Gustavo Liberato, Ana Carolina Sales, Mirna Nunes - A DIGNIDADE DO HOMEM EM PICO DELLA MIRANDOLA E IMMANUEL KANT: UMA ANÁLISE DA SUA INFLUÊNCIA SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ATUALIDADE.

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A DIGNIDADE DO HOMEM EM PICO DELLA MIRANDOLA E IMMANUEL KANT: UMA ANÁLISE DA SUA INFLUÊNCIA SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ATUALIDADE. Sumário: Introdução. I – Contexto Histórico. II – A Caracterização do LivreArbítrio e da Autodeterminação Potencial. III – Cotejo com a Atualidade: Normatividade constitucional, doutrina e Jurisprudência como desenvolvimentos de Pico e Kant. Conclusão. Referências Bibliográficas.

Ana Carolina Sales Cordeiro da Cruz1 Mirna Nunes Mineiro 2 Gustavo Tavares Cavalcanti Liberato3

RESUMO Este artigo tem como desiderato estabelecer a relação entre Pico Della Mirandola e Immanuel Kant, dissertando em especial sobre o livre-arbítrio e a autodeterminação potencial. Expõe-se, dessa forma, o homem diante da perspectiva apresentada por esses pensadores, que se utilizaram principalmente da racionalização e do antropocentrismo para desenvolvê-la. O homem passa a ser visto, então, não mais como um objeto, mas como ser dotado de valor próprio e capaz de estabelecer a melhor forma de posicionar-se diante da vida. Frisa-se também a partir desse momento o princípio da dignidade da pessoa humana, em que o homem é apresentado como um fim em si mesmo, destacando dessa maneira um axioma condizente com a inegável estatura desse ser dotado de uma verdadeira autonomia da vontade. Por fim, trançando-se um paralelo entre esses escritores e entre o que está presente em sede doutrinária, normativa e jurisprudencial na atualidade, pode-se aduzir a perceptível gama de semelhanças e a contribuição dos primeiros para o enriquecimento do fundamento do Estado Constitucional brasileiro, fruto da Constituição Federal de 1988, que hoje apresenta a dignidade da pessoa como o ponto de convergência de todos os direitos fundamentais, isto é, um verdadeiro princípio matriz de onde partem vastos feixes de direitos. Palavras-Chave: Dignidade da Pessoa Humana. Livre-arbítrio. Autodeterminação potencial do ser humano. Giovanni Pico Della Mirandola. Immanuel Kant

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Acadêmica do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Participante do Projeto de Pesquisa (PAVIC) intitulado: “A Dignidade da Pessoa Humana e a Pessoa Jurídica: Relação possível e conseqüências” da mesma instituição. 2 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Participante do Projeto de Pesquisa (PAVIC) intitulado: “A Dignidade da Pessoa Humana e a Pessoa Jurídica: Relação possível e conseqüências” da mesma instituição. 3 Advogado, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Coordenador do Projeto de Pesquisa (PAVIC) intitulado: “A Dignidade da Pessoa Humana e a Pessoa Jurídica: Relação possível e conseqüências” nesta instituição, Coordenador da Especialização em Direito e Processo Constitucionais da mesma Universidade e Professor de Direito Constitucional da mesma instituição. Para Referenciação: LIBERATO, Gustavo Tavares Cavalcanti; CRUZ, Ana Carolina Sales Cordeiro da; MINEIRO, Mirna Nunes. A Dignidade do Homem em Pico Della Mirandola e Immanuel Kant: Uma Análise da sua Influência sobre o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Atualidade. Revista do Instituto dos Magistrados do Ceará. Ano 14, Vol, 2, nº 28. Fortaleza: Instituto dos Magistrados do Ceará, Jul.-Dez de 2010, pp. 53-73.

Introdução O estudo das obras dos autores clássicos é imprescindível para uma análise pormenorizada e esclarecedora do assunto em questão. Isso porque o conhecimento é uma concatenação de idéias que se relacionam; assim, para que se entenda adequadamente o teor de uma idéia ou categoria, bem como seu potencial desenvolvimento, faz-se necessário que se conheçam as origens dessa percepção intelectual.

Acerca tema do presente trabalho já registrou Schopenhauer (2005, p. 40), em modos quase satíricos que: Essa expressão „dignidade do homem‟, proferida certa vez por Kant, tornou-se em seguida o santo-e-senha de todos os moralistas desorientados e sem idéias, que escondem sua falta de um fundamento verdadeiro da moral, ou que tenha pelo menos algo a dizer, por trás da imponente expressão „dignidade do homem‟, contando prudentemente com o fato de que seu leitor também se identificará de bom grado com essa dignidade e, por conseguinte, ficará satisfeito.

Estaria esse, que para muitos foi um “príncipe do pessimismo filosófico” (vejase, a respeito desse pessimismo, DURANT, 2000, p. 285-327) com a razão? Se, de um lado, pode-se aceitar sua crítica, na atualidade, pela banalização da idéia – por vezes apresentada de forma acrítica e dissociada de seu substrato de modo a lhe conferir certa dose de vacuidade tal como denunciava Schopenhauer – por outro esse mal pode ser combatido exatamente pela sua superação, isto é, por meio de uma reflexão incisiva sobre o núcleo dessa idéia de Dignidade da Pessoa Humana e sua situação na atualidade.

É com esse intuito que se propõe uma análise das idéias e categorias apresentadas por Immanuel Kant, Pico Della Mirandola e os atuais autores que tratam sobre o tema da Dignidade da Pessoa Humana. Primeiro, com a devida compilação sobre o cerne da questão, contextualizando-a e trazendo à tona seu substrato no marcante pensamento desses autores. Segundo, mostrando sua influência e relevo sobre a concepção da doutrina e da jurisprudência contemporâneas acerca do assunto.

Assim, iniciar-se-á pela análise do contexto histórico, passando-se em seguida ao exame da caracterização do livre-arbítrio em Pico Della Mirandola e da autodeterminação

potencial do ser humano em Kant, encerrando-se com as considerações sobre sua repercussão sobre a atualidade.

I – Contexto Histórico. No ano de 1486, Giovanni Pico Della Mirandola (1463-1494) escreveu uma de suas mais grandiosas obras: As 900 Teses, que continha suas conclusões sobre a filosofia, cabala e teologia. Buscando a união das doutrinas e religiões em um verdadeiro ecumenismo, acabou por romper com certos dogmas do cristianismo da época, o que ocasionou conflitos com a Igreja Católica. Foi, entretanto, a introdução dessa obra, o Discurso sobre a Dignidade do Homem, que obteve a maior repercussão até a Idade Contemporânea, pois vislumbra o ser humano por uma nova perspectiva, como ser dotado de livre-arbítrio e, em decorrência disso, de uma dignidade própria.

Há que se destacar que, apesar de conservar uma visão ainda teológica, tal pensamento sofreu grande influência do Humanismo e do Renascimento, que estavam em seu auge àquela época. Pico procurou, especialmente, embasar-se na cultura greco-romana, e serviu-se do platonismo e neoplatonismo para enriquecer ainda mais seus escritos. Mora (1964, p. 40) evidencia sua participação na Academia Florentina ao destacar seus principais traços:

Sus principales miembros fueron, además de Plethon, el Cardenal Bessarion, Marsílio Ficino y luego Pico della Mirándola. La tendencia común fue, ante todo, el ensalzamiento de Platón. Pero como este fue interpretado com frecuencia en sentido neoplatónico, la Academia Florentina puede ser considerada tanto una Academia platônica como una Academia neoplatónica. Otros rasgos comunes fueron: oposición al aristotelismo y em particular al averroísmo, fuertes tendencias humanistas y consiguiente importancia dada al „buen decir‟ y a la elocuencia em filosofia, intentos de conciliar el platonismo com el cristianismo. Dentro de ello hay rasgos particulares debidos a los diferentes miembros. Nos hemos referido a algunos de ellos em los artículos dedicados a Marsílio Ficino y a Pico della Mirandola (por ejemplo, ciertas tendencias al cabalismo y a la busca de un Dios verdadero en todas las religiones por parte de este último autor.

Considere-se ainda que, apesar da oposição de Platão e Aristóteles ser uma tendência da Academia Florentina, Pico procura a harmonia e a unidade entre eles, tentando estabelecer, por igual, os fundamentos da filosofia grega e da teologia cristã (MORA, 1964, p. 417).

Visível se torna, ao estudar mais a fundo a vida de Pico, a tendência desse escritor ao antropocentrismo e a um proto-racionalismo, já que procura apresentar ideais de valorização do homem, dando a ele uma posição de maior destaque frente à visão eminentemente teocêntrica da época medieval. Nesse sentido, conforme Abbagnano (1998, p. 519), o Humanismo renascentista apresentava como bases: I – o reconhecimento da totalidade do ser humano como corpo e alma, detentor de uma dignidade que lhe assegura um lugar central na natureza e sua condição de senhor desta; II – o reconhecimento da historicidade do ser humano, de modo a ligá-lo e a distingui-lo de seu passado, avançando de par com a verdadeira herança deixada pela Antiguidade; III – o reconhecimento do valor humano das obras clássicas, compondo, as disciplinas humanísticas, um instrumento para a formação de uma consciência humana com ampla abertura para as ciências; IV – o reconhecimento da naturalidade do homem, pelo que, como um ser natural, o conhecimento da natureza não se faz uma simples distração, mas um elemento indispensável do seu desenvolvimento.

Pico (1999, p. 54), influenciado pelas tendências desse período de transição, afirma que os homens podem chegar até mesmo à condição de anjos, quando conseguem, por meio da sua racionalidade e capacidade intelectual, seguir o caminho do bem:

Os espíritos superiores, a partir do início ou logo depois, já eram aquilo que pela eternidade seriam. No homem, todavia, quando este estava por desabrochar, o Pai infundiu todo tipo de sementes, de tal sorte que tivesse toda e qualquer variedade de vida. As que cada um cultivasse, essas cresceriam e produziriam nele os seus frutos. Se fossem vegetais, plantas; se sensuais, brutos; se racionais viventes celestes; se intelectuais, um anjo e um filho de Deus.

Empreendendo-se a análise da obra deste autor e comparando-a àquelas escritas por Immanuel Kant (1724-1804), vislumbram-se várias características comuns a ambas, podendo se chegar até mesmo à conclusão de que o segundo pode ter se inspirado no primeiro e o utilizado como fonte para desenvolver seus escritos, como em Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e em Idéia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita (1784). No entanto, fornecendo-lhes uma feição consentânea com o período em que viveu, de forte influência iluminista, de crise do Antigo Regime e de fortalecimento cada vez maior da classe burguesa. Com o iluminismo, o homem passou a ser visto, por um prisma universal, como sujeito do conhecimento e passou a ser tratado como a medida de todas as coisas.

Fornece ele uma visão bastante racionalista, laica e dotada, para alguns autores, como Sarlet (2002, p. 35) de um antropocentrismo excessivo, especialmente no tocante à idéia de que a pessoa humana possuiria um lugar privilegiado frente aos outros seres vivos, por possuir uma racionalidade que lhe é característica e que lhe diferencia dos demais. Como ressalta Brugger (1995, p. 462): “Para el racionalismo la única fuente del conocimiento humano es la razón. Las sensaciones no pasan de ser ideas confusas”. Isso fica mais do que evidente ao se recordar, do próprio Kant, o início do artigo Resposta à Pergunta: Que é o Iluminismo, de 1784 (1995, p. 11):

O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do iluminismo. (grifos do original)

Torna-se ainda relevante destacar, também, outra característica frequente em Kant, seu criticismo transcendental, por meio do qual, entre outros aspectos, formula uma crítica do problema filosófico e, bem assim, a condenação da metafísica como esfera de problemas que estão além das possibilidades da razão humana, debruçando-se sobre a determinação da tarefa da filosofia como uma reflexão sobre a ciência e sobre as atividades humanas em geral (ABBAGNANO, 1998, p. 224).

A razão pura de que Kant trata está acima do conhecimento contaminado que advém aos homens por meio de objetos que alteram sua forma, chamados sentidos. A razão pura, portanto, deve mostrar o conhecimento que não advém dos sentidos, logo, que não existe a mercê da experiência dos sentidos, sendo oriundo, na verdade, da inerente natureza e estrutura da mente. Nesse sentido, Mora (1964, p. 24) detalha o pensamento kantiano ao dizer que: “Kant considera que el conocimiento a priori es independiente de la experiencia, a diferencia del conocimiento a posteriori, que tiene su origen en la experiência” (grifos do original).

Relativamente à filosofia moral, Kant sustenta que só se pode chegar a ela abstraindo quaisquer utilidades ou inclinações; assim, refuta o pensador prussiano a moral fundada na felicidade ou no prazer, já que se tratam de elementos variáveis, e considerando que a moral impõe às ações humanas um caráter universal (DEL VECCHIO, 1979, p. 133).

As ações humanas devem estar conformes ao dever moral, de forma que essas ações não ocorram por impulsos particulares, justamente para que não haja contradição entre as ações individuais do homem e o que deve valer para todos. Daí o porquê dessa filosofia moral não poder ser retirada do mundo empírico. Exatamente por isso ressalta-se a importância de sua análise sobre os “imperativos” que representam a conformidade ou desconformidade do sujeito individual perante a coletividade. Com efeito, diz Kant (1995, p. 50 e 59): Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética – ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. [...] No caso de a acção ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a acção é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico. [...] O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. (itálicos do original)

É nesse sentido que se pode falar da idéia de um dever de agir e não de uma simples obrigação de agir, uma vez que os indivíduos, regidos pela figura do imperativo categórico, se conduzirão com a consciência do dever de agir dessa ou daquela forma, viabilizando – sem dúvida alguma segundo um certo padrão moral situado em determinado tempo e lugar – o surgimento de uma lei universal para aquela comunidade. De fato, o próprio Kant (2004, p. 43, 56-57) destaca que: O Direito é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal. [...] «Uma acção é conforme ao Direito quando permite ou quando a sua máxima permite fazer coexistir a liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de todos segundo uma lei universal». [...] A liberdade (a independência em relação a um arbítrio compulsivo de outrem), na medida em que pode coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal, é este direito único, originário que corresponde a todo homem em virtude da sua humanidade. – A igualdade inata, quer dizer, a independência que consiste em não se ser obrigado por outros a mais do que, reciprocamente, os podemos obrigar; por conseguinte, a qualidade do homem de ser seu próprio senhor (sui iuris), ao mesmo tempo a de ser um homem íntegro (iustus), porque não cometeu ilícito algum com anterioridade a qualquer acto jurídico; por último, também a faculdade de fazer aos outros aquilo que os não prejudica no que é seu, se eles não quiserem tomar como tal; como por exemplo, comunicar aos outros o próprio pensamento, contar-lhes ou prometer-lhes algo, seja verdadeiro e sincero ou falso e dúplice (veriloquium aut falsiloquium), pois que é unicamente sobre eles que recai o facto de querer ou não acreditar no interlocutor – todas estas faculdades encontram-se já ínsitas no princípio da liberdade inata e não se distinguem

verdadeiramente dela (como elementos de uma divisão com base num conceito superior de Direito). (grifos do original).

Com base nessa idéia, foi possível proporcionar ao homem a capacidade de autodeterminação potencial, fomentando, ainda mais, o marco do homem como ser dotado de autonomia da vontade. Como destaca Kant (2005, p. 68, 69, 77 e 79): Ora, digo eu: – O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. [...] Se, pois, deve haver um princípio prático supremo e um imperativo categórico no que respeita à vontade humana, então tem de ser tal que, da representação daquilo que é necessariamente um fim para toda a gente, porque é fim em si mesmo, faça um princípio objectivo da vontade, que possa por conseguinte servir de lei prática universal. O fundamento deste princípio é: a natureza racional existe com fim em si. [...] No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affecktioinspreis); aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade. [...] Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional. (grifos originais).

Assim se percebe que tais autores não marcaram apenas uma época, sendo seus escritos reconhecidos até os dias atuais, como mostra Barcellos (2008, p. 124) ao se referir a Kant: Interessantemente, e nada obstante os vários retrocessos históricos, a concepção kantiana de homem continua a valer como axioma no mundo ocidental, ainda que a ela se tenham agregado novas preocupações, como a tutela coletiva dos interesses individuais e a verificação da existência de condições materiais indispensáveis para o exercício da liberdade.

Repousa, no próximo tópico, a busca pelos elementos que caracterizam a autonomia da vontade, como aspecto central da dignidade da pessoa humana.

II – Caracterização do Livre-Arbítrio e da Autodeterminação Potencial. Vistos os pontos de convergência entre os autores acima mencionados, no tocante à quebra das amarras de uma época e a evolução que se deu na perspectiva acerca do homem, percebido não mais um objeto do destino, mas como ser determinante de suas próprias ações e capaz de trilhar o seu próprio caminho, dotado de autonomia da vontade,

ganha este um patamar novo na história, no qual a dignidade desponta como uma de suas maiores características e um de seus bens mais preciosos.

Pico Della Mirandolla contribui de forma incontestável para tanto, já que dimensiona essa dignidade a partir do livre-arbítrio, o qual conceder-lhe-ia, assim, o direito de escolha, uma vez que Deus teria lhe presenteado com uma centelha divina na qual estariam todas as potencialidades, caberia ao ser humano a decisão de quais ele desenvolveria. Assim, diz Pico acerca da origem da autonomia da vontade humana (1999, p. 53-54): Decretou então o ótimo Artífice que àquele ao qual nada de próprio pudera dar, tivesse como privativo tudo quanto fora partilhado por cada um dos demais. Assim, pois tomou o homem, essa obra de tipo indefinido e, tendo-o colocado no centro do universo, falou-lhe nestes termos: „A ti, ó Adão, não te temos dado nem uma sede determinada, nem um aspecto peculiar, nem um múnus singular precisamente para que o lugar, a imagem e as tarefas que reclamas para ti, tudo isso tenhas e realizes, mas pelo mérito de tua vontade e livre consentimento. As outras criaturas já foram prefixadas em sua constituição pelas leis por nós estatuídas. Tu, porém, não estás coarctado por amarra nenhuma. Antes, pela decisão do arbítrio, em cujas mãos te depositei, hás de predeterminar a tua compleição pessoal. Eu te coloquei no centro do mundo, a fim de poderes inspecionar, daí, de todos os lados, de maneira mais cômoda, tudo que existe. Não te fizemos nem celeste nem terreno, mortal ou imortal, de modo que assim, tu, por ti mesmo, qual modelador e escultor da própria imagem, segundo tua preferência e, por conseguinte, para tua glória, possas retratar a forma que gostaria de ostentar. Poderás descer ao nível dos seres baixos e embrutecidos; poderá, ao invés por livre escolha de tua alma, subir aos patamares superiores, que são divinos‟.

Fornecendo germens derivados de todos os seres a uma nova criatura, o Criador também lhe concede o livre-arbítrio como característica inerente a ela e como meio para demarcar a sua natureza até então indefinida. A partir desse ponto, pode-se ter a idéia de dignidade atrelada ao homem, que se mostra como ser perfectível, isto é, passível de ser aperfeiçoado, moldando-se a partir das escolhas que faz, utilizando-se da liberdade que lhe é fornecida pelo Criador para se desenvolver, decorrendo dessa conduta a sua dignificação. A esse respeito, Sarlet (2002, p. 31) refere-se: Mesmo durante o medievo – de acordo com a lição de Klaus Stern – a concepção de inspiração cristã e estóica seguiu sendo sustentada, destacando-se Tomás de Aquino, o qual chegou a referir expressamente o termo „dignitas humana‟, secundando, já em plena Renascença e no limiar da Idade Moderna, pelo humanista italiano Pico della Mirandola, que partindo da racionalidade como qualidade peculiar inerente ao ser humano, advogou ser esta a qualidade que possibilita construir de forma livre e independente sua própria existência e seu próprio destino.

Já quando se empreende a análise da Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant, observa-se a preocupação deste filósofo em possibilitar ao homem, como também formulou Pico, a liberdade de conduzir sua vida, pois, mesmo que vinculada a um

plano abstrato, a autodeterminação potencial do ser humano se torna peça fundamental da dignidade da pessoa humana, como já visto.

É por meio dessa metafísica dos costumes que a igualdade de todos é alcançada, já que se todos os seres racionais são iguais, pois possuem a mesma dignidade, como destaca Sarlet (2002, p. 45). Camargo (2007, p. 119), por igual, respalda essa posição: “Na concepção Kantiana, a autonomia, enquanto elemento que diferencia o homem dos demais seres, „é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional‟”. Possível se torna detectar essas idéias na seguinte passagem da obra de Kant (2005, 67): A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis. E uma tal faculdade só se pode encontrar em seres racionais. Ora aquilo que serve à vontade de princípio objectivo da sua autodeterminação é o fim (Zweck), e este, se é dado pela só razão, tem de ser válido igualmente para todos os seres racionais.

A autonomia da vontade encontra-se na capacidade do ser humano de estabelecer máximas que estejam de acordo com as leis morais, e, por conseguinte, transformá-la em leis universais, vigentes não só para si, mas para os demais indivíduos, tornando o homem o legislador universal de si e dos outros, sendo esta a fonte de sua dignidade (2005, p. 85); é tal proceder que o diferencia dos outros seres, derivando-se essa postura da propriedade da liberdade (2005, p. 95). Pode-se destacar uma passagem do livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes em que isso se torna bem claro (2005, p. 47): Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as acções das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as acções de um tal ser, que são conhecidas como objectivamente necessárias, são também subjectivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom.

O mundo, por assim dizer, metafísico-moral, criado na obra kantiana, acaba por fornecer ao homem uma forma de desenvolver a sua própria natureza, de se autodeterminar, livre de inclinações, isto é, de acordo com a boa vontade, como princípio, nunca como efeito de sua conduta, em observância aos imperativos categóricos que são criados por ele mesmo, quando empreende a postura racional inerente à espécie, de tal forma que acaba por vincular-se ao próprio poder legiferante que detêm. Weischedel (2004, p. 211) trata da liberdade por esse prisma ao dizer:

Quando um mandamento se impõe ao homem, ele se vê colocado na situação de decidir; mas a decisão só é possível se existe liberdade. Dessa forma, enquanto escuta o mandamento absoluto, o homem torna-se consciente da sua liberdade. Isso tem importantes conseqüências para a metafísica. Na obediência ao mandamento e na liberdade que nessa obediência é garantida, o homem descobre pertencer na essencialidade de seu ser, ainda que esteja tão preso à finitude, a outra ordem, uma ordem supra-sensível, e que é isso o que lhe confere a própria dignidade.

O próximo tópico relacionará os pensadores objeto do presente trabalho, com a doutrina hodiernamente conhecida, além de indicar as dimensões normativa e jurisprudencial de sua contribuição.

III – Cotejo com a Atualidade: Normatividade constitucional, doutrina e Jurisprudência como desenvolvimentos de Pico e Kant. A Dignidade da Pessoa Humana hoje é elevada, pelos ordenamentos jurídicos, à qualidade de fundamento e fim de qualquer Estado (veja-se, como exemplo, a Constituição brasileira de 1988, art. 1º III; a Lei Fundamental alemã de 1949, art. 1º, nº 1; a Constituição portuguesa de 1976, art. 1º, entre outras). Esse princípio possui, portanto, uma importância extrema, conquistada ao longo do tempo. Ele não consiste em um direito concedido pelo ordenamento jurídico, mas uma característica peculiar do homem, sem levar em consideração sua raça, sexo, cor ou quaisquer outros atributos. A consagração no plano normativo constitucional denota apenas o dever de elevação e amparo por parte do Estado, bem como de obediência por parte deste e dos demais indivíduos. Segundo Kant (2005, p. 101): “Ora o homem encontra realmente em si mesmo uma faculdade pela qual se distingue de todas as outras coisas, e até de si mesmo, na medida em que ele é afetado por objetos; essa faculdade é a razão («Vernunft»)”. Nessa linha, Kant já dizia (2005, p.68) que: Portanto, o valor de todos os objectos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objecto de respeito).

Mais recentemente, no Brasil, Tavares (2008, p. 537) delimita os contornos da dignidade da pessoa humana com o mesmo âmago:

[...] não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser como tal.

Conforme exposto anteriormente, Kant afirmava que a dignidade deve ser retirada de um juízo moral – entenda-se: moral isenta de todo e qualquer juízo empírico, pois não se pode auferi-la pelo prisma de apenas um indivíduo, mas sim sobre considerações gerais e abstratas das aptidões potenciais do homem. Isso porque, procurar as normas do agir humano na experiência seria submeter o homem a outro homem. E o que caracteriza o ser humano, e o faz dotado de dignidade especial, é que ele nunca pode ser meio para os outros, mas sempre há de ser visto como um fim em si mesmo. Para Kant, pois, a razão prática possui primazia sobre a razão teórica. A moralidade significa a libertação do homem, e o constitui como ser livre. Pertence ele, assim, pela práxis, ao reino dos fins, que faz da pessoa um ser de dignidade própria, em que tudo o mais tem significação relativa. A personalidade humana é determinada, desse modo, por uma axiologia própria, inerente, expressa na idéia de sua dignidade, que brota na qualidade de valor moral, inalienável e incondicionado.

A direção ou caminho trilhado pelo homem será determinado por ele mesmo, sem ingerências externas, ou seja, sem interferência de terceiros no seu pensar e decidir. Através do seu livre-arbítrio e da sua liberdade, o homem poderá avançar seus passos em busca da “reta razão e inteligência espiritual” ou ficar inerte em sua mediocridade. Pico Della Mirandola, como visto, foi quem desenvolveu essa idéia com maior propriedade. Ele alega, com base no contexto antropocêntrico renascentista que viveu e influenciado pelos estudos religiosos por ele feitos, que Deus, através de sua infinita sabedoria, criou o ser humano com todos os elementos que existem na natureza, para que cada um escolhesse qual seria a sua própria definição, e isso sempre portando a autonomia da vontade a qual vem diretamente ligada à dignidade da pessoa humana. Propôs, ainda, que o homem aproveitasse a liberdade concedida pelo Criador para alcançar sua plenitude existencial. Com suas palavras: “Que não suceda, por abuso da indulgentíssima liberalidade do Pai, venha a se tornar motivo de condenação o mesmo recurso salvífico que Ele nos galardoou com a liberalidade do arbítrio” (MIRANDOLA, 1999, p. 58).

Condizente com essa idéia, Kant (1995, p. 24), na terceira proposição do texto Idéia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita, de 1784, expõe que:

A natureza quis que o homem tire totalmente de si tudo o que ultrapassa o arranjo mecânico da sua existência animal, e que não participe de nenhuma outra felicidade ou perfeição excepto a que ele conseguiu para si mesmo, liberto do instinto, através da própria razão. A natureza nada faz em vão e não é perdulária no emprego dos meios para os seus fins. Visto que dotou o homem de razão e da liberdade da vontade que nela se funda, isso era já um indício claro da sua intenção no tocante ao seu equipamento. Ele não deveria ser dirigido pelo instinto ou ser objecto de cuidado e ensinado mediante conhecimentos adquiridos; deveria, pelo contrário, extrair tudo de si mesmo. (Grifos do original).

O homem por ser um fim em si mesmo, não existe em função do Estado, da sociedade ou da nação. O Direito, partindo desse pressuposto, é que deve guiar-se em benefício do ser humano e não o contrário. Exatamente nesse sentido, o Tribunal Constitucional alemão já em 1969 (27 BVerfGE I – Microcensus Case) decidiu que, embora uma pesquisa estatística por amostragem sobre “férias e viagens recreacionais” não vulnere o substrato da dignidade da pessoa humana, não se pode perder de vista que o Estado poderia violar essa dignidade caso viesse a tratar as pessoas como simples objetos, desconsiderando sua condição de fins em si mesmas, tal como registra Kommers (1997, p. 299): (b) In the light of this image of man, every human being is entitled to social recognition and respect in the community. The state violates human dignity when it treats persons as mere objects. It would be inconsistent with the principle of human dignity to require a person to record and register all aspects of his personality, even though such an effort is carried out anonymously in the formo f a statistical survey; [the state] may not treat a person as an object subject to an inventory of any kind.

O mesmo autor, comentando essa decisão, deixa clara concepção moral do substrato kantiano da dignidade da pessoa humana tal como registrado pela Corte alemã, ao dizer: “Kantian autonomy, in the court‟s eyes, includes a strong sense of the „morality of duty‟” (KOMMERS, 1997, p. 301). Igualmente o tribunal voltou a apresentar essa perspectiva no ano de 1970, na decisão nº 30, 1 (2BvF1/69, 2 BvR 629/69 e 308/69), ao destacar que: “El trato que los poderes públicos le otorguen a los seres humanos en cumplimiento de una ley que afecta la dignidad humana, debe ser considerado como un detrimento de los valores de que goza el ser humano por el hecho de ser persona” (SCHWABE, 2003, p. 17).

Assim, se faz inteiramente pertinente a colocação de Luño (2005, p. 324), ao debruçar-se sobre a dignidade da pessoa humana e ressaltar que: “La dignidad humana constituye no solo la garantía negativa de que la persona no va a ser objeto de ofensas o humillaciones, sino que entraña también la afirmación positiva del pleno desarrollo de la personalidad de cada individuo”. Igualmente, Alexy destaca uma concepção definitiva sobre a temática do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana em sua dupla faceta, ao destacar que a

mesma apresenta-se tanto na forma de uma norma-regra, como na forma de uma normaprincípio. Com efeito, diz ele (2002, p. 108-109): Por lo tanto, hay que partir de dos normas de la dignidad de la persona, es decir, una regla de la dignidad de la persona y un principio de la dignidad de la persona. [...] Absoluto no es el principio, sino la regla que, debido a su apertura semântica, no necesita una limitación con respecto a ninguna relación de preferência relevante. El principio de la dignidad de la persona pude ser realizado em diferentes grados. El que bajo determinados condiciones, con um alto grado de certeza, preceda a todos los otros princípios no fundamenta ninguna absolutidad del principio sino que simplesmente significa que casi no existen razones jurídico-constitucionales inconmovibles para uma relación de preferencia en favor de la dignidade de la persona bajo determinadas condiciones. Pero, una tesis tal de posición central vale también para otras normas de derecho fundamental. Ella no afecta el carácter de principio. Por eso, pude decirse que la norma de la dignidad de la persona no es un principio absoluto. La impresión de la absolutidad resulta del hecho de que existen dos normas de dignidad de la persona, como así tambíen del hecho de que existe una serie de condiciones bajo las cuales el princpio de la dignidad de la persona, con un alto grado de certeza, precede a todos los demás principios.

Destarte, a especificação acerca do conteúdo dessa dignidade como inerente ao ser humano é peça-chave para a compreensão contemporânea desse princípio e dessa regra apresentadas por Alexy, e é precisamente nesse ponto que entra em questão a contribuição de Pico e Kant, à medida que focam na autonomia potencial do ser humano como a pedra de toque, o substrato material para a determinação do respeito a essa dignidade do ser racional.

É exatamente essa nota da autonomia potencial do ser humano que resta comprometida quando se observa a violação de direitos fundamentais e, por conseguinte, da própria dignidade da pessoa humana. Para combater tais práticas, o Tribunal Constitucional alemão formulou o que se convencionou chamar de Fórmula do Objeto ou Fórmula de NãoInstrumentalização. De fato, já no ano de 1970, na decisão nº 30, 1 (2BvF1/69, 2 BvR 629/69 e 308/69), os votos dos Magistrados Geller, Von Schlabrendorff e Rupp apontavam: “Todo poder estatal tiene que considerar y proteger al ser humano en sus valores propios y su autonomia. No puede ser tratado de manera „impersonal‟, como un objeto, aún cuando ésto ocurra sin desconocer los valores personales, sino com „buenas intenciones‟” (SCHWABE, 2003, p. 18). Por isso mesmo é acertada a afirmação de Gutiérrez (2005, p. 29-30) ao dizer sobre a Fórmula do Objeto: De acuerdo con ella, el respeto a la dignidad del hombre termina por coincidir con el imperativo categórico. La formulación kantiana es recibida en el ámbito del Derecho constitucional alemán por la obra clásica de DÜRIG , pronto consagrada por la jurisprudencia constitucional: la dignidad queda comprometida cuando el ser humano es convertido en un simple objeto. (grifos do original)

A Fórmula do Objeto (ou Fórmula de Não-Instrumentalização) evidencia, portanto, a violação da dignidade da pessoa humana sempre que uma determinada pessoa humana seja reduzida a mero instrumento (objeto) da satisfação de outrem, sem que qualquer respeito à sua autodeterminação potencial. No entanto, tem-se percebido que, vezes sem conta, inexiste uma intenção ou finalidade no tratamento violador da dignidade da pessoa humana, o que recomenda a retirada da figura do “dolo” desta definição, restando apenas a constatação de uma expressão de desprezo ou desrespeito à pessoa. Neste sentido, ganha interesse saber se, de fato, a pessoa sentiu-se vilipendiada em sua dignidade com aquele determinado tratamento. Assim, trata-se de um elemento objetivo, consistente na instrumentalização, e de um elemento subjetivo, referente ao tratamento desprezível ainda que sem finalidade ou intenção específica do agente nesse tratamento (CAMARGO, 2007, p. 121-122). Há de se observar que, se a dignidade da pessoa humana, em Kant, não admite graus, por outro lado sua análise deve centrar-se sobre o sujeito concreto, e não idealizado.

A jurisprudência constitucional brasileira já registra vários casos em que essa fórmula desempenhou um papel de relevo, ainda que não tenha sido expressamente e dogmaticamente trabalhada. Como exemplos podem ser mencionados os seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal: I – o Habeas Corpus de nº 70.389-5-SP, no qual se discute a prática de tortura contra menores por policiais militares, de modo a instrumentalizar tais menores para a satisfação de sentimentos ignominiosos contra tais menores:

EMENTA: TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE EXISTÊNCIA JURÍDICA DESSE CRIME NO DIREITO PENAL POSITIVO BRASILEIRO - NECESSIDADE DE SUA REPRESSÃO - CONVENÇÕES INTERNACIONAIS SUBSCRITAS PELO BRASIL - PREVISÃO TÍPICA CONSTANTE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI Nº 8.069/90, ART. 233) - CONFIRMAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DESSA NORMA DE TIPIFICAÇÃO PENAL - DELITO IMPUTADO A POLICIAIS MILITARES - INFRAÇÃO PENAL QUE NÃO SE QUALIFICA COMO CRIME MILITAR - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM DO ESTADO-MEMBRO PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. PREVISÃO LEGAL DO CRIME DE TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE - OBSERVÂNCIA DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA TIPICIDADE. - O crime de tortura, desde que praticado contra criança ou adolescente, constitui entidade delituosa autônoma cuja previsão típica encontra fundamento jurídico no art. 233 da Lei nº 8.069/90. Trata-se de preceito normativo que encerra tipo penal aberto suscetível de integração pelo magistrado, eis que o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. - A norma

inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo. NECESSIDADE DE REPRESSÃO À TORTURA - CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. - O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU (1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura concluída em Cartagena (1985) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito da OEA (1969). Mais do que isso, o legislador brasileiro, ao conferir expressão típica a essa modalidade de infração delituosa, deu aplicação efetiva ao texto da Constituição Federal que impõe ao Poder Público a obrigação de proteger os menores contra toda a forma de violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, in fine). TORTURA CONTRA MENOR PRATICADA POR POLICIAL MILITAR - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM DO ESTADO-MEMBRO. - O policial militar que, a pretexto de exercer atividade de repressão criminal em nome do Estado, inflige, mediante desempenho funcional abusivo, danos físicos a menor eventualmente sujeito ao seu poder de coerção, valendo-se desse meio executivo para intimidá-lo e coagi-lo à confissão de determinado delito, pratica, inequivocamente, o crime de tortura, tal como tipificado pelo art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, expondo-se, em função desse comportamento arbitrário, a todas as conseqüências jurídicas que de correm da Lei nº 8.072/90 (art. 2º), editada com fundamento no art. 5º, XLIII, da Constituição. - O crime de tortura contra criança ou adolescente, cuja prática absorve o delito de lesões corporais leves, submete-se à competência da Justiça comum do Estadomembro, eis que esse ilícito penal, por não guardar correspondência típica com qualquer dos comportamentos previstos pelo Código Penal Militar, refoge à esfera de atribuições da Justiça Militar estadual. (on line)

II – o Habeas Corpus de nº 71.373-4-RS, o qual versa sobre a violação da dignidade da pessoa humana em decorrência da condução coercitiva de pessoa para a realização de exame de DNA, quando, a despeito de sua recusa, a matéria poderia ser tratada no plano probatório, mediante a inversão do ônus da prova: EMENTA: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – EXAME DNA – CONDUÇÃO DO RÉU „DEBAIXO DE VARA‟. Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer - provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, „debaixo de vara‟, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídicoinstrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos. (on line)

E, mais recentemente, III – o Habeas Corpus de nº 82.959, no qual se discutiu a inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime aos condenados por crimes hediondos, o que, por igual, representaria uma instrumentalização dos condenados em favor de um sentimento de vingança, de um lado, e em franco prejuízo de seu processo de ressocialização, por outro: EMENTA: PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 - INCONSTITUCIONALIDADE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. (on line)

A História mostra que após o seu reconhecimento como valor moral, foi atribuído valor jurídico à dignidade da pessoa humana. A proteção da dignidade da pessoa humana passou do âmbito da consciência coletiva para o âmbito do Direito Constitucional. Passou a ter amparo como um objetivo e uma necessidade de toda humanidade, vinculando governos, instituições e indivíduos.

No plano positivo, a efetivação do delineamento normativo do princípio da dignidade da pessoa humana cabe aos órgãos estatais, particularmente ao poder legislativo, que recebe o ônus de edificar uma ordem jurídica que se conforme as necessidades do princípio. Ou seja, examinando a dignidade como tarefa, o Estado deve executar medidas de prevenção procedimentais e organizacionais no sentido de impedir uma violação da dignidade e dos direitos fundamentais dos indivíduos, ou, pelo menos, se nada mais for possível, conforme as circunstâncias, minorar os efeitos das lesões. Explicitando o papel da Constituição nessa tarefa, aponta Gutiérrez (2005, p. 29): El reconocimiento constitucional de la dignidad humana, no menos que los (demás) derechos fundamentales, debe garantizar las posibilidades de desarrollo de cada identidad personal y, de este modo, la legítima pluralidad efectiva de los hombres reales en función del ejercicio legítimo de las libertades.

Torna-se relevante destacar, por fim, que foi, primeiramente, em plano filosófico que se buscou respaldar esse valor inerente ao homem, seja por intermédio de uma visão cristã, seja

por uma ótica abstrata. Entretanto, o que realmente importa hoje, é buscar a efetivação desse fundamento constitucional.

Através desses argumentos, Pico e Kant foram acusados de dar um relevo excessivo de racionalismo e de juízo abstrato às suas obras. Críticas à parte, é patente a influência, ainda que velada, de suas idéias centrais, na concepção de dignidade da pessoa humana, sobre a normatividade, a doutrina e a jurisprudência atuais que tratam do tema.

Conclusão Analisadas as teorias de Giovanni Pico Della Mirandola e Immanuel Kant sobre a liberdade do ser humano – fato que conduziu a possibilidade do homem ser possuidor de dignidade própria e de conseqüente igualdade perante os seus pares – percebeu-se que suas teorias, ainda que possuam peculiaridades próprias, convergem em um ponto, qual seja o de colocar o ser humano no centro do sistema social, político, jurídico e econômico, estudando-o e reconhecendo o aspecto central, qual seja, sua autonomia ou autodeterminação potencial, que o coloca como ser racional responsável pelas condutas que escolhe, realiza e pelas conseqüências que daí possam advir. Nessa construção, emerge a dignidade da pessoa humana, que deve ser garantida a todos pelos próprios indivíduos e pelo Estado.

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