Grupos étnicos e suas fronteiras - um esboço

July 11, 2017 | Autor: Nilmar Bar | Categoria: Sociologia, Antropologia
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Grupos étnicos e suas fronteiras. Um esboço – Nilmar A. Barcelos *

Fredrik Barth (1997) explica que se o termo “cultura” é somente um meio para classificar/descrever os diversos comportamentos dos homens, subentende-se a existência de grupos humanos e, portanto, etnias correspondentes a cada tipo de cultura. A fim de evitar tal problema, os antropólogos sociais ignoraram tais unidades étnicas em suas características próprias e fronteiras para enquadrarem-nas num sistema social englobante, a “sociedade”, dentro da qual tais grupos menores poderiam ser analisados. O autor afirma que mesmo sendo claro que as fronteiras entre tais grupos étnicos permaneçam ilesas e intactas ao fluxo de diferentes pessoas que as atravessam, revelando que as categorias étnicas continuam a existir mesmo com mobilidade, contato e informação entre os povos, ainda persiste a visão reducionista/simplista de que tal diversidade cultural só sustenta-se primordialmente por meio do isolamento geográfico e social. Contrariamente a bibliografia antropológica, que define os grupos étnicos como decorrentes do isolamento – seja esse por motivos de diferença racial, cultural, social, lingüística ou até mesmo hostilidade espontânea e organizada, vivendo então como ilhas –, Barth (1997) explica que tais grupos seriam organizadores das interações entre as pessoas, já que se tratam primordialmente de categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores envolvidos. A cultura material compartilhada por determinado grupo étnico, embora importante, seria apenas uma conseqüência e não uma característica essencial/primária que possa defini-lo como tal. Grupos étnicos, portanto, não são meros “suportes” culturais que podem ser definidos por traços morfológicos, mas, antes, devem ser compreendidos através de sua dinâmica interna e organização étnica. Tais formas culturais manifestas (cultura material) de dada etnia são determinadas de acordo com * Centro de estudos afro-orientais, Universidade Federal da Bahia [[email protected]].

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a ecologia na qual essa se encontra acomodada e também através da cultura transmitida, podendo variar muito em um mesmo grupo sem, necessariamente, levá-lo a uma subdivisão. Assim, grupos étnicos seriam formas de organização social no qual seus membros se auto-atribuem e são atribuídos por outros como pertencentes a determinada categoria étnica, ou seja, se vêem e são vistos através da interação com o “outro” como portadores de tal identidade – julgando e sendo julgados através dos valores morais que essa representa para o seu grupo e para os outros. “As características que são levadas em consideração não são a soma das diferenças ‘objetivas’, mas somente aquelas que os próprios atores consideram significantes” (Barth, 1997: 194). Embora as características culturais dos membros de um grupo étnico e os traços culturais que demarcam as fronteiras do mesmo possam mudar com o tempo, a dicotomização entre membros e nãomembros é contínua – o que contribui na busca de compreensão sobre tais transformações culturais. “Pouco importa quão dessemelhantes possam ser os membros em seus comportamentos manifestos (...)” (Barth, 1997: 195). Nesse sentido, deve-se ficar atento às fronteiras étnicas (embora essas muitas vezes abranjam territórios), que canalizam em si a complexa organização das relações sociais e comportamentais dos diversos grupos, e não a matéria cultural que delas faz parte. É nas fronteiras que os grupos compreendem-se como diferentes, através de critérios de valor, julgamento e ação, criando assim dicotomizações entre si a fim de estabelecer diferenças culturais persistentes. São os próprios membros dos grupos que atuam como “fiscalizadores” das normas e sanções típicas a cada etnia e que permitem estabelecer as dicotomias e fronteiras entre essas. Disso, o autor explica que são criados espécies de “contratos interétnicos” com a finalidade de prescrever-se regras limitadoras de contato entre tais grupos. “Se os indivíduos concordam com tais prescrições, sua concordância com códigos de valores não precisa estender-se para além do que é pertinente para situações sociais nas quais interagem” (Barth, 1997: 197). As relações interétnicas sofrem maior restrição conforme maiores forem as diferenças valorativas entre as etnias. Utilizando-se do conceito desenvolvido por Furnival (1944), o autor explica que a “sociedade plural” seria uma sociedade poliétnica, enquadrada em determinado espaço mercantil, na qual um dos grupos teria o domínio do controle estatal, embora deixando amplos espaços de diversidade cultural nos setores de atividade doméstica e religiosa. Assim, Barth (1997) considera desinteressante condensar esses diversos grupos sob a simplista etiqueta homogeneizadora de sociedade “plural”, O princípio de que a identidade étnica implica uma série de restrições sobre os tipos de papéis que um indivíduo pode desempenhar, e sobre parceiros que ele pode escolher para diferentes tipos de transações, é comum a todos esses sistemas. Melhor dizendo, considerada estatuto, a identidade étnica domina a maioria dos outros estatutos e define as constelações de estatutos ou personalidades sociais que um indivíduo com aquela identidade pode assumir (Barth, 1997: 198).

Em alguns casos em que o grau de coação étnica é mais flexível, tais contatos interétnicos podem sucumbir num vínculo positivo de complementaridade setorial entre grupos dicotomizados pertencentes

a um mesmo sistema social englobante, dando origem ao que o autor classifica como “interdependência” ou “simbiose” – dada tal relação, a variação demográfica de um dos grupos provavelmente acarretará em sérios problemas sobre o outro, podendo gerar estabilidades em tal sistema poliétnico. As fronteiras étnicas persistem imutáveis e muito claras, mas o material humano organizado em um grupo étnico não. “(...) As relações interétnicas que frequentemente observamos implicam uma multiplicidade de processos cujo efeito transforma a identidade individual e grupal e modifica os outros fatores demográficos que prevalecem na situação” (Barth, 1997: 204). Como já dito nos processos de interdependência étnica, as identidades podem ser mutáveis conforme a situação política, social e econômica na qual se encontram. Um exemplo dado pelo autor é o caso estudado por Haaland, no qual os membros do grupo fur, do Sudão, praticantes da agricultura com enxada, tornam-se nômades árabes, identidade típica de seus vizinhos baggaras – tal processo seria derivado de situações econômicas. (...) Existem circunstâncias em que uma tal identidade pode ser realizada com moderado sucesso e limites para além dos quais tal sucesso é impraticável. Meu argumento é que as identidades étnicas não serão mantidas para além desses limites porque o alinhamento a padrões valorativos básicos não poderá sustentar-se onde nosso próprio desempenho, por comparação, é totalmente inadequado (Barth, 1997: 209).

Deste modo, ocorrerão variações entre os membros, alguns deles manifestando muitas características e outros, poucas. Particularmente quando as pessoas mudam sua identidade, tal fato cria ambigüidade, uma vez que a pertença étnica é, ao mesmo tempo, uma questão de origem, assim como de identidade corrente (...) Estou interessado, em primeiro lugar, em mostrar como, sob circunstâncias várias, determinadas constelações de categorização e de orientação valorativa têm um caráter auto-suficiente, e como outras tenderão a ser falsificadas pela experiência, e como outras ainda são incapazes de realizar-se na interação (Barth, 1997: 214-215).

Devido a dependência de produtos e instituições das sociedades industriais em todo o mundo, o contato cultural e as posteriores mudanças tornam-se processos habituais em tal contexto moderno,

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Assim, o que é realmente importante é saber quais identidades e padrões alternativos o indivíduo tem a sua disposição e quão bem os “outros”, seu referencial, realizam sua ação. A estratificação e a desigualdade tornam-se parte do sistema poliétnico na medida em que um grupo étnico tem controle absoluto sobre os meios de produção também utilizados por outros grupos, embora um sistema de estratificação, por exemplo, não necessite necessariamente da presença de grupos étnicos em seu corpo (o fator classe social é um elemento mais fundamental na ordenação de hierarquias). A falência moderada do setor A pode torná-lo B em tal hierarquia. Já os grupos étnicos são fechados a tal mobilidade: o fato de um galla tornar-se governador não o torna um amhara, ou seja, independente do cargo e/ou da riqueza obtidos ele permanecerá com os estigmas típicos de sua casta (sua identidade).

uma vez que tais agentes de mudança em grupos menos industrializados desejam participar de sistemas sociais globais (através da falsificação da identidade, por exemplo) a fim de obterem novas formas de valor. Atualmente, tais grupos estão muito atrelados na política e economia, não perdendo em nada seu caráter étnico, mas formando sistemas poliétnicos provavelmente mais turbulentos e instáveis do que as antigas formas. Estas variações têm suas origens no novo ambiente, de administração burocrática, urbanização progressiva e comunicação muito desenvolvida. Nas palavras do próprio autor: Os elementos da cultura presente de um grupo étnico não surgem do conjunto particular que constituiu a cultura do grupo em um período anterior, embora o grupo tenha uma existência organizacional contínua, com fronteiras (critérios de presença) que, apesar das modificações, nunca deixaram de delimitar uma unidade contínua (Barth, 1997: 227).

Nilmar A. Barcelos

Referências bibliográficas

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Barth, Fredrik (1997). “Grupos étnicos e suas fronteiras”, in Poutignat, Philippe e Streiff-Fenart, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP.

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