GUILGER, F. J.; FORATO, T. C. M.. A Divina Comédia de Alighieri e o Geocentrismo Medieval na Escola Básica. XXI Simpósio Nacional de Ensino de Física. UFU, UFTM, SBF. Universidade Federal de Uberlândia, MG. 26 a 30 de janeiro de 2015. Atas...

July 15, 2017 | Autor: T. Cyrino de Mell... | Categoria: Historia da Ciência, Ensino de Física
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XXI Simpósio Nacional de Ensino de Física – SNEF 2015

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A divina comédia de Alighieri e o geocentrismo medieval na escola básica. Fernando J. Guilger1, Thaís C. M. Forato 2 1

UNIFESP [email protected] 2

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Resumo Este trabalho apresenta a síntese de uma proposta didática para o Ensino Médio, propondo uma abordagem histórica da ciência em interface com a arte, a partir de um trecho de A Divina Comédia de Dante Alighieri. Objetiva-se discutir o modelo Geocêntrico de Universo de modo contextualizado e proporcionar reflexões epistemológicas, por exemplo, sobre a diferença entre observar a natureza e construir modelos explicativos na ciência. Os fundamentos metodológicos para a proposta utilizam as perspectivas de Zanetic (2006) e Reis e colaboradores (2006), que defendem a interface entre arte e história da ciência para uma compreensão da Ciência enquanto produção socio-histórica, influenciando e sendo influenciada por elementos de seu entorno cultural. Para o desenvolvimento das aulas, utilizou-se os parâmetros propostos por Forato (2009), que contemplam requisitos da didática das ciências e da historiografia contemporânea. Como resultado, apresenta-se um breve planejamento para quatro aulas, incluindo atividades, análise comentada do trecho do poema A Divina Comédia e sugestões bibliográficas de apoio ao professor.

Palavras-chave: Geocentrismo, História da Ciência, Ensino de Física, Escola Básica, Literatura no Ensino. Introdução – História das ciências e literatura no Ensino de Física Dante Alighieri, poeta florentino do século XIII e XIV d.C, destacou-se pela publicação de A Divina Comédia, série de poemas que captam o espírito político, cultural e religioso do período, narrando as peregrinações do poeta pela dimensão espiritual. Dentre os aspectos tratados na obra, encontramos referências a Cosmologia da época. Visando abordar o modelo Geocêntrico de maneira contextualizada, selecionamos, para este trabalho, o trecho da explanação feita por Beatriz no Paraíso, acerca da hierarquia celeste (ALIGHIERI, 2010b, p.21-24). Consideramos este recorte interessante, por estabelecer relações entre a doutrina aristotélico-ptolomaica (MARTINS, 1994, AVENI, 1993) e as classes angélicas pseudo-dionísicas (YATES, 1964), apresentando como era entendido o funcionamento dos movimentos celestes naquela época. Isso permite trazer a visão holística1 presente na Idade Média de modo contextualizado, a partir de um texto da época, visando contemplar as inter-relações entre concepções de mundo e atividades humanas, como a arte, por exemplo (ZANETIC, 2006). A Divina Comédia é um clássico da literatura internacional, fonte de inúmeras referências na mídia, desde citações esporádicas até obras claramente

1 Que defende uma visão integral e um entendimento geral dos fenômenos. "holistico", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008 2013, http://www.priberam.pt/DLPO/holistico [consultado em 26-03-2014]. ____________________________________________________________________________________________________ 26 a 30 de janeiro de 2015

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inspiradas, como jogos de vídeo-game, pinturas, livros2 portanto, ainda que indiretamente, uma obra conhecida. Sua presença em livros didáticos, como por exemplo, em Pietrocola e colaboradores (2010), também demonstra sua pertinência para abordar o Geocentrismo. Quando se compreende a Ciência enquanto produção socio-histórica, influenciando e sendo influenciada por elementos de seu entorno cultural, as diversas manifestações da arte, como literatura, música, cinema, pintura, por exemplo, surgem como estratégias para favorecer a transdisciplinaridade, conjugando a dimensão científica e metacientífica com a dimensão artística e cultural (FORATO et al., 2012; REIS et al., 2006; ZANETIC, 2009). Estabelecer uma ponte entre História e Filosofia da Ciência (HFC) e Literatura pode contribuir tanto como estímulo à leitura, quanto ao entendimento da ciência como parte de um contexto histórico-cultural, que não apenas é influenciada pelo seu meio, mas também o influencia. Como mencionado por Zanetic, em 2006: Tomando os cuidados recomendados pelo nosso historiador de plantão, Roberto Martins, em artigos recentes, podemos estabelecer alguns paralelos entre ciência e arte ao longo da história. A ciência e a arte, assim como toda realização humana, estão conectadas com as condições históricas de sua concretização. [...] Dante Alighieri, que viveu de 1265 a 1321, no seu poema épico A divina comédia, demonstrou a forte influência do pensamento aristotélicoptolomaico, a partir da leitura produzida por Tomás de Aquino, responsável pela aproximação desse paradigma aos ensinamentos e dogmas da Igreja de então. O paraíso de Dante é formado por nove céus concêntricos girando em torno da Terra imóvel, seguindo de perto uma descrição de Ptolomeu. (ZANETIC, 2006, p.48-49).

Tendo em mente esta perspectiva, surge a seguinte questão de pesquisa: como desenvolver uma proposta para aulas de física no Ensino Médio, que possa favorecer a compreensão da Ciência como elemento da cultura de uma época? Tentando responder a esta pergunta, utilizamos o Canto II da referida obra (ALIGHIERI, 2010b, p.21-24) para introduzir a interpretação do Modelo Geocêntrico do Universo no contexto histórico do início do século XIV. Uma proposta piloto foi aplicada no âmbito de um projeto do PIBID3 (GUILGER et al., 2013), cuja boa aceitação, algumas limitações e demais resultados da sala de aula motivaram sua ampliação, conforme comentaremos na seção metodologia. Devido às limitações de espaço, e visando atender a necessidade de propostas com orientações metodológicas para o uso da HFC na sala de aula (MARTINS, 2007), optamos por apresentar o resultado final da pesquisa: a proposta aprimorada, incluindo breve planejamento didático para o professor. Caminhos para o desenvolvimento da pesquisa - metodologias O desenvolvimento deste trabalho surgiu a partir de uma problemática defrontada na escola, no contexto do PIBID. Com base em avaliações de turmas de 2

Um claro exemplo recente é o livro Inferno, de Dan Brown. Embora seja uma ficção, com os conteúdos apresentados a partir de uma perspectiva peculiar de seu autor, o livro alcança grande sucesso e está sendo cotado para a produção de um filme em 2016. 3 Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência. ____________________________________________________________________________________________________ 26 a 30 de janeiro de 2015

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primeiro ano, foram detectados alguns indícios de uma visão confusa e limitada sobre a ciência e aspectos de sua construção (GIL PÉREZ et al., 2001). Tais indícios levaram ao desejo de encontrar uma abordagem que permitisse problematizá-los. Para tanto, fez-se necessário pensar qual concepção de Ciência permeia a prática docente, ou seja, a reflexão sobre a prática (ROLDÃO, 2007). Partindo do pressuposto de que o discurso do educador é permeado pelos seus valores, portanto, não-neutro, buscamos traçar qual visão de Ciência desejávamos comunicar. Pensando em Ciência como uma construção permeada pelo contexto em que se insere, considerou-se que uma forma de trazer à tona esses fatores era usar como abordagem algo que evidenciasse estes aspectos. Acreditamos que episódios da história das ciências permitem explicitar sua relação com outros saberes de uma determinada cultura. Neste caso, escolhemos a interface entre Ciência e Literatura, por acreditarmos que o trecho recortado da obra de Dante, atende justamente a estes fatores socioculturais envolvidos com a visão Geocêntrica na Idade Média. Inúmeros desafios permeiam a utilização de HFC no Ensino, e tanto a literatura na área (FORATO et al., 2012; MARTINS, 2007; MATTHEWS, 1995), quanto a experiência obtida em sala de aula (PIBID), demonstram a necessidade de que a inserção seja cuidadosa, contínua, não bastando uma intervenção pontual. O plano da proposta piloto, desenvolvida e aplicada no âmbito do PIBID, surgiu com o intuito de problematizar a visão Geocêntrica de mundo. Além de conteúdos pertinentes ao modelo Geocêntrico, objetivava-se desconstruir a visão de uma ciência de crescimento linear (GIL PÉREZ et al., 2001), além da concepção de que os antepassados eram ignorantes e atrasados por não terem atingido nosso conhecimento atual. Mostrando que as ideias da época eram fundamentadas por uma visão de mundo diferente, objetivou-se diferenciar a observação dos fenômenos celestes da explicação construída sobre eles (MARTINS, 2006). Buscou-se, assim, apresentar como diversos modelos podem “atender” ao mesmo fenômeno, e como a sua aceitação está sujeita a determinados pressupostos do seu contexto histórico. Afinal, o Sistema Ptolomaico atendia com boa precisão as necessidades da época, a despeito de sua complexidade (MARTINS, 1994, capítulo 6; AVENI, 1993, capítulo 5). Desse modo, além de destacar a importância do modelo Geocêntrico, preocupou-se em desmistificar a história medieval, retratada como período de atraso intelectual. Naquele contexto inicial do PIBID, trabalhar essa temática com uma abordagem de Arte e HFC suscitou questões em que as concepções prévias foram defrontadas com o conhecimento discutido (ZYLBERSZTAJN, 1983), propiciando o debate sobre a Natureza da Ciência, relações da ciência com a religião e o interesse pela Astronomia. Apesar da boa receptividade, os resultados também indicaram que o tema precisava de aprofundamento, visto que a concepção de Ciência presente no discurso dos alunos estava carregada de aspectos deformados sobre a ciência, como os apontados por Gil Pérez e colaboradores (2001). O plano predecessor avaliado trazia a proposta de se trabalhar a HFC em convergência com a arte. Os dados obtidos naquela intervenção apontaram bons indicativos em se usar a referida obra de Dante Alighieri, para introduzir o tema do Geocentrismo em aulas de Física (GUILGER et al.,, 2013). A inovação desta sequência em relação à anterior é um maior destaque ao poema, usando-o quase ____________________________________________________________________________________________________ 26 a 30 de janeiro de 2015

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que integralmente, como um meio de sintetizar e exemplificar o conteúdo visto, ao invés do caráter introdutório utilizado anteriormente. Tanto a curiosidade dos estudantes com alguns conteúdos omitidos, quanto sua dificuldade em compreender a complexidade de certos aspectos apresentados do Geocentrismo — que destoava de conhecimentos prévios, ligados a uma visão mais simplista do Sistema, relacionado a uma interpretação da Idade Média como uma época de ignorância científica — foram fatores motivadores para um maior espaço e tempo dedicado a proposta com o poema. Para o desenvolvimento das propostas foram utilizados os parâmetros propostos por Forato (2009), que auxiliam a adequação de conteúdos da HFC para a sala de aula. Inicialmente, os parâmetros requerem o estabelecimento dos objetivos pedagógicos (descritos abaixo), e, a partir de então, oferecem 19 reflexões para auxiliar a seleção do tema e recorte históricos, a abordagem de aspectos conceituais da ciência e de seu contexto, a proposição de diferentes estratégias didáticas, bem como a consistência entre objetivos objetivados e efetivamente mobilizados. Resultado A proposta consiste em um planejamento didático para quatro aulas. Apresentamos uma síntese4, com as ideias centrais a serem desenvolvidas: Nível de Escolaridade: 1º ano do Ensino médio Tema: História da Astronomia Objetivos pedagógicos: 1. Aprender como o fenômeno de movimentação celeste foi entendido em um determinado período histórico, de acordo com seu contexto; 2. Compreender pressupostos do Modelo Geocêntrico de Universo; 3. Discutir suas limitações como mote para a introdução do Modelo Heliocêntrico e as Leis de Kepler; 4. Perceber a diferenciação entre fenômeno natural e explicação; 5. Perceber a ciência como parte da cultura e construto de um contexto sóciohistórico. Conteúdos: Geocentrismo; modelos na ciência; contexto histórico do século XIV. Descrição das atividades: Aula 1: Iniciar a aula abordando sobre as Grandes Navegações, tema que eles já devem ter visto em História. Propor a seguinte questão: “Como os marinheiros conseguiam saber sua localização?” Após um breve debate, faz-se a leitura conjunta do texto “Guiados pelas Estrelas” (GUILGER, 2012). A ideia é mostrar como um entendimento do céu noturno era importante para o cidadão medieval. Discutir como Aristóteles dividia o Universo nas categorias sublunar e supralunar, os argumentos que corroboravam tal visão e como a matéria era 4

Devido a limitações de espaço não é possível apresentar todo o planejamento pedagógico em detalhes. Oferecemos uma visão geral da proposta, que será descrita de modo integral em um artigo a ser submetido a um periódico científico, após a interlocução com a comunidade no evento.

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entendida em cada uma dessas subdivisões, mostrando as propriedades de cada um dos quatro elementos e do éter (MARTINS, 1994, capítulo 6). Explicar que esse Universo era fechado, finito, indo até o limite visível, os planetas são entendidos como “estrelas peregrinas”, dotadas de qualidades humanas, sendo esferas de luz diminutas, ao contrário da concepção moderna de planetas. Lembrando que a visão medieval ocorre a partir de uma reinterpretação hermética5 da visão aristotélica. Pode-se usar um trecho do filme Ágora (AMENÁBAR, 2009), para mostrar a visão geocêntrica (MARTINS, 1994; AVENI, 1993, YATES; 1964). Aula 2: Trazer o poema (Trecho de Canto II, Paraíso) de Dante Alighieri aos alunos e o contexto da época em que foi escrito (veja quadro 1 abaixo). Cabe mencionar que o termo Comédia, nome dado originalmente por Dante, se refere à poética aristotélica, em contraposição a tragédia. Enquanto esta se refere a pessoas e feitos nobres, a comedia fala de homens comuns, geralmente recorrendo a sátira política ou ideológica. É importante esclarecer isto, pois comédia (no sentido moderno) tem um cunho necessariamente humorístico.6 Trazer uma breve biografia do autor, utilizando imagens em slides; e falar da importância do poeta.7 Propor aos alunos que interpretem o texto, buscando seu significado. Utilizar perguntas como: Qual relação possui o texto apresentado com o conceito de Geocentrismo? Dante está preocupado com as manchas visualizadas na Luz. Por que isso o preocupava? (Leve em consideração o que foi dito sobre a Física de Aristóteles). Aula 3: Interpretar o texto com os alunos, podendo-se utilizar suas respostas prévias, a partir de perguntas relacionadas a um conjunto de versos, ou usar uma apresentação puramente expositiva, se necessário. O intuito é expressar a concepção cosmológica presente no texto (Conferir Quadro 1). É interessante acrescentar certas características que são subjetivas no poema, como a relação de ordens angelicais e a quantidade de orbes (YATES, 1964); ou mesmo a importância da Astrologia para época, que entendia o funcionamento do mundo como uma relação entre o macrocosmo (Universo) e microcosmo (Homem) (AVENI, 1993; MARTINS, 1994, capítulo 5). Aula 4: Sistematização do conteúdo trabalhado nas aulas anteriores. Pedir aos alunos que descrevam com suas palavras o que entendeu do assunto, elaborando eles mesmos um poema, uma redação, uma representação artística sobre a visão geocêntrica do Universo. Os trabalhos resultantes podem ser posteriormente apresentados em uma Feira Cultural. Quadro 01: Exemplo da interpretação do conteúdo do poema Versos (páginas 21-24)

Interpretação

“Senhora”, respondi, “agradecido A Ele (Deus) estou, por entre outras primazias, Me haver do mundo mortal removido.

Dante foi levado do plano terreno, material, ao plano espiritual, para conhecer o Inferno, Purgatório e Paraíso. Estando diante do Paraíso, nessa parte da narrativa. É importante apresentar o contexto do livro aos alunos (ALIGHIERI, 2010b).

5 Conjunto das doutrinas esotéricas, filosóficas e religiosas associadas a Hermes Trismegisto, representação sincrética do deus grego Hermes e do deus egípcio Tot. "hermetismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/hermetismo [consultado em 29-03-2014]. 6 Prefacio da 2ª edição da Obra: ALIGHIERI, 2010a, p. 7 7 Neste sentido, é interessante fazer uma breve citação de obras que derivam da Divina Comédia. Sugerimos alguns exemplos: O livro Inferno (Dan Brown, 2013), narrando as aventuras do simbologista Robert Langdon; as músicas Dante’s Prayer (Loreena McKennitt, 1997) e Dante’s Inferno (Iced Earth, 1995); o jogo de vídeogame Dante’s Inferno (EA Games, 2010).

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Mas, o que são essas manchas sombrias Deste corpo, (Lua) que lá embaixo na Terra Sobre Caim (humanidade) despertam fantasias?”

dize o que por ti a respeito pensas”. E eu: “O que nos parece aqui diverso De massas leves julgo o efeito, ou densas”.

Na oitava esfera muitos há, luzentes Lumes (estrelas) dos quais, no qual como no quanto, Podem notar-se aspectos diferentes. Se raro e denso isso causassem tanto, Só uma virtude em todos estaria, Mais repartida ou menos; entretanto se rarear fosse a razão Das manchas que indagaste, ou parte a parte Deveria ter de massa privação Este planeta; (...)

(...) ver-se-ia mui bem, Nos eclipses de Sol, transparecer Seu lume, como em corpo raro advém. Desde que o raro todo não perpasse O corpo, haverá um ponto desde o qual Irá a matéria densa obstar que passe A luz, que então vai refletir-se, qual Toda cor volta do vidro polido Cuja outra face disfarça um metal. (espelho) (...)No nono céu, o da divina paz, Um corpo gira, no poder de Quem O ser de tudo que ele abrange jaz. O seguinte, (oitavo) que tantos lumes tem, O reparte em essências diferentes, Dele distintas, que ele contém. Os outros céus, nos modos pertinentes Às virtudes de vária condição, Distribuem os seus fins e as suas sementes. Que do alto tomam e pra baixo dão. O movimento e a virtude dos céus, Qual, do ferreiro, a obra do martelo, Deve provir dos beatos anjos seus; E o Céu, que tantos lumes fazem belo, Da excelsa Mente que o move assimila A imagem santa e faz dela o seu selo.

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Dante questiona a razão de manchas na Lua, que invalidariam ou colocaria em dúvida a concepção aristotélica de Universo, que atribuía a todos os corpos celestes um caráter perfeito, incorruptível. Como o mundo supralunar de Aristóteles ela imutável e imaculado, as manchas lunares eram usadas como argumento contrário a visão aristotélica predominante (MARTINS, 1994). Beatriz questiona o uso exclusivo da razão para a explicação dos fenômenos, entretanto, pede que Dante diga sua opinião a respeito. Ele, de pronto, responde que pode ser devido a variações de densidade. Dante aqui apresenta uma das argumentações da época para explicar as manchas: Elas seriam causadas por buracos na superfície lunar, que seria um corpo sólido, material. Beatriz contra-argumenta que apenas a variação de densidade não seria o suficiente para produzir o efeito observado nas estrelas, que são diferentes umas das outras. A outra crença era de que os corpos celestes eram compostos de éter, um ente material com propriedades distintas da matéria terrestre dos quatro elementos (MARTINS, 1994). Ela diz ainda que se as manchas se devessem a diminuição de densidade (buracos) em partes da Lua e demais objetos celestes, eles apresentariam vácuos em sua matéria. A concepção de vácuo é totalmente inconcebível para os aristotélicos, buracos são imperfeições que para Aristóteles seriam inexistentes na região supralunar (MARTINS, 1994). Se assim fosse, diz ela, esses “buracos” ficariam patentes nos eclipses, deixando a luz solar transparecer por essas cavidades. Assim sendo, a completude do corpo impede que os raios de luz ultrapassem a limitação do corpo.

Aqui, ela explica a hierarquia celestial: Do último céu (9º) parte a essência para a movimentação das esferas seguintes; O oitavo céu é o das estrelas fixas, onde cada estrela opera como um espelho da Glória Divina, dividindo esse poder em vários fragmentos. Os sete céus correspondem aos “céus dos planetas”, e também repartem esse poder divino, além de serem os responsáveis por determinar as características das pessoas, de acordo com combinações posicionais em relação aos signos do Zodíaco. O que dá movimento as esferas celestiais, é o trabalho incessante dos anjos, onde cada classe angelical corresponde a uma esfera. (Ordens pseudo-dionisíacas) Essa explicação serve para estabelecer uma amalgama entre os conceitos físicos estabelecidos e

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E como a alma, dentro à vossa argila (corpo), A cada único membro a faculdade Que lhe é conforme dispensa e vigila, Assim a Inteligência a sua bondade Por todas as estrelas multiplica, Enquanto gira sobre a sua Unidade.(...) Pela alegre aptidão da qual deriva, Essa virtude no corpo reluz, Como letícia na pupila viva. Dela provém o que de luz a luz Vário parece, e não de denso a raro; Esse é o formal princípio que produz Conforme sua valia, o turvo e o claro”.

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a concepção religiosa do período. Em outras palavras, a razão do fenômeno observado é apresentada como uma intervenção direta de Deus na natureza (YATES, 1964; AVENI 1993). Por fim, ela conclui dizendo que assim como a alma estabelece distintas funções para cada membro do corpo, Deus emana a luminosidade vista nas estrelas, que tanta alegria traz ao coração humano. Esse efeito de grande beleza, nada mais é que a Bondade Divina espelhada através das estrelas. Como essa repartição não é feito de modo homogêneo, o efeito que se perceberia é o de claro e escuro. Então, no lugar de termos uma relação de irregularidades na superfície lunar, o efeito observado seria apenas uma relação de luminosidade. É importante frisar durante a explanação, que essa era a explicação da época, e hoje compreendemos o fenômeno de um modo diferente, que serve a propósitos distintos daqueles do período (ALIGHIERI, 2010b).

Considerações Finais Compreende-se que existam algumas dificuldades para a aplicação desta proposta, como a presença de um vocabulário e construção textual rebuscados, para o estudante da Escola Básica. Entretanto, entende-se que a mesma pode ser, igualmente, um interessante desafio ao professor e aluno, convidando ambos a descobrirem novas perspectivas e formas de escrita, aliadas a discussões sobre a natureza da ciência. Colocar os estudantes em contato com a poesia do período pode ser uma experiência enriquecedora para observar algumas relações entre o pensamento cosmológico e outras esferas sociais. Além disso, permite desconstruir preconceitos comuns com o tema da visão geocêntrica, mostrando que tal entendimento não se devia a uma ignorância conceitual dos fenômenos, mas a uma percepção distinta de como eles se davam. Envolver o estudante em diferentes estratégias pedagógicas permite trabalhar diversas competências e habilidades, quando se busca trazer o aluno para uma posição mais ativa em aula, convidá-lo a reflexão. Por exemplo, compreender como o domínio da posição dos astros era importante para as navegações, já que os navios dependiam de um conhecimento elaborado das cartas celestes para se localizarem em meio ao Oceano. Além disso, é importante pensar em como o modelo geocêntrico é mais intuitivo que o heliocêntrico, embora utilizemos este no lugar daquele. Apresentar ao aluno essas questões permite trazê-lo para um ponto de reflexão crítica de como a Ciência se estabelece e interage com a sociedade. Deste modo, entende-se que a Divina Comédia pode ser um excelente recurso para ensinar Ciências sob uma perspectiva contextualizada historicamente. Referências ÁGORA (filme). Alejandro Amenábar, Mateo Gil, Rachel Weisz, Max Minghella, Oscar Isaac, Rupert Evans. Espanha, Mod Produciones, 2009. 127 min. son. Color. ALIGHIERI, Dante. A Divina Comedia: Inferno. Tradução: Italo Eugenio Marco. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2010. ____________________________________________________________________________________________________ 26 a 30 de janeiro de 2015

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ALIGHIERI, Dante. A Divina Comedia: Paraíso. Tradução: Italo Eugenio Marco. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2010. AVENI, Anthony. Conversando com os Planetas: Como o Mito e a Ciência inventaram o Cosmo. Tradução: Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Mercuryo, 1993. FORATO, Thaís Cyrino de Mello. A Natureza da Ciência como Saber Escolar: um estudo de caso a partir da história da luz. Tese de Doutorado. São Paulo: FEUSP, 2009. 2 vols. ______: Roberto de A. ; PIETROCOLA, Maurício . Enfrentando obstáculos na transposição didática da História da Ciência para a sala de aula.. In: Luiz Peduzzi, André Martins, Juliana Hidalgo. (Org.). Temas de História e Filosofia da Ciência no Ensino. 1ed.NATAL: EDUFRN, 2012, v. 1, p. 123-154. GIL PÉREZ, D.; MONTORO, I. F.; ALIS, J. C.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação 7 (2): 125-153, 2001. GUILGER, F. J.. Guiados pelas estrelas. [S.I.]: Novo Pion, 2012. Disponível em: .Acesso em: 22 fev. 2014, 14:36:50. GUILGER, F. J.; FORATO, T. C. M.; FAVA, G. A. Dos Nove Céus as órbitas Elípticas. In: IV Encontro Nacional das Licenciaturas e III Encontro Nacional do PIBID: Caderno de Resumos. Uberaba. p.471, 2013. MARTINS, A. História e Filosofia da Ciência no Ensino: há muitas pedras nesse caminho.... Caderno Brasileiro de Ensino em Física, v. 24, n. 1, p. 112-131, abr. 2007. MARTINS, R. A. O universo: teorias sobre sua origem e evolução. São Paulo: Editora Moderna, 1994. ______. A torre de Babel científica. Scientific American Brasil: Edição Especial Erros da Ciência, São Paulo, v. 6, n. 3, p. 6-13, out. 2006. MATTHEWS, M. História, Filosofia e Ensino de Ciências: a tendência de reaproximação. Caderno Catarinense de Ensino em Física, Florianópolis, v. 12, n. 3, p. 164-215, dez. 1995. PIETROCOLA, M. Física em Contextos: pessoal, social e histórico: movimento, força, astronomia. São Paulo: FTD, 2010. REIS, J. C.; GUERRA, A.; BRAGA, M. Ciência e arte: relações improváveis?. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 13, p. 71-87, 2006. ROLDÃO, M. C. Função docente: natureza e construção do conhecimento profissional. Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 34, p. 94-181, jan/abr. 2007. YATES, F. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. Tradução: Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo. Círculo do Livro, 1964. ZANETIC, J. Física e Arte: uma ponte entre duas culturas. Pro-posições, v. 17, n. 1 (49) – jan/abr. 2006. ZYLBERSZTAJN, A. Concepções espontâneas em Física: exemplos em dinâmica e implicações para o ensino. Revista de Ensino de Física. v. 5, n. 2 dez. 1983. ____________________________________________________________________________________________________ 26 a 30 de janeiro de 2015

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