Gustavo Liberato - O PROCESSO DE NOMINALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

Share Embed


Descrição do Produto

O PROCESSO DE NOMINALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO THE PROCESS OF CONSTITUTIONAL NOMINALIZATION Sumário: Introdução. I – Karl Loewenstein e a Classificação Ontológica das Constituições. II – Friedrich Müller e o “Povo” como Questão Fundamental da Democracia. III – Supremacia Constitucional e o Processo de Nominalização da Constituição: Os “Fatores Reais de Poder” versus a “Força Normativa da Constituição”. Conclusão. Referências Bibliográficas.

Gustavo Tavares Cavalcanti Liberato

RESUMO Por meio deste artigo pretende-se estabelecer uma relação entre os pensamentos de Karl Loewenstein e de Friedrich Müller acerca do processo político-constitucional, particularmente o relacionado às categorias relativas à “Constituição” e ao “Povo”. O primeiro autor causou espécie ao apresentar a classificação das constituições com vistas à sua relação com a “realidade do processo de poder político”, identificando, assim, as “Constituições Normativas”, as “Constituições Nominais” e as “Constituições Semânticas”, o que o levou a chamá-la de classificação ontológica das constituições. Já o segundo debruçou-se sobre a utilização diversificada da palavra “Povo” nos textos constitucionais, observando que sob este termo apresentam-se realidades políticas distintas, porém relacionadas, pelo que apresentou o “Povo Ativo”, o “Povo como Instância Global de Atribuição de Legitimidade”, o “PovoDestinatário de Prestações Civilizatórias do Estado” e o “Povo Ícone”. Da relação entre estas duas formulações pode-se observar, por prismas diversos, o processo de poder político na dinâmica do Estado Social e Democrático de Direito da atualidade. Com isso em vistas, podese afirmar a existência de uma constante tensão entre Constituição e processo político, capaz de conduzir, não raro, a um processo de nominalização da constituição, quando esta se veja desguarnecida da “Vontade de Constituição” apontada por Konrad Hesse, sendo sobrepujada pela tomada fática dos “Fatores Reais de Poder”, à maneira de Ferdinand Lassale, por grupos de interesse que conduzam à “iconização” do povo, preocupação maior de Friedrich Müller. Palavras-Chave: Teoria da Constituição. Teoria da Democracia. Classificação das Constituições e Processo Político.

Introdução A análise de obras clássicas adquire, por vezes, um relevo todo especial à medida que sejam elas postas em contato com produções posteriores, especialmente quando estas possam parecer de insuspeitada conexão com suas predecessoras. Entretanto, não é difícil perceber que, por pertencerem a um universo material comum, podem elas servir de ponte

Gustavo Tavares Cavalcanti Liberato, Advogado, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Coordenador da Especialização em Direito e Processo Constitucionais da mesma Universidade e Professor de Direito Constitucional nesta instituição. Para Referenciação: LIBERATO, Gustavo Tavares Cavalcanti. O Processo de Nominalização da Constituição. Anais do XIX Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010, pp. 7256-7270.

para o estabelecimento de esclarecimentos necessários e revigoramento de posições aparentemente esgotadas. O texto ora endereçado ao leitor tem precisamente este mister, uma vez que resgata uma classificação que se acreditava em boa medida superada com a queda do bloco soviético e a coloca em contato próximo com produções que lhe antecederam e sucederam, visando evidenciar sua adequada compreensão – o que tanto tem sido deturpado, como se verá – bem como apontando para sua utilidade atual no sentido de identificar um processo de alto risco para o Estado Social e Democrático de Direito, notadamente o brasileiro, consistente no que se convencionou chamar de “Processo de Nominalização da Constituição”. Identificando-se esse processo e, bem assim, suas causas, podem-se ofertar, com o apoio da doutrina mais atual, tanto sugestões sobre como diagnosticá-lo e como evitá-lo, uma vez que tal processo mostra-se, historicamente, fonte de inúmeros dissabores para os cidadãos de qualquer Estado Constitucional. Assim, neste ensejo, iniciar-se-á pela análise da “Classificação Ontológica das Constituições” de Karl Loewenstein, passando-se em seguida ao trato da investigação de Friedrich Müller acerca dos sentidos assumidos pela palavra “Povo” nos diversos textos constitucionais, rematando-se com as considerações sobre o “Processo de Nominalização da Constituição”.

I – Karl Loewenstein e a Classificação Ontológica das Constituições No ano de 1957 Karl Loewenstein, para muitos um dos pais da contemporânea “Teoria da Constituição” publicava a obra Political Power and the Governmental Process, o que seria futuramente reapresentado como sua VerfassungslehreI (Teoria da Constituição), de 1959. Já neste escrito entremostrava-se a preocupação com uma classificação “realista” das constituições, o que o levou a formular a Classificação Ontológica das Constituições de acordo com a relação (ou concordância) das normas constitucionais com a realidade do processo de poder político (1976, p. 217). Assim, a adoção de uma Constituição escrita não se efetivaria por si mesma, tanto quanto positivada, mas será plasmada a partir do que os detentores e destinatários do poder façam dela na prática (1976, p. 217). Destarte, para referido autor, as constituições poderiam ser: Normativas, Nominais e Semânticas – veja-se, sobre estas duas últimas espécies a breve mas precisa colocação de FERREIRA FILHO em seu “Estado de Direito e Constituição” (1999, p. 90-91). As constituições Normativas seriam aquelas que encontram uma leal observância de seus preceitos, uma verdadeira reverência por parte de todos os interessados. Segundo Loewenstein (1976, p. 217): Para que una constitución sea viva, no es suficiente que sea válida en sentido jurídico. Para ser real y efectiva, la constitución tendrá que ser observada lealmente por todos los interessados y tendrá que estar integrada em la sociedad estatal, y ésta en ella. La constitución y la comunidad habrán tenido que pasar por una simbiosis. Solamente en este caso cabe hablar de uma constitución normativa: sus normas dominan el proceso político o, a la inversa, el proceso de poder se adapta a las normas de la constitución y se somete a ellas.

Como se destacará adiante, de logo se constata uma aproximação das idéias de Konrad Hesse e de Friedrich Müller. Cabe acrescer de momento que, segundo Marcelo Neves

(2007, p. 106): “O que caracteriza especificamente a „Constituição normativa‟ é a sua atuação efetiva como mecanismo generalizado de filtragem da influência do poder político sobre o sistema jurídico, constituindo-se em mecanismo reflexivo do direito positivo”. Já quando se verifica um descompasso entre o texto de uma Constituição que se quer Normativa, mas na verdade não consegue sê-lo, está-se diante de uma Constituição Nominal, que, para Loewenstein (1976, p. 218) pode ser observada a partir da seguinte ideia: “Una constitución podrá ser jurídicamente válida, pero si la dinâmica del proceso político no se adapta a sus normas, la constitución carece de realidad existencial. En este caso, cabe calificar a dicha constitución de nominal”. Convém ressaltar que esta não deve ser confundida com o fenômeno de mutação constitucional informal, no qual a prática altera a normatividade, mas, outrossim, deve ser vista no plano da ineficácia da norma constitucional perante a peculiar dinâmica do poder político. Assim, tal modalidade apenas aparenta ser capaz de conter o poder e ordenar o seu exercício, o que, de fato, não acontece, sendo a mesma lançada em descrédito pela sua incapacidade de resistir ao que Ferdinand Lassale, no ano de 1863, chamava de “fatores reais de poder” (2000, p. 10-23). No entanto, Loewenstein (1976, p. 218) apresenta uma perspectiva algo excessivamente otimista, como se vê da seguinte passagem: Probablemente, la decisión política que condujo a promulgar la constitución, o este tipo de constitución, fue prematura. La esperanza, sin embargo, persiste, dada la buena voluntad de los detentadores y destinatarios del poder, de que tarde o temprano la relidad del proceso del poder corresponderá al modelo estabelecido en la constitución. La función primaria de la constitución nominal es educativa; su objetivo es, en un futuro más o menos lejano, convertirse en una constitución normativa y determinar realmente la dinâmica del proceso del poder en lugar de estar sometida a ella.

A passagem elucida apenas um lado da questão, uma vez que considera apenas o “aspecto educativo” das constituições nominais, considerando-as parte de um processo contínuo rumo à sua eficácia normativa. Diz-se isso em atenção aos exemplos históricos (notadamente brasileiros) de que tal fluxo pode não ocorrer, como, de fato, deu-se com a Constituição de 1934, a qual fora dentro em breve substituída pela Carta de 1937 – esta de feição Semântica, como se verá. A esse respeito, Marcelo Neves (2007, p. 107) é muito feliz ao apontar as dificuldades que cercam a constituição Nominal e a perspectiva puramente otimista: “Nela há uma discrepância radical entre práxis do poder e disposições constitucionais, um bloqueio político da concretização constitucional, obstaculizador da autonomia operativa do sistema jurídico”. Com essa perspectiva “realista” – e por que não dizer “pessimista”, porém complementar da de Loewenstein? – da dinâmica de poder é que este autor (2007, p. 107) insiste, ao confrontar constituições Normativas e Nominais: Nas „Constituições nominalistas‟, ao contrário, ocorre o bloqueio generalizado do seu processo concretizador, de tal maneira que o texto constitucional perde relevância normativo-jurídica diante das relações de poder. Faltam os pressupostos sociais para a realização de um possível conteúdo normativo (resultado da concretização) a partir do texto constitucional.

Dessa forma conclui Neves (2007, p. 107) que Loewenstein: “Não se apercebe, assim, da função simbólico-ideológica das „Constituições nominalistas‟”. Assinala Neves (2007, p. 108), que diversamente do que preconizava Loewenstein, existem diversos

elementos favoráveis à tese de que os “donos do poder” e demais grupos privilegiados não possuem interesse numa mudança fundamental das relações sociais, o que é pressuposto da concretização constitucional. Simbolicamente, no entanto, observa ele a similitude entre os textos das Constituições Nominais e das Constituições Normativas, uma vez que, em ambos os casos, tais documentos apontam para o mesmo modelo institucional, mediante a consagração de direitos fundamentais, distinção de funções estatais, eleições democráticas, dispositivos relacionados ao Estado de Bem-Estar e à igualdade material. Registra o autor, no entanto, que essa fórmula, tão usada pelos agentes governamentais de países dotados de Constituições Nominalistas e de Constituições Normativas, não basta para a caracterização de uma sociedade democrática para onde se reconduz, costumeiramente,tal aparato institucional, uma vez que o traço decisivo de distanciamento entre elas não se encontra na linguagem simbólica empregada, mas na mútua implicação de aspectos simbólicos e jurídico-instrumentais (novamente veja-se, adiante, Hesse e Müller), conducentes à uma concretização normativa generalizada e includente. No que pertine à Constituição Semântica, Loewenstein (1976, p. 218-219) registra sua caracterização e crescimento nos termos seguintes: Finalmente hay casos – que desgraciadamente están incrementando, tanto en número como por la importancia de los Estados afectados –, en los cuales, si bien la constitución será plenamente aplicada, su realidad ontológica no es sino la formalización de la existente situación del poder político en benefício exclusivo de los detentadores del poder fácticos, que disponen del aparato coactivo del Estado. Mientras la tarea original de la constitución escrita fue limitar la concentración del poder, dando posibilidad a un libre juego de las fuerzas sociales de la comunidad dentro del quadro constitucional, la dinâmica social, bajo el tipo constitucional aquí analizado, tendrá restringida su libertad de acción y será encauzada en la forma deseada por los detentadores del poder. La conformación del poder está congelada em beneficio de los detentadores fácticos del poder, independientemente de que éstos sean uma persona individual (dictador), una junta, un comité, una asambléa o un partido. Este tipo se pude designar como constitución semântica. Si no hubiese en absoluto ninguna constitución formal, el desarrollo fáctico del proceso del poder no sería notablemente direrente. En lugar de servir a la limitación del poder, la constitución es aqui instrumento para estabilizar y eternizar la intervención de los dominadores fácticos de la localización del poder político.

Para Neves (2007, p. 109), tais constituições bem poderiam se chamar de “Constituições Instrumentalistas”, uma vez que serviriam apenas e tão somente para justificar e legitimar a detenção do poder político por quem de fato o detém. Assim, prossegue ele: “As „Constituições instrumentalistas‟, ao contrário das „nominalistas‟, correspondem à realidade do processo de poder, mas, por outro lado, em oposição às „normativas‟, não têm nenhuma reação contrafáctica (normativa) relevante sobre a atividade dos ocasionais detentores do poder”. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999, p. 91), aponta com precisão para um fato histórico nacional capaz de confirmar a tese apresentada ao lembrar a Constituição outorgada em 1937: Exemplo típico de tal tipo de Constituição é fornecido pela Carta brasileira de 1937. Esta foi editada como um meio para dar respeitabilidade ao poder pessoal de Vargas. Com efeito, o Presidente da República, o próprio outorgante da Carta, permaneceu com poderes ilimitados, mesmo depois de promulgada essa Constituição. Basta

lembrar que o art. 180 dava o poder de legislar ao Presidente da República enquanto não se reunisse o Parlamento Nacional, cujas eleições não foram convocadas senão em 1945, já no desenrolar do processo que levou ao fim do Estado Novo, e o art. 186 estabelecia por tempo indeterminado o estado de emergência. Este só foi levantado por ato de 30 de novembro de 1945, posterior, portanto, à queda de Vargas (29 de outubro).

A partir do que já fora visto e ressaltado, observa-se de imediato o desacerto de autores como Alexandre de Moraes (2008, p. 11), para quem uma Constituição “Nominalista” diria respeito apenas à interpretação literal e gramatical de seus termos e uma Constituição “Semântica” seria aquela dependente da análise de seu conteúdo significativo, sociológico, ideológico e metodológico. Com efeito, diz ele: Por sua vez, constituição nominalista é aquela cujo texto da Carta Constitucional já contém verdadeiros direcionamentos para os problemas concretos, a serem resolvidos mediante aplicação pura e simples das normas constitucionais. Ao intérprete caberia tão somente interpretá-la de forma gramatical-literal. Por outro lado, constituição semântica é aquela cuja interpretação de suas normas depende da averiguação de seu conteúdo significativo, da análise de seu conteúdo sociológico, ideológico, metodológico, possibilitando uma maior aplicabilidade políticonormativa-social do texto constitucional. (grifos do original)

Ora, por mais pedestre que seja a formação hermenêutica do estudante, logo ele verá o descalabro das colocações. Toda norma jurídica – e as normas constitucionais não são diferentes –, como objeto cultural que é, demanda o uso do ato gnosiológico da compreensão para o seu conhecimento, mediante a interpretação – um subtipo do ato gnosiológico da compreensão, aplicável aos objetos culturais expressos em linguagem simbólica –, a qual procura decodificar as expressões simbólicas estabelecendo as relações significantesignificado, na busca posterior do exame do contexto em que elas se apresentam, fixando-se um sentido para tais expressões (a respeito vejam-se: FALCÃO, 1997, p. 13-47; DINIZ,1998, 197-204; e GRAU, 2006, p. 30-32 e 73-89). Ademais, cabe a lembrança de Carlos Maximiliano, o qual, inspirado em Savigny e na Escola Histórico-Evolutiva, apontou para o fato de que uma norma pode sofrer notáveis alterações sem que altere um signo de seu texto, mas apenas pela variação do sentido (1998, p. 12). Pretender-se que uma Constituição possa ser interpretada apenas “literalgramaticalmente” ou estabelecer que apenas um tipo de Constituição dependa da análise mais densa das implicações da realidade com o sentido do texto normativo mostra-se, de logo, hermeneuticamente insustentável; apresentar uma classificação definida historicamente com outro conteúdo é simplesmente errado. Em suma, não há norma jurídica que dispense interpretação, assim como se mostra verdadeiramente inadequado apresentar a classificação de constituições Nominais (ou “Nominalistas”, como o faz o autor sem apontar a fonte de suas colocações) e Semânticas desvinculada das idéias originais de Loewenstein. Vista a classificação ontológica das constituições de Loewenstein e constatando-se o seu uso equivocado por parte da doutrina brasileira, impõe-se agora a análise dos diferentes usos da categoria “Povo” nas constituições, como forma de completar o quadro teórico em que se insere o Processo de Nominalização da Constituição, ora em estudo.

II – Friedrich Müller e o “Povo” como Questão Fundamental da Democracia Após analisar diversos textos normativos constitucionais, Friedrich Müller constatou que se fazia uso corrente da palavra “povo”, sendo ela apresentada com os mais diversos sentidos em tais documentos. Por igual, a dinâmica das relações de poder, em diversos casos, parece conduzir à constatação de que tal termo encontra-se severamente esvaziado de conteúdo político eficaz. Em decorrência desta percepção é que o autor lançou-se ao trabalho de procurar estabelecer a que corresponderia a categoria política “Povo” quando empregada nos textos normativos constitucionais, vindo a identificar quatro possíveis acepções, sendo três delas complementares (embora não necessariamente simultâneas em sua utilização) e uma delas antagônica às demais. Destarte fala-se em Povo Ativo, Povo como Instância Global de Atribuição de Legitimidade, Povo Destinatário das Prestações Civilizatórias do Estado e, por fim, em Povo Ícone. Assim, tem-se o Povo Ativo como a categoria na qual se depara o estudioso com a totalidade dos eleitores (detentores de direitos políticos), como sendo o substrato do demos. Perceba-se que há um traço marcadamente restritivo, uma vez que não se consideram participantes deste demos aqueles que não possuam cidadania em sentido estrito (MÜLLER, 1998, p. 57-58). Já relativamente à segunda categoria, a partir da peculiar dinâmica democrática, vêse formar um ciclo de legitimação, o qual, para ser válido e eficaz, não pode ser interrompido por formas não democráticas – inclusive às conducentes ao esvaziamento material dos pressupostos formais e materiais do sistema democrático. Nesta linha, uma indagação pertinente prende-se ao distanciamento do eleito do eleitor, o qual pode resultar na ruptura do ciclo de legitimação, fazendo com que se possa verificar, inclusive, a legitimação indireta do Poder Judiciário (veja-se, entre outros, ROTHENBURG, 2005). Assim, o “povo legitimador” aparece como fonte de legitimação, na medida que acata e se submete às normas gestadas pela estrutura de legitimação. Destaque-se que, de modo a evitar que esta categoria se confunda com a do “Povo Ícone”, é necessária a prática dos direitos fundamentais (em consonância com os direitos humanos), de modo a viabilizar o livre e pleno exercício de uma consciente instância de atribuição global de legitimação (MÜLLER, 1998, p. 60-64). Com efeito, destaca Müller a conexão do Povo como Instância Global de Atribuição de Legitimidade com a prática dos direitos fundamentais ao assinalar: Direitos fundamentais não são „valores‟, privilégios, „exceções‟ do poder de Estado ou „lacunas‟ nesse mesmo poder, como o pensamento que se submete alegremente à autoridade governamental [obrigkeitsfreudiges Denken] ainda teima em afirmar. Eles são normas, direitos iguais, habilitação dos homens, i.e., dos cidadãos, a uma participação ativa [aktive Ermächtigung]. No que lhes diz respeito, fundamentam juridicamente uma sociedade libertária, um estado democrático. Sem a prática dos direitos do homem e do cidadão, „o povo‟ permanece em metáfora ideologicamente abstrata de má qualidade. Por meio da prática dos human rights ele se torna, em função normativa, „povo de um país‟ [„Staatsvolk‟] de uma democracia capaz de justificação – e torna-se ao mesmo tempo „povo‟ enquanto instância de atribuição global (1998, p. 63-64, grifos do original).

No que toca ao Povo como Destinatário de Prestações Civilizatórias do Estado deve-se destacar que, se a invocação da categoria “povo” no discurso estatal tem, por vezes

sem conta, o nítido foco na produção do ciclo de legitimação democrática, por outro lado isso não dispensa a análise de que, para que se possa falar em uma “democracia legítima”, faz-se inteiramente necessária a concretização dos direitos fundamentais a serem vividos não apenas pelo Povo Ativo ou pelo Povo como Instância de Legitimação, mas por todo o demos. Com efeito, diz Müller (1998, p. 76 e 79-80): Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima. O respeito dessas posições, que não são próprias da cidadania no sentido mais estrito, também apóia o sistema político, e isso não apenas na sua qualidade de Estado de Direito. (...) Por fim, ninguém está legitimamente excluído do povo-destinatário; também não e.g. os menores, os doentes mentais ou as pessoas que perdem – temporariamente – os direitos civis. Também eles possuem uma pretensão normal ao respeito dos seus direitos fundamentais e humanos, à proteção do trabalho, às prestações da previdência social e a circunstâncias de fato similares, que são materialmente pertinentes no seu caso. (Grifos do original)

Destarte, vê-se que, a rigor, ninguém está legitimamente excluído desta categoria, uma vez que ela diz especial respeito àqueles que se encontram em situação de desamparo social. Convém assinalar que o fortalecimento desta categoria serve de reforço qualitativo das categorias anteriores e combate a “iconização” do povo (MÜLLER, 1998, p. 76-80). Percebese, então, a abertura necessária para que se possa falar da figura do Povo como Grandeza Pluralística à maneira de Canotilho (2002, p. 75), como titular do Poder Constituinte originário na atualidade da Teoria da Soberania Popular e presença marcante do espaço público no Estado Constitucional contemporâneo, de forma a abranger, inclusive os excluídos situados às margens da “modernidade perférica” (CANOTILHO, 2002, p. 76). Por fim, tem-se o Povo Ícone, como antítese das categorias anteriores (e muito particularmente do Povo Destinatário). Esta “iconização” do povo é a sua redução a uma figura simbólica vazia, mero argumento retórico a serviço do sistema de dominação. Müller o caracteriza, com vigor, da seguinte forma: O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em „desrealizar‟ [entrealisieren] a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em insituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência – „notre bon peuple‟

Afastando o ente concreto (o povo daquele país, naquele momento) o sistema reifica, instrumentaliza esses indivíduos e grupos sociais, privando-lhes do acesso aos bens e serviços elementares para o desenvolvimento consciente de suas capacidades. Neste passo, o sistema democrático tende a se enfraquecer drasticamente, pois o dito “poder-violência” assume as rédeas da atuação política e passa à manipulação do povo (MÜLLER, 1998, p. 67-73). Vista a análise de Müller sobre as diferentes acepções da categoria “Povo” nos textos constitucionais, impende agora estabelecer o nexo de ligação entre os pensamentos deste autor e de Karl Loewenstein, o que será feito no item a seguir.

III – Supremacia Constitucional e o Processo de Nominalização da Constituição: Os “Fatores Reais de Poder” versus a “Força Normativa da Constituição”

A Supremacia constitucional apresenta-se em dois sentidos distintos, os quais, muito embora não sejam indissociáveis, mostram-se, em conjunto, de extrema importância para conjurar o Processo de Nominalização das constituições. Com efeito, vislumbram-se a Supremacia Formal e a Supremacia Material da Constituição. A Supremacia Formal decorre da rigidez constitucional, pelo que se faz juridicamente mais difícil a sua alteração, demandando um processo legislativo especial, mais solene e complexo do que o exigido para as demais produções legislativas. Tal Supremacia Formal mostra-se em perfeita sintonia com a idéia de que a Constituição, enquanto norma jurídica posta, é o mais elevado fundamento de validade positivo do ordenamento jurídico, pelo que serve de parâmetro de controle para a validade das demais normas deste ordenamento (v., entre outros: KELSEN, 1984, p. 309-313; FERREIRA FILHO, 1999, p. 82; SILVA, 2003, p. 45-46; SUNDFELD, 2004, p. 40-42). Já no que toca à Supremacia Material esta se exprime por meio de uma “rigidez sócio-política”, sendo constatada, inclusive e especialmente, nas constituições costumeiras e flexíveis, tal como se dá com a Constituição inglesa. Observe-se ainda a presença desta Supremacia Material em certas constituições dotadas também de rigidez formal, como a americana (v., entre outros: KELSEN, 1984, p. 309-313; FERREIRA FILHO, 1999, p. 82; SILVA, 2003, p. 45-46). Nesta linha de considerações, ainda que seja possível se verificar um mesmo processo legislativo para a elaboração das leis como capaz de revogar ou alterar a Constituição – à maneira inglesa – há uma severa resistência partida da sociedade civil e da classe política às alterações propostas, pelo que se pode dizer que, neste aspecto, há constituições rígidas de alteração “mais simples” do que a Constituição inglesa. Não por acaso, ainda que as Supremacias Formal e Material não se façam sempre unidas nos textos constitucionais – e Loewenstein mostrou exatamente isso ao abordar as constituições nominais – é plenamente desejável que isso ocorra como forma de se assegurar a presença de uma Constituição Normativa. A fragilidade da Supremacia Material implica o esvaziamento da Força Normativa da Constituição, permitindo que a mesma seja submetida aos “Fatores Reais de Poder” de que falava Ferdinad Lassale. Assim, constata-se uma relação muito densa entre as Constituições Semânticas e os “Fatores Reais de Poder”, que, para Lassale, apresentar-se-iam como (2000, p. 10-11): “Os fatores reais do poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força viva e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são” (grifos do original). Seguindo essa linha, Lassale pretende apresentar uma verdade incontestável que afligiria todas as constituições – uma vez que as categorias ora analisadas ainda não se haviam apresentado – em decorrência de sua leitura do materialismo histórico marxiano, pelo que a Constituição nada mais seria do que pura “superestrutura ideológica”. Por isso, diz ele (2000, p. 17-18): Esta é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais de poder que regem uma nação. Mas que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição? Com a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que ambos os conceitos guardam entre si. Juntam-se esses fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. Quem atentar contra eles, atenta contra a lei e por conseguinte é punido (grifos do original).

Assim, ter-se-ia uma duplicidade de constituições, (com a prevalência pendendo, por certo, para a gerada pelos fatores reais de poder): a Constituição real e efetiva, plasmada pelos fatores reais de poder – político, econômico e poder-violência, em manifestações, não raro, combinadas –, e a Constituição escrita, para ele, uma mera “folha de papel”. Com efeito, diz Lassale (2000, p. 23): “Tenho demonstrado a relação que guardam entre si as duas constituições de um país: essa constituição real e efetiva, integralizada pelos fatores reais de poder que regem a sociedade, e essa outra constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar folha de papel” (grifos do original). Assim, conclui ele (2000, p. 33): “Quando podemos dizer que uma constituição escrita é boa e duradoura? A resposta é clara e parte logicamente de quanto temos exposto: Quando essa constituição escrita corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país”. Nesta senda, Lassale (2000, p. 33) explorando o conflito entre a Constituição real e efetiva perante a Constituição escrita aponta provocativamente: “Onde a constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país”. Por fim, para ele faz-se mister uma releitura e uma nova abordagem dos problemas constitucionais: estes não seriam mais problemas de direito, mas de poder, donde já se vê a ênfase na dinâmica do processo político, ainda que prejudicada pelo unilateralismo de sua perspectiva. Assim, destaca Lassale (2000, p. 40): Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar.

Seria esse modo de ver válido para todas as hipóteses ou estaria restrito apenas às Constituições Semânticas? Para responder a esse questionamento faz-se mister a visita ao pensamento de Konrad Hesse, o qual, em 1959, apresentou sua aula inaugural na Universidade de Freiburg com uma palestra que se converteu em um dos textos fundamentais do Direito Constitucional contemporâneo: “A Força Normativa da Constituição”. Contrapondo-se a Lassale, Hesse assinala que do confronto entre os fatores reais de poder e a Constituição não emergirá sempre um único vencedor, não sendo esta a parte mais fraca da relação (1991, p. 5), uma vez que existem pressupostos realizáveis que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar sua Força Normativa, somente se podendo converter questões jurídicas em questões de poder quando tais pressupostos não puderem ser satisfeitos. Assim, um aspecto fundamental de todo esse processo seria o que ele chamou de Vontade de Constituição. Destarte, para que essa Vontade de Constituição se faça Força Normativa é necessário atentar para alguns pontos fundamentais: I – A Constituição não configura apenas a expressão de um ser, como pensava Lassale, mas também de um dever ser, por isso ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente das condições sociais e jurídicas, pelo que, mediante sua pretensão de eficácia, a Constituição procura conformar a realidade política e social, não sendo mero subproduto delas (HESSE, 1991, p. 15).

II – Verificada a interdependência de via dupla entre Constituição e Realidade Social, cabe analisar as possibilidades e limites da concretização constitucional neste contexto. Assim, Hesse (1991, p. 17-18) destaca que, para se fazer efetiva, toda Constituição deve encontrar um “germe material” de sua força vital no tempo, nas circunstâncias, no caráter nacional, apenas aguardando desenvolvimento. Como consequência desta interdependência, para se fazer eficaz, a Constituição deve encontrar terreno fértil de aspirações por mudanças que possam ser por ela dirigidas e canalizadas. São palavras de Hesse (1991, p. 18): “A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente”. Mas não se pense daí que a Força Normativa da Constituição resida tão-somente na adaptação a uma dada realidade. Embora a Constituição, enquanto programa normativo (v. Müller, 2008, p. 250; 2005, p. 42-47 e Grau, 2006, p. 77-80) pouco possa, ela pode impor tarefas, transformando-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, a despeito dos questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, sendo isso igualmente válido para os ocupantes de cargos políticos como para os cidadãos em geral. É dizer, segundo Hesse (1991, p. 19) que “[...] a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”. Identifica ele, assim, três vertentes diversas. Como diz (1991, p. 19-20): Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana.

III – Se é certo que a interdisciplinaridade existente entre realidade e Constituição gera uma constante tensão entre “ser” e “dever ser”, deve-se reconhecer que esta só será resolvida em favor da norma constitucional se presentes certos pressupostos quanto ao Conteúdo da Constituição e quanto à práxis constitucional. No que toca ao conteúdo, deve-se observar, inicialmente, para que se dimensione o grau de força normativa de uma Constituição, o grau de consenso existente sobre as linhas mestras da ordem constitucional; em seguida, deve-se considerar a capacidade de adaptação da norma constitucional aos elementos sociais, políticos e econômicos dominantes, e, principalmente, ao “estado espiritual” do seu tempo, do que depende uma maior defesa da consciência geral. Por fim, para gozar de tal força normativa, o conteúdo da Constituição há de evitar se fazer uma estrutura unilateral, porquanto campo fértil para sua rápida deslegitimação. Deve ela, então, servir de ponto de convergência para futuras transações políticas entre grupos antagônicos. Já no que respeita à práxis constitucional, vê-se com Hesse que todos os participantes da vida constitucional devem partilhar da mesma Vontade de Constituição, a qual consiste na busca diuturna e incessante de todo o povo (e especialmente por parte dos

responsáveis pela ordem constitucional) pela concretização das normas constitucionais postas em constante processo de legitimação (HESSE, 1991, p. 20-23). Nesta linha ressalta-se a importância do diálogo a ser construído entre Loewenstein, Lassale, Hesse e Müller, à medida que a fragilização da Supremacia Material da Constituição, de modo a conduzi-la à condição de uma “Constituição Nominal”, perpassa simultaneamente o embotamento de sua Força Normativa e a entronização do Povo Ícone como elemento vazio do processo político de poder. Assim, sendo a Vontade de Constituição aspecto fundamental para a concretização constitucional, a superação do Povo Ícone (ou sua severa redução) mostra-se indispensável na construção diuturna de uma Constituição Normativa de que falava Loewenstein, embasada na Força Normativa que deriva de sua Supremacia não apenas Formal, mas, especialmente, Material. Exatamente por isso a congregação das três categorias opostas ao Povo Ícone (Povo Ativo, Povo Legitimador e Povo Destinatário) são a chave-mestra para a proteção e desenvolvimento da eficácia da Força Normativa da Constituição. Uma democracia material é a meta de quantos se debatem pela Constituição Normativa, de modo a permitir um adequado e coerente ciclo de legitimação das instituições e normas. Uma democracia material começa a ser obtida tanto que se reconheça na categoria de cidadão a reunião dos três traços do Povo Político (ou como Grandeza Pluralística), sendo ele parte ativa do corpo eleitoral, ciente e consciente de seu papel enquanto legitimador de práticas políticas a partir de suas ações e omissões e como destinatário (não passivo recebedor, mas ativo defensor) de prestações civilizatórias do Estado, de modo a preservar o mínimo existencial dos cidadãos (sem que com isso sejam estas confundidas apenas com a rede de amparo social) e viabilizar a progressão de sua colocação na pirâmide social, uma vez que, mesmo aqueles que não dependem deste mínimo existencial, não deixam de ser destinatários de prestações civilizacionais do Estado na forma de serviços públicos indelegáveis à iniciativa privada. Neste sentido mostra-se perfeitamente centrada a preocupação de Loewenstein (1976, p. 220), ao apontar que a Constituição Nominal encontra seu terreno propício nos Estados em que o constitucionalismo democrático ocidental se tenha implantado sem uma prévia “maturação espiritual ou política”, notadamente em ordens sociais de tipo colonial ou feudal-agrário, sendo fator de grande relevo a inexistência de uma classe média consciente intelectualmente de si mesma e com independência econômica. Por outro lado, bem à moda de Müller com o Povo Destinatário, este autor destaca que a eliminação do analfabetismo segue sendo um requisito indispensável para a exitosa ação de uma Constituição Normativa, devendo-se destacar que, à época, nem o rádio (dir-se-ia hoje, a internet) nem a simbologia eleitoral com foco nos analfabetos (e, dentre estes, os funcionais) servem de instrumentos válidos à formação desta consciência intelectual que não decorre apenas e tão-somente do poder aquisitivo, conquanto este desempenhe um relevante papel na sua construção. É exatamente neste momento que se identifica o maior contato de Müller e Loewenstein, à medida que suas construções, devidamente mediadas por Lassale e Hesse, se encontram perante o mesmo desafio: evitar que a constante tensão entre Constituição e processo político seja capaz de conduzir, não raro, a um processo de nominalização da constituição, quando esta se veja desguarnecida da Vontade de Constituição apontada por Konrad Hesse, sendo sobrepujada pela tomada fática dos fatores reais de poder, à maneira de

Ferdinand Lassale, por grupos de interesse que conduzam à iconização do povo, preocupação maior de Friedrich Müller. Em suma, uma democracia material é a base sobre a qual se proscreve o processo de nominalização da constituição, pela eliminação da relevância do Povo Ícone e pelo fortalecimento normativo das normas constitucionais a partir da Vontade de Constituição.

Conclusão Observou-se o contato das teorias de Loewenstein e Müller, à medida que suas construções, devidamente mediadas por Lassale e Hesse, se encontram perante o mesmo desafio: evitar que a constante tensão entre Constituição e processo político seja capaz de conduzir, não raro, à um processo de nominalização da constituição, quando esta se veja desguarnecida da Vontade de Constituição apontada por Konrad Hesse, sendo sobrepujada pela tomada fática dos fatores reais de poder, à maneira de Ferdinand Lassale, por grupos de interesse que conduzam à iconização do povo, preocupação maior de Friedrich Müller. É precisamente por isso que tanta preocupação cerca as recentes manifestações dos Presidentes do Senado e da República, à medida em que fatores outros (diria Lassale: fatores reais de poder) parecem legitimar desmandos na gestão da coisa pública, tais como os recentemente verificados, conduzindo, perigosamente, para o processo de nominalização da Constituição.

Referências Bibliográficas CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª Ed. Coimbra: Almedina, 2002. DINIZ, Márcio Augusto Vasconcelos. Constituição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 1998. FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1999. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 4ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Edição. Trad.: João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984. LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 5ª Ed. Trad.: Walter Stönner. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2ª Ed. Trad.: Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Editorial Ariel, 1976.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008. MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Vol.: I. Trad.: Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. _______________. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ª Ed. Trad.: Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. _______________. Quem é o Povo? – A Questão Fundamental da Democracia. Trad.: Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 1998. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ROTHENBURG, Walter Claudius. Inconstitucionalidade por Omissão e Troca de Sujeito: A perda de competência como sanção à inconstitucionalidade por omissão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.