, pela f ormação d a A ssociação d e M oradores:
58A
não inserção de muitas mulheres no mercado de trabalho muitas vêzes obdece a uma necessidade colocada no âmbito da própria família e aí respondida. Assim, nas famílias que contam com um maior número de pessoas trabalhando fora, as mulheres contribuem para renda familiar, garantindo a reprodução dos outros membros e dedicando-se à economia familiar que pode incluir atividades importantes à subsistência, como criação de alguns animais. Assim, tomar conta das crianças é um arranjo que contribui para o orçamento e, ao mesmo tempo, não implica sair do espaço de moradia, o abandono das atividades fundamentais ao cotidiano familiar. 59É
expressiva a reivindicação pela creche nas comunidades faveladas, superando algumas vêzes a luta pelo posto de saúde, e pelos serivços de infra-estrutura urbana. Em visita a uma comunidade da região da Leopoldina, pesquisadores da equipe do Cepel ouviram da Associação de Moradores que os dois maiores problemas identificados pela comunidade eram a falta d’água e a a inexistência de uma creche. O posto de saúde também inexistente, é visto como prioridade seguinte, pois a luta por ele contaria com uma maior participação da comunidade e seria legitimada, diante do poder público, pela própria existência da creche, já que esta levaria à necessidade de serviços de saúde para atender às crianças.
(...) enquanto era só a gente, a luz dava para quebrar um galho mas aí foi quando começou a chegar um, chegar outro, e começaram a puxar seus “gatos, né? Então, a gente não podia dizer para eles que não, porque a mesma necessidade que a gente se encontrava, a gente achava que eles também não podiam ficar. Só que aquela luz não servia para geladeira, não servia para televisão, não servia para rádio, não servia para nada. Aí foi quando nós começamos a partir para Associação.
A luz era percebida como uma necessidade coletiva, que se colocava para
todos, inclusive para aqueles que chegaram depois e “começaram a puxar seus ‘gatos’”. O depoimento da moradora nos sugere também que o direito destes, era reconhecido e resguardado coletivamente no âmbito da própria comunidade que ia “quebrando o galho” No momento em que o direito coletivo dos que chegavam, e também dos que lá já estavam, não podia mais ser preservado na esfera local, sob pena de prejudicar a coletividade, a luta se potencializa e a comunidade se organiza, buscando novas alternativas para conquistar um direito social que vinha sendo respondido através da sociabilidade local . A solidariedade inscrita na prática de reconhecer a necessidade do outro e resguardar seu direito, assim afirmando a coletividade, é reelaborada e extrapola a esfera local, inscrevendo-‐se na luta pelo reconhecimento da comunidade, através da formação da Associação de Moradores, e posteriormente n o e nfrentamento c om o E stado.
O que levantamos aqui enquanto interrogação é a idéia de que a
solidariedade não está confinada ao âmbito local mas pode ultrapassá-‐lo na medida em que, quando se evidencia uma situação de conflito, sua própria possibilidade de existência e reatualização implica o enfrentamento político. Na travessia entre a prática cotidiana dos grupos subalternos e a ação que se faz política, questionando a ordem e as possibilidades aí colocadas, haveria a mediação de uma situação de conflito vivida enquanto limite das possibilidades da condição e da convivência humana. Neste caso, as alternativas engendradas
para responder de forma mais imediata às necessidades colocadas confrontariam-‐se com aquilo que se entende por solidariedade, abrindo espaço à busca por respostas mediatas , saindo da esfera comunitária para localizar o conflito onde ele é produzido, na teia mais ampla da sociedade e interpelar aquele q ue s e c oloca c omo á rbitro d o c onflito, o E stado.
Considerando estas reflexões, pensamos pois que na compreensão da
dinâmica da solidariedade enquanto experiência social dos grupos subalternos é importante considerar que a resposta a uma necessidade objetiva não pode ser dissociada do significado que os agentes lhe atribuem e dos valores aí forjados. Pensar tal dissociação implicaria afirmar que apenas as necessidades objetivas são vividas. Negá-‐la nos levaria a conceber que estas são atravessadas pelos significados criados por aqueles que as vivem. E mais, que valores são também vividos referenciando a existência dos sujeitos não só no âmbito da localidade mas t ambém e m o utras e sferas d a s ociedade.
Ao nosso ver, situa-‐se aí a dimensão crítica da solidariedade. Ao deixar a
particularidade do espaço onde é forjada, ela entra em confronto com aquilo que é produzido como Universal, denunciando a dimensão individualizadora, uniformizadora e d esumana d o o rdenamento b urguês d e s ociedade.
Não pretendemos ver heroísmo romântico aonde há luta pela vida,
regular e reflexivamente . Mas talvez seja o tempo de dar autoria a quem revela a falsa humanidade de nossa sociedade e aponta as possibilidades de produção coletiva d e u ma n ova e xistência s ocial.
3.4. Sujeitos da Trama: movimentos comunitários no Complexo de Favelas da Penha
Vamos ao Complexo de Favelas da Penha, de onde de certa forma nos
afastamos para retornar com uma maior compreensão de nossas pistas e dos protagonistas d as t ramas q ue p retendemos e studar.
As ou A Trama? Sim, são diferentes tramas mas em vários momentos elas
se entrecruzam, estabelecendo uma trama maior: as lutas sociais nas comunidades do Complexo da Penha, de fins dos anos 70 a meados dos anos 80. Em linhas gerais, o período aí definido demarca a nível das comunidades a luta contra as antigas lideranças e a chamada burguesia moradora das favelas e a retomada das lutas políticas comunitárias 60. Marca, também, a nível estadual, o fim d o c lientelismo c haguista , a e mergência e a a firmação d o b rizolismo 61.
Assim, os protagonistas das tramas estudadas são, ou foram moradores
de favelas da Penha, tendo todos uma história de subalternidade e de luta na região e m esmo n a s ociedade.
Contudo, a subalternidade não é tão somente uma condição e não paira
sobre os sujeitos, transformando-‐os em objetos. Ela é um processo, vivido historicamente e experimentado no cotidiano dos grupos subalternos. Daí, a heterogeneidade de nossas pistas. A experiência de subalternidade não tornou os personagens destas histórias homogêneos. Criou identidades, sem dúvida, mas a forma como esta experiência foi e é vivida nos aponta algumas mediações que nos parecem fundamentais: a prática política fora dos canais oficiais mas também no jogo do instituído, a religiosidade, a experiência do trabalho, fora ou dentro do chamado mercado formal, as distintas vivências de jovens e velhos, de homens e mulheres e a presença geralmente mais constante destas últimas nas suas c omunidades.
Buscar algumas destas mediações e refletir sobre a forma como elas se
inscrevem nas interpretações que os personagens fazem da história, suas 60O
termo burguesia favelada é usado de forma geral para caracterizar os grupos que atuavam nas comunidades como atravessadores dos serviços de infra-estrutura urbana, como água e luz, especuladores de lotes nas favelas, chegando a acumular uma riqueza daí proveniente e a controlar a Associação de Moradores. 61Brizolismo
é usado aqui para caracterizar a prática política engendrada a partir do primeiro Governo Brizola (1982-1986). Prática marcada, em suas relações com o movimento popular, por uma política social que reconhecia as demandas deste movimento, tornando-o objeto privilegiado da política, mas que o trazia para a esfera do Estado, através da barganha política. Não é nosso objetivo investigar os desdobramentos do “brizolismo” no movimento popular mas como ele está presente nas muitas falas dos protagonistas das lutas discutidas, voltaremos a algumas reflexões sobre ele na terceira parte do trabalho.
histórias e de suas comunidades, seu trabalho, suas lutas e, é claro, suas conquistas, este é parte de nosso desafio. Para enfrentá-‐lo pretendemos seguir três p istas.
Uma das pistas nos leva a uma parte da história do Parque Proletário do
Grotão, ou simplesmente Grotão, marcada por muitas lutas, que se intercruzam com as mobilizações ocorridas em outras favelas da região, e também pela atuação de lideranças que se destacaram no âmbito do movimento popular da Leopoldina. 62
Nesta história do Grotão, uma das mobilizações mais expressiva foi a luta
travada pela posse da terra e contra a Companhia dos Armazéns Gerais, antigos proprietários do terreno que o haviam abandonado antes que a população o ocupasse. Uma luta que trouxe à cena política o movimento popular na Leopoldina, ao deflagrar a participação de outras comunidades da região e mesmo do município e do Estado. Luta que colocou o movimento em confronto com o Estado, reivindicando o direito à terra para viver e que o levou ao encontro de agentes que tinham uma atuação comunitária nas favelas da Penha, como a P astoral d e F avelas d a I greja B om J esus d a P enha.
Tendo sido ocupada em fins dos anos 70, a história da comunidade é
relativamente recente, especialmente se comparada às outras favelas do Complexo da Penha. Chamou-‐nos então atenção o fato de que algumas das conquistas do Grotão tenham se dado antes que outras comunidades mais antigas o conseguissem, como é o caso da eletrificação pela Light. Certamente a mobilização dos moradores no enfrentamento do processo de despejo contribuiu para a luta pelos serviços de infra-‐estrutura urbana e de saúde e educação. Mas um outro dado nos chama atenção: algumas destas lutas desenrolaram-‐se no período de implantação e desenvolvimento da política social do primeiro Governo Leonel Brizola e da disputa entre os partidos pelo controle do movimento popular no Rio de Janeiro. A este respeito, alguns moradores da 62As
informações a respeito de nossas pistas foram obtidas no Centro de Documentação das Condições de Vida da Leopoldina do Cepel ( ver Parte quatro - Fontes) e também nas entrevistas feitas com os integrantes do Movimento Sangue Novo.
região atuantes no movimento de favelas da época apontaram o fato de que o Grotão foi o “plano piloto” do PDT e do Governo Brizola na região e que sua principal liderança do período aproximou-‐se do “brizolismo”, tendo tornado-‐se Presidente da FAFERJ. Parece-‐nos pois que algumas lutas da comunidade desenvolveram-‐se no âmbito de disputas político-‐institucionais a nível municipal e e stadual, p rocurando p ois r everter e stas d isputas a s eu f avor.
Com base nestas reflexões, algumas interrogações nos orientam na trilha
desta pista. Voltando-‐se para os depoimento dos moradores e lideranças que participaram das lutas, interessa-‐nos investigar a forma como a percebem, bem como seus atravessamentos: as suas condições de vida, o papel da comunidade e da Associação de Moradores, a importância das lideranças comunitárias, a influência dos mediadores, como a Igreja, a visão do Estado e da relação que o movimento t em c om e le, s ão a lgumas d as q uestões q ue n orteiam n ossa l eitura.
Pensamos que a busca pela resposta a tais questões pode nos dar
indicações fundamentais ao saber histórico dos sujeitos destas lutas uma vez que na forma como percebem os movimentos está inscrita uma determinada compreensão da mudança histórica e social. Além disto, avaliamos que recuperar a história do Grotão no período referido contribui para traçarmos um pano de fundo para o trabalho como um todo, uma vez que a história destas lutas nos leva a processos, fatos , mobilizações e sujeitos sociais que nos remetem t ambém a s o utras t ramas i nvestigadas.
Uma delas, é o Sementinha Serviços Comunitários, um grupo de 12
mulheres das seis comunidades do Complexo da Penha que há quase 10 anos vêm desenvolvendo um trabalho de educação e saúde nos locais onde vivem. Trabalho que em sua origem está articulado a uma prática de assistência individual aos doentes , a uma proposta de mobilização comunitária da Pastoral de Favelas da Igreja Bom Jesus da Penha e também à própria experiência de algumas destas mulheres no tratamento com ervas medicinais e rezas. Uma aprendizado, na maior parte dos casos obtido em seus locais de origem (regiões rurais d o N ordeste e i nterior d o E stado) e (ou) c om o s p ais.
Atualmente, a ação do Sementinha ainda está voltada para a assistência
individual ( a os d oentes, e ncaminhamento d e i dosos a o b anco e d e e nfermos a os hospitais) mas junto a isso, as mulheres desenvolveram um trabalho sistematizado com ervas medicinais, formando duas hortas, e também a prestação de serviços em suas comunidades ( controle da hipertensão arterial e temperatura corporal, aplicação de injeções, retirada de pontos, curativos). Subjacente a suas atividades há uma prática de conscientização e prevenção em saúde e uma fiscalização dos serviços públicos de saúde na região com os quais elas tem um sistemático contato, como o Hospital Getúlio Vargas, o Centro Municipal d e S aúde J osé A mérico F ontenelle, o c hamado P osto X I .
Embora o eixo de atuação das mulheres seja suas comunidades, isso não
significa que estejam isoladas do mundo pois participam de cursos de capacitação, debates e palestras. Fora isso, mantém contato com o CEPEL, que acompanha o seu trabalho, e com instituições mediadoras do pequeno financiamento r ecebido p elo g rupo.
A história do Sementinha, inseparável da vida desta mulheres, nos sugere
algumas potencialidades em relação às mediações que buscamos. Configura-‐se aí um elemento de experiência religiosa que atravessa a prática comunitária do grupo, cujo desenvolvimento nos parece mais associado a esta religiosidade do que a uma inserção política. Identificamos também em suas experiências de vida e trabalho, a antes referida prática de solidariedade que nos parece um elemento fundamental ao entendimento que as mulheres têm da história do grupo. Articulada a esta solidariedade, constatamos uma especial percepção das mulheres a respeito dos problemas da comunidade em função de sua particular vivência em seus locais de moradia. Em sua maioria adultas e até idosas, elas passam grande parte do tempo em suas comunidades, exercendo suas tarefas domésticas ou seus serviços profissionais. Tal fato as torna observadoras privilegiadas dos acontecimentos ocorridos nas favelas, de sua vida cotidiana. No entanto, a comunidade não é o único local por onde circulam. O contato sistemático com profissionais de saúde nos hospitais e com o CEPEL , além da ligação com a instituição que as apoia faz com que estabeleçam relações com
um universo diferenciado. Pensamos que tal fato pode nos dar pistas importantes a respeito dos processos que marcam a produção do saber destas mulheres e a s ua s ocialização.
Por fim, a nossa outra pista nos leva a uma história diversa. O mesmo
solo, Penha. Neste caso, o Sangue Novo, um movimento comunitário ocorrido há 12 anos na Vila Cruzeiro e Parque Proletário, comunidades do Complexo da Penha. O Sangue Novo iniciou-‐se com uma luta pela entrada da Light nas duas favelas que, apesar de ocupadas há vários décadas e abrigarem a maior população favelada do Complexo da Penha, ainda contavam com um serviço de luz de baixa qualidade, cuja cobrança ficava a cargo de atravessadores, uma "comissão de luz" ligada à diretoria da Associação de Moradores do Parque Proletário. No Movimento, destaca-‐se então o embate contra a chamada burguesia favelada, sendo ele expressão também da luta pela mudança das forças políticas que dominavam as favelas na época e pelo fim do clientelismo chaguista. Em seu desenrolar, percebemos que a vitória junto a Light implicou o encaminhamento de outras lutas (como o abastecimento de água) , atividades comunitárias, especialmente na área cultural e a disputa pela Associação de Moradores d o P arque P roletário.
Algumas características no Sangue Novo são específicas. Ele foi um
movimento heterogêneo, explicitamente político, dimensão assumida em sua proposta e, diferentemente do Sementinha não sobreviveu enquanto um grupo de ação comunitária. Entre os participantes do Movimento há tanto pessoas jovens, quanto adultos e idosos, mulheres e homens, com diferentes experiências de trabalho e de vida. Entre seus líderes, havia aqueles que viviam na comunidade e outros que atuavam no local mas moravam em diferenciados lugares, b airros o u f avelas d e o utras r egiões d a c idade.
Em relação a dimensão explicitamente política, parece-‐nos fundamental a
ligação do grupo com o núcleo do PT (Partido dos Trabalhadores) que atuava em Vila Cruzeiro, sendo que alguns de seus membros participavam também do Núcleo de cultura do mesmo partido em Higienópolis, bairro vizinho à região. A
militância dos integrantes do Sangue Novo no PT trouxe uma certa especificidade ao Movimento, chegando mesmo a informar sua proposta de atuação. Em sua prática política, destaca-‐se uma ênfase dada às atividades culturais, vistas como forma de mobilização da comunidade e um interesse por parte de determinados integrantes, por questões não priorizadas pela ação política c lássica d a e squerda, c omo u m t rabalho q ue c ontemplasse a s m ulheres e crianças.
Algumas questões colocam-‐se como eixos importantes de análise da
forma como estes sujeitos sociais percebem a mudança histórica e identificam os elementos que a forjam: a compreensão do deslanchar do Movimento, a percepção de seus líderes a respeito da participação da comunidade, a diferenciada participação de diversos grupos da comunidade, especialmente das mulheres, c rianças e m oradores a ntigos.
O d esejo d e s eguir a p ista d o S angue N ovo n ão s e d á a penas e m f unção d o
interesse de compreender a percepção histórica de seus participantes, que nos parece particular, mas também frente à necessidade de, ao investigar este saber histórico, reconstruir a história de um movimento, cuja memória, ainda que viva, não e stá r egistrada.
Daí a necessidade de perseguir as pegadas de seus atores, trabalhando
predominantemente c om d epoimentos o rais. M as i sto j á é o utra h istória...
3.5. N a t rilha d o “ excepcional n ormal”: u ma p ossibilidade d e a nálise
Temos que ter dedos na academia. A academia de modo geral, ela me lembra a Academia brasileira de letras. Os caras fazem, fazem, fazem. Não devolvem, usam as pessoas como objeto. O objeto é ali, você aqui. Que nós temos todos que andar com um binóculo para perto e para longe, eu concordo. Eu concordo. Mas trabalhar com a idéia de que aquela pessoa que você está entrevistando, é um objeto de análise?! É uma fala, uma fala que vai ser analisada. Não é um objeto, é um ser humano. (...)Agora tem gente
que é diferente. Trabalham com a gente como sujeito, devolvem o que constroem, construiu. (Luiza Rocha -‐Movimento Sangue Novo)
Seguir estas pistas é algo que nos preocupa. Faz com que lembremos de
mais uma das "lições" aprendidas na pesquisa na Chácara do Céu. As questões teóricas aí levantadas nos pareciam fundamentais, porém os problemas metodológicos assumiram uma maior dimensão, certamente por causa das condições adversas à realização do trabalho, mas provavelmente, intuíamos nós, em função do vício acadêmico de pensar que consistentes teorias e boas intenções resultavam necessariamente em bons trabalhos. Daí, nossa especial inquietação com as questões metodológicas implicadas na pesquisa voltada para as c lasses s ubalternas.
O desdobramento do "vício acadêmico" de dar uma larga dimensão aos
esquemas teóricos e desprezar as questões metodológicas implicadas na investigação é bastante conhecido: um amplo diletantismo e disputas que só traduzem os limites de nossa prática de pesquisa e, especialmente, o lugar histórico-‐social d a p rodução a cadêmica e m n ossa s ociedade.
É claro que existe, usando as palavras de Ginzburg, "o excepcional
normal" e, provavelmente por isso, procuramos encontrá-‐lo, a fim de amadurecermos u ma r eflexão a r espeito d e n ossas p istas 63.
O próprio C.Ginzburg, cujos trabalhos expressam uma particular
preocupação com a questão, nos parece um caminho fértil. Em sua discussão sobre a investigação micro-‐nominal, desenvolve uma reflexão a respeito das possibilidades da pesquisa qualitativa com as classes subalternas. Destaca a questão de como selecionar casos significativos e relevantes na massa de dados disponíveis. Lembra então que o significativo nem sempre é o estatisticamente frequente:
"considerando
que
as
fontes
silenciam
e/ou
distorcem
sistematicamente a realidade das classes subalternas, um documento realmente noção de excepcional normal é usada por outro autor, Edoardo Grendi, e recuperada por Carlo Ginzburg em sua reflexão a respeito da micro-história e da investigação qualitativa com as classes subalternas (1989) 63A
excepcional, no sentido de não frequente, pode ser muito mais revelador do que mil d ocumentos e stereotipados”, " quer d izer, f uncionam c omo e spias o u i ndícios de uma realidade oculta que a documentação, de um modo geral não deixa transparecer" ( 1989, p .177).
Esta última questão vem despertando nosso interesse pois aponta um
percurso metodológico que procuramos incorporar a nossa pesquisa. Mesmo considerando a especificidade das diferenças de nossas fontes em relação aquelas utilizadas por Ginzburg, pensamos que a discussão "excepcional normal" e estatisticamente frequente, por ele trazida é fundamental ao nosso trabalho pois o estudo do saber da história das classes subalternas não é permeável a uma amostragem quantitativa. Neste sentido, o trabalho de investigação qualitativa com atores voltados para a ação comunitária, aponta um caminho sobre o qual refletimos, nos interrogando se não seria uma caso de "excepcional normal". A trajetória de líderes políticos das classes subalternas, ou mesmo de pessoas que exercem um papel significativo na organização comunitária, aparece frequentemente como a trajetória de uma minoria, uma exceção sobre a qual tradicionalmente a pesquisa social se silencia, temendo tomá-‐la como regra. Porém, embora o trabalho com os chamados estudos de caso "excepcionais" em relação às classes subalternas mereça certo cuidado, ele pode fornecer pistas fundamentais à compreensão de suas formas de percepção e dos elementos que atuam como mediadores na prática e no conhecimento por elas produzido. Talvez a pesquisa histórica e social, ao trabalhar com as suas regras, tenha se voltado insistentemente para o universal, falando da carência e do limite, do que falta , dando pouca atenção ao possível, aquilo que torna a regra uma exceção. Exceção que por não deixar de ser historicamente "normal" recoloca incessantemente a questão do universal em novos termos. Assim, pensamos que os sujeitos por nós investigados nos trazem um saber onde se inscrevem mediações que podemos considerar “normais”, ou seja comuns às classes subalternas urbanas uma vez que referenciadas pelo processo de subalternidade que marca suas vidas. Por outro lado, em suas percepções estão imbricados elementos “excepcionais”, atravessamentos que encontram
referência nas suas particulares experiência de vida e na forma como experimentam o processo de subalternidade. Encontrar algumas destas mediações que particularizam a percepção histórica de lideranças ou moradores que possuem uma expressiva atuação comunitária significaria não só compreender melhor a visão de mundo do excepcional normal mas se aproximar do processo que leva o chamado “normal” a se tornar um “excepcional”, o simples m orador, d e h istória t ão “ comum” s e t ornar u ma l iderança.
Assim, o estudo do saber histórico subalterno desenvolve-‐se aqui tendo
como base as falas de lideranças comunitárias, bem como moradores que possuem ou possuíram uma importante atuação comunitária. Contudo, no trabalho com as três tramas há uma diferenciação no que se refere às fontes disponíveis.
No caso da história das lutas do Grotão, recorremos a um conjunto de
entrevistas disponíveis no Centro de Documentação das Condições de Vida da Leopoldina do Cepel. Tais entrevistas foram feitas com lideranças da Associação de Moradores e com moradores que se destacaram por sua participação nas lutas comunitárias e abordam uma variedade de temáticas, desde a história de lutas das comunidades até os projetos sociais do Governo Municipal em relação a favela 64. Além disto, voltamo-‐nos também para os depoimentos de lideranças ou moradores de outras comunidades a respeito do Movimento Popular no período por nós tratado 65. Voltando-‐nos para este último eixo de fontes, situamos a história do Grotão no âmbito das lutas das comunidades faveladas. Ainda que considerando a particularidade do percurso desta comunidade, especialmente em relação às outras de ocupação mais antiga, pensamos que ela não deixa de ser expressão do viver subalterno no espaço urbano, traduzindo suas e xperiências d e v ida e s ua a ção p olítica. 64Tais
entrevistas integram-se ao projeto de investigação anteriormente referido “Educação, Saúde e Cidadania”, tendo sido realizadas no ano de 1987 ( ver Parte 4) 65Trata-se
aqui particularmente das entrevistas que fizemos com integrantes do Movimento Sangue Novo e também de depoimentos com lideranças de outras favelas da região que encontram-se no Centro de Documentação do Cepel.
Em relação ao Sementinha Serviços Comunitários, trabalhamos com
relatórios de reuniões entre o Cepel e o grupo, onde estão transcritos depoimentos, avaliações, comentários das mulheres sobre diversos assuntos: desde as atividades do grupo, passando pelos problemas das comunidades e os serviços de saúde na região até questões mais amplas como a situação política e econômica do país. Além disto, acompanhamos durante mais de um ano as reuniões de assessoria do Cepel ao grupo, podendo então estabelecer um contato sistemático com as mulheres 66. O perigo que se insinua aí, configurando aquilo que E.Durham chamou de participação observante (1986), nos tornou mais vigilantes em relação às nossas reflexões teóricas e metodológicas mas não nos desanimou. Os encontros sistemáticos com o Sementinha nos trouxeram mais do que este perigo pois nos deram a possibilidade de acompanhar não só comentários espontâneos das mulheres mas os recursos expressivos de suas falas, inscritos na inflexão da voz e na expressão corporal (B OSI , 1988). Tais comentários e recursos configuram os detalhes aparentemente marginais e irrelevantes, aos quais Ginzburg se refere em sua reflexão sobre o paradigma indiciário, que nos dão uma chave de acesso a contradições e significados sociais ocultos p ela o pacidade d a r ealidade. 67(1989).
Além disto, optamos pelo risco de deslizamento para "participação
observante", não por acreditar em uma ilusória neutralidade, mas porque 66
Entrevistar as mulheres do Sementinha colocou-se enquanto possibilidade para nós em alguns momentos do trabalho. Contudo, acabamos por não entrevistá-las individual e formalmente por diferentes razões: as dificuldades enfrentadas no acesso às comunidades em função da violência, problema que não impossibilita por completo nossa ida à favela mas nos torna dependentes de ocasiões e horários propícios, limitando bastante as oportunidades para as entrevistas; a pouca disponibilidade das mulheres do grupo sempre ocupadas com suas atividades de trabalho no Sementinha e também as atividades de casa; por fim, a percepção de que elas possuem uma certa resistência às entrevista, especialmente em função de suas experiências anteriores com pesquisadores, nos fez respeitar seu silêncio, e mesmo desconfiança em relação à formalidade das entrevistas, o que em absoluto limitou o diálogo com elas e a possibilidade de trabalhar com suas falas. 67
O artigo de Ginzburg a respeito do "paradigma indiciário" discute o surgimento, em fins do século XIX, de um referencial de construção do conhecimento em ciências humanas que busca ir além das dicotomias entre racional e irracional, particular e geral etc. A idéia de um método interpretativo, através do qual os detalhes aparentemente irrevelantes e marginais seriam a chave de acesso ao real, seria de Morelli, um crítico de arte do século passado, e teria seduzido diferentes pessoas como Freud e A.Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes.
avaliamos que a condição de participantes não suprimiu um dos instrumentos que julgamos favoráveis a prática de pesquisa: o estranhamento. Assim, por mais que se delineie a empatia, necessária à convivência de trabalho e à confiança para que possamos nos tornar "ouvintes" destas mulheres, o estranhamento sempre esteve presente em função dos diferentes lugares dos quais f alamos, d e o nde v iemos e a onde p roduzimos.
Por fim, na pista do Sangue Novo, tendo em vista o fato de a história do
movimento não estar registrada, tivemos e pudemos exercitar o ofício de entrevistador, trabalhando com depoimentos orais. Colocaram-‐se aí duas questões. Uma dizia respeito ao levantamento da própria história do Sangue Novo e a outra referia-‐se à investigação da percepção que os participantes dela tinham. A primeira questão nos despertava a necessidade de nos aprofundarmos mais e mais nesta história, buscando o depoimento de seus diferentes sujeitos: líderes, moradores das comunidades que participaram do movimento e até os “inimigos” n a l uta t ravada. P orém, n ão t ínhamos t empo n em c ondições d e s eguir um percurso que significaria uma outra investigação e afinal este não era nosso desafio maior. Por isso, mergulhamos na segunda questão, compreendendo que nossa prioridade não era construir a história do Movimento através das diferentes versões dos sujeitos mas investigar o saber histórico de alguns destes sujeitos, procurando identificar quais as mediações que atravessavam suas interpretações da história do Movimento e de maneira mais geral, como percebiam a m udança h istórica.
Foi tendo em vista tal avaliação que optamos por tomar o depoimento
apenas de alguns dos integrantes do Movimento mas através de longas entrevistas. Entre os entrevistados selecionados: três mulheres e dois homens, com diferentes experiências de vida e trabalho e inserções políticas, tanto por ocasião d o M ovimento, c omo a tualmente.
Face a nossa intenção de investigar as suas percepções das histórias,
optamos por entrevistas não diretivas. Compreendemos que a melhor maneira de alcançar estas percepções, era deixar os entrevistados falarem. Como
perceber os elementos que forjam as interpretações da história destes atores, senão deixar que eles falem, contem suas vidas, impressões e versões? Para nós, o principal era ouvir, atentos aos sinais que se inscreviam em suas falas, que atravessavam seus raciocínios, procurando perceber o que valorizavam ao contar suas histórias, o que deixavam de lado, o que “esqueciam”, o que repetiam i ncessantemente.
Perseguindo as três pistas, pudemos reconstruir uma trama de cada
história. Uma trama atravessada por visões às vezes dissonantes, outras nem tanto. Uma trama que contamos aqui através das falas dos seus diferentes participantes. Uma trama cujo entendimento era necessário antes que nos aventurássemos a analisar suas percepções da história. Ainda que estejamos conscientes da nossa intervenção no relato de cada uma destas tramas, na forma através da qual selecionamos depoimentos, delimitamos temas e cortes históricos, compreendemos que esta era a melhor maneira de contá-‐las, procurando ao máximo resgatar a ação dos sujeitos nas lutas e sua autoria na narrativa h istórica.
A partir da leitura das entrevistas, buscamos sistematizar as falas,
delimitamos temas e cortes históricos tendo em vista a análise que fazíamos do conjunto de percepções dos sujeitos envolvidos. Muitas vezes, algumas informações foram recorrentes, dando à versão final, uma idéia de repetição. Não foram poucos os momentos em que, em um determinado relato encontramos assuntos importantes mas que ao mesmo tempo sentimos dificuldades de cortar a fala, retirando as informações já contempladas. Uma de nossas intenções era recuperar o significado e a ênfase com que cada ator recuperava os acontecimentos, a fim de visualizar dissonâncias e concordâncias entre as diversas visões. Saímos em busca também da potencialização da forma com que cada um narrava o acontecido, destacando-‐se por um eixo analítico, dialógico o u i nformativo.
De certa forma, a reconstrução destas histórias a partir das falas de seus
protagonistas constitui-‐se num exercício. Um exercício que busca sistematizar
tais falas, de maneira que elas não apareçam somente para ilustrar uma determinada versão da história mas que anunciem outras e produzam interrogações. Para nós, as falas cujas contradições, encontros, intensidade, criticidade nos iniciam num mergulho nas histórias aqui trabalhadas, abrem múltilplas possibilidades de análise, a nós, àqueles que estão em cena, e a quem mais q uiser a nalisá-‐las.
Se, recuperando uma expressão de Luiza Rocha, é possível dizer que é
necessário usar “binóculo”. na análise social, podemos afirmar também que ele imobiliza e produz uma imagem. Neste âmbito, é a potência das falas trazidas pelos sujeitos em cena, que são seres humanos, como nos fala Luiza, que garante a p ossibilidade d e r ecuperar a d imensão i nacabada d o f azer h istórico.
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