Guerra e Democracia na Amazônia: um estudo sociológico da participação política de grupos indígenas no contexto da governação ambiental do Estado brasileiro.

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XVII Congresso Brasileiro de Sociologia 20 a 23 de Julho de 2015, Porto Alegre (RS)

Grupo de Trabalho: GT04 – Conflitos socioambientais Guerra e Democracia na Amazônia: um estudo sociológico da participação política de grupos indígenas no contexto da governação ambiental do Estado brasileiro.

Rafael Gomes de Sousa da Costa Universidade de Coimbra

1

Introdução: instituições, modos de existência e democracia. Este texto trata-se de uma investigação em curso sobre os dilemas e aporias da democracia moderna na Amazônia. Mais especificamente, busco refletir sobre as possibilidades da participação democrática de grupos étnicos no contexto das políticas ambientais e de desenvolvimento do Estado brasileiro para a região. Numa abordagem inicial do tema, a partir da verificação dos antagonismos e contradições presente nesta relação – de um lado, as populações indígenas impactadas por projetos de desenvolvimento e suas economias políticas estruturadas sobre sistemas simbólicos tradicionais e locais; de outro lado, os aparatos governamentais das políticas ambientais do Estado que, através de um marco global de participação civil, visa “empoderar” as instituições indígenas para o acompanhamento dos programas ambientais –, tal discussão poderia estar inserida numa proposta de pesquisa estritamente antropológica que, a exemplo de Gregory (1982), retomaria certos contrastes clássicos entre as sociedades primitivas e a sociedade capitalista moderna, como, por exemplo, o dom versus a mercadoria, para, agora, diferenciarmos as formas de organização política e de poder de sociedades contra o estado (cf. Clastres, 2003) versus a democracia ocidental e suas formas de organização política sustentadas pela sociedade civil. No entanto, qual seria a repercussão de tal oposição no contexto da discussão sobre as pretensões de “legitimidade” da participação política de indivíduos e coletividades no interior das relações determinadas pelo Estado nacional e pela liberal democracia (cf. Cohen, 1996; Benhabid, 1996)1? Para que não caiamos nas garras daqueles que reduzem os embates democráticos às pressuposições da racionalidade, num reducionismo acrítico às acepções de legitimidade representativa das instituições liberal-democráticas, é preciso cautela nas análises que contrastem a originalidade das ações de grupos étnicos e/ou religiosos, em oposição à inquestionável legitimidade da ordem social – ainda que o problema aqui posto atravesse essa questão. Nesse contexto, o receio para tal análise de contrastes surge, precisamente, de outra precaução: a busca por não Joshua Cohen, por exemplo, já argumentou que: “[t]he fundamental idea of democratic legitimacy is that the authorization to exercise state power must arise from the collective decisions of the members of a society who are governed by that power” (1996: 95) 1

2

fortalecer os recentes posicionamentos austeros dos gestores públicos brasileiros sobre o modus operandi da resolução de conflitos socioambientais no país que – a partir de legislações criadas na época da ditadura militar (como a “Suspensão de Segurança”)2, ou a partir de outros contrassensos mais atuais (como a criação recente da Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública)3 –,parece se legitimar, em última instância, no monopólio do poder e da violência exercidos pelo Estado em determinado território (na definição de Weber, 1991) Em seu trabalho mais recente, o sociólogo e antropólogo Bruno Latour (2013a) retoma a noção de “instituição”, esse estimado conceito das ciências sociais, para propor um tipo de desenvolvimento que o quadro demasiado estreito da

modernização

não

nos

ofereceu.

Trabalhando

para

compreender

as

desconexões entre os valores que as pessoas buscam defender, dos informes (account) que lhes vem sendo dados sobre tais valores ao longo da história – nomeadamente, os valores ‘céticos’ em relação ao aquecimento global frente às evidências científicas de uma crise ecológica sem precedentes em natureza e escala –, a retomada do conceito de instituição sugere a possibilidade de questionar, no campo das ciências sociais, os substratos filosóficos, metafísicos ou ontológicos que guiam essas desconexões. Ainda que tal operação se dê com base em contrastes – pois, tanto os valores, como os informes científicos, dependem, cada um deles, de A Suspenção de Segurança (SS) “é um pedido feito ao presidente do Supremo Tribunal Federal para que seja cassada liminar ou decisão de outros tribunais, em única ou última instância, em Mandado de Segurança”. O instrumento permite que tribunais superiores revoguem sentenças definidas por tribunais inferiores, independentemente do mérito, se o primeiro considerou que estas sentenças representam um risco de "prejuízo grave ocorrendo à ordem, saúde, segurança pública ou a economia". O mecanismo controverso foi usado várias vezes para derrubar decisões em favor dos atingidos pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte – em processo de construção no rio Xingu, estado do Pará, região Norte do Brasil – como, por exemplo, como a derrubada da liminar do Ministério Público do Pará que solicitava a paralisação das obras de Belo Monte devido ao não cumprimento das medidas de compensação socioambientais. Em março de 2014, representantes da sociedade civil denunciaram este instrumento na Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, como um estorvo autoritário que ameaça o Estado de Direito no Brasil. 3 A Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública foi criada por um decreto presidencial em março de 2013 para assegurar a realização dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) da Usina Hidroelétrica São Luiz do Tapajós – projetada para o rio Tapajós, estado do Pará, região Norte do Brasil – frente a ameaça de conflitos entre as populações indígenas locais, afetadas pelo empreendimento, e os pesquisadores responsáveis pelo EIA. 3 2

“formatos metafísicos específicos, do estado das instituições disponíveis e da reverberação de cada valor em termos de uma compreensão de todos os outros” –, na proposta de Latour, é no conceito de instituição que se encontra a possibilidade de se aprimorar a accountability, no sentido de aproximar diferentes experiências e promover, para cada uma delas, um formato mais apropriado. Nesse sentido, a retomada do conceito de instituição é um aspecto central da sua investigação sobre “modos de existência” – esse último, embora entendido como os aspectos morais, do ser, da etnologia e ecologia compartilhados por grupos ou indivíduos, enfatiza os significados de seus dois termos componentes, “modo” e “existência”, de forma a dirigir a atenção não a grupos ou indivíduos, mas às coisas com as quais os humanos se preocupam com, e aos questionamentos que fazem a si mesmos. Apesar da dificuldade em definir o conceito de instituição, devido a sua dependência de métodos e condições históricas específicos de cada contraste, em primeiro lugar, lhe é atribuído um significado positivo em oposição à palavra “domínio”, a qual unifica toda uma variedade de práticas heterogêneas. Segundo a consideração de Latour, dir-se-á que uma instituição é bem estabelecida quando ela apresentar o valor apropriado de cada modo sem, ao mesmo tempo, ser obrigada a desvalorizar outros. Da mesma forma, a reconstrução do termo instituição só seria possível se, em segundo lugar, um significado negativo também lhe fosse atribuído, no sentido de torná-las mais flexíveis a novas preposições, de modo a evitar o prolongamento de trajetórias de modos específicos que, por sua vez, ampliam os desacordos entre valores e instituições ao longo da história e fortalecem a rigidez e as imposições orquestradas sobre outros valores em questão. Ambos os sensos positivos e negativos atribuídos à ideia de instituição favorecem à campanha “diplomática” que caracteriza o trabalho de Latour – a qual pressupõe a ausência de um árbitro externo, seja ele representado pela razão universal, o estado, o direito, as leis da natureza, etc. –, como um meio de favorecer o contato entre posições negociáveis e não-negociáveis, antecipando-se a qualquer hegemonia de modos. Afinal, no contexto crescente da exploração dos territórios de fronteira (Harvey, 2003 apud Rodriguez-Garavito, 2010:5)4 como a Amazônia – Como proposto por David Harvey (Harvey, 2003 apud Rodriguez-Garavito, 2010:5): “the renewed economic importance of export-oriented extractive industries, driven by China’s 4 4

regiões

estas,

precisamente,

compostas

pelo

assentamento

histórico

de

comunidades indígenas (Roosevelt, 1994) – onde um único modo (políticoeconômico) dita a constituição das regras de participação de grupos e indivíduos afetados pelos projetos de desenvolvimento na região (i.e. os procedimentos legais de audiência, consulta e participação pública no contexto das políticas ambientais atreladas aos projetos de desenvolvimento)5, que caráter positivo e negativo as instituições

participativas

instituídas

nessa

conjuntura

(a

dos

conflitos

socioambientais), poderiam adotar, e, ao mesmo tempo, recuar, a fim do estabelecimento de uma assembleia verdadeiramente democrática (ou diplomática)? Nesse contexto, na esteira de Bruno Latour (2013a), o presente trabalho se postula não pela afirmação dos contrastes entre culturas e modos de vida distintos, mas na tentativa de relativizá-los e de redefini-los (2013b), numa proposta que auxilie a edificação de novas instituições capazes de aproximar (ou considerar) os contraditórios valores e agenciamentos presentes no contexto dos conflitos socioambientais na Amazônia. Ademais, tendo como pano de fundo o enfrentamento da crise ecológica planetária e as contradições de modos de vida no gerenciamento dessa crise: de um lado, o modelo desenvolvimentista, e, de outro lado, o modelo de produção tradicional indígena, este trabalho também se mede pelo esforço em identificar o caráter positivo e negativo que as instituições participativas instituídas pelas políticas ambientais poderiam adotar, e, ao mesmo tempo, recuar, frente ao enfrentamento da crise ecológica atual. Se considerarmos, a partir de informes científicos específicos, que a recente crise hídrica no sudeste brasileiro é também resultado do desmatamento da Amazônia6; e, ademais, que a preservação das Terras Indígenas (na região e alhures) é uma importante ferramenta de combate ao

demand for raw materials, has generated a transnational competition for natural resources and, therefore, has renewed interest in the exploration of frontier territories”. 5 Para uma correlação entre a edificação dos os procedimentos de Consulta Livre, Prévia e Informada (idealizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e sustentada pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas) e as políticas de desenvolvineto dos países do Sul, ver Rodrigues-Garavito, 2010: 07. 6 Ver NOBRE, A. (2014) «O Futuro Climático da Amazônia: relatório de avaliação científica.» São José dos Campos, SP: Articulação Regional Amazônica. Disponível em : http://www.ccst.inpe.br/wp-content/uploads/2014/10/Futuro-Climatico-da-Amazonia.pdf 5

aquecimento global7, quais seriam as atribuições do sociólogo nesse processo de avanço e recuo das instituições participativas da política ambiental? A juridificação da etnicidade e o contraponto do guerreiro indígena Para o sociólogo jurídico Cézar Rodriguez-Garavito (2010), os procedimentos de

participação

de

populações

indígenas

no

contexto

de

projetos

de

desenvolvimento que os afetam são marcados por um “efeito de deslocamento”, onde as demandas coletivas das comunidades impactadas (nomeadamente, seus apelos pela manutenção de modos de vida frente a ameaças de empreendimentos industriais e/ou de infraestrutura) voltam-se, pelo menos de forma parcial, para procedimentos normativos sobredeterminados pela lei e pelo capital. Algumas evidências empíricas sustentam o seu argumento. A primeira delas se evidencia no momento em que lideranças indígenas – no caso relatado, da reservar indígena Embera-Katío, afetada pela construção da Usina Hidrelétrica de Urrá, no rio Sinú, na Colômbia, mas também em outros casos em todo América Latina 8 – passam a ter como foco das assembleias e discussões públicas no contexto da instalação de empreendimentos que os afetam os processos pendentes de consulta livre, prévia e informada estabelecidos por instâncias jurídicas nacionais e internacionais, em detrimento das reivindicações pela manutenção de modos de vida ameaçados. A segunda evidência apontada, que confirma o efeito de deslocamento sugerido, se dá na afinidade entre os procedimentos legais de consulta endereçados e as compensações monetárias que são recomendadas a partir deles, na medida em que muitos dos processos de consulta consistem em calcular os danos ambientais e culturais do empreendimento e concordar sobre as formas de compensação adequadas às populações afetadas. 7

Ver SETENES, C. et al (2004) «Securing rights, combating climate change: how strengthening community forest rights mitigates climate change». Washington, USA: World Resources Institute (WRI) & Rights and Resources Initiative (RRI). Disponível em: http://www.wri.org/sites/default/files/securingrights-full-report-english.pdf 8 Muitas das mobilizações realizadas por movimentos sociais e outras organizações da sociedade civil no contexto da instalação de projetos de infraestrutura na Amazônia, como as usinas de Belo Monte, São Luiz do Tapajós e Teles Pires, têm como pauta principal a regulamentação da lei que regula a consulta livre, prévia e informada a povos indígenas. 6

Em outra ocasião, para o caso da participação de comunidades indígenas no contexto de instalação de Belo Monte (da Costa, 2012), eu havia identificado o momento em que as reivindicações indígenas pela preservação de seus modos de vida em territórios historicamente conquistados9 eram acompanhadas pelo desejo de ampliar sua produção econômica através da implementação de novos projetos produtivos nas aldeias, opções frequentemente induzidas pelas políticas de compensação ambiental.10 E, apesar do contexto contraditório dessas medidas, elas não eram repelidas pelas comunidades indígenas, pelo contrário, elas eram autorizadas em detrimento de técnicas usuais de cultivo e coleta. A pesca de peixes ornamentais realizada pelos grupos indígenas Juruna e Arara da Volta Grande nos serviu como exemplo: com viés estritamente comercial e com a utilização de técnicas artesanais de pesca, a atividades passou a ser pensada, através das intervenções planejadas pelos programas de compensação ambiental de Belo Monte, com a utilização de técnicas externas de aquicultura. Ademais, quando esses novos projetos produtivos propostos pelas políticas de compensação ambiental são pensados a partir de técnicas tradicionais indígenas de produção, era fácil notar a reivindicação por técnicas e equipamentos modernos: o caso da produção agrícola em pequena escala voltada para a subsistência familiar e eventual comercialização

9.

Os caciques José Carlos Arara, da TI Arara da Volta Grande, e Marino Juruna, da TI Paquiçamba (ambos os territórios localizados no Trecho de Vazão Reduzida da UHE Belo Monte), defendem essa posição em muitas das reuniões públicas para aprovação dos programas ambientais indígenas de Belo Monte: “manter o índio na aldeia” são falas recorrentes entre as lideranças e representam essa demana. Ademais, da mesma forma, a Associação Bebý Xikrin do Bacajá (território indígena localizado no rio Bacajá, afluente do Xingu no trecho da Volta Grande - Trecho de Vazão Reduzida da UHE Belo Monte), através de uma carta oficial endereçada ao Ministério Público Federal em apoio ao procurador Felício Pontes, registra: “os anciãos, as mulheres e os jovens das aldeias vivem preocupados com o futuro da comunidade [...], por causa de Belo Monte”. 10 Na esteira de James Ferguson (1994), sustentávamos o argumento que as políticas ambientais funcionavam uma forma de «anti-política», as quais acabavam por “elencar as questões polícas do território, dos recursos [dos impactos sobre os modos de vida indígena] [...] como “problemas” técnicos, sensíveis às intervenções [também] técnicas do “desenvolvimento”, cujo efeito é a criação de um todo inteligível ou estrategicamente coerente [...] [o qual] suspende a “política” da sua mais sensiva operação. (p. 180) (tradução minha). 7

do excedente, para a qual os indígenas declaravam sua rejeição aos modos de cultivo “dos tempos em que os indígenas trabalhavam com as mãos”11. No entanto, o que acontece quando tais induções de procedimentos legais e de projetos mercantilizados são

deparadas, de forma antecipada a tais

empreendimentos, pelo contraponto do guerreiro indígena? – o caso da Carta Piaraçu, enviada por lideranças indígenas do rio Xingu, em novembro 2009, ao então Presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, num manifesto contrário à instalação da UHE Belo Monte12. [E]xigimos que o governo cancele definitivamente a implementação desta hidrelétrica. Caso o governo decida iniciar as obras de construção de Belo Monte, alertamos que haverá uma ação guerreira por parte dos povos indígenas do Xingu. A vida dos operários e indígenas

estará

em

risco

e

o

governo

brasileiro

será

responsabilizado (Carta Piaraçu, novembro de 2009).

A projeção de tal cenário foi vivenciada, durante a instalação (ainda em andamento)13 da UHE Belo Monte, numa séria de eventos conflitivos entre populações indígenas afetadas, agentes públicos e atores privados, dentre eles: ocupações dos canteiros de obras por grupos indígenas, retenções de técnicos das empresas responsáveis pelo empreendimento em terras indígenas, atuação da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) na manutenção da ordem, etc. No entanto, o que se verifica nesse posicionamento prévio das populações indígenas afetadas, assim como nos conflitos decorrentes, não é a afirmação de suas 11

Mukuka Xikrin, um dos líderes da Associação Bebý Xikrin do Bacajá, em fala durante reunião junto à Norte Energia e à Funai para aprovação do Projeto Básico Ambiental Indígena da UHE Belo Monte, o qual estabelece uma série de reparações compensatórias (econômicas, produtivas, infra estruturais, culturais e até mesmo políticas – através do fortalecimento institucional das associações indígenas) para os impactos da usina (ver, Costa, 2012, pág. 14). 12 Carta Piaraçu, novembro de 2009, disponível em: http://www.greenpeace.org/brasil/Global/brasil/report/2009/11/carta-das-lideran-as-indgenas.pdf 13 A Licença de Operação (LO) de Belo Monte foi solicitada pela Norte Energia S.A., empresa responsável pelo empreendimento, ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 11 de fevereiro de 2015. O processo agurada aprovação do órgão federal. 8

intensidades guerreiras, senão o agenciamento de outros princípios e valores mobilizados pelo guerreiro indígena os quais não foram considerados ou respeitados durante o planejamento das políticas de desenvolvimento do Estado brasileiro para a região. Pois, o texto que antecede à citação da carta Piaraçu14, versava, exatamente, sobre as “consequências irreversíveis” que a construção de Belo Monte, no rio Xingu, traria para a região e para os povos indígenas locais, fato que contrariava ou desrespeitava os “habitantes ancestrais deste rio e o modelo de desenvolvimento” (ênfase minha) defendido pelos povos indígenas. Daí a necessidade em estabelecer um estatuto “parcial” para a suposta comunicação estabelecida pelos procedimentos de consulta e pelas compensações ambientais (Rodriguez-Garavito, 2010), pois a lei e o capital não esgotam a multiplicidade dos agentes que são mobilizados pelos sujeitos políticos indígenas no processo de accountability, nomeadamente, os “habitantes ancestrais” ou a sua “perspectiva de desenvolvimento”, entre outros. Nós nunca impedimos o desenvolvimento sustentável do homem branco, mas não aceitamos que o governo tome uma decisão de tamanha irresponsabilidade e que trará consequências irreversíveis para essa região e nossos povos, desrespeitando profundamente os habitantes ancestrais deste rio e o modelo de desenvolvimento que

defendemos. (Carta Piaraçu, novembro de 2009). À primeira vista, no contexto da política ambiental, quando um lado dos atores em negociação mobiliza outros princípios que não os instituídos pela liberaldemocracia (i.e. a lei e o capital), a comunicação se impossibilita, ou, simplesmente, não há comunicação. Se tomarmos como pressuposto os insights do filósofo Ludwing Wittgenstein de que a lealdade e a crença às instituições liberaisdemocráticas pertencem mais ao âmbito de um “compromisso apaixonado a um sistema de referência” (1980 apud Mouffe, 2006:172), percebemos que a dificuldade em proferir, eleger e implementar procedimentos de participação política para a “Nós nunca impedimos o desenvolvimento sustentável do homem branco, mas não aceitamos que o governo tome uma decisão de tamanha irresponsabilidade e que trará consequências irreversíveis para essa região e nossos povos, desrespeitando profundamente os habitantes ancestrais deste rio e o modelo de desenvolvimento que defendemos”. (Carta Piaraçu, novembro de 2009) 14

9

diferença étnica enfrenta não só obstáculos empíricos ou metodológicos, mas, sobretudo, ontológicos. Ou seja, se os procedimentos não estiverem inscritos sobre formas de vida compartilhadas, como um conjunto de práticas, eles não podem ser aceitos e seguidos. Na ótica de Wittgenstein, “concordar com a definição de um termo não é suficiente e precisamos de acordo sobre o modo que a utilizamos” (Mouffe, 2006:172). Retornamos aqui à questão sobre o contexto e a forma em que essas negociações se dão: em nome ou em favor de quem a política ambiental se estabelece? Sobre as bases de quais princípios ou agências? Em consideração a quais formas de vidas, práticas e cosmologias? Nesse contexto, os acordos entre procedimentos legais e projetos mercantilizados estão longe de proferir um diálogo entre, de um lado, o guerreiro indígena, e, de outro lado, os aparatos do Estado nacional. Sendo assim, a contraposição entre guerra e democracia, entre essas duas instituições da sociedade brasileira pós-colonial, ainda que perpasse pela representação do poder político sustentado por comunidades indígenas organizadas sobre sistemas de guerra, repito, não se sustenta na possibilidade de se afirmar as intensidades guerreiras desses povos, fomentar a guerra, incitar os conflitos, etc., mas na possibilidade de nos aproximarmos de uma ontologia, ou uma agência, que se sustenta na mobilização de outros princípios e/ou domínios pouco considerados pelas políticas ambientais (e pelas ciências e estudos que as acompanham), nomeadamente, os agentes humanos e não humanos mobilizados pelas cosmologias indígenas). Pois, o que se destaca como método para a resolução desses conflitos ontológicos, é a racionalidade objetiva de uma única ordem políticoeconômica, a qual dimensiona as formas de participação de comunidades indígenas nos projetos de desenvolvimento do estado. Formas que são, por fim, incompatíveis com os modos de vida de seus participantes. Lévi-Strauss, em seu artigo Raça e História (1978[1952]), já nos havia alertado que especulações filosóficas e sociológicas que estabelecem vãos compromissos entre polos contraditórios acabam por suprimir na cultura de outros o que ela tem de escandaloso e de chocante para seus analistas. O que são essas pressuposições comunicativas estabelecidas pela lei e o capital, no contexto da implantação das políticas ambientais na Amazônia, senão que o estabelecimento de 10

vãos compromissos entre polos contraditórios? A versão moderna da democracia não pode ser camuflada pelo princípio do mercado que determina a liberdade como um exercício ocasional de escolha entre alternativas concorrente e muitas vezes indistinguíveis (cf. John L. e Jean Comaroff, 2006), outros mundos devem ser considerados. Ademais, em situações neocoloniais que caracterizam a nova frente de ocupação da Amazônia, materializada pelos recentes projetos de infraestrutura para a região15, a proposição de uma “condição política” para o sujeito indígena surge também frente a necessidade de combater o processo de criminalização dos movimentos contrários a tais mega empreendimentos na região. Após a crítica póscolonial, a partir de textos como Can the Subaltern Speak, de Gayatri Spivak (1988), a sociologia contemporânea não pode permanecer imparcial quando se constata que rituais e manifestações culturais das populações colonizadas, pelos equívocos e mal-entendidos da tradução, tornam-se os significantes de legislações ocidentais que, em contextos coloniais e neocoloniais, servem a interesses econômicos e políticos e ao estabelecimento da “sociedade do bem” [good society], a partir da redefinição daquilo que havia sido tolerado, conhecido, ou adulado como ritual em crime (c.f. Spivak, 1988: 94)16. Se o desafio antropológico consiste em estabelecer uma real confrontação entre duas maneiras de pensar (e agir) (Viveiros de Costa, 2013:480), como poderíamos trazer à tona esse desafio para o estudo da democracia (e, mais especificamente, de seus mecanismos de participação criados no contexto das políticas ambientais)? Pois, não seria exatamente nas possibilidades da democracia que o discurso ditatorial-racional – “ou você segue as regras ou está fora” – poderia apagar-se? Assim, como proposto pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, se o que “os nativos forçam os antropólogos a fazer é, precisamente, colocar em dúvida o que o sujeito pode ser [...] permit[indo] à antropologia considerar a presença virtual de Outrem quem é também a sua própria condição – a condição de passagem de um mundo possível para outro” (2013: 479 tradução minha), por outro lado, poderiam as ciências sociais, ou a sociologia das sociedades complexas 15

Ver mapa das novas hidrelétricas planejadas para região amazônica. Disponível em: http://oglobo.globo.com/infograficos/hidreletricas/ 16 Como foi descrito por Gayatri Spivak (1988) em ralação ao ritual sati na Índia pós-colonial: “In the case of widow self-immolation, ritual is not being redefined as superstition but as crime” (p.97). 11

propriamente, postular a questão do que o sujeito político indígena pode ser (?), como uma “condição de passagem” (para utilizar a expressão de Viveiros de Castro) de uma possível democracia (e sociedade) para outra, na qual os conceitos indígenas de política (e seus agentes e objetos) poderiam levar a cabo um experimento em si, mas também um experimento em relação à nossa própria condição política social? Guerra e política: duas conjecturas dos conflitos ambientais De forma contrária ao estabelecimento de vãos compromissos entre polos contraditórios, evitando a redução da política e das instituições representativas a meras escolhas mercadológicas e pela afirmação dos princípios que são mobilizados pela interação dos indivíduos e grupos guerreiros amazônicos, devemos nos perguntar: em que consiste a agência política dos guerreiros indígenas contemporâneos e o que essa agência traz de novo às instituições da política ambiental? Neste contexto, o reconhecimento do processo de personificação masculina do guerreiro entre as sociedades indígenas, a qual, segundo o sociólogo brasileiro Florestam Fernandes (2006 [1952]), nos informa sobre a “função da guerra nos termos da estrutura social” (p. 291), pode ser uma primeira consideração a ser realizada. Ou seja, segundo o autor, a guerra e a configuração da personalidade indígena guerreira é um determinante do status social incorporado e dos papéis sociais presentes nessas sociedades, os quais governam as relações sociais no interior da comunidade e entre ela e os atores externos. Nesse sentido, a “personificação do guerreiro indígena” – desenvolvida pela aquisição de técnicas tribais de guerra, pelo manuseio de artefatos bélicos e pela apropriação dos significados sagrados das obrigações do guerreiro – está entrelaçada de papéis e deveres inerentes ao status social incorporado, os quais são também objetivados em hierarquias de idade e parentesco, assim como nas relações de gênero e. atualizados por ritos, mitos e práticas sociais. Dessa forma, para compreender um ato de guerra indígena, a análise social deve considerar que as “justificações da vendeta... não deixam transparecer os reais interesses da guerra” (Fernandes, 2006:276), ao contrário, tais interesses são sempre disfarçados sobre formas de valores culturais os quais essas sociedades 12

tendem a reproduzir e atualizar. A transição de uma categoria de idade para outra nas sociedades Tupinambás (da categoria kunumi-guasú para a vategoria avá) pode ser utilizada como exemplo: quando a aquisição do novo status de homem (avá) e não mais criança (kunumi-guasú) está estritamente ligada ao processo de aprendizagem e vivência das instruções e treinamentos para se tornar um guerreiro, o qual é desenvolvido desde a infância pela aquisição de técnicas de adaptação ao ambiente físico durante o acompanhamento dos adultos em incursões nas mata para caça ou coleta – técnicas alcançadas pelo riscos iminentes dos encontros com inimigos (da mesma espécie ou não). Para se tornar um avá, o sujeito deve passar por todo esse processo amplo e correlativo. Tais evidências etnográficas devem ser consideradas na tentativa de incorporar a participação política indígena de povos indígenas contemporâneos em processos democráticos recentes. Pois, ainda que as comunidades indígenas póscontato da Amazônia tenham retrocedido seus sistemas guerreiros de predação em favor de um sistema multilocal pacífico, como propôs Heckenberger (1996), onde a violência física cede lugar a formas de interação ritualizadas e à violência simbólica (p. 93-98) – expressas, no caso Belo Monte, nas alianças intertribais e nas performances ritualísticas que configuram os atos de protesto indígenas contra o empreendimento – é a persistência de “formas simbólicas de longa data que ainda impregnam as práticas indígenas e suas representações” (Fausto, 2000:933) o que nos motiva ao estudo das relações entre guerra e democracia na Amazônia, explorando em que ponto essas representações, sustentadas como formas de resistência à aniquilação física e cultural, podem se transformar em uma discussão sobre procedimentos legais-democráticos (ou accountability). No contexto da implantação de grandes projetos de desenvolvimento na Amazônia, é notório a forma através da qual o poder político do guerreiro está acendendo entre as sociedades indígenas afetadas (Figura 1), o qual cresce na contracorrente das tentativas nacionais e internacionais de governança das relações entre Estados-nacionais e grupos étnicos. Esse cenário é uma evidência do fracasso dos padrões legais de participação cívica endereçados à etnicidade, os quais, não só desconsideram padrões culturais elementares da formação social dessas sociedades, mas se restringem a um número limitado de referências (a lei e o 13

capital), as quais preestabelecem ou significam as formas de participação social dos sujeitos políticos locais de forma extinguir a possibilidade desses sujeitos associarem a outros domínios cosmológicos ou, propriamente, sociais – se tomarmos a pressuposição do Latour (2005) de que o domínio do social, e das associações que mobilizam as ações de seus atores, é muito mais extenso que a tentativa de limitá-lo à esfera dos humanos e das sociedades modernas.

Figura 1: Ocupação do canteiro de obras da Usina de Belo Monte por populações indígenas locais em março de 2013. Fonte: http://goo.gl/0d50ws Foto: Ruy Sposati

No caso da usina de Belo Monte, para as comunidades Xikrin do Bacajá – uma das facções dos Kayapó Setentrionais, grupo linguístico Jê, residentes da Terra Indígena Trincheira Bacajá, localizada no rio Bacajá, afluente do rio Xingu, circunscritas na área de influência do empreendimento – a categoria do guerreiro (meàkreti/meopari) (Lea, 2012:30), ainda que não se atualize mais através de expedições guerreiras, realizadas no passado em confrontos com outros grupos indígenas locais, como a registrada em 1969 contra o grupo dos Parakanã (Fausto, 2012:45), segue sendo atualizada por esses grupos através de categorias idade e dos processos sociais e rituais que as seguem. Como propôs a antropóloga Lux Vidal (1977), embora as categorias de idade acompanhem, até certo ponto, o desenvolvimento biológico de homens e mulheres, elas são realmente unidades definidas

socialmente,

as

quais

se

apresentam

como

fases

nitidamente

diferenciadas de integração dos indivíduos ao meio social (p. 87). Nesse contexto, a 14

categoria de idade mẽnõrõnyre, dos adolescentes iniciados, na qual se era reconhecido a aquisição do “ideal kayapó” – onde um homem deve ser forte, rápido e ágil –, é conquistada a partir da submissão a um longo aprendizado, que consistia, por um lado, numa série de provas e, por outro, na participação de ritos de iniciação. Segundo Vidal, há vários modos de atingir o ideal kayapó, como, por exemplo: 1) o ato de escarificar as pernas e os pés (com dentes de peixe Aruanã) dos jovens mẽnõrõnyre, a fim de que eles possam perseguir melhor o porco do mato e a anta; 2) a ingestão de alimentos considerados não comestíveis e perigosos, como a carne de onça ou de quati e arraia, a fim de se tornarem fortes e resistentes; 3) o ataque a um ninho de marimbondo, o qual simboliza o ataque a uma aldeia inimiga (os maribondos e os índios inimigos são classificados sob a mesma denominação: mekurê-djuoy, o que os Xikrin traduzem como “inimigos”), a fim de que os menõrõnyre se tornem não apenas fortes, mas totalmente insensíveis ao cansaço e à dor (Vidal, 1977:125-6). Nesse contexto, a categoria dos mẽnõrõnyre está diretamente relacionada à categoria do guerreiro Xikrin (mẽàkreti/meopari) e da formação da “personalidade masculina” (para tomar o termo de Florestan Fernandes), pois é a partir dessas provas e rituais que se incita os jovens às atitudes guerreiras, as quais estabelecem o ideal kayapó. No entanto, se no passado os menõrõnyre enquanto guerreiros consolidavam sua reputação prestigiosa no decorrer de várias expedições guerreiras sob o comando dos homens mais velhos (Lea, 2012: 165; cf. Vidal, 1977: 132)17, atualmente, esse ideal é atualizado na reprodução dessas provas e rituais, os quais estabelecem as condições e as formas de interação social esperadas para os membros de determinadas categorias de idade. O ritual do ataque ao ninho de marimbondo, por exemplo, de iniciação à categoria de idade menõrõnyre, foi recentemente registrado pela antropóloga Thais Manthovanelli durante sua pesquisa de campo entre os Xikrin do Bacajá em 201418. Sendo assim, entre os Xikrin, ainda hoje, os mẽnõrõnyre seguem a dinâmica de tornarem-se socialmente “homens Segundo Vidal (1997), as expedições guerreiras eram, para os Xikrin, “um meio de se transformar em homens verdadeiramente forte, segundo seu ideal: amak kre ket (insensíveis) ” (p. 157). 18 Thais Manthovanelli é doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de São Carlo (UFScar). 15 17

verdadeiros”, mẽmu kumren (Vidal, 1977:), a qual alimenta a composição de sua personalidade e ideologia. E é essa condição, atrelada às características simbólicas do guerreiro indígena, que persiste e que se projeta nas suas demais relações na comunidade (relações internas) e entre os Xikrin e demais atores humanos e não humanos (demais grupos indígenas, a comunidade nacional e os seres da floresta). Contudo, o que nos interessa reter desse cenário são as condições em que “[o]s rituais de iniciação e nominação integram coletivamente os homens nos diferentes domínios [cosmológicos]” (Giannini, 1991:74) e como esses domínios são atualmente mobilizados pelos indígenas na sua atuação política no contexto dos conflitos socioambientais por eles vivenciados. Segundo Giannini (1991), os diferentes domínios que compõe a cosmologia Xikrin19 são definidos por espaços naturais distintos: o céu, a terra, o mundo aquático e o mundo subterrâneo. O domínio da terra seria composto, por um lado, pelo espaço da floresta: o local da caça e das plantas, mas também dos inimigos e da aldeia dos mortos (onde os parentes se reencontram); e, por outro lado, pelo espaço da clareira: como o domínio da sociedade Xikrin (a aldeia e suas roças). O domínio do mundo aquático seria formado pelo espaço dos peixes. Já o mundo subterrâneo, pelo espaço dentro da terra, cuja conotação é mitológica, pois este domínio seria composto por “homens canibais que se alimentam de carne crua e dividem seu habitat com uma espécie de formiga que come sangue”. Por fim, o domínio do céu, apesar de ser o habitat das aves, também é um domínio da mitologia, sendo seu sentido leste, o local de origem dos Xikrins. O céu é o lugar da humanidade por excelência, o domínio da luz eterna. É nele que “o xamã é iniciado, estabelecendo assim a possibilidade da intermediação no nível sobre-humano entre os diferentes domínios” (Ibid:73-99). Sendo o domínio da floresta (bã) relacionado com a masculinidade, pois “é nele que os meninos da categoria menõrõnyre (jovens iniciados) tornam-se fortes e resistente, maduros e sociais” (Ibid:78-9), reteremos nele a nossa atenção, focalizando a forma em que esse domínio é agenciado pelo guerreiro indígena.

A cosmologia entendida como algo que segundo “ordena e põe em relação o meio natural e os traços culturais do grupo que a produziu” (Lallemand 1974 apud Giannini, 1991: 73). 16 19

Segundo Giannini, o domínio da floresta é o domínio da caça prestigiada, local de moradia dos animais terrestres, mas também das plantas e onde são instaladas suas roças. O domínio da floresta é a moradia de diferentes categorias étnicas inimigas (de outros grupos indígenas), mas também dos mortos, a “aldeia dos mortos”, onde os parentes se reencontram. Nesse contexto, quando os indígenas rementem aos “ancestrais” e a “seu modelo de desenvolvimento” em seus posicionamentos contra a instalação de projetos como o da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, são esses agenciamentos outros o que configura a sua atuação política na Amazônia contemporânea. A mobilização dos “habitantes ancestrais”, assim como de um modelo próprio de desenvolvimento, torna o posicionamento político indígena genuinamente ontológico, onde “formas particulares de vida” (ou visões de mundo ou cosmologias) constituem a “própria condição de possibilidade” desse posicionamento (cf. Mouffe, 2006:172-3). Segundo Chantal Mouffe, sem a postulação ou reconhecimento dessas formas particulares de vida, a comunicação ou a deliberação pública, livre e desimpedida sobre matérias de interesse comum jamais adviriam (Ibid:173). Nesse contexto, a proposta de Mouffe se assemelha à recente abordagem teórico-política ontologicamente orientada (ontologically-oriented) da antropologia e ciências correlatas, na sua tentativa de “tornar político a própria forma de pensamento” dos povos indígenas que são descritos ou estudados, isto é, “na capacidade de promulgar uma forma de política que está implicada em sua própria operação” (Viveiros de Castro et al, 2014)20. Nesse sentido, ao invés de nos perguntamos sobre como posicionar os sujeitos políticos no interior das políticas ambientais, precisaríamos, previamente, questionarmos sobre o que a mobilização dos princípios ontológicos que orientam o pensamento indígena traz de novo para as políticas ambientais e suas instituições?

20

[T]]he political promise held by ontologically-oriented approaches in anthropology and cognate disciplines; namely, that this promise can be conceived, not just in relation to the degree to which such approaches are in affinity with (or even actively promote) particular political objectives, or with the abiding need for a critique of the state and the turns of thought that underpin it, but also in relation to their capacity to enact a form of politics that is entailed in their very operation (Viveiros de Castro et al, 2014). 17

Conclusão: por uma política ambiental ampliada a outros contextos sociais Conforme notado pelo antropólogo James Ferguson (2009[1990]) para as políticas de desenvolvimento, a sua operação tende a criar um “todo inteligível ou estrategicamente coerente”, elencando problemas sobre o território, os recursos, etc. como “problemas” técnicos, sensíveis às intervenções [também] técnicas do “desenvolvimento” (1994:180). Essa é a mesma dinâmica das políticas ambientais, onde as formas de compensação sociambiental aos impactos e danos ambientais e culturais causados às populações afetadas (como a imposição de novos regimes fluviais, as alterações nos habitats e das espécies da fauna e flora local, o aumento da pressão antrópica sobre os territórios protegidos, etc.) consistem em intervenções técnicas (como a criação de fundos monetários indígenas, investimento na infraestrutura das aldeias e em novas técnicas de pesca e agricultura)21. No entanto, em contextos ontologicamente contraditórios, onde os princípios da liberal democracia (a lei e o capital) são confrontados por outros princípios cosmológicos, é a política deliberativa que parece não oferecer todas as escolhas possíveis para a resolução dos conflitos. É o momento em que o agenciamento político indígena posiciona a natureza, representada aqui pela floresta e seus agentes humanos e não humanos, enquanto “sujeito numa relação social” (Descola, 2013:6), em que presenciamos uma novidade frente as políticas ambientais da forma em que o Ocidente a estabelece e prescreve: na qual a natureza, ausente de significado e utilidade, tende a ser objetivada unicamente segundo as pretensões de sua cultura. Conforme mencionado, o domínio da floresta para os Xikrin é a moradia de diferentes grupos étnicos inimigos, assim como dos animais terrestres (denominados, Mru) e das plantas. E, no contexto das suas relações sociais, a floresta é o domínio da caça

21

Conforme determina os objetivos gerais do Plano Básico Ambiental do Componente Indígena de Belo Monte, conhecido como Plano Médio Xingu – PMX: "apresentar as soluções técnicas e ações para mitigar e/ou compensar os impactos ambientais das obras de implantação e respectiva operação do empreendimento, de acordo com o que determina a referida Licença Prévia – LP, Parecer Técnico Conclusivo nº. 001/2010/DILIC/IBAMA/MMA e Parecer Técnico nº. 21/CMAM/CGPIMA-FUNAI" (PMX, 2010:44) 18

prestigiada (Giannini, 1991) A exemplo dos Achuar22 (Descola, 2013), a cosmologia Xikrin considera que os “mru (animais terrestres) possuem um “dono controlador”, denominado Akrãe”. Segundo Gianinni, “[e]le pode ser visto como uma entidade sobrenatural que controla, através do feitiço, a ação predatória dos homens. A apropriação indevida, sem regras, do mundo animal causa a fúria de Akrãe e é neste sentido que ele é visto como o dono dos animais” (p.:78). Entre os Xikrin, o mito “Bem nhui-boi” (Ibid:78-9; Vidal, 1997:223), ilustra bem o fato de como a apropriação inadequada de um animal poder gerar um distúrbio no nível cósmico: “Há muito tempo não existia chuva. Uma mulher comeu muita anta e não deu nada ao irmão. O irmão estava esperando ela trazer. Estava acabando e ele não tinha recebido nada. Tirou leite de pau e passou na cara misturado com carvão, e subiu ao céu para fazer chuva. Zangado, subiu para fazer a chuva, subiu sozinho. [...] Subiu daqui todo pintado de preto. Subiu em cima do trovão. Subiu e matou índios aqui no chão com o trovão”.

O antropólogo Philipe Descola (2013) argumenta para o caso dos grupos Achuar que as boas relações que os indígenas manejaram em estabelecer com diferentes interlocutores, ambos humanos e não humanos, como, por exemplo, a experiência da caça bem sucedida (contrária à apropriação indevida), entre outras, são também o resultado da sua habilidade em criar um ambiente intersubjetivo no qual as relações reguladas entre uma “pessoa” (aents – cujo significado é também atribuído pelos Achuar aos animais e às plantas) e outra florescem: relações entre o caçador, os animais e os espíritos que são os mestres dos jogos de caça (4-5). Contudo, é a ênfase do autor em estabelecer – pelo nível de sociabilidade estabelecida entre os Achuar e os seres humanos e não humanos da floreta – uma continuidade entre natureza e cultura, o que nos interessa retirar desse cenário para a compreensão do posicionamento político do guerreiro indígena no contexto das políticas ambientais. Considerando os argumentos de Descola, uma cosmologia que atribui aos animais, às plantas e aos espíritos da floresta faculdades, comportamentos

e,

sobretudo,

códigos

morais

atribuídos

aos

humanos,

preestabelece uma concepção de natureza em total contradição à concepção da 22

Tribo indígena do grupo Jivaro, residente no baixo Kapawi, rio Amazônico localizado na fronteira entre o Equador e o Peru. 19

cultura ocidental – como, na linguagem da ciência social, uma oposição aos “espaços antropizados”. Pois, como propôs Eduardo Kohn (2013:5), esse envolvimento atrai os indígenas à vida dos seres da floresta, e, por conseguinte, tornam tais seres constitutivos do mundo moral que eles próprios criam para as suas socialidades. Compreender os domínios e os agentes que seguem sendo mobilizados pela posição política dos guerreiros indígenas contemporâneos é certamente um meio de ampliar as referências e composições das atuais instituições estabelecidas pela democracia moderna na regulação dos conflitos ambientais. Certamente, a proposta para essa experiência parte, a princípio, de uma proposição política para o posicionamento de grupos indígenas frente as políticas do estado. No entanto, esse trabalho objeta, na oportunidade do Congresso Brasileiro de Sociologia, elucidar a tentativa de revisitar alguns pressupostos da análise sociológica a partir das contribuições da antropologia contemporânea, a fim de que tais posicionamentos outros (ou mobilizados por outros agentes) possam também ser contidos em novas formas e conceitos de análise social, buscando, por fim, associá-los aos novos contextos da accountability e da política ambiental. Pois, as possibilidades de pesquisa e investigação dos posicionamentos indígenas no contexto da política ambiental surgem a partir do momento em que os dados empíricos das relações sociais que se estabelecem nesse contexto (i.e. a sobreposição, parcial, da lei e do capital) não estejam mais retidos, unicamente, a contextos auto referenciais dos cientistas que as descrevem23. Como propôs Marilyn Strathern (1988), ir além de tais contextos é proceder da única maneira possível, abrindo as nossas próprias estratégias auto referenciais” (p.:09)

Referências Bibliográficas

23Como

propôs Philiphe Descola (2013):“The project of understanding the relations that human beings establish between one another and with nonhumans cannot be based upon a cosmology and an ontology that are as closely bound as ours are to one particular context” (p.:xviii). 20

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