Grupo de trabalho: GT I -Direitos humanos

October 15, 2017 | Autor: Organista Jhc | Categoria: Direitos Humanos
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Grupo de trabalho: GT I - Direitos humanos, violência e criminalização da pobreza. Título do trabalho. SUJEITOS FAUNOS OU SUJEITOS-SEM DIREITOS. Nome: JOSÉ HENRIQUE CARVALHO ORGANISTA – Dr. Ciências Sociais – Professor Adjunto de Ciência Política – Universidade Federal Fluminense – UFF-1 RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que mesmo na República-democrática encontram-se presentes elementos constituídos desde o “achamento” do Brasil que tornam “invisíveis” a violência contra o outro, o inimigo. Os chamados direitos fundamentais, mesmo acostados em nossa Carta Política, são regularmente desrespeitados, fortalecendo a relação de mando, clientelismo e favor, desta forma é possível perceber que no lugar do par – igualdade – liberdade- legitimado pela democracia liberal se reafirma bloqueando as iniciativas populares que se atrevam ir além da “rebeldia consentida”, acirrando ainda mais a carência, a exclusão e carimbando quem é ou não é sujeito-de-direito. Palavras-chave: Brasil, direitos, criminalização, inimigo RESUMEN: El presente trabajo tiene como objetivo demostrar que incluso en los elementos Repúblicademocráticos son su composición actual de "achamento" en Brasil que hacen que la violencia "invisible" contra el otro, el enemigo. Los llamados derechos fundamentales incluso albergado en nuestra Carta Política, son violados regularmente, el fortalecimiento de las relaciones de autoridad, el clientelismo y el favor, de esta manera se puede ver que, en lugar del par - igualdad - libertadlegitimado por la democracia liberal se reafirma el bloqueo de las iniciativas populares que se atreven a ir más allá de la "rebelión consensual", lo que agrava aún más la escasez, la exclusión y la estampación que está o no está sujeto a derecha. Palabras clave: Brasil, los derechos, la criminalización, enemigo

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Professor Adjunto de Ciência Política do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense – UFF-. Coordenador do Núcleo de Pesquisas em Teoria Social (NEPETS-UFF). Pesquisador Associado do Programa de Pesquisa da América Latina e Caribe (PROEALC-UERJ). Pesquisador do Núcleo de Estudos do Poder (NEPUFRJ). Editor da Revista Convergência Crítica.

INTRODUÇÃO. Normalmente vemos como pares indissociáveis os conceitos de democracia e liberalismo de forma que a existência de um parecer prescindir do outro. Fica claro nos discursos e teses sustentadas pelos ideólogos das chamadas Revoluções Burguesas a preocupação em separar democracia e liberalismo. Em síntese, o “povo”, “a massa inculta” deveria ser tutelada, controlada e, por que não dizer, “desincentivada” de participar da política, através de mecanismos censitários pautado na propriedade e na renda, formando assim uma noção não-inclusiva de cidadania. No Brasil, a relação entre democracia e liberalismo é ainda muito mais complexa. Entendida, em resumo, como estranha aos interesses da classe burguesa, posto que na Insula Brasil, ao contrário dos países europeus, a revolução “atípica” manteve intocáveis os privilégios senhoriais, a relação de mando-obediência,

o

favor,

o

clientelismo

e

o

mandonismo

como

características que singularizam nosso liberalismo como autoritário. Este modelo autoritário, como veremos adiante, tem seu construto no período colonial e se encontra plenamente vigente nos dias atuais. Importa ressaltar que para ter força e validade, ainda hoje, foi importante estabelecer uma hegemonia que caracteriza a construção do Estado-Nação a partir dos discursos transcendental e/ou secular que ressaltam ufanisticamente a natureza (clima, relevo, etc.), bem como a natureza humana gentil, cordial, afável e sem preconceitos do “povo brasileiro” em que pese o não insignificante derramamento de sangue neste Paraíso-País. Não é de se espantar, pois, que a historiografia brasileira só recentemente trate das inúmeras batalhas de resistência indígenas, tais como, a Guerra dos Bárbaros, no Rio Grande do Norte, as guerras do gentio Paiaguá (1732-1736) etc., e as lutas dos negros quilombolas e colonos como a Guerra dos Mascates (1710-1711), o motim militar na Bahia (1728), a Conjuração Mineira (1789) e o enforcamento e esquartejamento de Tiradentes, a Guerra de Canudo (‘ a 1897) no interior do estado da Bahia.

Este povo ordeiro e pacífico é capaz de cometer e/ou concordar com a prática de violência, legitimando a exclusão que conforma a sociedade brasileira numa polarização entre sujeitos-cidadãos e sujeitos-faunos/sujeitos-sem direitos, onde estes últimos são tratados como inimigos à là Carl Schmitt. 1.A CONSTRUÇÃO DE SEMIÓFORO: Deus e o diabo na Insula Brasil. No Brasil de 2014, ainda muitos acreditam no semióforo que nos define como um “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, habitado por um povo bom, pacífico e ordeiro, mas que se chamado “não foge à luta” e “nem teme quem te adora a própria morte”. Como escreveu Afonso Celso em seu livro Porque me Ufano do meu País, temos, segundo o autor, 11 motivos para a superioridade do Brasil, distribuídos entre a natureza, a história e o povo. Quanto à natureza, além de nosso imenso território, temos fauna e flora invejáveis. A nossa natureza é tão rica, diversificada e abençoada que a sua distribuição se dá “conforme as leis naturais do trabalho”, assim, “não conhecemos proletariado, nem fortunas colossais (...)nem pauperismo, pior que a escravidão(...) No Brasil, com trabalho e honestidade, conquistam-se quaisquer posições”. “Não existe pecado embaixo do equador”, posto que contrariando todos os cientistas, “o mestiço brasileiro não denota inferioridade alguma física ou intelectual”. Como poderia ser diferente? Afinal, o “achamento” do Brasil não representava o encontro do Paraíso Terrestre tão decantado no medievo e continuadas no livro História do Futuro ou Do Quinto Império do Mundo e as Esperanças de Portugal, do Padre Antônio Vieira. Entrementes, não podemos esquecer que no Paraíso “original”, além de Adão e Eva, habitava por lá a serpente que, nos ensina o evangelho, fez pecar o casal, causando-lhes a expulsão do Paraíso. Claro, não seria diferente nessa Insulla de Brasil. Por cá, neste jardim, não há apenas nós, povo pacífico e ordeiro, imagem e semelhança de Deus, há também a serpente, o mal, o diabo, enfim O outro.

Como, após exposição efusiva de nossa natureza, história e povo, pode no País-paraíso coadunar a existência de Deus e o Diabo? A resposta não é simples e opera em dois sentidos interligados: um transcendental e outro secular. Na primeira, a convivência entre Deus e o Diabo na Terra do Sol pode ser explicada pela disputa cósmica e teológica onde o homem segue a vontade de Deus afastando-se e reaproximando de Dele, neste sentido a batalha entre Deus e o Diabo irá perdurar até que Ele decida o fim dos tempos, o fim da história, onde a ordem sagrada afirmará seu poderio sobre o tempo profano e secular, enfim, contra o reino do Anticristo no juízo final. Em outras palavras, no tempo transcendental o mal deve ser combatido com e pelo evangelho levado as “nações” indígenas que aqui habitavam e, a posteriori, as “nações” negras que pra cá foram trazidas e escravizadas. Quanto a segunda, se inspira nas noções/ideias da existência de um direito natural de filiação católica-romana que se refere ao direito natural objetivo e subjetivo. O direito objetivo é oriundo diretamente de Deus. Ele é o criador de uma ordem natural que equilibra os seres hierarquicamente onde a existência de mando e obediência, comando e subordinação é previamente definido. Já o direito natural subjetivo entende o homem como ser dotado de razão, capaz de discernir entre o bem e o mal, o certo e o errado, o justo do injusto, tendo por fundamento a sociabilidade natural do homem. Justapostas estas considerações explicam a coexistência de Deus e do Diabo no Paraíso-país, haja vista que o tempo sagrado, o juízo final ainda não se consumou, bem como ao tomar como fulcro o direito natural objetivo e subjetivo temos uma hierarquia de perfeições e valores planejada por Deus e que alcança a razão e o desejo do homem enquanto ser de uma sociedade naturalizada. As nuvens que batizaram nosso “achamento”, o entrelaçamento entre o tempo sagrado e profano e entre o direito natural objetivo e subjetivo são disposições, não as únicas, que nos ajudam a decifrar a esfinge que permite obscurecer, desde o início da colonização o convívio entre pares aparentemente antagônicos, como escravidão/liberalismo, liberdade/servidão, litoral/sertão, setor agrário/industrial, moderno/atrasado ou capital/trabalho, bem como a indiferenciação entre público/privado, legal/ilegal. Sob o símbolo unificador da

Pátria Brasil formamos um povo ordeiro, pacífico, generoso e sem preconceitos, somos um só povo, uma só língua, um só território, uma só vontade. Por isto, não é de se estranhar que a cada quadra histórica o Diabo ou o mal seja incorporado por diferentes personagens – o colonizador, o negro, o sertanejo, o homem do litoral, o liberal, o comunista, o pobre, etc. -. Todos representavam/representam o inimigo a ser combatido, o outro que ameaça a nossa paz interna/externa e nossa unidade. Como diz o dito popular “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”, em outras palavras, numa sociedade que conserva fortemente a cultura senhorial, as relações sociais são verticalizadas e a(s) desigualdade(s) aparece(m) na(s) forma(s) nua(s) e crua(s) de perseguição, opressão sistemática e naturalizada que sustenta(m) todo e qualquer tipo de violência, isto é claro, desde que seja cometida contra o outro, o diferente, enfim o inimigo, jamais reconhecido como agente ou sujeito de direito. Sob o manto da cultura senhorial e do semióforo do patriotismo todas as diferenças sociais, econômicas e políticas são bloqueadas e mantidas sob controle do aparato burocrático legal, tratadas, portanto, como perigosas e inimigas da imagem construída de uma sociedade ordeira, una, pacífica e cordial. Não há perdão para aqueles que ousam desenvolver qualquer tipo de ação que tentem expor nossas contradições para além da “rebeldia consentida” e, pois, tutelada pelo Estado. Estes terão sorte se prevalecer o dito popular que, conforme citado acima, assevera: ¨ao inimigo a lei”, pois, não raro, a lei se torna uma exceção. Nada incomum para uma sociedade mediada por uma concepção quase transcendental do poder – cabe lembrar que o direito objetivo e subjetivo acima concebem a organização hierárquica de mando-obediência como emanação divina- que o favor, o clientelismo, o mandonismo, o compadrio assuma valor positivo, mantendo a indistinção entre o público e privado, tornando a relação entre governantes e governados marcada pelo privilégio e pela corrupção não somente dos fundos públicos, mas em relação a própria realização e operação dos direitos inalienáveis da pessoa humana,

transformando direito, mesmo os já consolidados em nossa Carta Política, em favor. Trata-se de um magnifico construto hegemônico que é capaz de naturalizar as diferenças e desigualdades, ocultando as tensões e as discriminações que operam no cotidiano atrelando a cidadania a luta pelos direitos humanos aos “donos do poder”. Será que alguém desconhece que muitos procuram seus representantes para solicitar favores, para conseguir remédios, internações, escola, segurança, transporte, etc.? Reparemos que estes “favores” são todos cláusulas pétreas de nossa Carta Política. Agindo assim não se reforça a relação de mandoobediência ou de clientelismo-tutela?

Não se perde com tal expediente a

situação de cidadão para assumir o “papel” de servidão? Este apelo aos representantes suprime a ideia de cidadão portador de direitos universais e reforça o amalgama entre o público e privado, demonstrando de forma clara que na democracia à brasileira não há espaço regular para além da “hora do voto” ou quando existe este é regulado e tutelado pelo Estado que trata de formata-lo, enquadra-lo juridicamente, satanizá-lo ou culpar o(s) agente(s) por sua degeneração, preguiça, perversidade, criminalizando-os, portanto. Como não se pode negar a existência extremamente visível e crescente dos less, ou seja, os sem-teto, sem-terra, sem-trabalho, sem-saúde, semsegurança o Estado ou melhor os representantes eleitos atuam como doador que ajuda manter a relação verticalizada de poder e a busca individual de favores e privilégios, dificultando, sobremaneira, ações de cariz coletivo. Todavia, esta forma de construção de consenso, alicerçada na lógica do favor e do clientelismo é limitada, não contemplando, pois, a grande maioria dos less. Para os não contemplados e que teimam em se manter presente no espaço público são considerados muito mais do que desviantes da norma, na verdade são “marginais”, “vagabundos”, “terroristas” que desejam viver acostados junto ao Estado. Logicamente não estou negando que os conflitos, as tensões e as contradições não sejam percebidas, em especial pelos agentes sociais que lutam pela expansão e garantia dos direitos humanos, o que desejo salientar é que o

simulacro do patriotismo de longa duração ajuda a bloquear e a conter as reinvindicações populares, às vezes cooptando, às vezes ressignificando e não raro, às vezes criminalizando e carimbando o outro como inimigo que sequer se deve a observância da lei, tal desideratum aparece de forma concreta na obra intitulada Teologia Política de Carl Schmitt que tratarei adiante. Se a cultura senhorial imprimi sua marca de forma contínua nas relações sociais desde o período colonial, entrelaçada com os preceitos neoliberais aumenta, de forma sem precedentes, a privatização – stricto e lato sensu- do Estado e o encolhimento do espaço público, por consequência, para melhor alcançar a ordem e o progresso faz-se necessário, deste ponto de vista, desqualificar a política e exaltar a não-política, satanizando tanto o Estado quanto os movimentos populares e sindicais. Grosso modo, o neoliberalismo pode ser definido de forma reduzida como mais Estado para o capital e menos ou ausência completa de Estado para garantias e/ou investimentos sociais aumentando o gap entre os poucos privilegiados e os muitos excluídos, tornando mais intensa e visível a desigualdade, posto que os direitos sociais passam a ser obtidos pela lógica do mercado, no limite podemos afirmar que tudo, até mesmo a vida, se transforma em mercadoria. Juntamente com o aumento do gradiente entre privilegiados e excluídos surge com intensidade a ideologia de “faça-te a si mesmo”, responsabilizando os indivíduos na corrida pela ocupação de um lugar no Olimpo. Caso não consiga chegar lá a culpa é do próprio indivíduo. O ponto fulcral da política é a autogestão para capacitar a si próprio na conquista dos bens sociais extraeconômicos, vejam, bens sociais, não mais direitos sociais. O resultado da implementação deste paradigma neoliberal é que a maioria irá ocupar o limbo na condição de sujeitos-não sujeitos, de sujeitos-sem direitos, considerados assim, não temos mais homens portadores de direitos universais, mas faunos ou sujeitos-sem-direitos, cuja ação política é desqualificada e carimbada como perigosa para manutenção da ordem. Para estes sujeitos-sem direitos, perturbadores da ordem, da harmonia e da paz interna recrudesce o imperativo da violência, mascarada sob o signo da governabilidade.

Se outrora, segundo Wanderley Guilherme dos Santos, tínhamos uma “cidadania regulada”, ou seja, uma “casta” de trabalhadores que se enquadrava dentro da ordem através da carteira de trabalho, hoje temos, sob a ótica que defendo, a partir de observações empíricas, cidadãos-sujeitos de direitos e sujeitos-sem direitos. Esta polarização leva ao extremo a hierarquização presente em nossa sociedade desde o começo de nossa colonização e mantida sob o viés assumido pela democracia-republicana-liberal, marcada por um descompromisso com a expansão/garantia dos direitos sociais, mais notadamente em relação aos direitos humanos. A existência de sujeitos-sem direitos não abala a imagem que temos de nos mesmos de uma sociedade cordial, ordeira, generosa, alegre e sem preconceitos como demostrou as pesquisas de opinião do Instituto Vox Populi, datada de 1995, encontramos também com resultados praticamente iguais no texto da pesquisadora Luci Pandofi, tendo como base pesquisa realizada pela FGV/CPDOC-ISER,2 do mesmo período, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Abaixo reproduzo alguns dados desta pesquisa. “De acordo com a nossa legislação, uma pessoa só pode ser presa em situação de flagrante delito ou por ordem do juiz. Entretanto, mais de 40% dos entrevistados afirmaram que no Brasil alguém pode ser preso por mera suspeita”. (p2) “mais de 60% da população concordam totalmente com a afirmativa “os bandidos não respeitam os direitos dos outros e por isso não devem ter seus direitos respeitados”; mais de 40% consideram “o uso de métodos violentos para a confissão de suspeitos justificável em alguns casos” e mais de 40% consideram “o linchamento de criminosos uma atitude errada, porém compreensível”.. (p.5)

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A pesquisa “Lei, justiça e cidadania” foi realizada pelo CPDOC da FGV em parceria com o Iser entre setembro de 1995 e julho de 1996. Baseada em amostra aleatória da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, foram entrevistadas 1.578 pessoas. Os resultados da pesquisa podem ser encontrados em duas publicações: Lei, justiça e cidadania: direitos, vitimização e cultura política na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, CPDOC-FGV/Iser, 1997) e Lei, justiça e cidadania: cor, religião, acesso à informação e serviços públicos (Rio de Janeiro, CPDOC-FGV/Iser, 1998) Os trechos acima foram extraídos do artigo Percepção dos Direitos e Participação, acessado em 20.07.2014 em http://www.comunidadesegura.org/files/percepcaodedireitoseparticipacaosocialdulce.pdf

Além da dificuldade de expressar seus direitos, a precariedade da nossa cidadania parece transformar os direitos em um bem escasso, em algo que só pode ser alcançado mediante determinadas condições. Podem, inclusive, tornar-se objeto de disputa entre pessoas consideradas merecedoras e não-merecedoras dos direitos. É como se os benefícios recebidos pelos nãomerecedores representassem uma privação ou um ônus para os demais membros da comunidade. Sendo assim, contra as pessoas ou grupos sociais considerados beneficiários indevidos, justificam-se medidas restritivas para reduzir os benefícios, ou seja, para reduzir os direitos. (...) Outras vezes, diante dessa situação de carência de cidadania, são determinadas qualidades morais que podem tornar as pessoas merecedoras dos direitos.(p.10) ao invés de utilizar os canais institucionais, a população acredita que o acesso direto às autoridades, apelando-se inclusive para a sua boa vontade, pode ser o melhor caminho para a obtenção dos direitos (p.10) No que diz respeito à polícia, a visão também é bastante negativa(...) entre aqueles que foram vitimados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, quer tenha sido por falta de confiança, quer por medo de represália, apenas uma minoria de 20% recorreu à polícia. Entretanto, se a população não confia na instituição para resolver seus problemas, essa confiança parece aumentar quando se trata de combater a violência, combater a criminalidade. ( p.12) Sessenta e três por cento da população concorda que quanto maior a presença de policiais na rua, menor a criminalidade. (...) justifica-se, também, que a polícia use métodos violentos para obter a confissão de culpados. Ou seja, as pessoas não confiam na polícia, mas atribuem a ela responsabilidades como o combate à criminalidade e, mais do que isso, atribuem a ela poderes discricionários, inclusive atribuições que violam os direitos humanos, como é o caso do uso de métodos violentos para obter confissão de culpados. (p.12)

Dos excertos acima podemos concluir que a violência é uma marca indelével da sociedade brasileira, logicamente, desde que cometida contra outrem, em especial contra aqueles que recebem o carimbo de inimigo. Afinal, “bandido bom é bandido morto”. Todavia, nem sempre fica claro de que bandido falamos, hoje ele pode ser quem comete latrocínio, estrupo, assalto, amanhã poderão ser os sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, o estrangeiro, o nordestino,

o “afrodescendente” ou simplesmente aquele que “numa balada mexeu com alguém comprometido(a), a qualificação de inimigo irá depender de quem assim o condicionar, podendo ser a polícia, o tráfico, a milícia ou o poder judiciário. É inconteste que a cada dia ouvimos clamores por maior segurança e que a cada eleição este tema se destaca nas pesquisas como de alto nível de preocupação por parte do eleitorado. Pedimos mais polícia, penas mais duras e concordamos, conforme demonstra a pesquisa acima citada, com a violação dos direitos humanos, repito, desde que seja do outro. Os clamores por mais segurança e penas mais duras não ecoam no vazio. Estes sustentam e são sustentadas por discursos concatenados por políticos, apresentadores de programas policiais e pelo poder judiciário de que nem todos são igualmente portadores de direitos, abrindo assim uma verdadeira guerra contra o inimigo do dia. Como num Estado Democrático de Direito não pode coadunar incertezas na aplicação da lei e no processo jurídico, muitos tem resgatado o princípio argumentativo de Carl Schmitt de “Estado de Exceção”. Vinculado incialmente à crítica da Constituição da República de Weimar que, segundo Schmitt, tenta organizar sua carta através de um pluralismo político inadequado ao “decisionismo” no enfrentamento do outro. Assim, entende que a Constituição de Weimar, configura-se de procedimentos dilatórios que obstam a necessária ordenação “natural” entre amigos e inimigos. 2.CONSIDERAÇÕES FINAIS. Não me parece absurdo colocar o fatídico dia de onze de setembro de 2001, como a data que inaugura ou deixa mais transparente mundialmente o Direito de Exceção. Após o episódio do ataque ao World Trade Center e ao prédio do Pentágono, o congresso dos Estados Unidos aprova uma Lei de exceção que autoriza o governo americano a vigiar, prender e caçar em qualquer parte do mundo aqueles considerados suspeitos3. Incrementa-se uma guerra interna e externa contra o inimigo, mesmo que latente, tendo por consequência o encerramento dos direitos civis e humanos para garantir a segurança pública. 3

O U. S. Patriot Act ( Ato Patriótico ) foi aprovado por 98 votos contra 1 no Senado e 357 a 66 na Câmara dos Deputados, em outubro de 2001 e renovada em março de 2006.

A política americana contra o terror reforçou o caráter punitivo do Estado por todo o globo, marcando um processo de internacionalização do “autoritarismo democrata”4 como resposta ao surgimento de novas exclusões oriundas do Consenso de Washington”. A “guerra contra o terror” não é mais que um simulacro, haja vista seu deslocamento para questões internas em que o inimigo passa a ser todos e quaisquer indivíduo, instituição e/ou movimento social –novos e antigos – que coloquem ou possam vir a colocar em questão o desenvolvimento capitalista excludente vigente desde o fim do Estado de Bem-Estar Social. A produção de uma “estética do medo” se faz necessária para sustentar os argumentos que dão base para que ações extralegais que justifiquem a supressão ou eliminação do outro, do inimigo. De acordo com Bauman ( 2008, p. 10), “as reações defensivas ou agressivas resultantes, destinadas a mitigar o medo, podem ser dirigidas para longe dos perigos realmente responsáveis pela suspeita da insegurança”. Em outras palavras, o medo é disseminado de forma a fortalecer ações antidemocráticas que jogam um véu sobre o desinvestimento do Estado nas questões sociais e faz ampliar o Estado Penal. O Estado penal ou Direito do inimigo se caracteriza pela desproporcionalidade das penas através do recrudescimento do código de execução penal, tornando ainda mais seletivo e autoritário no caso brasileiro, posto que se soma a desigualdade historicamente mantida onde a prática autoritária, a hierarquia, o clientelismo, o mandonismo e o “favor” são constituintes e constituídos de nosso semióforo Paraíso-País5. De acordo com Souza (2003) Neste início de milênio, quase todas as esferas da vida social, íntimas ou públicas, foram investidas e pensadas 4

Assim como o capital se mundializou, tornando a exploração do trabalho mais complexificada, também o fez o Direito. Neste sentido, é esclarecedora a carta de Engels a Conrad Schmidt, que versa sobre a relação entre direito e economia. Nela esclarece o autor que não existe em Marx uma determinação monolítica das condições materiais sobre as demais atividades, esvaziando estas e tornando-as sem valor. O que acontece é “que a nova divisão do trabalho se torna necessária e leva o surgimento de juristas profissionais, abre-se por sua vez um domínio autônomo que, embora dependente, de maneira geral, da produção e do comércio, possui também certa capacidade particular de reagir contra aqueles domínios” (Marx & Engels. Obras escolhidas. São Paulo. Alfa-Ômega, s.d, volume 3). 5

“deslegitimação das instituições legais e judiciárias, a escalada dos abusos policiais, a criminalização dos pobres, o crescimento significativo da defesa das práticas ilegais de repressão, a obstrução generalizada ao princípio da legalidade e a distribuição desigual e não equitativa dos direitos do cidadão” (Wacquant, 2001, p. 12).

tendo como foco as questões de segurança. Ela está na ordem do dia em termos das preocupações de qualquer cidade, em qualquer quadrante do mundo. Mesmo em países como o Brasil, nos quais a pobreza e o desemprego pesquisas

de

assumem opinião

dimensões têm

alarmantes,

apontado

a

as

crescente

preocupação das pessoas com a violência e com o crime. A segurança tem eclipsado outras mazelas sociais urgentes do país. Os resultados dessa obsessão securitária estão expressos claramente no aumento dos contingentes policiais, no crescimento da população carcerária, na maior sofisticação dos equipamentos eletrônicos, numa ampliação dos poderes dos órgãos de controle e na disseminação de mecanismos de vigilância (Souza, 2003, p. 164). (Grifos meus).

Se na década de 19[80] em plena pujança do neoliberalismo a justificativa para as privatizações e flexibilização do Direito do Trabalho era a de que o Estado deveria investir em saúde e educação, na atual quadra histórica por conta do efeito colateral desastroso da implementação do ideário neoliberal, a insegurança, o aumento da criminalidade, da pobreza, o surgimento recente dos Black Bloc, não são vistos como consequência, mas como fomentadores do medo que, em última instância, pede “uma

resposta pronta e imediata, que deve durar enquanto o estado emergencial perdure” (Beck, 2004, p. 95)6. É inconteste que os “efeitos colaterais” concernentes à aplicação do receituário neoliberal fez aumentar o encarceramento e anulação política e social do enorme contingente marginalizados neste processo. Assim, a justiça social se mantém como discurso e meta, cuja gestão passa ser do Direito Penal. Segundo Garland (2008) O crime foi redramatizado. A imagem aceita, própria da época do bem-estar, do delinquente como um sujeito necessitado, desfavorecido, agora desapareceu. Em vez disto, as imagens modificadas para acompanhar a nova legislação tendem a ser esboços 6

Em conformidade com a pesquisa de FRADE (2007) sobre projetos, no poder legislativo, de cariz criminal, em quatro (4) anos foram apresentados 646 projetos de lei sobre criminalidade. Destes, vinte tinham como matéria o relaxamento da pena, sendo, portanto, 626 destinados a agravar penas e restrições.

estereotipados de jovens rebeldes, de predadores perigosos e de criminosos incuravelmente reincidentes, acompanhando estas imagens projetadas, e em reação retórica a elas, o novo discurso da política criminal insistentemente invoca a revolta do público, cansado de viver com medo, que exige medidas fortes de punição e de proteção. O mote aparente da política é agora mais a revolta coletiva e o justo reclamo por retribuição do que um compromisso com a construção de soluções sociais justas (GARLAND, 2008, p. 54). (Grifos meus).

Esta imagem modificada, sugere a construção dos “estereotipados” como o outro, o inimigo cuja norma e a lei não se aplicam, posto que aqueles se desviam frequentemente destas. Nesta linha, vaticina, Jakobs ser necessário apreender o direito para o cidadão e o direito para o inimigo, não importando o fato, mas o autor do “delito”. Desta maneira, ainda conforme Jakobs em momentos que não se encontra qualquer garantia de condutas pessoais mínimas na ordem vigente, é justo despersonalizá-las, tornando-as nãopessoas, excluindo, pois, os direitos normativos por elas pretendidos. Seria ilegítimo com os direitos das pessoas. Para as não-pessoas não se visa um reparo aos danos causados, mas a eliminação de um perigo. Este mecanismo de hierarquização de valores ou a separação entre direito do cidadão e direito do inimigo não é estranho a nossa sociedade. Longe disto. O problema é que sua dimensão se torna ainda mais grave numa sociedade fortemente desigual, fortalecendo a relação de mando-obediência, clientelismo e mandonismo em que os representantes eleitos mais representam o Estado do que os cidadãos, fomentando uma individuação que ressignifica vícios e virtudes. Se a luta pelos direitos humanos por víeis parlamentar é restrita, por outro lado, a ocupação do espaço público é criminalizada e seus atores carimbados como “baderneiros”, “desordeiros” ou “vândalos”. Entendo, pois, que a luta por direitos humanos desindividualiza e sustenta a universalização do homem, não no sentido burguês, mas, sim, no marxiano, ou seja, o homem enquanto ser genérico, posto que descortina a simbiose entre aspectos democráticos e autoritários presentes na contemporaneidade. Neste sentido, faz-se necessário a construção de uma contra-hegemonia em busca

da politização da arena pública que desembarace as intrincadas teias tecidas pela estrutura e superestrutura que fez possível a existência de faunos ou de sujeitos-sem-direitos. Tarefa árdua, principalmente se prevalecer o diletantismo pedante que não nos deixa enxergar as contradições e os anacronismos no concreto vivido em que reproduzimos quase bestialmente: “bandido bom é bandido morto” ou “farinha pouca, meu pirão primeiro”. BIBLIOGRAFIFA AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. de Iraci Poleti, São Paulo: Boitempo, 2004. _______________, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo, Belo Horizonte: Editora UFMG, 200 BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. DE GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006. (Coleção Pensamento Criminológico). BATISTA, Vera Malaguti. Autoritarismo e controle social no Brasil – Memória e medo. Revista Sem Terra, São Paulo, n. 10, p. 80-84, 2001. BAPTISTA, Isabelle de. A desconstrução da técnica da ponderação aplicável aos direitos fundamentais, proposto por Robert Alexy: Uma reflexão a partir da filosofia de Jacques Derrida in Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, nº 4, vol. 77, ano XXVIII, out-nov-dez. 2010. Belo Horizonte: Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, 2010. BAVA, Sílvio Caccia. As muitas violências. In Editorial do Le Monde diplomatique. Brasil. Agosto de 2010. BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle ao crime organizado e críticas à flexibilização de garantias. São Paulo: IBCCRIM, 2004. CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp e Ed. 34, 2000. FRADE, Laura. O que o Congresso Nacional brasileiro pensa sobre a criminalidade. Tese (Doutorado) – Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília (UnB), 2007. DORNELLES, J. R. Conflito e segurança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. GARLAND, D. As contradições da ‘sociedade punitiva’. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 13, p. 59-80, nov. 1999. GROSSO GARCÍA, Manuel Salvador. “¿Qué es y qué puede ser el “Derecho penal del enemigo?” una aproximación crítica al concepto”. In Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión. (Cancio Meliá e Gómez-Jara Díez –coord.) Vol. 2. Buenos Aires: BdeF, 2006. HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.

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