Gustavo Romanov Salvini: um professor de Canto à frente do seu tempo e esquecido no tempo

May 23, 2017 | Autor: Tania Valente | Categoria: Music History, Portuguese Music, Vocational Training
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II ENCONTRO IBERO-A MERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS II ENCUENTRO IBEROAMERICANO DE JÓVENES MUSICÓLOGOS

Actas

Casa da Música - Porto 26 e 27 de Fevereiro de 2014

MARCO BRESCIA ROSANA MARRECO BRESCIA (EDITORES)

II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS II ENCUENTRO IBEROAMERICANO DE JÓVENES MUSICÓLOGOS ACTAS

Tagus-Atlanticus Associação Cultural Porto, 2014

Brescia, M., Marreco Brescia, R. (editores) Actas do II Encontro Ibero-Americano de Jovens Musicólogos, Porto Actas del II Encuentro Iberoamericano de Jóvenes Musicologos, Oporto Tagus-Atlanticus Associação Cultural, 2014 ISBN: 978-989-20-4949-6 Depósito Legal: 379146/14

Imagem da capa: Rodrigo Teodoro de Paula

Organização: Grupo Musicologia Criativa Rosana Marreco Brescia Marco Brescia Luzia Rocha Rodrigo Teodoro de Paula Rui Araújo Rui Magno Pinto Bart Vanspauwen Llorián García Florez Raquel Rojo Carillo Ricardo Bernardes CESEM, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical - Universidade Nova de Lisboa

Agradecimentos: Marcelo Campos Hazan Victoria Eli Luca Chiantore Paula Gomes Ribeiro

INDEX

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Marco Brescia | Rosana Marreco Brescia Apresentação Presentación Marcelo Campos Hazan Música, religião e poder: a colaboração de Francisco Manuel da Silva com a Ordem Terceira do Carmo do Rio de Janeiro (1854-1865) Victoria Eli El patrimonio musical en la convergencia entre musicología y etnomusicología Paula Gomes Ribeiro Restituir a política à musicologia (uma vez mais...) Alexandre José de Abreu Alda e Semira de José Pedro de Santanna Gomes e o Teatro Panóptico Alfonso Pérez Sánchez Musicología aplicada: El Tempo como elemento divergente entre las lecturas del intérprete, el crítico y el musicólogo Allan Medeiros Falqueiro Simetria Inversional como síntese do leste e oeste na música de Béla Bartók Ana Carina Dias No Pó na Música Andrea García Alcantarilla El trío con piano, una ventana a la música de cámara de Joaquín Turina António Jorge Marques Son Regina: Deambulações históricas de uma aria di bravura Beatriz Carneiro Pavan O complexo da língua francesa do século XVIII na sua relação com a música para cravo de François Couperin: indiossincrasias em prol de uma construção eloquente Camila Costa Zaneta As influências de Hans-Joachim Koellreutter no cenário da música no Brasil: um breve panorama Carla Silva Reis Trajetórias em contraponto: um estudo microssociológico da formação superior em piano em duas universidades brasileiras Carlos Arthur Avezum Pereira Música e Tecnologia: desdobramentos da Aura Benjaminiana Cecília Maria Gomes Pires Entre o erudito e o popular: a relação do grupo SaGrama com o Movimento Armonial Consuelo Perez Colodrero | Desirée García Gil “Una canción en los labios y la verdad en el corazón”: relaciones entre educación, música e ideología a través de la revista Y de la Sección Femenina (1938-1945) Daniel Bredel Aspectos históricos, sociológicos e psicológicos do discurso musical de Eduardo Bértola em Tramos, Lucípherez e Grandes Trópicos Daniel Lovisi Música instrumental em Minas Gerais: um estudo sobre um grupo de violonistas-compositores de Belo Horizonte David Barbero Consuegra La importación española de modelos de radiofonía musical. El caso francés

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Denise Hiromi Aoki A influência da música francesa no primeiro movimento do Quarteto de Cordas Nº 3 de Heitor VillaLobos Diana González La Música de Cámara a comienzos del siglo XX en Madrid a través de la obra crítica de Manuel Manrique de Lara (1863-1929) Eduardo R. Salgado Influencia de las políticas locales en la MPU de las ciudades: los casos de Valladolid y Palencia Eliana Asano Ramos Uma análise da canção Canavial (1984) de Ernst Mahle Eloy V. Palazón Hacia el arte sonoro: consideraciones sobre el tiempo en la obra de Morton Feldman Enrique Valarelli Menezes A síncopa consistente no samba Erika de Andrade Silva A proposta de educação musical nas escolas Waldorf como inspiração para o trabalho em outros contextos Fernando Lacerda Simões Duarte O modelo pré-interpretativo restaurista em face da tradição musical local em Viçosa (Minas Gerais, Brasil): memória e identidade reveladas em dois conjuntos de manuscritos de 1944 para a Semana Santa Frederico Lyra de Carvalho Primeiros apontamentos sobre a música de Steve Coleman: Ritmo Garazi Echeandia Conrado del Campo, cuarteto Nº7 para instrumentos de arco. Estudio y Edición Crítica Giovani Mendoza La Banda Marcial Caracas vista a través del Archivo Pedro Elías Gutiérrez (APEG) Gisele Laura Haddad Sociedades Sinfônicas: a idade da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto (SP) Ignacio Soto Silva Etnomusicología y Educación Intercultural: un acercamiento al rol de los dispositivos curriculares [Etno]musicales en escuelas con Educación Intercultural Bilingüe (EIB), en territorio Mapuche Williche Inez Beatriz de Castro Martins Análise quantitativa e qualitativa das obras do Arquivo da Banda da Polícia Militar do Ceará (18971932) Isabel Albergaria O órgão em Portugal após as Lutas Liberais: a actividade organeira nos Açores no século XIX como consequência da importação de instrumentos de Joaquim António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira Isabel Pina A construção do génio e da loucura Iván Adriano Zetina Ríos Los Doce Estudios para guitarra de Heitor Villa-Lobos: Notas sobre el ritmo Javier Ares Yebra La música para guitarra en España y Portugal: 1789-1800 Jenny Silvestre O Tratado Reglas Generales de Acompañar (1702/1736) de José Torres, uma nova leitura Joan Benavent Peiro

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Apuntes Biográficos del Maestro de Capilla de la Seu d’Urgell 561Bruno Pagueras João Afonso | Isabel Pina A pluralidade de Pessoa na concepção sonora do Filme do Desassossego João Ricardo Pinto Da Rádio para a Televisão: Modelos e processos de produção musical nos primórdios da televisão em Portugal Johanna Calderón Ochoa Entre lo tradicional y lo académico en la música colombiana. Aportes del compositor Jesús Alberto “Chucho” Rey al Bambuco Andino Colombiano José R. Muñoz Molina Arthur Rubinstein en los escritos críticos de Xavier Montsalvatge Julia María Martínez-Lombó Testa Imágenes de lo nacional en la obra sinfónica de Evaristo Fernández Blanco Kelly Nogueira Marques A Influência da Tecnologia da Música do Século XX Laize Guazina Projetos sociais e os percursos formativos de estudantes de Licenciatura em Música: algumas reflexões sobre subjectividades, universidade e direitos Laura Touriñan Morandeira Martín Sánchez Allú y Marcial del Adalid: una amistad patente a través de sus intercambios musicales pianísticos entre 1848 y 1854. Significación de la primera sonata para piano de aquel Lilian Maria Pereira da Silva Sobre o Tratado para violino escrito por Leopold Mozart: Tradução e análise de extractos do Tratado Liz Mary Pérez de Alejo Joaquín Nin Castellanos (La Habana, 1879-1949): su presencia en el escenario cubano de comienzos del siglo XX Lucas Eduardo da Silva Galon | Sara Cecília Cesca O papel da Musicologia na Educação Musical Luiz Alves da Silva O Conde Friedrich von Spreti – Fontes inéditas de uma testemunha ocular das atividades musicais na Corte Imperial do Rio de Janeiro e na Imperial Fazenda de Santa Cruz em 1829 Luzia Rocha Camille Saint-Saëns em Portugal: análise de quatro caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro Marcus Vinícius Medeiros Pereira O Acervo Vicente de Paula Medeiros: investigando as práticas musicais no início do século XX no interior do Brasil María Consuelo Iglesias Fernández Voces Patrióticas en la Escena Madrileña de Principios del S. XIX: el caso de la Guerra de la Independencia (1808-1814) María da Gloria Lemos de Ledezma A Arte de Trovar em Diálogo com o Cancionaiero de Elomar Figueira Mello María Encarnación Bernal Martínez Influencias Internacionales en la obra del compositor español de la generación del 51, Claudio Prieto María Fouz Moreno La renovación del cantar de ciego en el siglo XX: el caso de Paco Pixiñas Maria Helena Cruz Martins Rodrigues Milheiro O movimiento orfeónico em Portugal: o caso do Orfeão dos Trabalhadores e Artistas de Condeixa (1903-1929) María Jesús Perucha Arranz

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Aportación de la Revista La Ciudad de Dios a los estudios de Estética Musical en España: 1881-1936 Maria João Neves Reinvidicando um Logos Musical Maria Luisa Castilho A obra policoral de Manuel de Tavares no contexto da Península Ibérica e Internacional Maria Teresa Arfini Felix Mendelssohn Bartholdy and the Problem of Program Music Marília Chibim Orsi e Chaves Novos Caminhos na Educação Brasileira: Música no Currículo Escolar Marina Barba Maestría escénica y compositiva en la música de Ramón Carnicer para el drama de Gil de Zárate: Carlos II, el Hechizado Miguel Palou Espinosa Alfonso Fontanelli (1557-1622): introducción a una problemática socio-cultural de la prática musical y la nobleza italiana en el Tardo-Renacimiento Nieves Hernández Romero El arpa: un campo para la proyección musical femenina en el siglo XIX Nuria Barros Presas La alameda decimonónica: ¿un salón urbano musicalmente democrático? Patrícia de Almeida Ferreira Lopes Procedimentos de construção na improvisação: um estudo da Improvisação Nº 2 de Patrícia Lopes Paula González Suitt Actividades musicales en la escuela primaria: la conciencia profesional de los profesores de escuela Pedro Buil Tercero La percepción social de la armonía en la música popular. Un modelo en el canon estético de los Greatest Hits Pedro Luengo Iconografía musical en las fiestas sevillanas por la exaltación al trono de Fernando VI Raquel Rohr Desenvolvimento e consolidação do ensino de música no estado do Espírito Santo no século XX Ricardo Nuno Futre Pinheiro Jazz Musica as a Political Message Roberto Votta As técnicas de edição musical no Brasil durante a primeira metade do séc. XX e suas implicações na obra de H. Villa-Lobos Rodrigo Teodoro de Paula A música encomendada: compositores e freiras musicistas nos conventos portuenses de Santa Clara e São Bento da Ave Maria (1764-1833) Rui Filipe Duarte Marques O associativismo musical enquanto cultura de participação – um estudo de caso da Tuna Souselense Ruth Abellán Alzallú El pensamento algorítmico en la música de Gabriel Brnčić Sofia Ferreira Teixeira Aspectos sobre a mitificação da figura do maestro: a construção do império e da fama de Herbert von Karajan Sofia Vieira Lopes O concurso enquanto espectáculo musical – reflexões acerca dos antecedentes do Festival RTP da Canção Sónia Duarte

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Imagens de Música na Pintura Portuguesa: do século XVI ao século XX. O caso da cidade do Porto Tânia Sofia Gomes Valente Gustavo Romanov Salvini: um professor de canto à frente do seu tempo e esquecido no tempo Tiago Manuel da Hora Joaquim Simões da Hora, Produtor: o legado para a história da produção discográfica de música erudita em Portugal Trinidad Jiménez La flauta en el jazz flamenco: la hipertextualidad en “Almoraima” de Jorge Prado Vera Fouter Fouter La adaptación en la corte de Catalina II de los compositores extranjeros: los casos de Domenico Cimarosa, Giuseppe Sarti y Vicente Martín y Soler Virginia Sánchez Rodríguez Contrastes formales, estéticos y estilísticos en la música del cine español cinco décadas atrás

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TÂNIA SOFIA GOMES VALENTE

77. GUSTAVO ROMANOV S ALVINI:

UM PROFESSOR DE CANTO À FRENTE DO SEU TEMPO E

ESQUECIDO NO TEMPO

Tania Sofia Gomes Valente / Universidade de Évora

Gustavo Romanov Salvini chegou a Portugal em 1858 para trabalhar no Teatro de São João, mas um incidente levou-o a perder a voz. Dedicando-se então ao ensino, Salvini seguia um ideário pedagógico, cujo fim era “Conseguir que os portugueses cantem na sua língua, língua que, pela sua beleza e suavidade, conseguiu fascinar por tal forma aquela alma de artista que, desde que dela tomou conhecimento, fez consistir todo o seu ideário artístico em provar a sua adaptabilidade ao canto”. Escreveu um Romanceiro e um Cancioneiro Musical Portuguez, obras nas quais foi inovador em três aspectos: abordagem da problemática do canto lírico em português; pioneiro a musicar textos da lírica romântica portuguesa; introdução de uma dimensão científica no ensino do canto, com referências, entre outros, a Manuel Garcia. Este artigo pretende explorar estes aspectos inovadores e dar a conhecer um professor de canto, injustamente esquecido no tempo. Palavras-chave: Salvini, professor, canto, Música Portuguesa.

Gustavo Romanov Salvini nasceu em Prauss, na Polónia Prussiana, a 25 de Março de 1825. “Acossado por perseguições políticas”, fugiu do seu país, procurando refúgio em Itália em fins de 1846, onde se aperfeiçoou tecnicamente como cantor e onde entrou “pela primeira vez para a ópera, como tenor, em Reggio de Parma, em 1849” 1. Fez uma carreira artística em teatros italianos e franceses, e chegou a Portugal em 1858 para trabalhar no Real Teatro de São João, no Porto. Porém, num ensaio da ópera Beatriz de Bellini perdeu subitamente e voz, e não voltou mais a cantar. A partir daqui dedicou-se ao ensino do canto na cidade do Porto, onde estabeleceu uma escola “que durou alguns anos e teve muita reputação” 2. À época da chegada de Salvini a Portugal havia um domínio incontestado da ópera italiana, tanto sobre qualquer forma de canto em Língua Portuguesa, como também sobre a música instrumental. Esta frase de Eça de Queirós é bastante ilustrativa da situação: “ópera cómica nacional, essa, não a temos; o nosso cérebro é impotente para a criação musical; a raça ficou esgotada com o esforço violento que fez inventando o lundum da Figueira. As nossas óperas são os hinos” 3. Embora no séc. XVIII a cidade de Lisboa tivesse conhecido uma espécie de “singspiel” português no Teatro do Bairro Alto pelas mãos do dramaturgo António José da Silva, e embora o Teatro de São Carlos tivesse ouvido, pouco depois da sua fundação, três óperas em português de António Leal Moreira, nenhuma destas tentativas conseguiu lançar as bases para um género musical português. As únicas excepções encontravam-se nos teatros populares, onde se cantavam

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Gustavo Romanov Salvini: As minhas lições de canto: notas ao “Vaccai”: para uso dos portugueses, Porto, Edição dos Herdeiros do autor, 1931, p. 6. AAVV: Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Lda., 1945, v. 26, p. 834. 3 Eça de Queirós, José Duarte Ramalho Ortigão: As Farpas, São João do Estoril, Principia ed., 2004, v. 1, p. 303. 2

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ACTAS DO II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS / PORTO 2014

operetas em português, as quais tinham até bastante sucesso junto do público, como nos diz esta crónica do Allgemeine Musikalische Zeitung de 30 de Junho de 1808:

No entanto, aqui como em toda a parte, a ópera cómica e a opereta mais curta, popular, ou cómica, fazem decerto mais sucesso e atraem um público mais numeroso, embora não mais respeitável. Contudo, a primeira, em geral, e a segunda, sempre, são escritas na língua nacional, cuja pronúncia cantada se tenta aproximar o mais possível da italiana, fazendo com que se torne então bela e doce 4.

O domínio da ópera italiana era de tal ordem que qualquer compositor português, que se quisesse afirmar, compunha óperas sobre libretos em italiano. O próprio Conservatório de Lisboa, fundado em 1835 por iniciativa de Almeida Garrett, e que teve João Domingos Bomtempo como seu primeiro director, também não se conseguiu constituir como um pólo criador de música com características nacionais e em língua portuguesa, como nos diz Lopes-Graça: “a fundação do Conservatório, devida à iniciativa de Garrett (1835), por muito importante que haja sido sob o ponto de vista do ensino da música, nada nos trouxe no domínio que sobremodo importava: o da criação” 5. A nível da música de Câmara, subsistia porém uma forma musical em língua portuguesa: a modinha, “canção de câmara originalíssima, criação típica da área cultural luso-brasileira, entusiasticamente praticada em todas as camadas sociais” 6. Não se trata de um género equivalente à ballad inglesa, à canzonetta italiana ou à arietta francesa, mas antes de uma canção escrita para um ou duas vozes solistas, com acompanhamento instrumental, que, embora junte “a frescura da canção popular tradicional” com “recursos técnicos de escrita erudita (designadamente com os da romanza ou da cavatina da Ópera italiana…)”, tem como elemento original uma “natureza multiétnica, multicultural e eminentemente mestiça de que se revestem todos os aspectos do quotidiano das grandes cidades luso-brasileiras de então” 7. A modinha setecentista, a par de outras formas musicais, pode ser vista como uma forma de “resistência” à hegemonia musical italiana do séc. XVIII. Porém, no séc. XIX a modinha conheceu a sua derradeira fase de desenvolvimento, que ditou a sua extinção: o género tendeu a perder muita da sua especificidade, convertendo-se cada vez mais num subproduto da ópera italiana […]. Chegamos mesmo a encontrar uma considerável percentagem de modinhas que mais não são do que simples contrafacturas de árias de Rossini, Bellini ou Donizzetti, em que o texto italiano original foi substituído por uma versão livre em português, e um número ainda maior de outras que se baseiam literalmente […] em temas melódicos característicos de outras tantas árias desses mesmos compositores 8.

Desta forma, a modinha não se constituiu como o embrião do que poderia ter sido a canção de câmara erudita portuguesa, ou o “kunst-lied” português.

4

Manuel Carlos de Brito, David Cranmer: Crónicas da vida musical portuguesa na 1ª metade do século XIX, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990, p. 34. 5 Fernando Lopes-Graça: “A música portuguesa nas suas relações com a cultura nacional”. A música portuguesa e os seus problemas II, Lisboa, Edição do Autor, 1959 (compilação de escritos publicados em várias revistas e jornais entre 1944 e 1957; reeditado na colecção Obras literárias, com o n.º 7, Lisboa, Caminho, 1989), p. 18. 6 Manuel Ivo Cruz: O essencial sobre a ópera em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2008, p. 44. 7 Manuel Morais: Modinhas, lunduns e cançonetas [Música impressa]: com acompanhamento de viola e guitarra inglesa : séculos XVIII – XIX, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000 (prefácio de Rui Vieira Nery), p. 11. 8 M. Morais, Modinhas.., Prefácio, p.22

TÂNIA SOFIA GOMES VALENTE

É este o panorama com que Salvini se depara na sua chegada a Portugal. Esta frase exprime bem o absurdo que o tenor polaco via nesta situação: Os dilletanti portuguezes gostam de cantar em italiano, do qual às vezes não entendem palavra, e não só não têm remorsos d’abandonar a sua língua às cantigas do povo, mas não se aventurariam mesmo a cantar n’ella um romance nos nossos salões e concertos! Ódio, amor, alegria, tristeza, – paixões pequenas e grandes, – a língua sabe-lhes exprimir tudo isto; mas para o canto?... nem palavra em tal! É pouco lógico 9.

Assim, Salvini, no papel de professor de canto e compositor, enceta uma luta para “conseguir que os portugueses cantem na sua língua, língua que, pela sua beleza e suavidade, conseguiu fascinar por tal forma aquela alma de artista que, desde que dela tomou conhecimento, fez consistir todo o seu ideário artístico em provar a sua adaptabilidade ao canto”. É interessante verificar que esta paixão pela sonoridade da língua portuguesa tenha partido de um estrangeiro, e não de um português. Segundo uma descrição do neto, Salvini entrega-se de alma e coração a esta ideia, à qual “dedica desde então todo o seu vibrante entusiasmo, todos os seus sonhos de glória; e quiçá nele busca lenitivo e conforto para a fatalidade que lhe havia cortado abrupta, dolorosa e irremediavelmente a sua carreira lírica” 10. Para satisfazer o seu intento, Salvini começa por publicar em 1865 o Romanceiro Musical, uma compilação de canções da sua autoria sobre textos não apenas em português, mas escritos muitos deles em versão bilingue italiano/ português, ou espanhol/português. Existe mesmo uma canção com letra em 5 idiomas (italiano, português, francês, alemão, inglês). Os autores de textos escolhidos foram Camilo Castelo-Branco, Luís Augusto Palmeirim, Alexandre Braga, Barbosa Silva, H. Teixeira, e Al. Lido. Existem ainda poemas de autores estrangeiros traduzidos (mas com o autor não identificado na edição que consultamos). O objectivo desta edição poliglota era mostrar a adaptabilidade da língua portuguesa ao canto lírico, através de uma comparação com as outras línguas: “o seu caracter polyglotto tem uma razão de ser. É um estudo comparativo ao alcance das minhas forças para demonstrar que a língua portugueza não é tão pobre de qualidade como a priori nol-o querem persuadir” 11. Esta ideia, ainda que louvável, não será porém muito eficaz, na medida em que um compositor, quando está a escrever a melodia, apenas tem em mente um dos textos numa das línguas, pelo que a adaptabilidade do canto estará condicionada ao idioma, para o qual o compositor estava a escrever 12. Mas voltando ao Romanceiro de Salvini, a questão da adaptabilidade da língua portuguesa ao canto é discutida num “Prólogo” do autor, que antecede as canções. Começa por criticar o facto de as pessoas preferirem o canto em italiano, citando os grandes poetas do seu tempo como prova da beleza do português:

Se abrirmos um livro de Herculano, Garrett. F. Castilho, J. de Lemos, Palmeirim e d’outros muitos, - coraremos por ver tão enraizado entre os portuguezes o prejuízo de que a língua de Camões se não amolda às exigências da voz e está tão longe do idioma de Tasso, que o canto não pode della tirar partido! Grave preconceito, erro grosseiro que tanto areja as flores do Orpheo Lusitano, sem as deixar abrir e exalar os seus perfumes 13. 9 G. R. Salvini: Cancioneiro musical portuguez: Quarenta melodias na lingua portugueza com acompanhamento de piano: Letra dos principaes poetas portuguezes, Lisboa, David Corazzi, 1866 (1ª ed.; 2ª ed., Leipzig, Imp. Breitkopf & Hartel, 1884). 10 G. R. Salvini, As minhas lições de canto…, Prefácio, p. 6. 11 G. R. Salvini, Cancioneiro…, Prólogo (1865), p. I. 12 Um exemplo famoso desta situação é a ópera A Serrana de Alfredo Keil, editada em italiano e português, a qual, embora o compositor reclame ter sido a primeira grande ópera escrita em português, na verdade percebe-se que Keil terá composto sobre o libreto em italiano, dado haver uma maior adaptabilidade, em termos prosódicos, a esta língua. 13 G. R. Salvini, Cancioneiro…, Prólogo 1865, p. V.

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ACTAS DO II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS / PORTO 2014

Cita depois o médico Marc Colombat d’Isère 14, para dizer que, na doçura e na adaptabilidade das línguas ao canto, o português fica à frente da maior parte das línguas da Europa, sendo apenas superado pelo italiano: Unido ao sábio Colombat d’Isère digo, que os idiomas do meio dia da Europa, taes com as línguas italianas, portugueza hespenhola, a que as inflexões da voz e a frequência das vogaes dão uma acentuação mais meiga, são mais favoráveis à musica do que a línguas do norte, cuja palavra é muito mais refractaria ao canto. […] Diz ainda o mesmo sábio (e podemos acreditá-lo sem reserva) que uma mesma phrase musical, cantada nas principaes línguas da Europa, daria para o ouvido enormes diferenças d’harmonia e de doçura. A italiana e a hollandeza, tomadas como extremos de comparação, seguiriam uma marcha progressiva na ordem seguinte: italiana, portugueza, hespanhola, franceza, alemã, ingleza, hollandeza 15.

Este excerto sugere que, se escutarmos uma mesma frase musical nas várias línguas da Europa, encontraremos diferenças de “harmonia e doçura”, isto é, reconhece que cada língua tem uma musicalidade característica, e que a portuguesa fica muito próximo da italiana. Salvini justifica de seguida esta proximidade com a origem etimológica de ambas as línguas – o latim – mas também com as semelhanças geográficas entre os dois países. Aquilo que tornaria o italiano mais adaptável ao canto estaria no facto de o falante-cantor fechar “mais ou menos o timbre aberto das vogaes, a que o orador dá sempre uma entoação cheia e sonora” 16. É partir disto que Salvini sugere uma série de “modificações”, para melhor acomodar a língua portuguesa ao canto lírico:

Por exemplo: abriria mais o seu “a” que muitas vezes pronuncia “ê” muito guturalmente; carregaria menos os seus “s” que soam como “ch”, não pronunciaria o “l” com a raiz, mas com a parte anterior da língua, etc.; advirta-se que estes defeitos são mais defeitos de dialectos, que da língua pura, e que uma vocalização e uma syllabação exacta e clara (de que por ora nem noções se tem) aplanaria os obstáculos que nos tolhem de cantar em bom portuguez… 17.

Esta preocupação com a adaptabilidade da língua portuguesa ao canto constitui uma inovação na pedagogia de Salvini, mas não é a única. A propósito da comparação das línguas da Europa, Salvini faz referência, como já vimos, ao médico Marc Colombat de l’Isère, autor de Traité de tous les vices de la parole, et en particulier du bégaiment, et de tous les autres vices de la parole : traités par de nouvelles méthodes 18, obra de 1830, onde formula hipóteses de tratamento de problemas de gaguez, descrevendo mecanismos naturais e artificiais de produzir todas as letras do alfabeto. Já a propósito da articulação cantada, Salvini faz referência a Manuel Garcia, no seu tempo um reputado pedagogo do Conservatório de Paris e da Royal Academy of Music de Londres. A invenção mais importante de Garcia, não só para o canto, mas sobretudo para a Medicina, foi o larincoscópio, em 1854. Garcia foi a primeira pessoa a observar a laringe e o funcionamento das cordas vocais, o que muito contribui para avanços científicos no campo da otorrinolaringologia e da pedagogia vocal, sendo por isso considerado o primeiro professor de canto – cientista da História. O facto de conhecer o trabalho de Garcia e de Colombat de l’Isère e de querer associá-los à sua própria pedagogia mostra que Salvini estava a par dos desenvolvimentos mais recentes à sua época no campo da ciência da voz, e que pretendia dar uma base científica 14

M. Colombat de L’Isère (1797-1851), médico francês, especialista nos problemas da voz e da palavra – nomeadamente da gaguez –, autor de tratados e inventor do termo “ortofonia”. 15 G. R. Salvini, Cancioneiro…, Prólogo 1865, p. VI. 16 Ibid., p. VII. 17 Ibid., loc. cit. 18 Marc Colombat de l’Isère: Traité de tous les vices de la parole, et en particulier du bégaiment, et de tous les autres vices de la parole : traités par de nouvelles méthodes, Paris, Mansut fils, 1830.

TÂNIA SOFIA GOMES VALENTE

ao seu trabalho. Considerando que, mesmo nos dias de hoje, a maior parte dos professores de canto não possuem conhecimentos científicos aprofundados sobre a voz humana, Salvini era de facto um professor avançado para época. A importância de dar uma fundamentação científica ao trabalho pedagógico poderá estar relacionada com a conjectura científica do século XIX, que é, por excelência, o século das grandes invenções e da Revolução Industrial. É também o século da obra A origem das espécies de Charles Darwin – que mudou radicalmente a forma como as pessoas encaravam o seu mundo –, do átomo e da descoberta das ondas electromagnéticas e da Radioactividade. Num mundo assim, o canto não podia ser mais uma disciplina puramente assente em princípios empíricos, e Manuel Garcia foi o primeiro professor de canto a inscrever-se nesta linha. A técnica de Garcia assentava num princípio muito simples: a voz falada como base para a produção da voz cantada: “a voz cantada é produzida pelo mesmo conjunto de órgãos que a voz falada, e passa através das mesmas duas cavidades, a boca e as fossas nasais” 19. Assim sendo, a articulação perfeita da voz falada, em qualquer língua, tornava-se fundamental para a aquisição de uma boa técnica de voz cantada. É o que Salvini nos diz, quando escreve que os defeitos atribuídos à língua portuguesa são mais “defeitos de dialectos, que da língua pura, e que uma vocalização e uma syllabação exacta e clara (de que por ora nem noções se tem) aplanaria os obstáculos que nos tolhem de cantar em bom portuguez…” 20. Em resumo, esta primeira obra de Salvini, de um ponto de vista da pedagogia vocal, traz-nos a seguintes inovações: preocupações com a “degradação no canto” da língua portuguesa, que atribuí mais a defeitos dialectais que a “defeitos da lingua pura”; comparação linguística das principais línguas da Europa, através de canções bi-ou-multilingues; sugestões de como melhor acomodar o português ao canto, através de “modificações” fonéticas e de composições, que respeitassem melhor a prosódia do texto, mesmo que isso significasse “trocar uma palavra por outra”; foi, segundo LopesGraça, o primeiro que se “se aventurou a pôr em música poetas portugueses […], feito raro na época”; as referências a Marc Colombat de l’Isère e Manuel Garcia mostram uma tentativa de conferir uma base científica à sua pedagogia. Em 1884, Salvini lança uma obra, de seu nome Cancioneiro musical portuguez : Quarenta melodias na lingua portugueza com acompanhamento de piano : Letra dos principaes poetas portuguezes. O “Prólogo da segunda edição” dá-nos a entender tratar-se de uma reedição do Romanceiro, 20 anos depois da sua 1ª edição, aparentemente com muito sucesso, segundo nos diz o autor. Porém, uma comparação atenta das duas obras mostra-nos que não são obras iguais. Para começar, embora tenham em comum uma percentagem de peças superior a 60%, existem peças exclusivas de cada edição. Além disso, enquanto no Romanceiro as canções eram poliglotas, no Cancioneiro Musical Português mesmo as canções bilingues na edição anterior passam a ser apresentadas apenas em português. A única excepção é a canção em 5 línguas, que também passa para esta edição, e que acaba por ser um elemento “estranho” num conjunto de canções portuguesas. Por fim, no Cancioneiro, Salvini acrescenta um Prólogo da segunda Edição e um texto, intitulado “Reflexões sobre a arte do canto”. No Prólogo, Salvini proclama-se como o criador da canção de câmara erudita portuguesa, ou “kunst-lied” português: O CANCIONEIRO abre aos talentosos compositores nacionais um novo campo de exploração para a romanza e cria a forma do kunst-lied, isto é, da canção que não se baseia n’uma frívola e vulgar melodia, mas n’uma cantilena elaborada com preceito, arte

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“La voix chantée est produite par le même ensemble d’organes que la voix parlée, et traverse en s’échappant les deux mêmes cavités, la bouche et les fosses nasales”. Manuel Patricio Rodríguez García: Nouveau traité sommaire de l'art du chant, Mayence, Fils de B. Schott, [entre 1870 e 1890], p. 80. 20 G. R. Salvini, Cancioneiro…, Prólogo 1865, p. VII.

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ACTAS DO II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS MUSICÓLOGOS / PORTO 2014 e inspiração, n’uma phrase clara, correcta, que na sua essência aprofunda, amplia e elucida o valor poético da concepção litteraria e lhe augmenta a sua intensidade 21.

Mais adiante, vai mais longe, dizendo que “o caracter melodioso destas composições comunga na índole dos F. Schubert, Chopin e Menselssohn” 22. De facto, como já vimos, a música vocal portuguesa, até à época de Salvini, vivia sob o domínio da ópera italiana e a única excepção, que se aproximava mais do conceito de uma estética portuguesa, embora ela própria fosse o resultado da génese de várias influências, era a modinha. Porém, no final do século XIX, a modinha converteu-se “num subproduto da ópera italiana” 23, não dando assim origem ao que poderia ter sido a canção erudita portuguesa. No entanto, a “expansão entre os músicos portugueses, desde finais do século XIX, de uma consciência nacionalista e, sem contradição, a multiplicação dos contactos cosmopolitas com a música centro-europeia definem progressivamente a noção de criar a até então inexistente canção culta portuguesa, de desenvolver um Lied português” 24. Salvini é um produto dessa tomada de consciência, e, de facto, é-lhe reconhecido o feito de ter sido o primeiro compositor a musicar a lírica romântica portuguesa. Porém, ao mesmo tempo, não lhe é reconhecido o talento musical para criar o “kunst-lied” português: Se ele se aventurou a pôr em música poetas portugueses […], feito raro na época, o certo é a sua música nada ter de especificamente português, concebida como é num estilo amorfo, cosmopolita, quando não revela a influência nítida do romantismo alemão, – bastante emasculado, já de deixa ver. […] o Cancioneiro não passa de uma colectânea de melodias ou romanzas no pior gosto do chamado “estilo de salão” em voga nos meados do século passado. […] Parece-nos que, mau grado todas as suas ingénuas ou habilidosas pretensões, seria exigir demasiado de um tenor polaco e professor de canto (que, aliás, de mistura com muitos disparates diz algumas coisas acertadas sobre a sua arte e sobre a arte vocal portuguesa, então, como ainda hoje, a bem dizer na infância), seria exigir demasiado desse homem, dizíamos, que fosse o músico, o compositor capaz de criar o Lied português 25.

Depois de Salvini, outros compositores reclamaram para si o epíteto de criadores do “kunst-lied” português. Foi o caso da compositora M. Grisalde, Condessa de Proença-a-Velha, autora de um livro intitulado Melodias Portuguesas 26, e do compositor Rui Coelho. Uma entrada da Enciclopédia Luso-Brasileira, edição de 1940, afirma mesmo: “com a publicação do caderno de Lieder Canções de Saudade e Amor (poesias de Afonso Lopes Vieira), criou, em 1918, o Lied em Portugal” 27. Mas os verdadeiros impulsionadores de uma forma de canção de câmara com características portuguesas, e que se assemelhava ao kunst-lied ou à romanza, acabaram por ser outros compositores, que para si não reclamaram estes louros, como Vianna da Motta, Alfredo Keil, Francisco de Lacerda, Luís de Freitas Branco e, mais tarde, o próprio Lopes-Graça. Mas voltando às obras de Salvini, Romanceiro e Cancioneiro, podemos presumir que nestas obras existem tentativas de ligação aos ideários literários e ideológicos da época do tenor polaco, nomeadamente:

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Ibid., p. X. Ibid., loc. cit. 23 M. Morais, Modinhas.., Prefácio, p. 22. 24 José Manuel Bettencourt da Câmara: O essencial sobre a música portuguesa para canto e piano, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1999, p. 13. 25 F. Lopes-Graça, “Mexendo numa antigualha Musical”. A música portuguesa…, p. 144. 26 Condessa de Proença-a-Velha: Melodias Portuguesas, Lisboa, Lit. Alves, 1934. 27 AAVV, Enciclopédia Portuguesa…, v. 7, p. 55. 22

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– Uma ligação ao ideal romântico através dos poemas escolhidos: às canções com poemas de C. Castelo-Branco, Alexandre Braga e Luís. A. Palmeirim do Romanceiro são acrescentadas, no Cancioneiro, canções com textos de Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, João de Deus, Bernardo Lucas, Gonçalves Crespo; – Uma ligação ao Nacionalismo: no Cancioneiro quase todas as canções são em português, e o título da obra é mesmo Cancioneiro Musical Português; – Uma ligação ao ideal Realista, que defendia a ciência e o progresso, com a introdução do texto de carácter científico “Reflexões sobre a arte do Canto”. Numa nota de rodapé do Prólogo do Romanceiro, Salvini fazia referência à obra de Manuel Garcia, mais precisamente ao texto, que constitui a 2ª parte do seu Nouveau Traité Sommaire de l’art du chant, intitulado “De la parole unie à la musique”, dizendo que pretendia “fazer seguir o nosso Romanceiro d’um resumo d’estas considerações sobre a palavra unida à musica para assim encher ad interium a lacuna acima mencionada” 28. E este texto, “Reflexões sobre a arte do canto – o mecanismo da pronúncia”, acaba de facto por ser um resumo das considerações de Garcia, porém sem lhes fazer referência. Por outras palavras, Salvini faz traduções literais das palavras de Garcia, ou adaptações, mas sem dizer que está a citar o seu tratado. Mostramos aqui dois exemplos dessas traduções:

Garcia: “Les Italiens ne reconnaissent ordinairement que sept voyelles, savoir: a, e, é, i, o, ó, u. On devrait cependant en admettre au moins neuf, car dans les notes élevées des deuz registres, on ne peut se dispenser des voyelles françaises e et u” 29. Salvini: “Os italianos não reconhecem ordinariamente mais do que sete vogaes: a, e, i, ó, é, ô, u. Devia-se porém admitir pelo menos nove, porque nas notas agudas não se pode dispensar as vogaes eu, u, francezes” 30. Garcia: “La consone exprime la force du sentiment, comme le voyelle en exprime la nature” 31. Salvini: “A consoante exprime a força do sentimento como a vogal exprime a sua natureza” 32.

Na década de 30 do séc. XX, pouco depois do início do Estado Novo, e talvez impulsionado por um certo espírito nacionalista, dá-se uma redescoberta de Salvini. Pelas mãos de familiares e de um ilustre homem de Letras do Porto, de nome Bertino Daciano, é reeditado o Cancioneiro e editada a 1ª parte de uma obra póstuma, As minhas lições de Canto: notas ao Vaccai para uso dos portugueses (1931), estando a 2ª parte por editar, até hoje. Esta obra também é bastante inspirada no trabalho de Garcia, como nos diz uma nota final 33. Para além de conter figuras anatómicas, e preocupações muito específicas sobre os cuidados e “higiene” da voz, pensamos que Salvini terá ido buscar inspiração à obra do já citado médico Colombat de l’Isère. Independentemente de plágios, a inclusão de Garcia e de Colombat na sua metodologia de canto mostra que Salvini não queria ser mais um professor que seguia a via empírica. Mais importante, as suas composições musicais podem ser encaradas, não como pioneiras no campo do kunst-lied , mas como verdadeiras experiências científicas no campo da música em língua portuguesa. Concluímos assim que Salvini foi um professor de canto à frente do seu tempo, e que, à

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G. R. Salvini, Cancioneiro…, Prólogo 1865, p. VII. M. P. R. Garcia, Nouveau traité…, p. 81. 30 G. R. Salvini, Cancioneiro…, p. XIV. 31 M. P. R. Garcia, Nouveau traité..., p. 88. 32 G. R. Salvini, Cancioneiro..., p. XIV. 33 “Como no presente trabalho está contida apenas uma parte do ‘Vaccai’ adaptado aos portugueses por Salvini, brevemente será publicado o resto da obra, elaborada, conforme o próprio autor o declara, ‘sobre os eminentes especialistas da antiga e pura escola italiana’, como Manuel Garcia e outros”. Nota final de G. R. Salvini: As minha lições de Canto… 29

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sua maneira, procurou “demonstrar que a língua portugueza não é tão pobre de qualidades phonicas como a priori nol-o querem persuadir” 34. Pensamos ser injusto este pedagogo, tão empenhado e avançado para a época em que viveu, ter sido esquecido no tempo. Salvini deveria ser um exemplo para os professores de canto do séc. XXI, pelo valor que dá ao canto em português, pela sua preocupação com a articulação correcta da língua, e pela fundamentação científica, que procurou dar ao seu trabalho. Consideramos que seria importante, até para a história do canto lírico em Portugal, uma reedição das obras já publicadas de Salvini, com uma edição crítica moderna, e uma edição das obras inéditas 35. Quanto às canções, apesar de não serem de uma grande mestria composicional, podiam ser usadas como um método de canto, semelhante ao método Vaccai. Terminamos o artigo com esta frase, que ilustra bem como Salvini, sentindo-se pouco valorizado no seu tempo, tinha consciência da verdade do seu trabalho: “se por desgraça minha, ninguém me dá razão entre os meus contemporâneos – consolar-me-ei, com as palavras de Galileu: e pure si muove! (porém move-se!)” 36.

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G. R. Salvini, Cancioneiro…., Prólogo 1865, p. I. Da nossa parte, esperamos ter contribuído para a divulgação da obra deste artista, com este artigo, e também com esta página, que aqui deixamos https://www.facebook.com/pages/Gustavo-Romanov-Salvini/605623282852435 (20/05/14). 36 G. R. Salvini, Cancioneiro…, Prólogo 1865, p. VIII. 35

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