Guarda-chuva e máquina de costura farão amor em Fânzeres (Fânzeres 1)

September 27, 2017 | Autor: Nuno Travasso | Categoria: Urban Planning, Urban Studies, Urban Design
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Guarda-chuva e máquina de costura farão amor em Fânzeres Nuno Travasso F.A.U.P. – Fânzeres Analysis by Urban Photoshopping @ L.Q.F.U.B. A Realidade e Outras Ficções – Trienal de Arquitectura de Lisboa

“J’ai des morceaux de puzzle, seulement des morceaux: le tableau tout entier, c’est un des aspects du mensonge et de la bêtise contemporaine.” Jacques Prevert1

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Jacques Prevert. Fotografia de Robert Doisneau

“Procure sr. Cabral do Nascimento ter sempre este facto presente, que não saiba que o tem presente – que uma obra de arte, por dispersa que seja a sua realização detalhada, deve ser sempre uma coisa una e orgânica, em que cada parte é essencial tanto ao todo, como às outras que lhe são anexas, e em que o todo existe sinteticamente em cada uma das partes, e na ligação dessas partes umas às outras. Compreenda isto até à inconsciência. Sinta isto até não o sentir. E, sentido e compreendido, isto até com o corpo, despreze todo o resto. Salte por cima de todas as lógicas. Rasgue e queime todas as gramáticas. Reduza a pó todas as coerências, todas as decências e todas as convicções. Feita sua aquela, a única regra da arte, pode desvairar à vontade, que nunca desvairará; pode exceder-se, que nunca poderá exceder-se; pode dar ao seu espírito todas as liberdades, que ele nunca tomará a de o tornar um mau poeta. O resto é a literatura portuguesa.” 1

Gosto de citar citações. Esta é de Fernando Pessoa, citado por Manuel Mendes que nos recorda que o texto foi copiado por Fernando Távora, impresso na face áspera de papéis comuns de cartuxo e distribuído na Escola, para lembrar os princípios fundamentais que devem guiar o lápis (e o olhar) do arquitecto: coerência, unidade e síntese; estrutura assente na clara e equilibrada relação entre as partes; atenção e devoção à tradição das constantes. Os mesmos princípios estenderam-se ao desenho da coisa urbana; num discurso que (pelo menos desde Alberti) nos ensinou a cidade como projecto de casa em ponto grande2; visão comprovada pela multiplicação dos momentos de excepção em que a utopia do génio, o poder do déspota, o despotismo dos poderosos, ou a celebração da reinvenção das nações, tornou possível o

Filarete – "A descrição da Cidade de Sforzinda" em Tratado de Arquitectura de Filarete, c.1464. in: BENEVOLO, Leonardo; et al. – Principii e Forme della Città. Milano: Libri Scheiwiller, 1993.

desenho total de cidades, ou fragmentos de cidades, umas apenas em papel, outras construídas, e – tantas vezes – logo subvertidas: Mileto, Timgad, Dubrovnik, Grenade-sur-Garonne, Sforzinda, Palmanova, Savannah, Baixa Pombalina, Washington, Manhattan, Barcelona, Plan Voisin, Chandigarh, Brasília,… Fânzeres não é fruto de um momento de excepção. Fânzeres é a regra, tal como 99% da área urbanizada do nosso país, e dos países dos outros. Fânzeres não é coisa una e orgânica. As partes não se relacionam entre si segundo uma lógica clara ou coerente. As partes não se relacionam com o todo, porque não há ali um todo reconhecível ou delimitável. Se for composição, é da ordem da collage: sobreposição de tempos e modos de vida;

sucessão de fragmentos de cidades ideais díspares; justaposição de reconhecíveis fragmentos de sonhos inconciliáveis; citações de citações de citações. Collage na imagem, mas também no processo de produção dessa imagem: soma de peças autónomas com lógicas próprias e origens distintas que não (per)seguem nenhuma ideia de conjunto previamente delineada. Peças propostas e construídas por diferentes promotores; com diferentes motivações; que respondem a diferentes dinâmicas sociais, económicas e políticas; e que repetem diferentes modelos; destinados a diferentes clientes, utilizadores ou habitantes; com diferentes necessidades, diferentes anseios e diferentes bolsas. Collage, portanto, enquanto mecanismo de sucessiva adição de entidades autónomas, preexistentes e aparentemente inconciliáveis,

Hannah Höch - Cut with the Kitchen Knife through the Beer-Belly of the Weimar Republic, 1919.

associadas numa composição a cujas lógicas são, originalmente, estranhas.3 Não há uma imagem predefinida a reproduzir; não há um fim a atingir. O resultado é aberto e redefine-se no seu conjunto a cada nova peça. E por isso, nunca está terminado, tal como nunca está incompleto. Reconhecer este processo de produção da coisa urbana corrente – aceitar a impossibilidade do todo – obriga à invenção de novas fórmulas de planeamento e gestão que não partam já de uma ideia de unidade, enquanto base da criação ou critério da análise e avaliação. Não é aqui possível (ou pelo menos redunda em constante fracasso e frustração) nem uma acção aglutinadora que procure determinar todo um sistema que não se conhece ou domina; nem a implantação de modelos globalizantes que pretendam trazer uma nova racionalidade a

um sistema vasto cujas lógicas próprias se manterão sempre dominantes. As novas fórmulas terão de desenvolver mecanismos de articulação-alteraçãodeformação-promoção das diferentes peças que vão aparecendo, em busca de novos nexos de inteligibilidade, capazes de guiar a percepção e o percurso, o uso e a apropriação, de sistemas complexos sem centro ou limites. E estes nexos não podem ser fruto de modelos abstractos, ou fragmentos de novas cidades ideais. Terão de ser respigados da paisagem urbana existente, pela observação atenta: base para o reconhecimentoinvenção-construção de uma nova realidade compreensível e (por que não, caramba) bela, seja lá isso o que for.

Epílogo Citando, apropriando, ampliando, a famosa frase de Lautréamont4 – antes recuperada e celebrada por André Breton e Man Ray – Max Ernst descreve o mecanismo da collage: “Uma realidade acabada cujo ingénuo destino parece ter sido fixado de uma vez para sempre (um guardachuva), encontrando-se subitamente na presença de uma outra realidade muito distante e não menos absurda (uma máquina de costura), num lugar onde ambas se devem sentir deslocadas (sobre uma mesa de dissecação), escapará por isso mesmo ao seu ingénuo destino e à sua identidade; ela passará de seu falso absoluto, por uma série de valores relativos, a um absoluto novo, verdadeiro e poético: guarda-chuva e máquina de costura farão amor.”5

1. MENDES, Manuel (2012) – “Fernando Távora, o meu caso: Parte I convivências afloramentos afagamentos.” in BANDEIRINHA, José António – Fernando Távora: Modernidade Permanente. Guimarães: Associação Casa da Arquitectura, 2012; p.68. 2. “Ora se a cidade é, na opinião dos filósofos, uma casa em ponto garnde e, inversamente, a casa é uma cidade em ponto pequeno […]” (ALBERTI, Leon Battista (1485) – Da Arte Edificatória. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011 p.170.) 3. Max Ernst descreve o mecanismo da collage enquanto “acoplamento de duas realidades aparentemente inacopláveis sobre um plano que não lhes convém” (ERNST, Max (1936). Qual é o mecanismo da colagem? in CHIPP, Herschel. Teorias da Arte Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1996; p.432.) 4. “Il est beau [...] comme la rencontre fortuite sur une table de dissection d'une machine à coudre et d'un parapluie!” LAUTRÉAMONT, Comte de (Isidore Ducasse) (1869) – Les Chants de Maldoror. Paris/Bruxelas: Typ. De E. Wittman, 1874 ; Chant VI, §I, p.289-290 5. ERNST, Max; Op. cit.. p. 432.

Des-collage Analítica Em busca do reconhecimento de princípios existentes que se possam estabelecer como base para a produção ou revelação de novos nexos de inteligibilidade, propõe-se uma análise por subtracção. Procura-se reconhecer os diferentes elementos e formas de associação, evidenciar relações, identificar estruturas. Um princípio.

D1. Base da análise: ortofotomapa de Fânzeres (GoogleMaps). D2. Áreas verdes em contacto directo com a rede hídrica identificada na carta da REN. D3. Outras áreas verdes. D4. Estrutura resultante da subtracção das áreas verdes e das peças urbanas autonomizáveis. D5. Peças urbanas autonomizáveis subtraídas, organizadas por tipologia.

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