Guido Boggiani, Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro: as entrelinhas da arte na antropologia kadiwéu

July 6, 2017 | Autor: Raquel Duran | Categoria: Anthropology Of Art, Antropologia da Arte
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Quaderni di THULE XIV. Rivista italiana di studi americanistici. Edizione CSACA Onlus, Perugia, 2015. (pp215-223).



Guido Boggiani, Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro: as entrelinhas da arte na antropologia Kadiwéu.
Maria Raquel da Cruz Duran
Universidade de São Paulo


Com o objetivo de compreender como que o olhar sobre a arte Kadiwéu mudou em sintonia seja com a mudança do fitar daquele que os observava, em seu tempo, seja com a transformação do próprio grupo, este artigo se propõe a refazer o caminho de construção do olhar sobre a arte Kadiwéu, Mato Grosso do Sul/ Brasil, em Guido Boggiani, Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro.
Porém, antes de adentrarmos nas leituras dos três autores, gostaríamos de destacar que vimos suas apreciações como inseridas num contexto em que a antropologia da arte era mais voltada para o nosso olhar, de sociedade ocidental. Tal posicionamento era o chamado de filistinismo metodológico, que significa «assumir uma atitude de indiferença resoluta no que diz respeito ao valor estético das obras de arte – o valor estético que elas possuem, seja do ponto de vista local ou do esteticismo universal» (Gell A. 2005: 44).
Ver a arte segundo estes padrões gerou consequências como, por exemplo, o academicismo de linguagens, onde cada artista inventa seu estilo, muitas vezes distanciado do público; os argumentos de poder dos críticos, que podem reconhecer a verdadeira arte; e ainda, uma visão representativista da arte, que «obscurecia a maneira dinâmica de a arte agir sobre e dentro da sociedade, sendo um discurso silencioso sobre a condição humana e sua relação com os mundos naturais e sobrenaturais, ou sobre a própria sociedade». (Lagrou E. 2009: 16)
Tal colocação adveio das diferenças entre arte acadêmica e arte primitiva, que a tradição intelectual ocidental veiculou, tais como: individualização da arte ocidental e a caracterização de ser representativa, possessiva e fechada em si mesma. Podemos observar as implicações deste modo de ver a arte indígena em museus, em que a visão patrimonial destes objetos etnográficos está apresentada em seus valores ameríndio, institucional, arqueológico, etnográfico e paisagístico, inclusive com sincretismos de valores, mas sua importância artística não (Velthem L. 2012).
Contudo, tanto Boggiani, quanto Lévi-Strauss e Ribeiro anunciam alguma abertura e problematização da arte para além da definição de veículo, embora partícipes deste contexto. Situados no município de Porto Murtinho, Estado do Mato Grosso do Sul, entre a Serra da Bodoquena a leste, os rios Niutaca a norte/noroeste, Nabileque a oeste, Paraguai a sudoeste e Aquidabã ao sul, os "índios cavaleiros", como são conhecidos pelos sul-mato-grossenses, autodenominados Eyiguayegui, gente das palmas Eyiguá, representam um grupo falante do tronco linguístico Guaicuru, etnia Mbayá, e constituem atualmente uma população de pouco mais de 1.600 pessoas (Siqueira Junior J. 1993), distribuídas em seis aldeias: Bodoquena, São João, Campina, Tomázia, Barro Preto e Córrego do Ouro.
Entre as inúmeras pessoas que passaram pelos Kadiwéu, produzindo registros, desde o século XVI, dentre os quais podemos citar os jesuítas José Sánchez Labrador (1760 - 1770) e Florian Paucke (1749-1767), o franciscano Francisco Mendez (1772), os geógrafos e naturalistas Francisco Rodrigues do Prado (1839), Félix de Azara (1809) e Francis Castelnau (1850), o militar Ricardo Franco de Almeida Serra (1845) e o engenheiro agrimensor Emílio Rivasseau (1880); destacamos Boggiani, Lévi-Strauss e Ribeiro por muitos motivos.
O grau de influência que seus estudos tiveram, seja do ponto de vista da comunidade Kadiwéu e internacional, como foi com Boggiani, seja pela ótica da construção da antropologia enquanto ciência como fez Lévi-Strauss, ou ainda, com um antropólogo brasileiro de peso, tal qual Darcy Ribeiro; a relação que os três autores estabeleceram entre os Kadiwéu e a arte; a constituição de suas obras como leitura obrigatória para um estudante de Kadiwéu e importante material escolar para um índio Kadiwéu, partícipe das "histórias dos antigos".
Considerando que um relato de viagem consiste em contar sobre as paisagens, pessoas, experiências que vivenciamos num período em que a transição é forte característica e que, por ser um tempo de curto intervalo, em geral, nos situamos fora do ambiente naturalizado pela convivência contínua, os relatos de viagem acompanham esta toada, pois descrevem aquilo que é observado – com estranhamento, pelo viajante -, mas também o observador, pois o que escolhe narrar evidencia o que lhe é comum, bizarro, digno de nota.
Assim, o diário de viagem de Boggiani mostra um comerciante de couro sensível às artes e humanidades, que viveu como um Kadiwéu (Pechincha M. 2000), vestindo-se, pintando-se, casando-se, numa experiência etnográfica de dois meses e meio em Nalique, nos anos de 1892 e 1896. Naquele momento, os caduveo eram duzentos, distribuídos em quatro aldeias (Nalique, Morrinho, Etóquija e Retiro), que em 1939 contariam apenas cem habitantes (Freundt E. 1946), pelo infanticídio e consumo excessivo do álcool.
Observados por Boggiani no seu centro, ou seja, longe da presença dos brancos, e sem prevenções ou segundas intenções, como por exemplo, a necessidade do trabalho com os índios como agente governamental, seu relato etnográfico sobre os Kadiwéu tem um valor particular.
Boggiani descreve as tolderias (casas tradicionais), os catchibéus (canoas), os giraus (camas), as festas, roupas, jogos, pajelança, mitologia, o sistema hierárquico de senhores e servos que, para ele, não está relacionado à pureza racial, tece comparações entre os Kadiwéu e os Incas, fala da corrupção dos costumes pela cultura branca, da postura de Capitãozinho, então cacique da aldeia Nalique diante das disputas políticas, entre outras.
Sobre a arte Kadiwéu Boggiani delineia procedimentos de confecção e decoração da cerâmica, apresenta a pintura corporal na disposição dos desenhos, das cores, das artistas (senhoras) e das modelos (cativas), o conhecimento em fazer estampas, sendo que com a ajuda de pauzinhos esculpidos com decorações imprimem desenhos em superfícies repetidas vezes.
Boggiani perfaz as marcas de propriedade nos cavalos, nos cativos, em mulheres e homens, nos objetos pessoais, bem como a aplicação de miçangas nas cerâmicas, o hábito de costurar tecidos e pinta-los, além da diferença entre a tatuagem e a pintura que logo se apaga, entre outros. Conclui todo este processo de observação da arte Kadiwéu com a afirmação de que «É uma verdadeira mania que têm os Caduveo pela ornamentação». (Boggiani G. 1945: 229)
Isto posto, podemos apreender que a pintura do corpo e a da cerâmica são as atividades artísticas em que mais se debruçou Boggiani em sua exposição sobre os Kadiwéu. Com interesse nota que a pintura do rosto e do corpo era feita pelas senhoras Kadiwéu em suas cativas, dividindo seus rostos em duas metades que continham desenhos e cores diferentes, assemelhando-se a arabescos desenhados em bordados europeus. Aprofundando sua observação, ressalta que existem pinturas feitas somente em datas especiais, como por exemplo, na festa da moça Kadiwéu, apreendendo que a mulher Kadiwéu se pintava de outra forma no período da puberdade.
Com este fato, conforme argumentação de Colini no prefácio de 1894 da obra os Caduveo, «Boggiani observou, mais, que muitos destes desenhos, repetidos constantemente na mesma ordem sobre a pessoa e sobre os objetos, tinham entre os Caduveo um significado preciso que não pode determinar bem» (Colini G. 1945: 55/6).
Seguindo por este caminho, poderíamos aferir que Boggiani em sua análise da "mania" Kadiwéu em ornamentar, caminhasse para a conceituação da arte como referente «[...] à capacidade consciente e intencional do homem de produzir objetos e ao conjunto de regras e técnicas que o pensamento usa para representar a realidade e agir sobre ela» (Lagrou E. 2009: 68-9).
A arte então seria simultaneamente produção e representação da realidade segundo um conjunto de saberes/fazeres do homem, sendo ao mesmo tempo a tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia (Gell A. 2005). Ou seja, com capacidade agentiva, ajudando a fabricar o mundo no qual vivemos, a arte seria um sistema técnico que promove uma transferência esquemática entre a produção de arte e o processo social (1).
A indeterminação dos significados nos desenhos deixada pelas reflexões de Boggiani continuou após quarenta anos de sua visita aos Kadiwéu. O relato de viajante, fonte histórica da metodologia de investigação da ciência antropológica, se torna observação-participante, e entre os anos de 1935 e 1939 em que Claude Lévi-Strauss lecionou sociologia na recém-criada Universidade de São Paulo, foi momento decisivo para o despertar do então filósofo à vocação antropológica, que floresceu conjuntamente à escritura da obra Tristes Trópicos, publicada em 1955.
As paisagens de um Brasil em crescimento, as comparações com a Índia e Estados Unidos, o pôr do sol visto em um navio por um judeu francês a caminho do novo mundo, em plena Segunda Guerra Mundial, já constituíam realidades alvos desse olhar. Entretanto, a busca por sociedades indígenas no pantanal, então - mato-grossense, e os encontros com os Nambiquara, os Bororo, os Tupi-Cavaíba e os Kadiwéu, propiciaram a Lévi-Strauss mais que a imaginação da experiência, o experimentar de imaginações outras (Viveiros de Castro E. 2002).
Na época daquela visita efêmera, apenas algumas semanas, Lévi-Strauss encontrou uma população de pouco mais de duzentas pessoas, divididas em três aldeias (Nalique, Engenho e a terceira mencionada, porém, sem nomeação), que lhe propiciaram a descrição breve dos mesmos temas que Boggiani percorreu – incluindo o maior interesse pela arte -, entretanto, com o auxílio da ciência antropológica na compreensão do emaranhado de informações que coletava.
Estabelecido na aldeia de Engenho, Lévi-Strauss explana muitas atividades dos Kadiwéu, como a caça, a coleta e a roça. Contudo, ao entender que o conjunto de costumes de um povo constrói um estilo próprio, de modo a formar sistemas, Lévi-Strauss elabora a ideia de que entre os Kadiwéu o dualismo representaria tal maneira particular de expressão social, cultural, política, econômica, artística, etc.
Assim sendo, na arte o dualismo seria proclamado por, de um lado, homens escultores, cujas obras são de estilo naturalista e representativo, e de outro, por mulheres pintoras de estilo não-representativo, em que «a forma da figura e do fundo se confundem, como um negativo» (Lévi-Strauss C. 1996: 179). As mulheres teriam duas formas de dar vazão a esta arte não representativa, uma forma geométrica e angular, e outra curvilínea e livre, sendo a primeira indicada à pintura corporal e de cerâmica, e a segunda voltada para pintura facial, que representavam seu status social.
Destarte, a justificativa para tal proposta viria da dupla necessidade da arte para os Kadiwéu, em primeiro lugar em sua função de ser um objeto e servir ao diálogo e ao duelo, e em segundo, de representar um papel. Como função sociológica, agiria de forma simétrica em relação à hierarquia social, por exemplo. Já como papel, se desenvolveria de forma assimétrica, em relação à separação entre natureza e cultura, animal e humano.
Comparando a arte das mulheres com as cartas de um dos tipos de baralho europeu, em que um jogo de contradições constituiria a estrutura social Kadiwéu, o realce da apreciação de Lévi-Strauss era para os aspectos que ligavam a pintura a uma dupla oposição: primeiro à morfologia social e hierárquica, de organização binária e simétrica, tendo em vista sua relação de status entre cativos e senhores, e depois à morfologia natural e recíproca, de organização ternária e assimétrica - de separação entre natureza e cultura, animal e humano.
Portanto, haveria 'uma vontade metassocial', nas palavras de Lévi-Strauss (1996), por parte dos Kadiwéu, de tornar a pintura uma das formas de expressão artísticas representativas de seu povo, e como tal, participante do jogo de contradições específico do seu modo de vida.
Passam-se dez anos e, no final de 1947 e 1948, Darcy Ribeiro realiza trabalho de campo e publica em "Kadiwéu: Ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza" (1980) ponderações que se dividem em três grandes blocos: 1. Mitologia: A busca do saber; 2. Religião: O controle do azar e 3. Arte: A vontade da beleza.
Com o propósito de «compreender os significados e funções dos mitos para apurar sua vinculação à cultura» (Ribeiro D. 1980: 25), Darcy Ribeiro fará uma antropologia em tom de salvamento, pela percepção de decrepitude deste povo que no momento mantinha o número de habitantes descritos por Lévi-Strauss, mas que se encontravam, segundo Ribeiro, numa crise de redefinição de seus valores.
Assim, na maior parte do livro Ribeiro versa acerca dos fatores que influem na mudança da arte: a transformação de habitat; a alteração que processos sociais e psíquicos de aculturação promovem e a modificação que a adaptação para a sobrevivência os conduz.
Para Ribeiro (1980), a cerâmica Kadiwéu, ao contrário das diversas expressões artísticas dos Kadiwéu - tais como trançados, entalhes na madeira e moldagens no metal, desenhos na cabaça, no couro, em tecidos, música, entre outras - teria resistido ao longo dos anos, tanto pelo incentivo financeiro no comércio com os brasileiros, quanto pela preservação de um patrimônio imaterial cultural.
A mistura destes dois argumentos, mercadológico e patrimonial, tanto como justificativa de afirmação identitária quanto como característica salutar da redefinição de valores, expõe uma dualidade nos Kadiwéu, esta é a proposta de Ribeiro acerca de sua arte e, portanto, distinta daquela denotada por Lévi-Strauss. Será mesmo?
Diante do argumento patrimonial, poderíamos nos questionar: sem cativos, como estão agora os Kadiwéu, a arte persiste por quê? Frente ao argumento mercadológico, a indagação que poderia ser feita é: na competição com latarias industrializadas, os potes de barro, a cerâmica não apreciada em seu valor ornamental já decaído e as moringas ornitomorfas, a arte Kadiwéu resiste por quê?
Ribeiro adere à proposta levisstraussiana, de que as pinturas figuram a estratificação da sociedade Kadiwéu em camadas de senhores e servos, quando conta que atualmente muitas velhas Kadiwéu se queixam e recordam com carinho o passado, tempo em que «eu nunca precisei rachar lenha, acender fogo e apanhar água, antigamente tinha cativa prá fazer tudo; eu só ficava era pintando o corpo, penteando o cabelo o dia todo até de noite, agora tenho que fazer tudo» (Ribeiro D. 1980: 262).
Destarte, se «a arte, melhor que qualquer outro aspecto da cultura, exprime a experiência do povo que a produziu e somente dentro de sua configuração cultural ela pode ser plenamente compreendida e apreciada» (Ribeiro D. 1980: 258), é possível que nos tempos atuais esta transposição da ornamentação do corpo para a da cerâmica, num contexto em que as guerras e seus cativos já não estão presentes entre os Kadiwéu, tenha outros motivos para sua produção.
A adesão ao parecer de Lévi-Strauss nos adverte aqui ser parcial, no questionamento da transposição da técnica de ornamentação do corpo, e subsequente dualismo assimétrico entre senhor e cativo, para a de ornamentação de outras superfícies, entre elas a cerâmica, fazendo com que Ribeiro respondesse àquelas perguntas com a seguinte afirmação, em complemento a réplica anterior:
«A arte, como todos os aspectos da cultura Kadiwéu, atravessa em nossos dias uma crise de redefinição de seus valores, em vista das mudanças que se processaram em sua sociedade. Somente pode ser compreendida como produto de uma época de transição e, em grande parte, como esforço de conservação de um patrimônio inadequado aos novos caminhos que foram compelidos a tomar» (Ribeiro D. 1980: 259).

Por conseguinte, para apreciar a arte é necessário descobrir a "maneira de ver" dos artistas, incluindo a forma como observam a satisfação do público diante da sua obra, ou seja, a reação/opinião coletiva (Gell A. 2009). A forma dos desenhos Kadiwéu é transmitida por meio da tradição oral, ou ainda, da herança cultural geracional em cada família, e devem ser aprimoradas com o tempo, a experiência, o treino.
Desta forma, a transformação do modo de entender a pintura e expressa-la no mundo tem a ver com as implicações de uma sociedade Kadiwéu outra, em que «Os antigos ideais da cultura Kadiwéu que honraram no homem a coragem, o herói, e na mulher o virtuosismo, a artista, continuam vivos apenas para elas». (Ribeiro D. 1980: 263) Neste ínterim, compreendemos que o desenho, para as mulheres, tem uma dimensão de fortalecimento do grupo, de si mesmas e de seu papel social; e para os homens, indiretamente, expressam seu posicionamento e reavivam a memória de sua função na sociedade, tendo em vista o cumprimento destas pelas mulheres.
A pintura, portanto, «maior motivo de orgulho tribal» (Ribeiro D. 1980: 269), persiste viva nas cerâmicas, principalmente. O prestígio da artista está em dominar as técnicas do grupo ao qual pertence, e tornar seu objeto eficaz, conforme o papel que ele desempenha, a sua agência (Lagrou E. 2014). O papel do artista nesta atividade envolve a combinação de padrões conhecidos e aprovados pelo grupo, em que pode ocorrer uma lenta transformação destes que parte de cada artista, fruto de inquietações do mesmo, batalha «fonte de todas as formas de arte» (Ribeiro D. 1980: 268).
Produtora de corpos e pessoas, a arte é uma das formas de enunciado Kadiwéu, na medida em que suas ações e emoções são conhecimentos "incorporados" pelos Kadiwéu no momento da pintura dos corpos no passado, e hoje, dos objetos. A pintura entre os Kadiwéu é como «o tecer das mulheres Kaxinawa, um conhecimento dos olhos e das mãos» (Lagrou E. 2007: 312).
Com os argumentos mercadológico e patrimonial, especialmente o último, Darcy Ribeiro monta sua teoria da arte nos Kadiwéu, porém, assim como demonstramos em Boggiani e Lévi-Strauss, Ribeiro introduz outra visão acerca da arte, uma terceira, a qual não consolida, embora apresente.
Em comparação com as descrições de Boggiani, Ribeiro ressalta a manifesta disparidade entre a concepção do desenho ornamental e primoroso feito antes e a sua realização pobre, titubeante, de agora.
Os desenhos atuais são designados de maneira particular nos seus padrões, sendo estas nomenclaturas materiais preciosos para o estudo dos seus significados. As figuras geométricas básicas do desenho são nomeadas como:
«[...] nadjéu, para as composições de losangos; lauí-léli ou náti-teuág, para os espiralados; agol-ho, para os círculos; noho-oi-lad, significando escalonados; áu-on-na, para os baseados em ângulos grossos; nikén-narnálat, para as linhas cruzadas e, ainda, io-tédi, para os estrelados e nídíg, para designar um padrão muito comum na cerâmica que consiste num triângulo irregular tendo a linha maior escalonada e um pequeno triângulo inscrito» (Ribeiro D. 1980: 271).

Os Kadiwéu indicavam também os padrões em referência à parte do corpo em que era disposto: «[...] ono-ké-dig, sobre o nariz; odipíi-dena, sobre as maças; odá-tp-koli, na testa; io-kodrá-dígi, no colo; odo-ládi, nos braços» (Ribeiro D. 1980: 271). Esta nomenclatura sugere que a natureza dos desenhos seja puramente formal, não simbólica ou figurativa.
Além disso, houve um tempo em que como os apelidos pessoais, os desenhos eram patrimônios de família, sendo uma ofensa grave seu uso indevido - diferentemente de hoje, em que todos do grupo usam os padrões de desenho, no rosto ou na cerâmica, indistintamente. Decorre daí que Ribeiro percebe que «[...] os estilos não são estáticos, mas processos em contínua, embora lenta, transformação, que se faz por iniciativa de seus próprios cultores». (Ribeiro D. 1980: 268)
Ou seja, os estilos não são estáticos, tanto em relação ao fundo de base patrimonial imaterial cultural, quanto em relação às três características da mudança da arte - que em Ribeiro são a mudança de habitat, de aculturação e de sobrevivência – em que se encaixa o contexto mercadológico. Neste, a ceramista passa a fabricar objetos como peixes decorativos de parede, com pinturas Kadiwéu, que antes não era costume fazer.
Destes fatos, de diferenciação da qualidade artística e de sua nomeação formal, podemos destacar que o objeto da arte personifica os processos técnicos, conforme Gell (2005), sendo que a arte é orientada «na direção da produção das consequências sociais que decorrem da produção desses objetos» (Gell A. 2005: 45).
Portanto, o sistema técnico que promove uma transferência esquemática entre a produção de arte e o processo social, no caso das sociedades indígenas, habitaria dois lugares: o ritual, que é político, e o de troca, que é cerimonial e comercial. Os dois lugares em que a arte está situada, ritual e de troca, são encontrados e problematizados nas palavras dos três autores mencionados neste artigo.

Arte como ritual (produção)
Arte como troca (reprodução)
Aspecto político
Aspectos cerimonial e comercial

Podemos aferir que há novas maneiras de compreensão da arte Kadiwéu, que os autores não teriam observado, quais sejam, àquelas referentes aos aspectos relacionais que a mudança de um sistema técnico de troca comercial/ ritual traz para outra realidade, de um sistema técnico de troca cerimonial/ ritual. Ou mesmo que o aspecto ritual, político, deixe a política para o aspecto de troca, e pegue para si a característica cerimonial/ comercial, diálogo e duelo simultaneamente.


Arte como ritual (reprodução)
Arte como troca (produção)
Aspectos comercial e cerimonial
Aspectos comercial e político

Ritmo, repetição, alternação, intercâmbio, simetria/assimetria de eixo horizontal, vertical ou radial, contraposição, proporção e os muitos estilos de compor uma pintura facial ou de cerâmica, não são relações (entre arte como ritual e arte como troca) que variam, mas são variações que relacionam (Viveiros de Castro E. 2002).
Estes três exemplos de pensamento acerca da arte Kadiwéu expressam a agenda de suas possíveis comunicações, como participante de uma dinâmica de relações e não relações que a arte em potência pode produzir e/ou reproduzir, sendo que aqui buscamos atentar para a circulação de pessoas, objetos, regras, propósitos, que na arte não se encaixa em dualismos, sejam eles entre produção e representação, função sociológica e papel, mercado e patrimônio, consciência nacional que é troca, esfera relacional que é ritual.


Conclusão
Em resumo, vimos que em Boggiani a arte Kadiwéu é produção e reprodução da realidade. Embora o autor afirmasse que não captava bem o significado preciso desta prática, observava que a arte era feita por mulheres, senhoras Kadiwéu, em suas cativas de outras etnias, que reproduziam a pintura arabesca em pessoas, objetos, animais, tecidos, e que em ocasiões especiais os desenhos variavam, de pintura breve à tatuagem, dependendo da posição social do indivíduo, do contexto cerimonial, etc. Ou seja, em Boggiani a arte não esta definida como consciência social ou esfera relacional, mas tendemos a interpreta-la como tendente à consciência nacional.
Já em Lévi-Strauss, o estilo de arte Kadiwéu forma um sistema de dualismos que dialogam e duelam, o primeiro simétrico e binário, entre cativos e não-cativos por exemplo, e o segundo assimétrico e ternário, entre homens e animais, natureza e cultura, homens e mulheres. Num há a função sociológica da arte, noutro há a arte como papel, representativa da humanidade, da feminilidade, da cultura. Disso provém que em Lévi-Strauss nem a consciência nacional nem a esfera relacional da arte são enfatizadas, pois que em cada um destes dualismos do sistema, existe uma parte inconsciente.
Para Ribeiro, cujo objetivo maior é buscar o significado dos mitos em relação à cultura, a arte é um patrimônio cultural imaterial dos Kadiwéu, sendo assim tratada por eles, mas que se transforma em consequência da mudança de habitat, aculturação e adaptação para a sobrevivência. Esta segunda visão da arte eu intitulei mercadológica, pois o mercado é o principal argumento de Ribeiro para a decadência da primeira visão da arte, como patrimônio.
Deste modo, em Ribeiro a consciência nacional explicaria sua teoria da arte em parte, já que a esfera relacional introduz alterações neste panorama, vistas pelo antropólogo brasileiro como ruins.
Neste artigo buscamos problematizar a relação da arte enquanto consciência nacional ou esfera relacional utilizando a teoria de Alfred Gell. Para este autor, as sociedades indígenas produzem a arte como um sistema técnico que está dividido em ritual, que é político, e de troca, que é cerimonial/ comercial.
Num jogo entre o dualismo de Gell, rito e troca, e os dualismo de Boggiani, produção e representação, de Lévi-Strauss, simétrico e assimétrico, e de Ribeiro, patrimônio e mercado, a ideia aqui foi mostrar que para além da relação de estar para, entre troca e consciência nacional e ritual e esfera relacional, como nos fazem crer os três autores em relação a Gell, poderíamos dispor as variações: troca cerimonial/ comercial e consciência nacional, esfera relacional e ritual, movimentando os dualismos em suas caracterizações.

Boggiani
Lévi-Strauss
Ribeiro
Gell
Arte como produção
Função sociológica
(dualismo simétrico e binário)
Arte em sua visão patrimonial
Arte como sistema técnico ritual
Arte como reprodução
Papel social
(dualismo assimétrico e ternático)
Arte em sua visão mercadológica
Arte como sistema técnico de troca (cerimonial/ comercial)

Ou seja, aspectos da arte na organização cultural e social dos Kadiwéu que são "sinais diacríticos" da relação interétnica de construção da identidade atual (Siqueira Jr J. 1993: 73), nos fazem compreender que esta sociedade «[...] se baseia na assimilação do outro e na transformação do outro no mesmo» (Pechincha M. 2000: 8). O outro, outrora inimigo de uma sociedade guerreira e/ou incorporado pela lógica predadora, no plano atual exibe formas diversas de atuação.
No âmbito da arte, as variações da relação arte-Kadiwéu-outro percorrem os longos anos de sua história, em diálogo e duelo, na troca e no ritual. É o que se tem observado no estudo do caso "Copyright by Kadiwéu", acordo para registro de patentes de desenhos Kadiwéu a serem reproduzidos na reforma de um bairro da antiga Berlim Oriental, em 1997 (2).
Neste momento, o artesanato se transformou em arte abstrata – denominação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para o processo de patenteamento de suas pinturas - e os Kadiwéu se viram bombardeados por outras relações possíveis com sua arte, do ponto de vista interno e externo (3).
Em geral, os modernos têm a prática de fabricar fetiches entre os outros povos com que se conectam, como um ponto diferenciador do olhar a arte, em que os "outros" atribuiriam valor encantado aos objetos artísticos ligando-os às divindades e ancestrais cultuados, e os modernos não. Porém, Latour (2002; 2008) aponta que a relação de fabricação de fetiches não nos separa, mas sim, nos une.
Tendo em vista que este artigo se propôs a refazer o caminho de construção do olhar sobre a arte Kadiwéu, em Boggiani, Lévi-Strauss e Ribeiro, com o fito de compreender como que o olhar sobre a arte Kadiwéu mudou em sintonia seja com a mudança daquele que os observava, em seu tempo, seja com a transformação do próprio grupo, podemos concluir que os três anunciam alguma abertura e problematização da arte para além da definição de reprodução/ representação, e mais que dando soluções, nos mostraram que «[...] as diferenças não existem para serem respeitadas, ignoradas ou subsumidas, mas para servirem de isca aos sentimentos, de alimento para o pensamento» (Latour B. 2002: 106).


Notas

(1) A antropologia da arte tem dado exemplos disso nas etnografias sobre as pinturas visionárias xamânicas da Amazônia máscaras Wauja, de Barcelos Neto (2008), nos padrões Kene entre os Kaxinawa observados por Lagrou (2007), nos experimentos dos Ashaninka e Wayana (Velthem, 2003), na decoração corporal dos Piaroa em Overing (1991), entre muitos outros. Fora do americanismo tropical, a referência a este campo temático seria o estudo do poder da tábua de proa entre os trobriandeses por Gell (2005).
(2) Do ponto de vista urbanístico participaram as instituições: pelo Brasil, os índios Kadiwéu, representados pela Associação das comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu (ACIRK) ; a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o escritório de arquitetura e design Brasil Arquitetura. Pela Alemanha, a empresa construtora Wohnungsbaugesellschaft Hellersdorf (WoGeHe) e o Institut für Forschung Städtische und Strukturpolitik (Instituto para Investigação Urbanística e Política Estrutural / IFS).

(3) Externos e internos tais como: castiçais Anoã, relógios Hádi, Lixeira Xaraye e Projeto Willie - um kit contendo um livro da cultura Kadiwéu, um CD Áudio com músicas étnicas e um CD Rom do livro, em formato eletrônico (Bittar Y. 2011), um desfile de moda e artesanato em bijuterias organizado por Benilda Kadiwéu nos anos de 2011 à 2013, nos municípios de Bodoquena e Campo Grande.

Bibliografia

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