Guilherme Pinto Ravazi - A sociedade dos povos como solução dos conflitos internacionais

June 16, 2017 | Autor: Revista Inquietude | Categoria: Pluralism, Ética, Relações Internacionais
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Guilherme Pinto Ravazi _____________________________

Introdução

A SOCIEDADE DOS POVOS COMO SOLUÇÃO DOS

O conflito entre os povos é uma realidade que permeia toda história da

CONFLITOS INTERNACIONAIS

humanidade. Não há registros de ocasião em que a paz reinasse soberana no mundo. O cenário das relações internacionais nos faz pensar que, ao menos entre

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RESUMO

povos, o conceito de justiça parece se adequar à concepção defendida pelo personagem Trasímaco na República de Platão segundo o qual “o justo é sempre a mesma coisa, a vantagem do mais forte” (República 339a). Na República,

O objetivo deste artigo é estabelecer o estado de coisas do problema dos conflitos internacionais. Em seguida, apresentar o projeto iluminista de Kant n’A Paz Perpétua que propõe uma série de princípios para o estabelecimento de uma Federação da Paz. Por fim, expor o projeto de Rawls no Direito dos Povos como uma solução para os conflitos internacionais.

Sócrates refuta essa definição de justiça mostrando que a mesma é espúria, pois

Palavras-chave: Ética Global. Pluralismo. Relações Internacionais.

concepção de justiça de Trasímaco se revela contraditória. No contexto global

se a justiça é a vantagem do mais forte, então é justo que os fracos obedeçam aos mais fortes. No entanto, pode acontecer que as ordens dos mais fortes sejam desvantajosas tanto para os mais fracos como para si próprios. Desse modo, a

devemos ser como Sócrates: não podemos aceitar o modo como a justiça se configura no cenário político internacional, precisamos refletir sobre a política e a THE SOCIETY OF PEOPLES AS A SOLUTION TO THE INTERNATIONAL CONFLICTS ABSTRACT

ética global com o intuito desenvolver uma teoria abrangente o suficiente para formar uma base sólida para medidas de regulamentação das relações entre os povos. É principalmente a partir de Kant, com a Paz Perpétua, que tentativas para

The aim of this paper is to discribe the state of affairs of the issue of international conflicts. Then I present Kant’s Enlightenment project in Perpetual Peace, which proposes a series of principles for the establishment of a pacific federation. Finally, I present Rawls’ project in The Law of Peoples as a solution to international conflicts.

suprir essa necessidade vêm sendo elaboradas. O objetivo deste artigo é examinar uma destas propostas – a ideia de uma Sociedade dos Povos, tal como desenvolvida por John Rawls no Direito dos Povos. Seguindo o caminho já apontado por Kant de que a paz entre os povos só poderia

Keywords: Global Ethics. Pluralism. International Affairs.

ser alcançado por meio de um contrato social que tornasse possível, nas palavras de Kant, uma “federação da paz (foeduspacificum)”, Rawls propõe uma Sociedade dos Povos entendida como uma “utopia realista” fundamentada em preceitos do liberalismo político.

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Graduando em filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). 86

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Dos conflitos em andamento, sete são motivados, por exemplo, por

Este trabalho está dividido em três seções. Na primeira seção, apresentarei os principais problemas gerados pelo nosso sistema de política mundial justificando a necessidade de teorias filosóficas que apontem as vias políticas para estabelecer a paz. A segunda seção é um relato do projeto filosófico presente no livro A Paz Perpétua de Kant no qual o filósofo propõe um elenco de artigos que regulamentariam as relações internacionais com o objetivo de promover a paz entre as nações. Por fim, na terceira seção, apresentarei a proposta de Rawls que, de modo análogo à Kant, elabora uma teoria da justiça voltada para a política externa a fim de extinguir as causas dos conflitos entre os

diferenças religiosas e/ou raciais. No Afeganistão o conflito se dá entre muçulmanos e não muçulmanos; na Nigéria, entre cristãos e muçulmanos; sunitas e xiitas no Iraque; judeus e muçulmanos em Israel; muçulmanos e não muçulmanos no Sudão; budistas e muçulmanos na Tailândia; Partido Comunista da China e budistas no Tibete.4 Não bastasse os conflitos armados por diferenças culturais, políticas e religiosas, convivemos com a economia global que funciona como um verdadeiro campo de batalha, no qual a competição pelo domínio econômico atinge níveis desumanos. Países com maior poder econômico dependem da pobreza dos países menos desenvolvidos para manter sua própria

povos.

riqueza.5 Esse angustiante quadro dos conflitos internacionais necessita de uma

Os problemas das relações entre os povos Segundo o último relatório do Instituto Internacional de Pesquisa em Paz de Estocolmo2 (sigla em inglês: Sipri) no ano de 2012 havia 37 conflitos armados em andamento. Analisando os relatórios anteriores notamos que o número de conflitos oscila de modo imprevisível. Embora a ONU tenha adotado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os conflitos armados entre os povos continua sendo uma cruel realidade. Ironicamente, os elementos em jogo na maioria dos conflitos em andamento são mencionados pela Declaração, no artigo que

atenção especial, tendo em vista que em tempos de globalização estamos cada vez mais interligados de modo que os eventos nunca são isolados. Episódios ocorridos no território de qualquer país produzem uma repercussão mundial. Assim, antes de analisarmos uma proposta de paz entre os povos parece fazer-se necessário compreender como funciona e como já funcionou o sistema político mundial. Segundo Nye (2009, p. 3), ao longo da história houve três formas básicas de política mundial – o sistema imperial, no qual um governo possui o controle da maior parte do mundo em que está em contato, como o Império

determina que

Romano, por exemplo; o sistema feudal, no qual as obrigações políticas não são Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.3

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fixadas primariamente por limites territoriais, mas por meio de um sistema hierárquico, cujo exemplo é a Europa do século V d.C. até meados do século XII e por fim, há o sistema anárquico de Estados,em que estes são relativamente

Cf. Disponível em (acesso em 15/09/14).

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Cf. Artigo disponível em (acesso em 15/09/14). 5 Essa questão é abordada por I. M. Young em sua obra Responsability for Justice. Inquietude, Goiânia, vol. 5, nº 2, ago/dez 2014

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coesos, mas sem um governo superior. Trataremos apenas este último, pois é o

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pois do “curso mecânico [da Natureza] transparece com evidência uma finalidade: através da discórdia dos homens, fazer surgir a harmonia, mesmo

sistema em que nos encontramos. Um dos fatores que contribui para haver tantos conflitos no sistema anárquico de Estados é o fato de que a legislação internacional não é observada

contra a sua vontade” (KANT, 2008, p. 23). Ele ressalta que esse plano de paz não implica um dever para a humanidade, ela ocorrerá quer queiram quer não:

pelos países do mesmo modo que pelos cidadãos em um sistema interno. Ou

Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros mal se dão conta de que, enquanto perseguem propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio proveito e frequentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como a um fio condutor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para sua realização, e, mesmo que conhecessem tal propósito, pouco lhes importaria. (KANT, 2004, p. 4).

seja, num sistema interno aquele que infringe as leis do Estado sofre punições e sanções legais claramente estabelecidas pela constituição. Na política internacional, por outro lado, embora exista uma legislação estabelecida pela Organização das Nações Unidas, esta não possui o mesmo poder coercitivo nem produz o mesmo efeito que uma constituição de um sistema interno. Como a

Portanto, o projeto filosófico de Kant visa acelerar um processo natural.

legislação internacional está baseada em sistemas legais concorrentes e,

Os artigos preliminares podem ser classificados como regras negativas, ou

infelizmente, não há entre os Estados um sentimento de comunidade, os Estados

como afirma Gerhardt (2005), “[...] condições que são impeditivos da paz.” A

mais poderosos tendem a fazer prevalecer sua vontade sob o perigo de usarem a

seguir apresento um resumo do conteúdo de cada um dos seis artigos

força para esse fim. Embora saibamos que existem relações pacíficas e pactos de

preliminares.

ajuda mútua na política mundial, a paz global que almejamos parece estar longe de ser atingida.

O primeiro artigo postula que não é válido nenhum tratado de paz que se faça com o intuito de se preparar uma guerra futura. Pois, nesse caso não seria paz, mas simples armistício. O tratado de paz deve aniquilar qualquer possível

A Paz Perpétua de Kant

causa para uma guerra futura. Um importante passo em direção a uma solução para o problema dos

O segundo artigo estabelece que nenhum Estado pode ser adquirido por

conflitos já foi dado há séculos pelo filósofo iluminista Immanuel Kant em seu

outro, pois o Estado não é um patrimônio, mas uma sociedade de homens que

livro A Paz Perpétua. O projeto filosófico da Paz Perpétua consistia em uma série

são os únicos que possuem direito de mandar e dispor dele. Anexá-lo a outro

de artigos divididos em “preliminares” e “definitivos”, cuja observância

Estado significa eliminá-lo.

possibilitaria que o mundo alcançasse a paz entre as nações. Segundo Kant, a

No terceiro artigo, Kant observa que com um tratado de paz estabelecido

própria Natureza6 teria como finalidade proporcionar a harmonia entre os

os exércitos se tornariam inúteis, mas que acima de tudo sua permanência

homens. No entanto, o caminho por ela planejado seria mais longo e doloroso,

implicaria em uma constante tensão. Assim, este terceiro artigo estabelece que

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Kant deixa bastante claro que não há nenhum aspecto religioso quando se refere à ‘Natureza’.

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os exércitos permanentes devem desaparecer completamente com o tempo. A ameaça de uma guerra obriga os Estados a investirem em armamento, de modo 90

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que o constante uso de dinheiro para fins belicosos pode ser mais opressivo do

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constituição republicana do que a partir de qualquer outra constituição na qual quem toma as decisões age como proprietário do Estado e não como membro.

que uma guerra curta.

2º Art. O direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres. –

O quarto artigo determina que se evite emitir muitas dívidas exteriores, pois a impossibilidade de pagar tais dívidas pode servir de justificativa para o uso

Neste artigo Kant defende que os Estados devem unir-se em uma federação de Estados. Pois, em escala maior, os Estados, fora do alcance de um elemento

de força e eventualmente causar uma guerra. O quinto artigo visa garantir a soberania dos Estados sobre questões internas. Logo, um Estado não deve interferir por meio da força na constituição e governo de outro. Se um Estado enfrenta uma luta interna, seria uma violação do direito do povo se um Estado estrangeiro interferisse nessa luta, isto colocaria em

coercitivo, são como os homens em um estado de natureza, ou seja, pela simples coexistência causam danos uns aos outros. É preciso que os Estados unam-se em uma federação em vez de fundirem-se em um único Estado.7 Enquanto um Estado funciona numa relação de superior legislador, a federação conserva a autonomia de cada povo em legislar conforme sua própria vontade. A origem dessa

risco a autonomia de todos os Estados. O sexto artigo chama a atenção para uma espécie de “ética” de guerra. Deve-se evitar o uso de envenenadores, assassinos, instigação à traição, etc. Os

federação seria a partir de um contrato social entre os Estados e não por meio da guerra que é, de acordo com Kant, o caminho “natural”:

Estados devem evitar hostilidades que tornem impossível uma paz futura.

O direito não se pode decidir por meio dela [da guerra] nem pelo seu resultado favorável, a vitória, e dado que pelo tratado de paz se põe fim a uma guerra determinada, mas não ao estado de guerra (possibilidade de encontrar um novo pretexto para a guerra, a qual também não se pode declarar como justa, porque em tal situação cada um é juiz dos seus próprios assuntos) (KANT, 2008, p. 17).

Mais afirmativos do que os artigos preliminares, os definitivos estabelecem a estrutura da federação dos Estados e seu funcionamento. A principal característica dos artigos definitivos é sua primazia pela preservação da autonomia de cada Estado. A paz se estabelece por um contrato entre Estados

A federação não buscaria obter o poder do Estado, mas teria como objetivo

autônomos e justos: 1º Art. A Constituição civil em cada Estado deve ser republicana. – A

apenas manter a paz interna do próprio Estado e entre os Estados, pois

Constituição civil de cada Estado deve ser republicana, porque é a única que

(...) a razão, do trono do máximo poder legislativo moral, condena a guerra como via jurídica e faz, em contrapartida, do estado de paz um dever imediato, o qual não pode todavia estabelecer-se ou garantir-se sem um pacto entre os povos: - tem, pois, de existir uma federação de tipo especial, a que se pode dar o nome de federação da paz (foedus pacificum) (KANT, 2008, p. 18).

deriva da ideia de contrato originário. Fundada nos princípios de liberdade e igualdade, a constituição republicana é a única que mantém a pureza de sua origem. Ela é a mais adequada para a paz perpétua porque em caso de ter que deliberar sobre entrar em guerra ou não, são os próprios membros da sociedade, isto é, os Estados, que deliberam sobre as questões que envolvem a guerra: os custos, a devastação e todas as outras consequências que uma guerra ocasiona. 7

Portanto, é muito mais difícil decidir iniciar uma guerra a partir de uma

Um exemplo atual da aplicação deste artigo e do ideal da Paz Perpétua é a fundação da ONU em 24 de outubro de 1945.

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Rawls estende sua teoria de justiça, interna ao Estado, para a realidade

3ºArt. O direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal. – Neste artigo Kant defende que para complemento da paz perpétua é necessário observar um direito cosmopolita. Kant enfatiza que hospitalidade não é filantropia, e sim o direito de um estrangeiro não sofrer hostilidades quando estiver visitando outros territórios. Na verdade, segundo Kant, nenhum homem

externa entendendo os povos como integrantes8 de uma Sociedade dos Povos. Em virtude disso, precisamos analisar conceitos desenvolvidos por Rawls em obras relacionadas à política interna para acompanhar o movimento de ampliação de sua teoria da justiça. O ‘pluralismo razoável’ é o principal conceito no Direito dos Povos.

possui mais direito que outro de estar em determinado local da Terra. O direito de visita “assiste todos os homens para se apresentarem à sociedade, em virtude do direito da propriedade comum da superfície da Terra” (KANT, 2008, p. 20). Kant faz uma digressão histórica mostrando como a inospitalidade acaba levando à guerra. O complemento da paz perpétua só é possível por meio desse direito que proporciona uma aproximação entre os povos. É claro que Kant estava pensando também em facilitar o comércio, mas o direito à visita, mais do que isso, significa ser e ser tratado como cidadão em pleno gozo de direitos e deveres

Entretanto, antes de desenvolver esta ideia é necessário retomar a relação entre dois conceitos importantes na teoria da justiça de Rawls o ‘racional’ e o ‘razoável’. Para Rawls, estes conceitos são distintos, porém complementares. Por exemplo, em uma negociação a proposta de uma das partes pode ser perfeitamente racional, mas implica que seja também razoável. Uma determinada medida política ou mesmo uma ação da vida cotidiana por ser efetuada racionalmente não possui sua moralidade assegurada. Por esse motivo é necessário outro elemento que garanta a justiça dessas relações. Para Rawls esse

em qualquer lugar do planeta.

elemento seria o ‘razoável’. Ele não oferece uma definição explícita para o termo, limita-se a dizer que tal conceito “é tido como uma ideia moral básica e intuitiva;

A Sociedade dos Povos de Rawls Seguindo o exemplo de Kant n’A Paz Perpétua, Rawls desenvolve seu projeto filosófico em O Direito dos Povos. Ambos os filósofos pretendem estabelecer determinados princípios para regular as relações internacionais no intuito de garantir a paz. Neste sentido, pode-se dizer que o foedus pacificum de Kant funciona como modelo para o Direito dos Povos. A motivação para o Direito dos Povos é dado basicamente por duas ideias, como observa Feldens: “A primeira é que os grandes males da história da humanidade decorrem da injustiça política. A segunda é que esses males desaparecerão quando as principais formas de injustiça política forem eliminados por políticas sociais justas.” (FELDENS, 2010, p. 83).

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pode ser aplicado a pessoas, a suas decisões e ações, bem como a princípios e padrões, a doutrinas abrangentes” (RAWLS, 2003, p. 116). O ‘razoável’ funciona como um regulador do ‘racional’ de modo que o benefício gerado por uma determinada medida seja o mais simétrico possível entre as partes envolvidas. Neste sentido o pluralismo razoável consiste “[n]o fato de que numa sociedade democrática moderna os cidadãos afirmam doutrinas abrangentes diferentes, ou até incomensuráveis e irreconciliáveis, embora razoáveis, à luz das quais entendem suas concepções do bem.” (RAWLS, 2003, p. 118). 8

Em sua teoria ideal, Rawls admite, como integrante da Sociedade dos Povos apenas sociedades democráticas liberais. Em um segundo momento, sociedades não liberais também são permitidas desde que sejam ‘decentes’. Sobre este último conceito verifique Direito dos Povos, p. 82. 94

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Como já foi dito, Rawls fundamenta sua Sociedade dos Povos, sua política externa, a partir de conceitos de sua teoria política interna. Desse modo o equivalente do pluralismo razoável seria “a diversidade entre povos, com suas diferentes culturas e tradições de pensamento, tanto religiosas como nãoreligiosas” (RAWLS, 2001, p. 15). O autor classifica o Direito dos Povos como uma

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denomina esta situação de ‘véu de ignorância’, isto é, aqueles que determinam os princípios de justiça desconhecem sua posição social, etnia, sexo, etc. Deste modo, os princípios escolhidos serão os mais justos e equitativos, pois desconhecendo as contingências de suas vidas os legisladores escolheriam princípios benéficos para qualquer pessoa em qualquer posição. Para os fins da Sociedade dos Povos, Rawls utiliza a posição original em

‘utopia realista’. Segundo ele, para que a filosofia política seja realista e utópica é preciso compreender os limites da possibilidade prática. No entanto, esses limites não são dados somente por aquilo que já existe aqui e agora, pois nos é possível mudar as instituições políticas e sociais do modo que julgarmos melhor. Deste modo, o mundo que almejamos pode existir de fato. Neste sentido, o pluralismo razoável exerce um papel fundamental, pois estabelece os limites do que é

dois níveis. No primeiro, como modelo de representação para as sociedades liberais. Isto é, modela, para a regulamentação da estrutura básica da sociedade, aquilo que consideramos como condições justas e razoáveis para os representantes de cidadãos livres, iguais, razoáveis e racionais. Rawls aponta cinco características que considera essenciais:

possível a partir de critérios que contribuem para que a sociedade se torne mais

(1) a posição original modela as partes como representando os cidadãos imparcialmente; (2) ela os modela como racionais, e (3) ela os modela selecionando, dentre os princípios de justiça disponíveis, aqueles que se aplicam ao sujeito adequado, que é neste caso, a estrutura básica. Além disso, (4) as partes são modeladas como fazendo essas seleções pelas razões adequadas, e (5) como selecionando por razões relacionadas com os interesses fundamentais dos cidadãos como razoáveis e racionais (RAWLS, 2001, p. 39).

justa e livre. Para elaborar os princípios da constituição de uma sociedade Rawls sugere que deveríamos fazê-lo a partir de uma ‘posição original’ que é uma situação puramente hipotética, a qual constitui o cenário ideal para que os princípios de justiça sejam definidos de modo razoável e equitativo. Rawls defende que a justiça não deve ser influenciada por nenhuma circunstância arbitrária, como por exemplo, habilidades naturais, sorte, condição social, etc. Se esses elementos fossem levados em conta, os princípios de justiça a serem escolhidos, mesmo que racionais, não preencheriam a exigência de razoabilidade. Como ilustra Rawls, “se somos ricos, ou pobres, não podemos esperar que todos os outros aceitem uma estrutura básica que favoreça os ricos, ou os pobres, simplesmente por essa razão” (RAWLS, 2003, p. 25). Neste sentido, a posição original funciona como um mecanismo de restrição para as razões de adotar-se um princípio ou de

No segundo nível, a posição original é usada mais uma vez, porém estendendo-se para o Direito dos Povos. Neste nível, em vez dos cidadãos livres, iguais, razoáveis e racionais os representantes representam os povos liberais. Aqui, o ‘véu de ignorância’ cobre as contingências dos povos, como por exemplo, a extensão de seu território, a população, recursos naturais, poder econômico, etc. Dito isto, é preciso verificar se as cinco características básicas apontadas por Rawls como essenciais no caso interno possuem correlatos no caso externo:

abandoná-lo. Assim, todo conhecimento dos aspectos contingentes relacionados aos agentes formuladores dos princípios de justiça devem ser eliminados. Rawls www.inquietude.org

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Os representantes do povo são (1) razoável e justamente situados como livres e iguais e os povos são (2) modelados como racionais. Também os seus representantes estão (3) deliberando a respeito do tema correto, neste caso o conteúdo do Direito dos Povos. [...] Além disso, (4) As suas deliberações prosseguem em termos das razões certas (como restritas por um véu de ignorância). Finalmente, a seleção de princípios para o Direito dos Povos baseia-se (5) nos interesses fundamentais de um povo, dados, nesse caso, por uma concepção liberal de justiça. (RAWLS, 2001, p. 43)

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importante ressaltar que estes casos devem ser mediados por organizações cujo poder é concedido pelo Direito dos Povos. Quem efetua a correção não é um povo específico, mas um órgão regulador. Embora reconheça que alguns necessitem de qualificação e que outros sejam supérfluos em sociedades bem ordenadas, Rawls considera que os seguintes princípios constituem a ‘carta básica’ do Direito dos Povos:

Rawls é bastante cuidadoso em sua teoria, no sentido de fornecer para

1. Os povos são livres e independentes, e sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos. 2. Os povos devem observar tratados e compromissos. 3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam. 4. Os povos sujeitam-se ao dever de não intervenção. 5. Os povos têm direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa. 6. Os povos devem honrar os direitos humanos. 7. Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra. 8. Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo e decente. (RAWLS, 2001, p. 48).

cada elemento da política interna um correspondente externo. Esse é um dos motivos para usar o termo ‘povo’ no lugar de ‘Estado’. Apesar de racional, o ‘Estado’ é estritamente político administrativo. O conceito de ‘povo’, por outro lado, possui um caráter moral que o torna sensível ao critério de razoabilidade. Neste sentido, é viável que os povos, na sociedade internacional, ocupem a mesma posição que os cidadãos na política interna. Rawls, assim como Kant, pensa que um governo mundial é inviável. Apesar de ser composta apenas por sociedades democráticas liberais e de adotar princípios de igualdade entre os povos que possibilitam associações e federações

Apesar de pressupor alguns ideais morais, os princípios de justiça de Rawls

entre eles, a Sociedade dos Povos não deverá formar um Estado mundial, pois

são moralmente neutros no que diz respeito à concepção de ‘bem’. Aliás, tanto

este “seria um despotismo global ou, então, governaria um império frágil,

Kant quanto Rawls repudiam teorias da justiça que se fundamentam em alguma

dilacerado pela guerra civil frequente, quando várias regiões e povos tentassem

concepção do bem. Ainda assim, uma teoria moralmente neutra não escapa da

conquistar liberdade e autonomia políticas.” (RAWLS, 2001, p. 46).

discussão sobre o bem; por mais abrangente que seja a teoria da justiça de Rawls,

No entanto, o Direito dos Povos possui autoridade de julgar muitos tipos de

a lacuna deixada pelo conceito de ‘bem’ possibilita o debate, tanto entre

organizações que são responsáveis por regulamentar as relações de cooperação

concepções concorrentes acerca do bem, quanto o debate sobre a própria

e o cumprimento dos direitos estabelecidos. Essas organizações, tal como a ONU,

justiça. Todavia, o que deve ser apreciado em Rawls é seu esforço em elaborar

podem ser autorizadas a “expressar para a sociedade de povos bem ordenados a

uma teoria a nível internacional visando uma aplicabilidade real para o

sua condenação de instituições nacionais injustas em outros países e esclarecer

cumprimento do plano de uma sociedade global pacífica.

casos de violação dos direitos humanos” (RAWLS, 2001, p. 47). Em alguns casos, poderá até usar sanções econômicas e intervenção militar para corrigi-los. É www.inquietude.org

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Referências

Conclusão Tentei mostrar neste artigo o estado de coisas dos conflitos internacionais e que um dos seus principais fatores se deve a falta de efetividade da legislação internacional que possui pouco poder coercitivo para com as nações poderosas. A solução para o problema foi ensaiada no projeto iluminista da Paz Perpétua de Kant, segundo o qual, o seguimento dos artigos propostos criaria um sentimento de comunidade global e de ajuda mútua, possibilitando uma verdadeira federação da paz. Retomado por Rawls, este projeto tornou-se uma “utopia realista”, ou seja, uma sociedade desejável que pode ser realizada de fato. A realização desta sociedade é do interesse de todos os povos, mas para que isto aconteça será preciso mudanças profundas, principalmente relacionadas às paixões humanas.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Col. Os Pensadores. FELDENS, G. O “direito dos povos”: um ideal de justiça para ser aspirado por todas as sociedades. Griot – Revista de Filosofia. Amargosa, v. 2, n. 2, dez. 2010. GERHARDT, L. M. À Paz Perpétua, de Immanuel Kant. Educação. Porto Alegre, ano XXVIII, n. 1 (55), p. 143-154, jan./abr. 2005. KANT, I. A Paz Perpétua: um projeto filosófico. Trad. Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. ______. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Trad. Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. NYE, J. S. Cooperação e Conflito nas Relações Internacionais. São Paulo: Editora Gente, 2009. PLATÃO. A República. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. RAWLS, J. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. O Direito dos Povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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