Habilidades sociais e problemas de comportamento: um estudo exploratório baseado no modelo construcional

May 31, 2017 | Autor: Vanessa Leme | Categoria: Social Skills, Aletheia
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Aletheia, revista quadrimestral editada pelo Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia, pertencentes às seguintes categorias: artigos de pesquisa, artigos de atualização, resenhas e comunicações. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores e as opiniões e julgamentos neles contidos não expressam necessariamente o pensamento dos Editores ou Conselho Editorial.

Sumário 3

Editorial

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Lo esencial es invisible a los ojos: payasos que humanizan y promueven salud What is essential is invisible to the eye: Humanitarian and health promotion clowns Bruna Baliari Espinosa; Teresa Rosado Gutiérrez

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Descompassos entre a lei e o cotidiano nos abrigos: percursos do ECA Differences between the law and the daily life in the shelters: ECA’s trajectories Maria Lívia do Nascimento; Alessandra Speranza Lacaz; Marilisa Travassos

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Estudo do processo de resposta num teste de memória Study about the response process of a memory test Fabián Javier Marín Rueda; Fermino Fernandes Sisto; Cláudia Araújo da Cunha; Alexandre José Raad

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A influência das habilidades sociais no envolvimento de mães e pais com filhos com retardo mental The influence of social skills on the involvement of mothers and fathers with their mentally retarded children Alcides Cardozo; Adriana Benevides Soares

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Precisão entre juízes na avaliação dos aspectos formais do teste de Wartegg Raters reliability in the assessment of formal aspects of the Wartegg test Irai Cristina Boccato Alves; Augusto Rodrigues Dias; Luís Sérgio Sardinha; Fábio Donini Conti

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Conjugalidade em contexto de depressão da esposa no final do primeiro ano de vida do bebê Conjugality in context of wife’s depression by the end of the infant’s first year of life Giana Bitencourt Frizzo; Ivani Brys; Rita de Cássia Sobreira Lopes; Cesar Augusto Piccinini

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As ideias do senso comum sobre a relação entre a justiça e a injustiça The common sense ideas about the relations between justice and injustice Lila Maria Spadoni; Ana Raquel Rosas Torres

Artigos de atualização

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Investigação do grau de tolerância à frustração em presidiários Investigation of the degree of tolerance to frustation in prisioners Elizelma Ortêncio Ferreira; Cláudio Garcia Capitão

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Estudo de caso – avaliação neuropsicológica: depressão x demência Relate of case: Neuropsychology assessment – depression x dementia Nicole Maineri Steibel; Rosa Maria Martins de Almeida

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Indicadores de síndrome de couvade em pais primíparos durante a gestação Indicators of couvade syndrome of first time fathers during pregnancy Talu Andréa Dartora De Martini; Cesar Augusto Piccinini; Tonantzin Ribeiro Gonçalves

137

Autoeficácia e qualidade de vida de jovens adultos com doenças crônicas Self-efficacy and quality of life in young adults with chronic disease Elisa Kern de Castro; Clarissa Franco Ponciano; Débora Wagner Pinto

149

Habilidades sociais e problemas de comportamento: um estudo exploratório baseado no modelo construcional Social skills and behavior problems: An exploratory study based on the constructional approach Vanessa Barbosa Romera Leme; Alessandra Turini Bolsoni-Silva

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Interações sociais e clima para criatividade em sala de aula Social interaction and the climate for creativity in the classroom Ana Clara Oliveira Libório; Marisa Maria Brito da Justa Neves

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Psicologia e presença feminina nos discursos médico e católico na primeira metade do século XX Psychology and female presence in medical and catholic discourses in the first half of the 20th (twentieth) century Flávia Moreira Oliveira; Adriana Amaral do Espírito Santo; Marcela Peralva Aguiar; Ana Maria Jacó Vilela

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Litígios intermináveis: uma perpetuação do vínculo conjugal? Unending litigations: A perpetuation of the conjugal bond? Ana Lúcia Marinônio de Paula Antunes; Andrea Seixas Magalhães; Terezinha FéresCarneiro

Resenha 212

Trauma e superação: o que a psicologia, a neurociência e a espiritualidade ensinam Ana Catarina Araújo Elias

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Instruções aos autores

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Instructions to authors

227 Instrucciones a los autores 2

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Editorial Aletheia: 15 anos No ano de comemoração de seus 15 anos, a Aletheia recebe da ULBRA e dá aos leitores mais um presente: sua quadrimestralidade. A consolidação de nosso periódico é um processo que contou com a participação de vários atores da comunidade acadêmica local, por meio de seus editores, professores do curso de Psicologia da ULBRA Canoas, Editora da ULBRA e da comunidade científica nacional e internacional. O curso de Psicologia não só projetou e acompanhou seu desenvolvimento, mas, também, participou efetivamente de sua evolução, permitindo seu ajuste à realidade que constantemente batia e bate à sua porta. Auxiliou na superação, de modo crescente e eficaz, das múltiplas situações com que teve de se confrontar nestes anos de existência. A edição de um periódico científico, em meio a tantos olhares, exigências, expectativas, cobranças, é, sem dúvida, um desafio, mas, acima de tudo, uma responsabilidade. Lidar com a constante incerteza quanto ao momento seguinte tem sido nosso estímulo para criação, realização e busca persistente de reconhecimento. No auge da sua juventude, caminha agora para a maturidade, não menos desafiadora e trabalhosa. A Aletheia transita bonita e segura na sua fase de construção e consolidação de sua identidade, fase que nos tem exigido questionar valores e ações sem temer a perda do já conquistado. Movimenta-se gradativamente para uma compreensão mais madura de sua identidade e de propósito. Persiste no seu caminho do estabelecimento e da manutenção de seus relacionamentos satisfatórios pelo aprendizado e gosto de compartilhar. Entendemos ser nossa tarefa seguir na complexa missão, atribuída ao longo dos anos a seus editores e, em especial, a seus autores: traduzir em palavras e em um discurso cientificamente articulado experiências reflexivas e investigativas complexas. Agora de forma mais ágil. Agradecemos e contamos sempre com a participação de todos.

Mary Sandra Carlotto Editora

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Aletheia 31, p.4-15, jan./abr. 2010

Lo esencial es invisible a los ojos: payasos que humanizan y promueven salud Bruna Baliari Espinosa Teresa Rosado Gutiérrez Resumen: La figura del payaso ha pasado por diferentes momentos y lecturas históricas, lo que permite considerarla como una figura arquetípica. Su papel en la sociedad históricamente fue el del ridículo, objeto de risas, pero el payaso no sólo es un ser congruente, auténtico y valiente, sino que también puede ser frágil y transparente en sus significaciones. En la actualidad los significados de este personaje son reconstruidos, como, por ejemplo, en los programas de payasos en intervenciones comunitarias – un fenómeno nuevo, que ha crecido de forma considerable en los últimos años. Ellos se encuentran en diferentes lugares, como hospitales, campos de refugiados, territorios en vías de desarrollo y en situaciones de emergencia en todo el mundo, ocupando ahora un espacio de transición rumbo a la configuración de cuidador. Preocupados en promover la salud a través del humor, de la risa y de una atención auténtica y verdadera con el otro, estos artistas encajan, cada vez más, en intervenciones comunitarias, ejerciendo así un papel social y sanitario significativo. El presente trabajo tiene como objetivo relacionar la figura del payaso y los programas de payasos de hospital con el movimiento de humanización hospitalaria existente actualmente, identificando en ellos, relaciones con el trabajo de promoción de salud. Palabras clave: payasos; promoción de salud.

What is essential is invisible to the eye: Humanitarian and health promotion clowns Abstract: The figure of the clown has passed through different moments and historical lectures, which makes it be considered an archetypal figure in the occidental culture. Their role in society has always been the ridiculous, object of giggling, but the clown is not only a being consistent, authentic and courageous, he is also fragile and transparent in his significations. Nowadays, the means of this character are reconstructed, like, for example, in the programs of clowns in community interventions – a new phenomenon that has grown considerably in the last years. They are already in different places such as hospitals, refugee camps, in developing areas and in emergency situations around the world. Anxious to promote health through humour, of laughter and a true and genuine attention to the other, these artists fit, increasingly, in community interventions, acting as a very important social role. This work aims to relate the figure of the clown and the clown of the hospital programs with the movement of humanization hospital currently available, identifying in them, relations with the work of health and promotion. Keywords: clowns; health promotion.

Introducción “El verdadero artista, rebelde por naturaleza y fuerza, resiste a ser domesticado, niega a aceptar el mundo tal como este se ofrece a sus sentidos, y entonces, crea un universo con sus propios límites.” (Aristóteles)

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El Bobo da Corte y el Payaso son figuras del imaginario cultural que pueden ser históricamente significadas como arquetípicas, o sea “imágenes universales que existirán desde los tiempos más remotos” (Jung, 2002, p.16). Segundo Willeford (citado por Nogueira, 2006) el bobo es un misterioso y ambiguo personaje que de un lado es parte del mundo para simpatizar con los demás, pero por el otro, está separado lo suficiente para ser motivo de risa. Su posición está en la línea justa entre el bien y el mal, el personaje y el auténtico, el orden y el caos, realidad e ilusión, existencia y no existencia. De acuerdo con de Castro (2005), en innumerables épocas y culturas encontramos la práctica de rituales en que se imitaban ciegos, leprosos, provocando la hilaridad de los participantes. Los aztecas hacían estas imitaciones, los indios norte-americanos tenían la figura de los heyokas, que tenían como principal función la de recordar a la tribu lo absurdo de los comportamientos humanos y la necesidad de no llevar las reglas demasiado en serio. Los monjes budistas tibetanos tenían la figura del Mi-tshe-ring, el viejo bufón sabio – que molesta todas las ceremonias religiosas, incapaz de controlarse y de hacer silencio. En la India fue formado uno de los más antiguos dúos de cómicos que se conocen. La unión de un “malandro” – Vita – con un estúpido torpe – Vidusaka – es una de las más felices combinaciones de la comedia, siendo encontrada en todas las culturas, en todos los tiempos. Por lo tanto, la figura del bufón no es un papel exclusivo de la civilización occidental sino una figura universal con diversas funciones sociales (Bestetti, 2005). Un posible surgimiento de los llamados bufones “tontos” en la cultura occidental, podría haber sucedido en las cortes de la Edad Media. Generalmente usaban gorros con orejas. Desfilaban con vestidos coloridos y brillantes y llevaban bastones que tenían las empuñaduras talladas con la cabeza de un bufón. Aunque el papel de los bufones y de los payasos generalmente estaba limitado a la servidumbre, existen evidencias de que algunos disfrutaban de un trato familiar por parte de sus amos. Como “contentos consejeros” se conocía a los bufones en Alemania, porque dentro de sus agudas observaciones incluían sabios consejos (Vicens, 1958). Durante los siglos XVI y XVII, se torna célebre, en Italia, un nuevo estilo teatral inspirado en la cultura romana. En la commedia dell´Arte los personajes eran siempre los mismos y apenas variaban los argumentos, improvisados, por los mismos personajes, de acuerdo con su carácter. La Commedia dell´arte, con su estructura de grandes arquetipos humanos perennes a lo largo del tiempo y su trepidante comicidad, fue y es por donde se afirma el arte del gesto y del humor. El teatro basado en la convención, la complicidad con el público. En definitiva, el arte del clown. “La Commedia dell´arte representa la más clara expresión de simbiosis entre mimos, clowns, acróbatas, bailarines y demás especies del teatro popular” (Jara, 2000, p.28). El circo surgió en 1768, cuando el sargento inglés Philip Astley construyó un anfiteatro abierto donde hacia espectáculos con caballos. La necesidad de hacer el espectáculo en un círculo (de acuerdo con la descubierta de que esto ayuda al caballero mantenerse de pie sobre el caballo), hizo que lo transformara en un espacio en círculo, como una arena de los griegos. Sus espectáculos contaban aparte de caballos y caballeros, con equilibristas y acróbatas. Más tarde empezó a surgir la figura del payaso y del payaso en el caballo. Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Los términos Augusto y clown blanco son encontrados en muchos libros que hablan sobre la historia del clown. Por lo tanto es importante hacer una diferencia. Independiente de la versión contada como surgimiento de estas figuras, la verdad es que el augusto es el personaje del criado idiota, la figura que se cae en escena, tropieza. Y lo vestirán como una persona común, empezando a utilizar las exageraciones, los zapatos de números mayores, los pantalones largos, un poco de rojo en la nariz para parecer alguien que ha exagerado en la bebida. Pero al principio el augusto aún era un personaje discreto, existía un intento de aparentar una persona normal, y lo cómico estaba ahí. “El augusto era un idiota, un inadaptado, alguien que quería vestirse bien, pero no sabia como. El sombrero era muy pequeño, el traje sobraba por las mangas y los zapatos eran largos. La figura del augusto llega a confundirse con la del vagabundo” (Castro, 2005, p.71). El augusto, como lo conocemos hoy, habría sido criado por Albert Fratelinni en 1910, cuando los hermanos crearon un trío de payasos. Siguiendo sus líneas, empezaron a surgir payasos copiando sus máscaras alucinadas y sus actitudes y en 1923, en los Estados Unidos, a partir del “circo más grande de todos los tiempos” (Ringling´s Brothers, Barnun and Bailey´s Circus) donde existían augustos con bocas rojas, pelucas y nariz roja, surge una epidemia de copias de esta imagen. El modelo de relación dominadora del clown sobre el augusto vendría después, con el dúo formado por el inglés Tudor Hall y el cubano Raphael Padilla, o sea, “Footit e Chocolat” (Castro, 2005). De acuerdo con Masetti (2003), el termino clown es usualmente utilizado en Brasil para designar la actuación de este personaje en espacios no circenses, como el teatro o el hospital. Una de las razones para diferenciar los dos términos seria en relación a las diferentes técnicas y el maquillaje que uno u otro ambiente exigen, de acuerdo con el tamaño y la función del espacio. La otra seria diferenciar el trabajo del clown de una comprensión peyorativa del papel del payaso, como por ejemplo, de la de figura de animador de fiestas, muchas veces remitida a un carácter patético o distante de lo que es la esencia de la actuación artística. Ya para Mello (1994), “el payaso es hoy un tipo que intenta hacer gracia y divertir a su público por medio de sus extravagancias en cuanto que el clown intenta ser sincero y honesto” (Mello, 1994, p.246). Aún en relación a esta visión peyorativa, es importante resaltar el crecimiento en el sector comercial, de esta “clownería”, lo cual lleva a la banalización de la figura del payaso, que tiene su esencia corrompida y se torna “una máscara sin alma” (Bestetti, 2005, p.69). La figura del clown, más que apenas una apropiación del término en inglés (normalmente traducible por payaso) es la de un adulto que actúa siempre como hacen los adultos cuando no son observados, cuando no están expuestos a los juicios de los otros adultos (Jara, 2000). Así, se puede entender que “el clown trabaja en una fábrica de reciclaje de emociones. Relativizando y redimiendo la escoria de los sentimientos (...) capaz de descargar la parte inútil de los escudos “anti-gente” (anti-simplicidad, anti-sinceridad) que penosamente cargamos” (Federicci, 2004, p.80). Los payasos son artistas que vienen ejerciendo una función social de promotores de salud en sus trabajos en los hospitales. En este sentido, es importante situarnos en el concepto de salud aquí utilizado, el mismo empleado por la OMS, donde salud pasa 6

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a ser entendida, desde 1948, como un estado completo de bienestar físico, mental y social, y no sólo la ausencia de afecciones o enfermedades. Esa configuración del ideario desmedicalizado y despatologizante de la salud hace que los dispositivos de humanización de las prácticas en salud sean necesarios y, en este sentido, las intervenciones de los artistas (entre ellos los clowns) pasen realmente a tener sentido como práctica de salud. Según Lima e Pelbart (2007), “a partir de la reforma psiquiátrica en Brasil, se busca, a través del arte, tematizar las oposiciones entre salud y enfermedad, normal y patológico, locura y sanidad. Las prácticas de desinstitucionalización atraviesan los muros de los hospitales, invaden las ciudades y pasan a intervenir en las redes sociales y en la cultura, buscando deshacer manicomios mentales” (p.729). Por tanto, los payasos de hospitales pueden ser vistos como artistas dispuestos a llevar la filosofía del clown dentro de ambientes donde es explícita la necesidad de humanización, entendida aquí como “cualidad de las relaciones desarrolladas entre el equipo de salud y los pacientes, lo que es comunicado en esta interacción y el ejercicio de las potencialidades de los seres humanos” (Masetti, 2003, p.23). Payasos de hospital, humanización y promoción de salud Son innumerables los conceptos utilizados para intentar hablar de la subjetividad humana, de la persona y de la humanización necesaria para el tratamiento de esta persona. Uno de ellos es la palabra esencia. Se puede resaltar aquí la importancia del trabajo de los payasos con lo que es invisible y, por lo tanto, muchas veces impronunciable en palabras, aunque esencial. El concepto de ser humano se aproxima, muchas veces, al concepto de acto artístico, ya que el arte muchas veces no tiene una explicación, es algo subjetivo y el subjetivo existe para no ser totalmente explicado, porque no siempre está al alcance de las palabras. Masetti (2003) para hablar del trabajo de los “Doctores de la Alegría”, habla mucho de la potencialidad de los encuentros, donde las personas co-existen: “Todo lo que existe son cuerpos compuestos de cualidades de afectar y de ser afectados por otros cuerpos” (Masetti, 2003, p.35). Por lo tanto, sería a través de la alegría que buscaríamos los buenos encuentros que favorezcan nuestra potencialidad y libertad. Actualmente se habla mucho de la humanización de la salud. El modelo biomédico, durante mucho se mantiene como único e imperativo en la medicina occidental. Pero este tema viene siendo cada vez más discutido y la sociedad actual viene exigiendo reformas frente a esto, exigiendo no solamente la cura, sino también el cuidado. Por lo tanto, otra forma de medicina pasa, también, a ser admirada y exigida. La relación entre humanización y salud es cada vez más defendida por diferentes autores, de acuerdo con la explícita necesidad de su unión. Para Martins (2003), la deshumanización de la medicina está reflejada en la extrema especialización técnica de los médicos y no en el inevitable distanciamiento entre médico y enfermo que esta especialización resulta; como también la creencia (sustentada por los grupos privados) de que el interés “científico” (aquí en su acepción más positivista) y económico es más importante que el interés social. Todo esto sustentaría la idea de que “la enfermedad vale más que el enfermo y que el dinero y el prestigio obtenidos por los servicios médicos no tienen obligaciones y deudas con el Aletheia 31, jan./abr. 2010

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sufrimiento humano” (Martins, 2003, p.33). Las alternativas terapéuticas surgen en este escenario, como indicadores de una posible nueva salud, que según este mismo autor surge como un fenómeno cultural pos-moderno y como una expresión más radical de un amplio proceso de rehumanización de la medicina moderna. Aún en relación a esta mercantilización de la medicina, Caminal (2008) menciona la medicalización de la salud como un factor importante para la configuración actual de los servicios y procedimientos “científicamente” válidos en el ámbito sanitario. Se refiere con esto, por ejemplo, a la industria farmacéutica como manipuladora de miedos profundos como el de la muerte, el deterioro físico o la propia enfermedad, y como responsable de un cambio de lo que significa ser humano, visto que se percibe cada vez más una búsqueda por una salud inexistente, un estado de bienestar utópico y objeto de mercado, lo que lleva a la tendencia de clasificar como enfermedad muchos problemas que anteriormente no lo eran. Giglio (2008) habla de un nuevo paradigma para la relación médico-paciente, por la cual la razón de la búsqueda por el médico no se restringe ya sólo a una enfermedad definible, y pasa a englobar toda y cualquier forma de sufrimiento o dolor del individuo que requiere la atención sanitaria. De esta forma, el ser que sufre se convertiría en un paciente y, el profesional que se preocupa en minimizar o abolir su sufrimiento, se torna el médico u otra caricatura de cualquier profesional, que tiene en el médico el único modelo culturalmente viable de ser profesional de salud (o de enfermedad, en la mayoría de los casos). Con otro punto de vista, Trindade, Aquino, Araújo, Moreira, Ferreira y Maia (2007), mencionan el otro lado de la humanización, o sea, la que ve necesaria no solamente la asistencia del médico al paciente, sino también la salud psíquica del propio profesional, que está implicada directamente con el trato que este profesional puede ofrecer a su paciente. Por lo tanto, según la investigación de estos autores, se torna interesante buscar la inserción y la implementación de acciones que vengan a atender también la salud del profesional de la salud. Así, “insertados en un hospital, es posible encontrarnos no sólo sujetos en tratamiento, como también los propios profesionales (cuidadores) con su salud debilitada, necesitando de cuidados y atención en pleno ejercicio de sus atribuciones: el cuidado del otro” (p.7). Todos los programas de payasos de hospital parecen preocuparse con los médicos, enfermeras y funcionarios del hospital, afirmando que su trabajo no consiste apenas en favorecer al niño hospitalizado, sino también todo el ambiente en el cual se encuentra, englobando así, todo el equipo de trabajo del hospital. De esta forma, se podría relacionar estos programas de payasos de hospital como “promotores de salud”, visto que llevan el flujo de la vida a un lugar que está dominado por el flujo de la muerte, como el hospital. Pero para hablar sobre promoción de salud se debe tener cuidado, ya que este concepto se ha tornado, muchas veces, algo rotulado. El término “salud” se ha convertido en distinto y “la salud” se ha tornado un objeto de mercado, visto como producto y exposición a los demás. Para Evans e Stoddart (1994), “este concepto tan global, por otro lado, corre el riesgo de convertirse en un objetivo idóneo de toda la actividad humana… y de transformarse 8

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en el objetivo no solamente de la política sanitaria sino de toda actividad humana” (p.3055). Por lo tanto se puede ver aquí otra visión de la salud, una salud hermenéutica, con un fin en sí misma: la salud como un tipo de enfermedad. Para Lewis Thomas (citado por Renaud, 1994), nos transformamos obcecados con la salud, buscando más exuberancia al vivir e ignorando el fracaso, la muerte: Perdemos la confianza en el cuerpo humano. El nuevo consenso es que estamos mal dibujados… Ciertamente deberíamos preguntarnos si nuestra preocupación por la salud personal no es un síntoma de incapacidad para hacer frente a las cosas, una disculpa para subir corriendo las escaleras, caernos en un agujero, oler el aire en búsqueda de contaminantes, y cansarnos de pulverizar desodorantes, mientras fuera la sociedad entera se deshace (Thomas citado por Renaud, 1996, p.351). Por lo tanto, se podría relacionar la promoción de salud con una instauración y manutención de comportamientos no sólo saludables sino también potenciadores de capacidades funcionales, físicas, psicológicas y sociales de las personas. O sea, un proceso amplio con lo cual las personas y las comunidades mejoran su control sobre los determinantes personales y ambientales de salud (Dias, Duque, Silva & Durá, 2004). Características de los programas de payasos de hospital La complejidad de las formas de ser en la contemporaneidad genera sentimientos de incertidumbre, de inestabilidad. Las verdades que teníamos a priori, en la modernidad, no son ya sustentadas por las mismas teorías. Vivimos ahogados por las dudas y por las incertidumbres y nos sentimos solos, vulnerables. Pero empezamos a sentirnos responsables también y curiosamente, todo esto nos hace sentir una necesidad de rescatar “el humano de la humanidad”. Para Bauman (2006), vivimos en una Modernidad Líquida, que tiene como características: la fragilidad de los vínculos humanos, la superfluidad de desvinculación, la decrepitud; los estados transitorios y volátiles y la adicción a la seguridad y el miedo al miedo. De acuerdo con este autor, la crisis por la cual pasamos es la crisis del largo plazo y el único largo plazo es uno mismo, porque todo lo demás sería a “corto plazo”. Las palabras de Bauman hacen pensar sobre el automatismo en que nos encontramos actualmente. Vivimos siempre teniendo que correr detrás de resultados que no siempre son conscientes para nosotros mismos. Los vínculos humanos se tornan frágiles, superficiales y la intimidad es algo que puede estar en extinción. Todo se ve transitorio, incluso los vínculos. Es verdad que el automatismo del mundo implica una falta de consciencia sobre la vida misma. Las presiones, necesidades y valores existentes en la sociedad actual, construida por nosotros mismos, nos aleja de nuestro presente y de nuestra propia vida. Así que, normalmente es más fácil culpabilizar a lo externo, o no humano, en relación a las elecciones que uno hace. Entonces, la aparición de esta persona, de una esencia del ser humano, se ve relacionada con la comunicación. Y, por lo tanto, una de las estrategias básicas de la humanización que tanto se habla, puede estar relacionada con una atención a la comunicación existente entre las personas. Entre dos indivíduos que se comunican como personas, entre dos esencias que se encuentran. Y esta ha Aletheia 31, jan./abr. 2010

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sido una de las principales funciones del arte, promover extrañeza y encuentro al mismo tiempo, o sea, una posibilidad de ser a través de una experiencia que al mismo tiempo en que comparte el lenguaje de la incertidumbre contemporánea, acoge la diferencia de percepciones, abriendo nuevos caminos y posibilidades de encuentro con el humano. Federicci (2004) afirma que “para mover en el lado de la patética y patológica inalterabilidad del normal, existe el arte; solamente para chocar concepciones del mundo que se cristalizan al dejar de ser al menos pensadas, y restituirnos una permeabilidad entupida”, y cita Bergson: Si nuestros sentidos y nuestra conciencia fueran directamente impresionados por la realidad, si pudiéramos entrar en comunicación inmediata con las cosas y con nosotros mismos, creo que el arte seria inútil, o mejor, que seríamos todos artistas, pues nuestra alma vibraría entonces continuamente en unísono con la naturaleza (Bergson cifrado por Federici, 2004, p.73). Los programas de payasos de hospital son un ejemplo nítido de la función social y de promoción de salud que puede ocupar el arte. En las últimas décadas ha crecido de forma significativa el número de estos programas, los cuales ya están disponibles en todos los continentes. La tasa de introducción y la integración de los programas de payasos de hospital de forma continua o fija en la atención de salud son consideradas un fenómeno nuevo. Los clown doctors o payasos de hospital, son profesionales, artistas intérpretes o ejecutantes (no médicos) que tienen una capacitación adicional para trabajar, prioritariamente, con los niños enfermos en el hospital. Los programas normalmente son integrados y aceptados en la acogida de los hospitales, con informes de alto nivel de profesionalismo y confianza. La diferenciación entre lo que es terapia y lo que es terapéutico es muy importante para contextualizar el trabajo de los payasos en intervenciones como, por ejemplo, en los hospitales. El ambiente hospitalario acostumbra a estar bien estructurado profesionalmente: “profesionales de ayuda” más tradicionales (como pueden ser los psicólogos, asistentes sociales o religiosos) finalmente vienen encontrando sus espacios dentro del hospital y el apoyo terapéutico está por todas partes. Muchos incluso pueden utilizar herramientas artísticas para hacer sus “terapias” (como los dibujos o las historias infantiles). Pero el payaso no está ahí con este objetivo. Él no busca diagnósticos, o “tratamientos”, no se centra en las enfermedades ni en la espera de resultados. Él actúa sin preocuparse por el después, vivenciando el presente y haciendo de esta vivencia lo que vendrá a ser terapéutico. Adams (2002) aún afirma preferir los payasos para los adultos, porque, según el, estos tienen una vida mucho más alejada de la experiencia, o sea, del aquí y ahora, de lo que se vive en el presente. Y afirma: “los hospitales modernos y las prácticas médicas en todo el mundo, gritan por reconectar el suministro de la atención a la compasión, alegría, amor y humor” (Adams, 2002, p.47). Una de las características que más marcan de este tipo de trabajo es el sentido del humor. Actualmente, son muchos los estudios que consideran la importancia del humor en 10

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la promoción de salud de las personas. La capacidad de reír es una de las cualidades más características y profundamente enraizadas en el humano. Fueron muchos los psicólogos y filósofos que argumentaron que el hombre es el único ser que ríe y tiene sentido del humor (Moody, 2002). El humor puede relacionarse con el estrés y, por lo tanto, se habla de un posible efecto positivo indirecto del humor sobre la salud. Según Narvaez (2007), el estrés inhibe el sistema inmunológico y, por lo tanto, está asociado a todos los tipos de condiciones médicas, como resfriados, dolores en las espaldas, diabetes, etc. A través del control del estrés, un buen sentido del humor debería, en principio, prevenir ciertas enfermedades, favorecer la recuperación y contribuir, en definitiva, a una salud mejor. Richman (2001) hace referencia al humor como condición humana: “el humor positivo es un bien con una esencia afectuosa y una tolerante comprensión de las locuras de nosotros mismos y de los otros” (p.422). Y el humor parece tener siempre alguna relación con la autenticidad. Bergson (2008), en su ensayo sobre la significación del cómico, afirma que la vida auténticamente vivida no debería repetirse y que la repetición nos hace sospechar que algo mecánico funciona por detrás del viviente. Por lo tanto, defiende la idea de que la desviación de la vida en dirección a lo mecánico es la verdadera causa de la risa y nos aporta que la risa debe ser una especie de gesto social, teniendo en cuenta que el mundo donde vivimos está lleno de incongruencias y la capacidad de percibir lo cómico, entonces, sería indispensable para el enfrentamiento de estas alternancias, que puedan ser percibidas y manejadas tranquilamente con el sentido de humor. En una investigación realizada por la ONG de payasos promotores de salud “Doutores da Alegria” (2003/2004), fueron encontradas 124 web-sites de organizaciones de payasos de hospital en el mundo. En los Estados Unidos fueron los primeros en el desarrollo de este tipo de intervenciones. El llamado the Big Apple Circus Clown Care Unit, en la ciudad de Nueva York, creado por Michael Christensenn en 1986 es reconocido como el primer programa bien estructurado, de payasos de hospital. A partir del conocimiento y aprendizaje, trabajando con este grupo, el artista brasileño Wellington Nogueira llevó la idea para Brasil, creando el grupo “Doutores da Alegria” en 1990 (Nogueira, 2006). Infelizmente, entre tantos programas y asociaciones, pocas son las investigaciones hechas sobre las aportaciones de los payasos de hospital para la promoción de una salud “real”. En una investigación realizada en Finlandia, sobre las expectativas de los niños en relación a la atención de las enfermeras en una unidad pediátrica, los entrevistados (niños entre 4 y 11 años) esperaban que las enfermeras fueran simpáticas, afectivas y divertidas, siendo las características humanas las que más les importaban. Además de esto, una buena enfermera era esperada por los niños como con “sentido de humor” y “honestas”. Los niños afirman también que les gustarían que las ropas de las enfermeras fueran más coloridas y dicen que “el blanco no es guapo” (Pelander & Leino-Kilpi, 2004, p.145). En otra investigación, con niños sometidos a la anestesia en un Hospital de Florencia, Italia (Vagnoli, Caprilli, Robiglio & Messeri, 2005) los investigadores buscaban encontrar Aletheia 31, jan./abr. 2010

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efectos del trabajo de payasos de hospital en los niños que tenían que tomar anestesia. Como resultados, encontraron que la presencia de payasos durante la inducción de la anestesia, junto con uno de los padres del niño, fue una intervención efectiva para la gestión del niño y de los padres, sobre la ansiedad en el período pre-operatorio. Además, los responsables de este estudio comentan, como conclusión, sobre la necesaria promoción de esta forma de terapia de distracción, para los niños que requieren cirugía. Y afirman que la resistencia del equipo médico a este tipo de (en la opinión de ellos) “terapia”, puede “tratarse mejor mediante el suministro de información relativa a la prestación de terapia a los niños y de investigación si la presencia de payasos durante la inducción de anestesia, retarda el proceso de manera significativa” (p.567). En España, Cantó, Quiles, Vallejo, Pruneda, Morote y Piñera (2008) realizaron una investigación sobre el efecto de la actuación de los payasos de hospital sobre la ansiedad, en niños sometidos a una intervención quirúrgica. Los resultados obtenidos mostraron que los niños que recibieron la atención de los payasos se manifestaron menos ansiosos y con menos miedo que los que no la recibieron. Además, estos resultados parecieron mantenerse 7 días después del alta a través de manifestaciones de conducta positivas. En Brasil, Aquino, Bortolucci y Marta (2004) hicieron un estudio cualitativo sobre la visión de los payasos de hospital por niños, de 4 a 12 años, hospitalizados. En este estudio, observaron que el trabajo de los payasos ayuda en la autonomía del niño que se encuentra en poder decidir si quiere o no la entrada de los payasos en su habitación, lo que significa un respeto a la opinión del niño, derechos que cuando el niño esta hospitalizado no puede tener en relación a su cuerpo. Masetti (1997), en su investigación con payasos de hospital, ha aplicado dibujos en los cuales los niños contaban historias, antes y después de la actuación de los Doutores da Alegria. Lo que se observó como más presente, fue la modificación de historias después de la actuación de los payasos, con un enriquecimiento de contenidos, expresiones de conflictos, resoluciones mejores o más positivas. Además, se ha observado un mayor uso de colores, aumento del tamaño de los dibujos, mayor nitidez o mejora en las formas. De acuerdo con la autora “estas modificaciones son indicadores de un cambio positivo en relación al niño con la hospitalización, en concordancia con las informaciones obtenidas junto a los padres, médicos y enfermeras” (Masetti, 1997, p.43). Por lo tanto, a pesar de que fueran investigaciones en pequeñas cantidades y, normalmente, con resultados poco significativos frente a la grandiosidad de otras pesquisas médicas y farmacológicas, todos los estudios citados apuntan hacia una ayuda real en la calidad de vida de los niños hospitalizados y a la necesidad de humanizar los ambientes sanitarios infantiles. Es nítida la falta de más pesquisas significativas, que puedan llevar el conocimiento de los factores favorables de este tipo de trabajo para dentro del hospital, de forma que estos programas puedan ser más conocidos y, consecuentemente, mejor aceptados. Consideraciones finales Es notable el desarrollo y la abertura existente actualmente para nuevas propuestas de actuación en el área de salud. Al mismo tiempo en que se habla de necesidad de 12

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humanización y desmercantilización de la medicina, muchos nuevos proyectos son aceptados por las autoridades con el fin de revertir estos problemas. Infelizmente muchas veces esta aceptación apenas ocurre como “fachada”, con la intención de parecer que a alguien le importa. Pero, la certeza es que muchos profesionales se ven envueltos en este cambio y lo que antiguamente podría ser inimaginable, actualmente ya es visto con cierta naturalidad, como la existencia de payasos dentro del hospital. Por otro lado, la existencia de muchos servicios no especializados acostumbra a dificultar la aceptabilidad de este tipo de trabajo. Y la dificultad consiste en que los payasos de hospital trabajan directamente con la subjetividad humana, con lo invisible a los ojos y por lo tanto, su eficacia y eficiencia son difíciles de ser probadas y evaluadas en los parámetros de la ciencia médica de carácter positivista, basada en la “evidencia”. Bestetti (2005) trae preocupaciones en relación a una posible transformación de la figura del payaso de hospital en un producto a ser vendido, cristalizado, o sea, una especie de clichê. La autora afirma haber nacido “un fuerte conflicto entre el carácter profesional y la función social del payaso” (p.81), por aproximarse muchas veces a esta figura, personas poco preparadas que hacen “del arte clownesco una mezcla de ganas de cooperar y comodismo con el resultado, ciertamente no desaprobado (teniendo en vista las buenas intenciones) pero muy lejos de la verdadera técnica clownesca, fruto de un rigor extremo, de años de trabajo.” (p.81). Pero, algunos intentos de estudios vienen siendo hechos y las repercusiones son cada vez más favorables. Los payasos de hospital son profesionales que promueven salud al estar llamando la atención sobre la existencia de este lado saludable, dentro de un hospital. Para facilitar la atención al presente, utilizar un sentido del humor apurado y provocador de risas, desdramatizan el ambiente hospitalario no solo para los pacientes sino también para todos que allá se encuentran. Esta humanización realizada por estos artistas sería una prueba más de que ellos están promoviendo salud por donde pasan. Todavía existe mucho que estudiar, visto que para que estos profesionales sean reconocidos necesitan de estudios que los lleven más cerca de sus nuevos colegas de profesión. Felizmente, aquellos que ya vieron este tipo de trabajo de cerca pudieron percibir sus resultados, restando dudas de que la presencia de payasos en el hospital promueve salud y lleva un poco más de humanidad, alegría y vida para todos los que los rodean. Referencias Adams, P. (2002). Humour and love: the origination of clown-therapy. Postgraduate Medical Journal, 78(922), 447-448. Aquino, R. G., Bortolucci, R. Z., & Marta, I. E. R. (2004). Doutores da graça: a criança fala. Online Brazilian Journal of Nursing, 3(2). Disponible en: Acesado: 22 de agosto de 2008. Baunman, Z. (2006). Vida líquida. Barcelona: Paidós Ibérica. Bergson, H. (2008). La risa: ensayo sobre la significación de lo cómico. Madrid: Alianza Editorial. Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Aprovado em março de 2010

Bruna Baliari Espinosa: Psicóloga; Master en Salud y Bienestar Comunitario por la Universidad Autónoma de Barcelona; Becária ALBAN (Becas de Alto Nível para America Latina). Teresa Rosado Gutiérrez: Psicóloga; PhD, Profesora titular del Departamento de psicología clínica y de la salud de la Universidad Autónoma de Barcelona. Endereço eletrônico para contato: [email protected]

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Descompassos entre a lei e o cotidiano nos abrigos: percursos do ECA Maria Lívia do Nascimento Alessandra Speranza Lacaz Marilisa Travassos Resumo: O texto apresenta debates referentes a uma pesquisa bibliográfica que analisou produções escritas sobre o tema do abrigamento de crianças e jovens. Tal pesquisa visou cartografar as narrativas escritas sobre abrigos e convivência familiar a partir do ano 2000, quando, após dez anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a consolidação de seus princípios na sociedade poderia ser esperada e sua implantação discutida. Dentre as categorias de análise levantadas, uma delas, “Ditos do ECA e cotidiano dos abrigos”, problematiza as mudanças produzidas pelo Estatuto na lógica de assistência à infância, interrogando-as através das práticas cotidianas dos abrigos. As análises feitas apontam divergências entre a lei e essas práticas, qualificando o abrigo como um espaço protetor dos direitos de crianças e jovens, mas ao mesmo tempo violador desses mesmos direitos, ao infringir a lei por outros percursos. Palavras-chaves: abrigo; ECA; infância e juventude.

Differences between the law and the daily life in the shelters: ECA’s trajectories Abstract: The text presents discussions about a bibliographical research that has analyzed written productions about the subject: sheltering of children and young people. Such study aimed to cartography the written narratives about shelters and family living from the year 2000, when, after ten years of the promulgation of the Children and Adolescent Statute (ECA), the consolidation of its bases in the society could be expected and its deployment discussed. Among the categories of analysis lifted, one of them, “ECA’s proposal and the daily life in the shelters” inquiring the changes produced by the Statute in the logic of assistance to the childhood, asking them through the daily practices of the shelters. The produced analysis shows differences between the law and these practices, qualifying the shelter as a space that protects the rights of children and young people, but also violates these same rights while breaking the law in other ways. Keywords: Shelter, ECA, childhood and youth

Introdução Os debates que apresentamos aqui dizem respeito à pesquisa Cenários dos Abrigos no Brasil: uma leitura a partir de produções acadêmicas, que integra o Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios da Exclusão Social (PIVETES). Através de uma pesquisa bibliográfica, buscamos levantar a produção escrita sobre os temas abrigo e convivência familiar (livros, artigos, dissertações e teses) produzida e disponibilizada em diferentes dispositivos de divulgação acadêmica. Para tanto, tomamos como marco inicial textos divulgados a partir de 2000, data escolhida por se considerar que, passados dez anos da promulgação do Estatuto da Infância e da Adolescência (ECA),

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a consolidação de seus princípios na sociedade poderia ser esperada. Como durante essa primeira década foram acontecendo ajustes decorrentes da passagem para as novas ordenações jurídicas de proteção à infância e à juventude, apostamos ser essa uma data de referência importante para a discussão da implantação do Estatuto. Foi acreditando que uma lei não funciona apenas pela imposição de um decreto, mas pelos efeitos que sua aplicação vai produzindo, que a pesquisa buscou cartografar as narrativas escritas sobre abrigo e convivência familiar. Tomamos os discursos presentes nos textos analisados como prática social, que produz modos de funcionamento e gestão da vida, estabelece relações de poder, fabrica instituições, enfim, produz efeitos. Tal concepção nos levou a problematizar e historicizar as práticas que estão sendo produzidas sobre crianças e adolescentes abrigados, sobre algumas das instituições que os atravessam – família, infância, internação, abandono, tutela, dentre outras – e sobre quais efeitos são por elas produzidos. A cartografia do cotidiano dos abrigos, construída pelas afirmações de autores e produções acadêmicas, possibilitou colocar em análise temas como os especialismos científicos, o complexo tutelar, as novas ordenações jurídicas de proteção à população infanto-juvenil e os modelos de infância e família. Concomitantes às leituras dos textos encontrados, foram propostas algumas categorias de análise, localizando temas que estão sendo pesquisados nesse campo e o que tem sido dito a respeito de crianças e adolescentes abrigados no Brasil. Durante o processo de construção dessas categorias, foram destacadas aquelas mais presentes nos textos estudados, que passaram a apoiar nossas discussões e análises. Desse conjunto de categorias, escolhemos para discutir aqui aquela que denominamos “Ditos do ECA e cotidiano dos abrigos”, que problematiza as rupturas produzidas pelo Estatuto na lógica de assistência à infância e à juventude, interrogando até que ponto tais rupturas de fato estão presentes nas práticas dos abrigos. Proteção e violação dos direitos: uma convivência presente nos abrigos? Muitos dos trabalhos analisados mostram que, apesar do ECA propor um rompimento com a lógica de internação, ao estabelecer uma outra forma de atendimento, a cultura dos antigos internatos muitas vezes permanece, o que aponta para divergências entre a lei e as práticas cotidianas dos abrigos. Assim, o modelo de estabelecimentos onde crianças e jovens moravam, estudavam, recebiam assistência médica, psicológica e odontológica não foi completamente substituído pelos princípios presentes na nova legislação. De acordo com eles, os abrigos devem funcionar priorizando o contato com atividades comunitárias, favorecer a preservação dos vínculos familiares, possibilitar o não desmembramento de grupos de irmãos e afirmar o atendimento personalizado e em pequenos grupos. Entretanto, nem sempre isso ocorre, e pode-se dizer que há uma considerável incompatibilidade entre algumas propostas do Estatuto e o que, na realidade, se pratica nos abrigos. O descompasso entre a lei e o vivido nos abrigos pode aparecer das mais diferentes formas, inclusive em algumas completamente inaceitáveis, como nos trechos que se seguem: Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Ameaças e punições físicas também eram aplicadas às crianças. (...) Desse modo, a manutenção do autoritarismo e violência ainda existia na vida das crianças que, retiradas de suas famílias por maus-tratos, eram, forçosamente, obrigadas a conviver com pequenos atos de violência diários. (Barros & Fiamenghi, 2007, p.1272)1 Embora seja órgão executor do ECA, em muitos aspectos, o abrigo contraria seus preceitos, colocando em dúvida se efetivamente é um abrigo para proteção. Um claro exemplo desta contradição é referente à preservação (e até estímulo) do vínculo familiar normatizado pelo ECA. A organização institucional cria obstáculos para que as famílias não sejam insistentes e “atrapalhem o trabalho”. Uma vez que se deva manter o vínculo, o trabalho da instituição é justamente abrir espaço para a família, e não limitá-la a duas horas de visitas semanais. (Oliva, 2004, p.9)

Em outro texto pesquisado, Arpini citando Bleger (1980), corrobora com a ideia de que os abrigos tendem a reproduzir a mesma lógica de alguns dos problemas que buscam combater, pois criam as mesmas dificuldades vivenciadas por crianças e adolescentes pobres, estabelecendo a mesma relação excludente que a sociedade tem com seus sujeitos não adaptados aos modelos instituídos. A partir de tais argumentos, é sugerida a falta de êxito do funcionamento desses estabelecimentos. Cabe aqui colocar em análise a ideia de abrigo que tem êxito. O que seria um abrigo bem sucedido? Aquele onde há ordem? Onde tudo está organizado? Aquele que os órgãos de fiscalização avaliam como tendo bom funcionamento? Geralmente esses são os que primam por práticas de normatização, de moralização e de higienização, como visto em outro artigo de nossa base de dados, no qual os autores relacionam a boa aparência das crianças com a disciplinarização de seus corpos. Constata-se, assim, a existência de um paradoxo presente na relação mãe social/ criança, com relação ao cuidado. Não se pode negar que as crianças recebem cuidados, pois estão sempre asseadas e apresentam boa aparência, no que se refere à limpeza e vestimenta. Ao mesmo tempo, a garantia de boa aparência e asseamento ocorre às custas de muita repressão para que não se movimentem e, consequentemente, se desarrumem, associada a cuidados rápidos, muitas vezes bruscos, que não levam em consideração o tempo e as necessidades de cada criança individualmente. (Nogueira & Costa, 2005, p.172 )

Seria esse um bom abrigo, já que asseado, bem cuidado, em perfeita sintonia com padrões instituídos de cuidado e com forças hegemônicas que produzem técnicas de governo? Nesses locais, que espaço teriam linhas flexíveis que possibilitassem modos de existência diferenciados, escapes ao “pensamento único”, e aos valores morais apontados como verdadeiros e universais? Locais onde, por exemplo, a algazarra das crianças, o desalinho de suas roupas, o movimento de seus corpos inquietos afirmem a vida e desnaturalizem o abrigo padrão, enfim, onde a criança ao invés de se adaptar, inventa formas de vida com outras formas de expressão.

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As citações que aparecem com asterisco referem-se aos textos utilizados como fonte da pesquisa bibliográfica.

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Se voltarmos à ideia, anteriormente sugerida, que associa o êxito ou o não êxito ao fato do abrigo reproduzir as mesmas práticas de exclusão presentes na sociedade para sujeitos não adaptados, pode-se dizer que o abrigo não se constitui como algo fora das construções subjetivas. Ou seja, enquanto instituição do tecido social é a um só tempo produzido e produtor de processos de subjetivação excludentes. Seus muros não o isolam desses processos. Existe uma porosidade entre o que se passa no seu interior e fora dele, já que as subjetividades construídas não habitam locais específicos, não existem em si, não são estáticas e nem definitivas, não se dão dentro ou fora dos estabelecimentos: são processuais, constantemente fabricadas a partir de um conjunto de relações de forças, no qual as hegemônicas convivem com outras construídas como minoritárias e se espraiam em todo o tecido social. Dessa forma, as lógicas da exclusão referentes aos abrigados se encontram em toda parte, até porque esses territórios dentro e fora não se separam no que se refere a construções subjetivas. Foucault (2001) afirma a dimensão positiva do poder ao dizer que é necessário “(...) deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos” (p.161). Entende a positividade como a propriedade de produzir alguma coisa, como a existência de configurações que possibilitam acontecimentos. Assim, as relações de poder presentes nos abrigos, como todas as demais, são sempre propositivas. Afirmam políticas públicas destinadas à população infanto-juvenil, fabricam orçamentos públicos, constroem práticas de atendimento, higienizam as ruas ao guardarem intramuros alguns dos considerados nocivos sociais. Todas essas, muitas vezes, vistas como práticas bem sucedidas. Ou seja, o êxito sempre existe, importa localizá-lo. Frente a tais análises e passados 18 anos da implantação do ECA, é pertinente uma discussão que problematize as transformações ocorridas nas práticas protetivas de atenção infanto-juvenil e o que ainda permanece como herança do sistema total2. O abrigo se qualifica como um espaço protetor dos direitos de crianças e jovens, mas é ao mesmo tempo violador, já que simultaneamente se propõe a protegê-los de situações de risco, mas infringe a lei por outros percursos. Um dos pontos mais recorrentes nos textos analisados diz respeito ao fato dos abrigos terem se tornado um lugar de permanência até a maioridade, enquanto o caráter temporário desses espaços é uma condição prevista na lei. Dessa maneira, muitos passam suas vidas inteiras ali, não tendo oportunidade de retornar à sua família de origem. É o que Orionte e Souza (2007, p.114) descrevem no seguinte trecho: Sabe-se que, em virtude da burocracia das instituições, dificilmente uma criança O sistema total tem como suporte as instituições totais (manicômios, prisões, asilos, conventos) (Goffman, 1974). No que se refere ao tema aqui tratado – infância e juventude – diz respeito ao complexo de estabelecimentos que se destinavam à internação de crianças e jovens. Ancorados pela proposta de substituição da caridade pela filantropia, emergem no século XIX, fazendo parte de um aparato médico-jurídico-assistêncial, que buscava a prevenção, a reeducação e a recuperação dessa parcela da população quando vista como perigosa ou em perigo. Com base na vigilância e no controle, funcionava como forma de promover a correção dos internados e o saneamento social. Na maioria dos casos, atuavam como depósito, já que o mais comum era só deixar o estabelecimento após a maioridade, mesmo que ao longo de suas vidas passassem por diferentes locais de internação.

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será retirada dali. O espaço que deveria ser apenas temporário torna-se, para muitas delas, permanente, contrariando a proposta do ECA (Brasil, 1990). Entretanto, no âmbito geral, essa proposta ainda não foi efetivada, necessitando de políticas sociais que garantam apoio às famílias, qualidade da institucionalização e efetiva aplicabilidade dos preceitos e normativas do ECA.

Muitos abrigos alegam não ter recursos para realizar suas funções, como, por exemplo, a de reintegração da criança ou do jovem na sua família, a quem deveriam prestar assistência no sentido de favorecer condições para esse retorno. Sendo essa tarefa exercida de forma precária pelos abrigos, ela fica, muitas vezes, a cargo das equipes técnicas do poder judiciário, que também a realizam de maneira insuficiente. Tal preocupação está presente em algumas das produções pesquisadas, quando discutem as funções do abrigo, as práticas de desqualificação da família pobre e os limitados procedimentos de reintegração da criança à sua família. O exemplo que se segue, retirado de um dos textos pesquisados, aponta a necessidade do abrigo buscar meios de reaproximar a família do filho abrigado. Entendemos que as instituições que se destinam a abrigar crianças, necessitam desenvolver estratégias de ação que possibilitem a reintegração da criança à família, servindo como ponte para o restabelecimento dos vínculos que por motivos diversos, em algum momento se perderam. A instituição necessita repensar seus objetivos a fim de ampliar seu horizonte de ação, acrescendo a sua função de cuidadora da criança à de promotora do restabelecimento do contato da mesma com a família, para que esta assuma o seu papel enquanto primeira gestora do cuidado de seus membros, ou seja, cumpra sua função afetiva, provedora e formadora. (Zem-Mascarenhas & Dupas, 2001, p.419)

Encontramos, ainda, referências ao fato de que muitos abrigos, até o presente, ainda funcionam com especialistas atendendo dentro de seus espaços internos. Silva, Mello e Aquino (2004) relatam que o “Levantamento Nacional” realizado pelo IPEA ... mostra um quadro preocupante nesse sentido: apenas 6,6% dos abrigos pesquisados utilizam todos os serviços disponíveis na comunidade, tais como: creche, ensino regular, profissionalização para adolescentes, assistência médica e odontológica, atividades culturais, esportivas e de lazer e assistência jurídica. Nesse aspecto, a maioria dos abrigos (80,3%) ainda oferece pelo menos um desses serviços diretamente (de forma exclusiva) dentro do abrigo... (p.234)

Referindo distância, dificuldade de transporte, quebra da dinâmica da casa, falta de funcionários para acompanhar as crianças, os abrigos alegam não ter condições, por exemplo, de levar as crianças a postos de saúde. Nesse contexto, e no sentido de poupar trabalho, muitos estabelecimentos relatam práticas de padronização nos abrigos semelhantes àquelas dos antigos estabelecimentos de internação: uma homogenização de roupas, penteados, condutas e hábitos. Isso evidencia uma contradição com a diretriz do ECA, que afirma o atendimento personalizado, que respeite as individualidades de cada criança ou jovem. 20

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No entanto, anterior a todas estas violações, o que está em questão é a própria prática de abrigamento utilizada de forma recorrente, como primeiro recurso. Tal procedimento fere os direitos garantidos pelo Estatuto, operando a inversão do que encontramos no artigo 101, parágrafo único: “O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade”. Estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (Silva, 2004), em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), mostraram que mais de 80% da população desses estabelecimentos têm família, sendo que quase 60% mantêm vínculo com seus familiares. Esses dados contrariam a crença disseminada de que a maioria das crianças abrigadas não tem família e evidenciam um modo de funcionamento da rede dissonante com a proposta do Estatuto no que concerne, especialmente, ao direito fundamental de convivência familiar. Nesse caminho de análise, cabe perguntar: escrever algo em formato de lei assegura as mudanças que inspiraram sua elaboração? A lei garante os direitos por ela mencionados? A pesquisa do IPEA indicou, também, que entre os abrigados a maioria é de meninos, negros e pobres, com idade entre 7 e 15 anos, sendo os principais motivos que justificam a entrada nos estabelecimentos a carência de recursos materiais da família e um pretenso abandono. Nesses casos, o abrigamento está fortemente ligado à situação financeira da família e sua suposta incapacidade de prover para seus filhos condições básicas como higiene e alimentação. Isto, apesar do ECA ratificar, em seu artigo 23, que a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para o abrigamento e a consequente suspensão do poder familiar. Tal artigo afirma ainda, em seu parágrafo único, que não havendo outro fator, a criança será mantida na família de origem, que deverá, obrigatoriamente, ser inserida em programas sociais de auxílio. Estaria sendo o abrigo um dispositivo de violação de direitos? A institucionalização dessas crianças e adolescentes seria a melhor medida? Que outros funcionamentos poderiam ser operados pela rede de proteção à infância e juventude?

O ECA, os abrigos e as relações de forças que os atravessam Não há como problematizar as práticas de violação de direitos sem revisitar a história de assistência à população infanto-juvenil brasileira, pautada e construída a partir das práticas de internação. Até 1990, crianças e adolescentes que por algum motivo não podiam ser cuidados por suas famílias e ficavam sob a tutela do Estado eram encaminhados para os grandes internatos. Tal conduta se constituiu fortemente embasada em pressupostos médico-higienistas, juristas e, podemos também dizer, foi fundamentada em certos discursos psi, aqueles que acreditam na apreensão objetiva do mundo e do ser humano e na natureza específica e identitária dos objetos. Ao se apoiar em uma concepção de indivíduo dotado de uma essência, o discurso psi corroborou com a afirmação de modelos hegemônicos de família, estabelecendo padrões Aletheia 31, jan./abr. 2010

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de normalidade e anormalidade, desqualificando, assim, a família pobre, fixando-a em aparelhos de normalização, regulação e controle. Visando dar conta disso, proliferam os grandes complexos de internação para infância e juventude, dispondo de um modelo punitivo-repressivo, legitimado, dentre outros, pelo saber da psicologia. Compartilhamos com Foucault (1996) a ideia de que o lugar de saber-poder ocupado pelos especialistas e sua habilidade em instituir verdades eternas e a-históricas produz sentidos por/para os sujeitos. Dessa forma, o saber age nos indivíduos a partir da observação, da rotulação, do registro, da análise de seu comportamento, da comparação entre os tidos como desiguais e da sua posterior desqualificação, visto que a razão especialista se pauta pela vigilância, o controle e a disciplina, transformando questões sociais em problemas individuais, ao retirar das análises a condição histórica dessas questões. As múltiplas forças do poder dos especialistas constroem valores e sensibilidades e se apresentam de diferentes maneiras no cotidiano. Os efeitos que os saberes dos especialistas produziram no interior dos internatos foram colocando em análise suas formas de funcionamento. Assim é que a partir dos anos de 1980 a internação e o cotidiano de sua aplicação passam a ser objeto de debates. Sobretudo questionava-se a utilização dessa prática como dispositivo de controle das famílias pobres. Discussões dessa ordem, somadas ao cenário político brasileiro daquela época, marcado pela elaboração e promulgação da Constituição de 1988 e pela presença de fortes movimentos sociais, prepararam o terreno para a revogação do Código de Menores e sua substituição pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA, portanto, tenta interromper o percurso histórico da internação ao propor uma lógica de contraposição aos grandes estabelecimentos de acolhimento de crianças e jovens, instituindo o abrigo enquanto dispositivo de proteção. Mais uma vez nos fazemos acompanhar de Foucault e do que ele nos diz sobre os discursos. Para ele, o discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos” (Foucault, 1971). Dessa forma, o que seria a lei senão um discurso? Um discurso que se faz em meio a relações de força e produz efeitos sobre essas próprias relações. Diferente do que se pensa e se espera, a lei não cria a realidade por si só. É mais um discurso circulando, mais uma palavra de ordem no meio de outras forças. É fato que existe todo um aparato junto a esse discurso legal que pretende fazê-lo funcionar de determinada forma. Existe uma relação de força para fazer a palavra legal funcionar de modo a prescrever comportamentos. Só que como toda relação de força, ela não é estática e nem definitiva. De acordo com Passetti (2007), O Direito (...) é produto de uma luta entre forças, que justifica a força vencedora e o seu egoísmo, mesmo quando esta se apresenta igualitária, altruísta e com facetas universalistas. Assim é que todo direito se expressa em lei a ser respeitada pelo cidadão (...) (p.76)

Fica, pois, a questão: o que aconteceu no intervalo entre as lutas, os movimentos que construíram o ECA e a realidade dos abrigos, no que se refere à implantação das

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noções trazidas pela nova lei? Para pensá-la é fundamental evocar os processos de subjetivação que instituem nossas práticas e que através de diferentes mecanismos, como por exemplo, a mídia forma os sujeitos e seus modos de funcionamento. É interessante lembrar que no caso da mídia, sua ação se faz de preferência atrelada aos especialistas, que constantemente são convocados a dar pareceres nos meios de comunicação, As noções de família desestruturada, de menor, de infâncias desiguais, de pais ideais são constantemente vinculadas à desqualificação e mesmo à criminalização da pobreza. Veiculadas no espaço social, em destaque pela mídia, vão produzindo subjetividades que julgam os pobres como necessitados de intervenção, inclusive psi, no sentido de corrigir, enquadrar e adaptar as pluralidades de seus modos de vida a modelos hegemônicos de família, trabalho, infância, dentre outros. Isso, apesar do Estatuto tentar justamente romper com essa lógica assistencialista e desqualificadora. Sendo assim, é através de um discurso científico, que legitima, reforça e coloca a família pobre no lugar da impotência, e da massificação desse pensamento através dos meios de comunicação, que as práticas no campo da infância e juventude também vão sendo constituídas. Conceber o modo de vida dos pobres como desprovido de condições para o cuidado de seus filhos é herança que vem do Código de Menores. Tal noção, não completamente desmontada com a entrada do ECA, ganha espaço, dentre outros aspectos, apoiada em forças circulantes que associam a pobreza com risco, periculosidade e violência. Apesar do ECA propor uma nova política de assistência para a infância e a juventude, que promove a noção de sujeitos de direitos, a garantia desses direitos fica prejudicada em função de uma disparidade entre os processos presentes numa ordem macropolítica e os que se apresentam numa perspectiva micro. Na passagem do Código de Menores para o ECA, a dificuldade de desmontar um modo de funcionamento e construir outro esbarra nas singularidades e nas multiplicidades do cotidiano. A lei, assim, não garante a implantação de seus preceitos. O instrumento legal é, sem dúvida, de suma importância nesse processo, no entanto, não dá conta da pluralidade presente no dia a dia das práticas dos abrigos. Além disso, é preciso referir, também, o processo através do qual a lei se faz. O ECA emergiu num contexto de movimentos de luta, movimentos sociais, e culmina com um poder constituído, a Lei. Parece-nos importante, e trágico, para os movimentos sociais que suas lutas para construir uma realidade, percam força justamente no momento em que se consegue legislar uma determinada questão. Pode-se dizer que os movimentos de defesa dos direitos da infância e da juventude reduziram suas forças após a promulgação do ECA, e sabemos que seria justamente neste momento da cotidianidade da aplicação da lei que mais fortemente deveriam estar presentes. O advento do Estatuto traz novas perspectivas para a população infanto-juvenil ao propor a doutrina de proteção integral e criar o sistema de garantias de direitos. Esse sistema envolve, além do poder público, entidades da sociedade civil organizada, que têm lugar fundamental no cenário da proteção. São as condições de organização dessas entidades, suas forças de articulação em rede e suas posturas ético-políticas frente à consolidação do texto da lei que irá garantir os direitos de crianças e jovens. Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Nossa pesquisa apontou que em muitos casos de abrigamento inexiste um trabalho com as famílias que assegure o caráter provisório e excepcional da medida. Esse deveria ser um campo de atuação dos movimentos de defesa dos direitos de crianças e jovens, orientados para o fortalecimento das famílias e da convivência familiar e comunitária. É com a lógica de internação que o ECA tenta romper. Entretanto, na literatura consultada nesta pesquisa, algumas afirmações apresentadas corroboram com a ideia, já mencionada, de que o abrigo além de protetor, também viola os direitos de crianças e jovens, em descumprimento da lei. Tomando mais um exemplo, diz o Estatuto que não mais se pode abrigar por pobreza, mas não são justamente as crianças e os jovens pobres, filhos dos qualificados como negligentes, descuidados, violentos, que continuam sendo abrigados? Ou seja, são os pobres os considerados necessitados de intervenções especialistas que possam regular e tutelar suas vidas. Muitas são as interfaces que permeiam esse processo histórico de cronificação da pobreza, em que a questão econômica emerge como um dos mais nocivos vetores. Embora se saiba que a pobreza em si não deveria ser causa do abrigamento de uma criança ou adolescente como preconizado pelo ECA, nos inúmeros casos de abrigo em que a justificativa é a pobreza, constata-se uma situação de miséria – crescente e avassaladora – que interfere diretamente na dinâmica das relações familiares e gera as denominadas “famílias desestruturadas”, um termo que identifica “famílias incapazes de cuidar dos filhos. (Oliveira & Milnitsky-Sapiro, 2007, p.10)

Nesses moldes, o que podemos extrair do conjunto de dados e análises que realizamos ao longo da pesquisa, referente ao descompasso entre a lei e o cotidiano de abrigamento, é que a implantação do ECA, no que diz respeito aos abrigos, vem experimentando um embate de forças que, em certos momentos, faz funcionar engrenagens produtoras de infâncias desiguais e mecanismos violadores dos direitos da população infanto-juvenil pobre. Referências Arpini, D. M. (2003). Repensando a perspectiva institucional e a intervenção em abrigos para crianças e adolescentes. Psicologia: Ciência e Profissão, 23(1), 70-75. Barros, R. C., & Fiamenghi Junior, G.A. (2007). Interações afetivas de crianças abrigadas: um estudo etnográfico. Ciência e Saúde Coletiva, 12(5), 1267-1276. Bleger, J. (1990). Psico-higiene e Psicologia Institucional. Porto Alegre: Artes Médicas. Foucault, M. (2001). Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes. Foucault, M. (1971). A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola. Foucault, M. (1996). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed. Goffman, E. (1974). Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva. Nogueira, P. C., & Costa, L. F. (2005). Mãe social: profissão? Função materna? Estilos da Clínica, 10(19), 162-181.

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Oliva, P. P. (2004). O Desvendamento do real numa instituição de abrigo para crianças e adolescentes. Revista Virtual Textos e Contextos, 3(1), 1-13. Oliveira, A. P. G., & Milnitsky-Sapiro, C. (2007). Políticas públicas para adolescentes em vulnerabilidade social: abrigo e provisoriedade. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(4), 623-635. Orionte, I., & Souza, M. G. (2007). Viver em abrigo: com a palavra a criança. Pesquisas e Práticas Psicossocias, 2(1), 106-116. Passetti, E. (2007). Direitos Humanos, sociedade de controle e a criança criminosa. Em: Comissão de Direitos Humanos do CRP/RJ (Org.) Direitos Humanos? O que temos a ver com isso? (pp.63-82). Rio de Janeiro: Conselho Regional de Psicologia/RJ. Silva, E. R. A. (Org.) (2004). O direito à convivência familiar e comunitária: Os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: IPEA/CONANDA. Silva, E. R. A., Mello, S. G., & Aquino, L.M.C. (2004). Os abrigos para crianças e adolescentes e a promoção do direito à convivência comunitária. Em: E. R. A. Silva (Org.), O direito à convivência familiar e comunitária: Os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil (pp.209-242). Brasília: IPEA/CONANDA. Zem-Mascarenhas, S. H., & Dupas, G. (2001). Conhecendo a experiência vivenciada por crianças institucionalizadas. Revista Brasileira de Enfermagem da USP, 35(4), 413-419. _____________________________ Recebido em março de 2009

Aprovado em junho de 2009

Maria Lívia do Nascimento: Psicóloga; Doutora em Psicologia (PUC-SP). Professora do Departamento de Psicologia/Universidade Federal Fluminense (UFF). Alessandra Speranza Lacaz: Graduanda de Psicologia UFF; Bolsista PIBIC/CNPq. Marilisa Travassos: Graduanda de Psicologia UFF. Endereço eletrônico para contato: [email protected]

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Estudo do processo de resposta num teste de memória Fabián Javier Marín Rueda Fermino Fernandes Sisto Cláudia Araújo da Cunha Alexandre José Raad Resumo: O processo de resposta do Teste Pictórico de Memória (TEPIC-M) classifica seus itens em três categorias sequenciais (céu, terra e água). Assim, aventou-se a hipótese que pessoas com uma familiaridade diária com o mar (Aracaju-grupo A) lembrariam mais desses itens quando comparadas com pessoas sem esse contato diário (Uberlâdia-grupo B). Participaram 858 estudantes universitários, com idades entre 18 e 68 anos, de ambos os sexos, e que responderam coletivamente ao teste. Primeiramente, a hipótese não foi confirmada, sendo que o grupo B obteve maiores pontuações que o grupo A. Também, todas as categorias mostraram diferenças significativas entre os grupos, sendo que o grupo B sempre mostrou melhor desempenho. Por fim, o grupo A apresentou uma sequência não esperada (terra, céu e água) se diferenciando dos grupos do manual. Palavras-chave: Memória, processo de resposta, testes psicológicos, avaliação psicológica.

Study about the response process of a memory test Abstract: The response process of The Teste Pictórico de Memória (TEPIC-M) classified the items into three sequential categories (sky, land and water). So, it was hypothesized that the day-by-day familiarity with the sea by the people (Aracaju-group A) could ease their recovering of item of water grouping, when comparing with people that who not have that daily experience (Uberlândia-group B). 858 college students, aging 18 to 68 years old, of both sexes collectively answered the test. First of all, the hypothesis was not confirmed, and the group B obtained higher scores than the group A. Besides, all categories presented significant differences between both groups, always group B showing the best performance. Finally, the group A presented unexpectedly the sequence land, sky and water differentiating itself of all groups related in the Manual. Keywords: Memory, response process, psychological tests, psychological assessment.

Introdução Do século XVII até o XIX, filósofos como John Locke, John Stuart Mill e Thomas Brown especularam sobre os fatores que afetariam a força de associações particulares no âmbito do sistema psicológico. Eles supusseram que o “despertar” de associações da memória (recordação) poderia ter maior ou menor intensidade em razão da semelhança da pista estimulante para a memória, o quão recente fosse a experiência, a coexistência de poucos “associados alternativos” para a pista (chamados “interferência”), e as “diversidades temporárias de estado” (intoxicação, delírio, depressão). Tais conjecturas geraram muita pesquisa e varias teorias, até hoje, sendo que cada uma delas lidou com esses fatores de formas diferentes (Bower & Hilgard, 1981). Desde que a memória começou a ser estudada empiricamente, vários pesquisadores propuseram definir o que se entendia pelo construto; porém, uma das primeiras grandes correntes foi a empírica, introduzindo a teoria de associação por contiguidade (Warren, 26

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1921). Segundo essa corrente, ideias complexas seriam formadas na mente, conectando na memória ideias simples baseadas em sensações que seriam vivenciadas simultaneamente em tempo e/ou espaço. Quando se fala em investigadores da memória humana, o primeiro foi Ebbinghaus, que em 1885, se interessou em saber qual a quantidade de informação que as pessoas poderiam se lembrar, imediatamente após sua apresentação. Foi ele quem inventou a noção da sílaba sem sentido ao fornecer para si mesmo materiais de aprendizagem de dificuldade homogênea, evitando dessa forma a variabilidade de palavras familiares (Tulving & Craik, 2000). Investigações subsequentes propuseram outros paradigmas e testaram muitas variáveis que determinaram o desempenho da memória em diferentes contextos. A memória começou a ser testada tanto por lembrança, reconhecimento, reconstrução, além de uma variedade de medidas indiretas. A natureza dos materiais poderia ser variada, como também a forma de apresentação, as estratégias que os sujeitos usam para estudálas, as expectativas a respeito do teste e as relações entre vários conjuntos de materiais a serem aprendidos. Como resultado, uma enorme quantidade de informação empírica foi acumulada sobre como se aprende em dadas situações, além de muitas hipóteses terem sido aventadas e testadas para integrar as diferentes definições e propostas para entender a memória humana (Tulving & Craik, 2000). Mesmo com inúmeras variações e elaborações, o experimento de memória contemporâneo consiste de três fases, quais sejam, uma fase de estudo ou codificação, na qual o material é apresentado ao sujeito, um intervalo de retenção e, finalmente, uma fase de devolução ou teste, na qual o sujeito tenta responder a uma questão que envolve o uso da informação inicialmente estudada. Os diferentes métodos de memória, de Ebbinghaus até os dias de hoje, podem ser caracterizados em termos das condições que eles estabelecem para cada uma dessas três fases. A estratégia de pesquisa fundamental tem sido variar as condições em cada uma das fases. É importante salientar que a mudança na forma de abordagem não trouxe modificações radicais na forma de avaliar o construto, mas deu-lhe um novo propósito, produzindo outra ênfase e o surgimento de novos procedimentos. Cada uma das três fases passou a ser vista como um conjunto de operações complexas a ser entendido em termos de um processador de informação ativo. Além disso, o foco desses métodos mudou o entendimento da interação com outras variáveis em cada uma das fases. Bastante relacionado com essa mudança de foco, existia um crescente debate em relação ao número e forma dos diferentes sistemas de memória, assim como também a relação do construto com outras variáveis. Uma das variáveis muito pesquisada ao longo dos anos foi a idade. Pode-se dizer que o interesse pelo estudo da memória e a idade surgiu da pesquisa de Brunswik, Goldscheider e Pilek, que em 1932 estudaram a memória de escolares de 6 a 18 anos, observando que o número de repetições necessárias para apreender um material apresentado decrescia conforme aumentava a idade das pessoas. Após esse estudo, as relações entre idade e memória, especialmente na primeira infância e na idade avançada, têm sido muito investigadas. Nesse sentido, Anderson, Craik e Naveh-Benjamin (1998) mostraram que o desempenho em testes de memória de adultos idosos era pior na codificação e devolução do que adultos jovens. Dentro desse contexto, enquanto alguns autores afirmaram que a Aletheia 31, jan./abr. 2010

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memória entraria em declínio nos adultos velhos ou idosos (Kausler, 1994; Ryan, 1992), outros consideraram que nem todos os aspectos da memória ficariam prejudicados com o passar da idade (Balota & Duchek, 1988; Burke & Light, 1981; Craik, 1983; Schacter, Kihlstrom, Kaszniak & Valdiserri, 1993; Shimamura, 1989). Assim, em testes de memória explícita, segundo Verhaeghen e Marcoen (1993), existiria uma diferença de cerca de 20% entre adultos jovens e idosos, e em testes de memória implícita essas diferenças poderiam cair para aproximadamente 5% (Graf, 1990). Já Alonso e Prieto (2004), pesquisando idosos, concluíram que conforme aumenta a idade diminui a memória de longo prazo, como também a de curto prazo e a capacidade cognitiva. Esse estudo corroborou os achados anteriores de Wilson, Cockburn e Baddeley (1985) com a população inglesa. Se até o momento os autores citados concordam quase que unanimemente em que a memória de idosos seria prejudicada quando comparada com adultos jovens, nem todos os autores e pesquisas confirmam esses dados. Assim, as investigações de Kline e Orme-Rogers (1978), Di Lollo, Arnett e Kruk (1982) e Gilmore, Allan e Royer (1986) indicaram que a diferença no desempenho em tarefas de memória sensorial de jovens adultos e idosos seria mínima, com uma pequena vantagem para os idosos. Esses resultados também foram alcançados por Parkinson e Perry (1980) estudando o desempenho em memória sensorial auditiva em idosos e adultos jovens. Estudando a memória de curto prazo, Puckett e Stockburger (1988) encontraram desempenhos semelhantes entre idosos e adultos jovens em uma tarefa de lembrança de letras por curtos períodos de tempo. Já em estudos sobre a memória de longo prazo, pesquisadores sustentaram que os idosos teriam um desempenho menor que os adultos jovens (Craik & Byrd, 1982; Kausler, 1991; Rabinowitz & Ackerman, 1982). Por sua vez, Giambra e Arenberg (1993), Park, Royal, Dudley e Morrell (1988) e Rybarczyk, Hart e Harkins (1987) afirmaram que quando igualados os períodos de codificação inicial de teste, ou seja, quando os idosos têm um maior tempo para a codificação que os adultos jovens, a diferença no desempenho seria relativamente pequena. No Brasil, o estudo de Rueda e Sisto (2006) com a versão preliminar do Teste Pictórico de Memória, que avalia a capacidade do indivíduo devolver uma informação em um curto período de tempo, foi ao encontro dos achados de Ackil e Zaragoza (1998), Balota e cols. (1999), Craik e Byrd (1982), Java (1996), Perfect e Dasgupta (1997), Poole e White (1993), dentre outros, que afirmam que tanto as pessoas mais velhas quanto as mais novas, apresentam desempenhos menores que os indivíduos considerados adultos jovens. No caso da pesquisa de Rueda e Sisto, os sujeitos de 18 a 25 anos apresentaram as maiores pontuações no teste, quando comparados com os indivíduos mais novos e adultos velhos, o que poderia sugerir um aumento da memória até certo ponto da vida e após uma estabilidade da mesma aconteceria um declínio. Após uma reconfiguração desse teste, a versão final também foi estudada por Rueda (2006) em função da idade das pessoas. Os resultados mostraram que os sujeitos de 17 a 36 anos apresentaram as maiores pontuações, o que novamente foi sugestivo de um aumento da memória até certo ponto da vida e, após, uma estabilidade seguida de um declínio. A diferença entre a pesquisa de Rueda e Sisto (2006) e de Rueda (2007) é que na primeira os participantes tinham entre 10 e 60 anos, enquanto que na investigação de Rueda (2007) não participaram pessoas com menos de 17 anos. 28

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Mas esses não foram os únicos aspectos relevantes usados na construção de um teste que poderiam explicar o comportamento das pessoas. Nesse sentido, uma das perguntas que começaram a ser colocadas por pesquisadores deixou de ser como diferentes processos de codificação influenciariam os níveis de desempenho (causa e efeito), e a questão de maior interesse se tornou como a lembrança poderia ser determinada pela interação de processos de codificação particulares. Esse tipo de estudo passou a ser denominado processo de resposta e tem servido para uma maior compreensão dos fenômenos psicológicos. Nesse contexto, no Teste Pictórico de Memória (Rueda & Sisto, 2007) os autores investigaram o processo de resposta utilizado pelos indivíduos ao responder o teste. Para isso, o ponto de partida para a análise foram três estudos. Assim, Paivio (1991) propunha que a memória para localização seria pobre no meio de uma página, mas seria melhor perto dos cantos e bordas; por sua vez, Mandler, Seegmiller e Day (1977) apontaram que cenas organizadas seriam lembradas melhor do que cenas não-organizadas; e, finalmente, Couclelis, Golledge, Gale e Tobler (1987) indicaram que alguns elementos de uma cena pictórica, chamados pontos de referência, seriam mais salientes na paisagem geográfica e serviriam como pontos de referência cognitivos na organização de espaço, o que determinaria a lembrança de determinados detalhes em detrimento de outros. Com base nesses dados foram realizados procedimentos para averiguar se esses resultados se mantinham nos dados da pesquisa. Após o estudo dessas possibilidades, Rueda e Sisto (2008) encontraram que três agrupamentos formavam uma sequência constante, quais sejam, céu, terra e água. Para isso, reanalisaram os 51 itens da versão preliminar do instrumento, oito fazendo parte do ambiente água, 18 do céu e 25 da terra. Os estudos foram feitos transformando os dados em médias ponderadas em razão da desproporcionalidade da representação, e realizando uma análise de variância (ANOVA) para verificar possíveis diferenças entre os três agrupamentos. Obteve-se como resultado um [F (2, 511)=74,92, p=0,000], sendo que a prova de Tukey diferenciou os três grupos. Após a realização de uma equalização dos itens de cada agrupamento do desenho do teste, Rueda (2008) submeteu o instrumento a um novo estudo sobre o processo de resposta, obtendo como resultado a mesma configuração que na versão preliminar. Porém o valor da análise de variância foi consideravelmente maior [F (2, 642)=256,84, p=0,000]. Com base nesses resultados, Rueda e Sisto (2008) e Rueda (2008) sugeriram estudos que se propussessem a avaliar o processo de resposta ao teste em indivíduos de diferentes contextos, como uma forma de verificar a existência de variáveis que influenciariam tal processo. Dentro desse contexto, o objetivo deste estudo foi verificar possíveis diferenças em função de populações que moram em contextos diferentes, como uma forma de verificar se a estrutura de resposta ao teste se manteria ou seria modificada. Para isso, foi estudada uma amostra de pessoas que vivem em uma cidade beira-mar, ou seja, que vivenciam diariamente a presença do mar (Aracaju) e outra cuja vivência cotidiana não inclui a presença marcante de água (Uberlândia). Convém salientar que não foram encontrados estudos dessa natureza que tratassem dessa relação, nem que houvessem relatado a presença desses elementos (céu, terra e água) ao estudar testes pictóricos, nem na literatura nacional nem internacional. Além disso, as diferenças nesse processo de resposta em função da idade também foram verificadas. Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Método Participantes Participaram da pesquisa 858 estudantes universitários, sendo 296 (34,5%) da cidade de Aracaju (grupo A), estado de Sergipe e 562 (65,5%) da cidade de Uberlândia (grupo B), estado de Minas Gerais. Do total, 251 (29,3%) eram homens e 600 (69,9%) mulheres. Não informaram o sexo apenas 7 (0,8%) pessoas. Quanto à idade, ela variou de 18 até 68 anos, verificando-se uma concentração de indivíduos até os 25 anos (67,6%). A média de idade foi 26,50 (± 10,70).

Instrumento Teste Pictórico de Memória – TEPIC-M (Rueda & Sisto, 2007) O Teste é composto por uma figura com vários desenhos e detalhes que podem ser agrupados em três categorias, quais sejam, itens que pertencem e podem ser encontrados na categoria Água (peixe, jet-ski, por exemplo); itens referentes à categoria Céu (pássaro, sol, balão, dentre outros) e itens que podem ser localizados na categoria Terra (barraca, casa, árvore, por exemplo). Para responder o teste a pessoa deve visualizar a figura durante um minuto e, em seguida, deve lembrar a maior quantidade de desenhos e detalhes possíveis e escrevê-los na folha de resposta do teste. A pontuação pode variar de 0 a 55, sendo que é atribuído 1 ponto para cada item lembrado pelo indivíduo. Quanto às propriedades psicométricas do instrumento, no manual são relatados estudos de evidências de validade pelo funcionamento diferencial do item, assim como análise de itens pelo modelo Rasch. Quanto aos índices de precisão, eles foram considerados satisfatórios (0,63 a 0,74).

Procedimento Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade São Francisco, por parte dos respondentes, o instrumento foi aplicado de forma coletiva. O tempo total de aplicação foi de aproximadamente 5 minutos, e não excedeu a 30 pessoas por grupo. A aplicação do teste ocorreu seguindo as orientações do manual. São elas: Este é um teste de memória. Será projetado na lousa quadro com vários desenhos e detalhes. Vocês terão um minuto para olhar e memorizá-los. Vou pedir para vocês não falarem nem escreverem nada. Apenas olhem o quadro e tentem memorizar a maior quantidade de desenhos e detalhes que conseguirem. Dada a instrução, foi projetada a transparência e não foi permitido que as pessoas fizessem qualquer anotação. Após 1 minuto desligou-se o retroprojetor. Feito isso, foi dito: Agora quero que peguem a folha e escrevam a maior quantidade de desenhos e detalhes que conseguirem. Vocês terão dois minutos para isso.

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Resultados

frequência frequência

frequência

frequência

Num primeiro momento foram realizadas as estatísticas descritivas do TEPIC-M com a amostra total; foram comparadas as pontuações no teste em função da cidade dos participantes; posteriormente essa mesma análise foi realizada levando em consideração a faixa etária dos participantes; e, por fim, foi realizada uma análise de variância para verificar se a estrutura original de cada agrupamento do teste se mantinha nos sujeitos de cada cidade. No caso da estatística descritiva, ela foi realizada por agrupamento e com a pontuação total do teste. Esses dados podem ser visualizados na Figura 1.

Figura 1 – Pontuações e frequência nos três agrupamentos do teste e na pontuação total do TEPIC-M

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No caso do agrupamento Água, as pontuações poderiam variar de zero a 16, verificando-se uma concentração entre dois e cinco pontos (64,3%). A média de pontos foi 3,59, com um desvío padrão de 2,10. A pontuação mínima foi zero e a máxima seis. Esses resultados mostram que as pessoas se lembraram de poucos itens do agrupamento. Com relação ao agrupamento Céu pode-se observar que a concentração de pontos ficou entre 5 e 8 (69,9%) de um total possível de 17. A média foi 6,24 (DP=1,98). No caso desse agrupamento as pontuações, como no agrupamento anterior, também não alcançaram a máxima possível. Quanto ao agrupamento Terra, a pontuação máxima possível é de 22 pontos e a máxima obtida pelos participantes foi 15. A concentração das pontuações ficou entre cinco e oito pontos (62,4%). Por fim, em relação à pontuação total do instrumento observou-se uma média de 16,15 (DP=4,64), sendo que essa pontuação média foi considerada baixa, pois é inferior ao ponto médio do instrumento. Esses resultados vão ao encontro dos achados de Rueda (2007) e Rueda e cols. (2007). Com a finalidade de verificar diferenças em cada ambiente do teste e na pontuação total foi realizada a prova t de student levando em consideração o grupo dos participantes, partindo do pressuposto que os indivíduos da cidade de Aracaju (grupo A) lembrariam mais itens pertencentes ao ambiente Água, pelo fato de terem mais contato com o mesmo, quando comparados às pessoas da cidade de Uberlândia. Esses resultados encontram-se na Tabela 1. Tabela 1 – Médias, desvios padrão, valores de t de student e níveis de significância (p) para as pontuações em memória por cidade Teste Pictórico de Memória

Água

Céu

Terra

Total

Cidade

N

M

DP

Grupo B

562

3,98

2,11

Grupo A

296

2,84

1,87

Grupo B

562

6,77

1,86

Grupo A

296

5,25

1,82

Grupo B

562

6,48

2,35

Grupo A

296

6,03

2,36

Grupo B

562

17,22

4,56

Grupo A

296

14,12

4,07

t

p

7,82

0,000

11,45

0,000

2,62

0,009

9,82

0,000

Nota: Significativo ao nível de 0,05

Os dados da Tabela 1 mostram que houve diferença estatísticamente significativa em todos os agrupamentos do teste assim como também na pontuação total, sendo que em todas as medidas os indivíduos da cidade de Uberlândia (grupo B) apresentaram maiores pontuações. Deve-se ressaltar que enquanto a sequência dos agrupamentos foi correta para o grupo B, o mesmo não ocorreu com o grupo A, pois houve uma inversão na sequência. Com a finalidade de aprofundar esses dados dividiram-se os participantes de acordo com as três faixas etárias estabelecidas pelo manual do teste, quais sejam, dos 18 aos 36 anos, dos 37 aos 59 anos e indivíduos com 60 anos ou mais. Os resultados podem ser observados na Tabela 2. 32

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Tabela 2 – Médias, desvios padrão, valores de t de student e níveis de significância (p) para as pontuações em memória por cidade para cada faixa etária Teste Pictórico de Memória 18-36 anos

Água

Céu

Terra

Total

Cidade

N

Grupo B

471

4,04

M

2,06

DP

Grupo A

275

2,88

1,90

Grupo B

471

6,87

1,85

Grupo A

275

5,32

1,79

Grupo B

471

6,66

2,33

Grupo A

275

6,03

2,36

Grupo B

471

17,56

4,44

Grupo A

275

14,24

4,09

t

p

7,60

0,000

11,14

0,000

3,53

0,000

10,17

0,000

t

p

3,01

0,004

4,08

0,000

-0,48

0,633

2,82

0,006

37-59 anos

Água

Céu

Terra

Total

Cidade

N

M

DP

Grupo B

69

4,33

2,07

Grupo A

12

2,36

1,63

Grupo B

69

6,61

1,80

Grupo A

12

4,18

2,04

Grupo B

69

5,65

2,20

Grupo A

12

6,00

2,45

Grupo B

69

16,59

4,54

Grupo A

12

12,55

3,53

Cidade

N

M

DP

60 anos ou mais

Água

Céu

Terra

Total

Grupo B

22

1,55

1,79

Grupo A

12

2,10

1,10

Grupo B

22

5,14

1,58

Grupo A

12

4,40

2,07

Grupo B

22

5,23

2,35

Grupo A

12

6,20

2,66

Grupo B

22

11,91

3,75

Grupo A

12

12,70

3,92

t

p

-0,90

0,375

1,11

0,276

-1,04

0,305

-0,55

0,590

Nota: Significativo ao nível de 0,05

De acordo com a Tabela 2, na faixa etária dos 18 aos 36 anos todas as medidas apresentaram diferenças estatíticamente significativas. Novamente verificou-se que os participantes do grupo B se lembraram de mais itens em todos os casos. Já na faixa etária dos 37 aos 59 anos houve diferença significativa em três das quatro medidas,

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quais sejam, na Água, no Céu e na pontuação total, com uma média maior também dos indivíduos do grupo B. No caso do agrupamento Terra verificou-se que as pessoas do grupo A lembraram mais itens, porém a diferença não foi estatíticamente significativa. Por fim, nas pessoas de 60 anos ou mais, as do grupo B obtiveram maiores pontuações no agrupamento Céu e na pontuação total do teste, enquanto que o grupo A teve um melhor desempenho nos agrupamentos Água e Terra. Destaca-se, porém, que nenhuma dessas diferenças foi estatisticamente significativa. Ao lado disso, o total de respostas diminuiu com o avançar da idade, sendo que nas pessoas com mais de 60 anos, a diferença entre os grupos deixou de ser significativa. Para verificar se a estrutura de cada agrupamento do teste se mantinha em função dos grupos realizou-se uma análise de variância após calcular as médias ponderadas de cada agrupamento, em razão das diferentes quantidades de itens. No resultado observaramse diferenças estatísticamente significativas, sendo que a prova de Tukey diferenciou os três agrupamentos [F (2, 858)=242,50, p=0,000] e [F (2, 858)=112,26, p=0,000] para as cidades de Uberlândia e Aracaju respectivamente. Os resultados da diferenciação da prova de Tukey podem ser visualizados na Tabela 3. Na Tabela 3 observa-se que a estrutura estabelecida pelo Manual do teste foi mantida no grupo B, ou seja, os itens da Água foram os menos lembrados e os itens do Céu apresentaram a maior média de pontuação. Por sua vez, no grupo A os itens mais lembrados pertenciam à Terra, seguidos pelo Céu e Água. Tabela 3. Subconjuntos formados pela prova de Tukey em razão dos três agrupamentos de itens e a média ponderada para os participantes de ambas as cidades Grupo B Subconjunto alfa = 0,05 Agrupamentos

1

2

Água

0,25

Terra

3

0,29

Céu p

0,40 1,000

1,000

1,000 Grupo A Subconjunto alfa = 0,05

Agrupamentos

1

2

Água

0,18

Céu

0,27

Terra p

34

3

0,31 1,000

1,000

Aletheia 31, jan./abr. 2010

1,000

Discussão Este estudo partiu da proposta de Rueda e Sisto (2008) e Rueda (2008) de avaliar o processo de resposta no TEPIC-M em pessoas que convivem em diferentes contextos, no que se refere a ter a presença do mar em seu cotidiano ou não. Com base nisso estudaramse amostras de duas cidades diferentes, quais sejam, Aracaju e Uberlândia. A primeira caracteriza-se por ser uma cidade costeira na qual as pessoas convivem diariamente com estímulos provenientes do mar. Por sua vez, os habitantes da cidade de Uberlândia não têm esse contato com tanta frequência, por ser localizada a mais de 500 quilómetros da cidade costeira mais próxima. Assim, acreditava-se que os indivíduos de Aracaju lembrariam mais dos itens do teste pertencentes ao ambiente Água do que as pessoas de Uberlândia. Nos resultados essa expectativa não foi comprovada, pois os participantes de Uberlândia se lembraram de mais itens em todas as medidas do TEPIC-M. Quando comparadas as medidas em função das faixas etárias contempladas pelo manual do teste, evidenciou-se esse mesmo resultado dos 18 aos 36 anos. Já dos 37 aos 59 anos essa tendência aconteceu em dois agrupamentos (Água e Céu) e na pontuação total do teste. Por sua vez, nas pessoas com 60 anos ou mais não foram observadas diferenças em nenhuma das medidas estudadas. Infelizmente esse tipo de dado não foi encontrado na literatura o que impossibilitou comparações. Entretanto, há que se ressaltar que houve uma diminuição das pontuações conforme aumentou a idade, fato esse já amplamente comentado na literatura (Alonso & Prieto, 2004; Graf, 1990; Kausler, 1994; Ryan, 1992; Verhaeghen & Marcoen, 1993; Wilson, Cockburn & Baddeley; 1985). Por esses resultados podem ser discutidos dois aspectos. O primeiro deles seria que com o passar da idade das pessoas o processo de resposta mudaria, ou seja, até uma determinada idade verifica-se diferença entre os participantes de cada cidade, e com uma idade mais avançada (a partir dos 60 anos aproximadamente) essa diferença não é mais observada. Nesse sentido pode-se pensar na possibilidade da memória das pessoas ser influenciada pelo contexto no qual convivem até certo ponto da vida e, posteriormente, a lembrança deixaria de ter uma relação tão estreita com o contexto da pessoa, podendo estar mais relacionada, talvez, com a experiência. Também pode ser aventada a possibilidade de que o número de participantes das faixas etárias desta pesquisa foi pequeno, o que daria lugar a outros estudos com essa população. Por outro lado, e talvez o achado mais importante da investigação, foi que o processo de resposta dos indivíduos no instrumento estaria relacionado ao entorno da pessoa. De fato, não da forma que se postulou, qual seja, que as pessoas que convivessem diuturnamente com o mar teriam mais facilidade de se lembrar de elementos correlatos, principalmente porque essa categoria sempre foi a menos lembrada em todas as pesquisas feitas e descritas no Manual. Assim, a hipótese inicial de que as pessoas de Aracaju tenderiam a lembrar mais dos itens do agrupamento Água foi refutada. Também, esse tipo de agrupamento de pessoas mostrou outro resultado, as pessoas com convivência com o mar apresentaram uma sequência diferente da detectada pelo Manual, fato esse que alerta para a necessidade de pesquisas para entender detalhadamente quais variáveis estariam envolvidas nesse processo. De fato, a estrutura original do teste foi mantida apenas na cidade de Uberlândia. Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Assim como alguns autores sugerem que os itens que compõem os testes pictóricos podem influenciar na resposta das pessoas (Couclelis, Golledge, Gale & Tobler, 1987; Mandler, Seegmiller & Day, 1977; Paivio, 1991), esta pesquisa mostrou que o Teste Pictórico de Memória também apresenta tal influência. Mas mostrou também um processo de resposta ainda não descrito na literatura e a influência de uma variável em uma situação para a qual esta pesquisa não possuía dados para explicar. Nesse sentido, pesquisas usando esses procedimentos devem ser encorajadas e fica em aberto a questão da diferença na sequenciação das categorias. Referências Ackil, J. K., & Zaragoza, M. S. (1998). The memorial consequences of forced confabulation: age differences in susceptibility to false memories. Developmental Psychology, 34, 1358-1372. Alonso, M. A., & Prieto, P. (2004). Validación de la versión en español del Test Conductual de Memória de Rivermead (RBMT) para población mayor de 70 años. Psicothema, 16(2), 325-328. Anderson, N. D., Craik, F. I. M., & Naveh-Benjamin, M. (1998). The attentional demands of encoding and retrieval in younger and older adults: evidence from divided attention costs. Psychology and Aging, 13, 405-423. Balota, D. A., & cols. (1999). Veridical and false memories in healthy older adults and in dementia of the Alzheimer type. Cognitive Neuropsychology, 16, 32-44. Balota, D. A., & Duchek, J. M. (1988). Age-related differences in lexical access, spreading activation, and simple pronunciation. Psychology and Aging, 3(1), 84-93. Bower, G. H., & Hilgard, E. (1981). Theories of learning. New York: Englewood Cliffs. Brunswik, E., Goldscheider, L., & Pilek, E. (1932). Zur Systematik des Gedächtnisses. Beihefte zur Zeitschrift für angewandte Psychologie, 64, 1-158. Burke, D. M., & Light, L. L. (1981). Memory and aging: the role of retrieval processes. Psychological Bulletin, 90, 513-546. Couclelis, H., Golledge, R. G., Gale, N., & Tobler, W. (1987). Exploring the anchorpoint hypothesis of spatial cognition. Journal of Environmental Psychology, 7(2), 99-122. Craik, F. I. M. (1983). On the transfer of information from temporary to permanent memory. Philosophical Transactions of the Royal Society of London: Biology, 302, 341-359. Craik, F. I. M., & Byrd, M. (1982). Aging and cognitive deficits: the role of attentional resources. Em: F. I. M. Craik & S. E. Trehub (Orgs.), Aging and cognitive processes (pp. 191-211). New York: Plenum Press. Di Lollo, V., Arnett, J. L., & Kruk, R. V. (1982). Age-related changes in rate of visual information processing. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, 8, 225-237. Giambra, L. M., & Arenberg, D. (1993). Adult age differences in forgetting sentences. Psychology and Aging, 8, 451-462. 36

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Aprovado em agosto de 2009

Fabián Javier Marín Rueda: Psicólogo; Doutor em Avaliação Psicológica (Universidade São Francisco, campus Itatiba-SP). Fermino Fernandes Sisto: Pedagogo; Doutor em Pedagogia (Universidad Complutense de Madrid); Livredocente (Unicamp); Professor do curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco, campus Itatiba-SP; Bolsista de Produtividade CNPq. Cláudia Araújo da Cunha: Psicóloga; Doutora em Educação (Universidade Estadual de Campinas); Professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia-MG. Alexandre José Raad: Psicólogo; Mestre em Psicologia (Universidade São Francisco); Professor assistente do Departamento de Psicologia da Universidade Tiradentes, Aracaju-SE. Endereço eletrônico para contato: [email protected]

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Aletheia 31, jan./abr. 2010

Aletheia 31, p.39-53, jan./abr. 2010

A influência das habilidades sociais no envolvimento de mães e pais com filhos com retardo mental Alcides Cardozo Adriana Benevides Soares Resumo: O estudo teve como objetivo comparar e correlacionar indicadores de habilidades sociais e do envolvimento de pais com filhos portadores de retardo mental. Participaram 27 casais com filhos portadores de retardo mental. Os pais responderam os questionários “Critério Brasil”, “Qualidade da interação familiar na visão dos pais” e “Inventário de habilidades sociais” (IHS – Del Prette). Houve diferença significativa no “Inventário de habilidades sociais”; para o F1, enfrentamento e autoafirmação com risco, as médias dos pais foram superiores as das mães e para o F3, conversação e desenvoltura social, as médias das mães foram superiores as médias dos pais. As mães mostram-se mais envolvidas na educação dos filhos. Foram encontradas correlações entre cuidados dispensados aos filhos e assertividade e também entre expressão de sentimentos positivos e cuidados com o filho evidenciando a influencia das habilidades sociais no envolvimento de pais com seus filhos. Palavras-chave: Habilidades sociais; envolvimento pais-filhos; retardo mental.

The influence of social skills on the involvement of mothers and fathers with their mentally retarded children Abstract: This study aimed to compare and correlate indicators of social skills and the engagement of parents having children with mental retardation. The sample included 27 couples living with their children, with mental retardation. The parents answered the questionnaires “Criterion Brazil”, “Quality of family interaction on parent viewpoint” and “Social Skills Inventory (IHS – Del Prette). There was significant difference in the “Inventory of social skills”; for F1, coping and self-assertion at risk, the average of fathers were higher than those of mothers, and for the F3, conversation and social performance, the averages of the mothers were higher than the average of fathers. Mothers are more involved in children education processes. Correlations were found between care provided to children and also between assertiveness and expression of positive feelings and care for the child. This shows the influence of social skills in engaging parents with their children. Key words: Social skills; parents-children involvement; mental retardation.

Introdução Os estudos e a aplicação dos saberes referentes às habilidades necessárias nas relações interpessoais caracterizam um campo teórico-prático denominado Treinamento de Habilidades Sociais (THS), que inclui um conjunto de estratégias que podem ser aplicáveis à superação de déficits de comportamentos e tem o propósito de minimizar dificuldades interpessoais e promover comportamentos socialmente competentes (Del Prette & Del Prette, 2005). Na base da construção das relações sociais está a interação entre o indivíduo e o ambiente social. Pessoas socialmente habilidosas promovem interações sociais mais satisfatórias (Caballo, 2003). Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Em diversos contextos onde as situações interpessoais ocorrem são esperados determinados desempenhos que exigem um amplo repertório de habilidades sociais do indivíduo. É na infância principalmente que estes desempenhos são aprendidos. A infância e a adolescência são períodos críticos e decisivos para se aprender habilidades sociais (Del Prette & Del Prette, 2002; Salvo, Mazzarotto & Löhr, 2005). Segundo esses autores, o ambiente familiar, o envolvimento e a participação dos pais na educação dos filhos são fundamentais, pois a família representa um dos contextos mais básicos e nucleares da relação organismo-ambiente. As condições familiares de educação dos filhos, (Garcia-Serpa, Del Prette & Del Prette 2006), chamadas práticas parentais, são entendidas como formas de relacionamento estáveis de comportamento que os pais emitem quando interagem com seus filhos. Del Prette e Del Prette (2004) e Bolsoni-Silva e Marturano (2008) propõem a análise dessas práticas parentais a partir do conceito de habilidades sociais educativas (HSE), e as definem como intencionalmente voltadas à promoção do desenvolvimento e a aprendizagem do outro. A importância da qualidade da relação pais-filhos sobre o desenvolvimento das crianças é verificada por estudos diversos nos últimos anos (Gomide, 2003; Gomide, Salvo, Pinheiro & Sabbag, 2005). Os autores correlacionam práticas educativas inadequadas a problemas no desenvolvimento cognitivo e social e ao desempenho acadêmico dos filhos. Sobre a influência da interação familiar no desempenho acadêmico dos filhos, Cia, Souza Pereira, Del Prette e Del Prette (2006) mencionam que o repertório de habilidades sociais gerais e mais especificamente o de habilidades sociais educativas dos pais, pode influenciar a qualidade do envolvimento destes com seus filhos e o tipo de prática que adotam na relação com eles. Bolsoni-Silva, Del Prette e Del Prette (2000) e Koberg, Sachetti e Viera (2006) entendem que pais, ao apresentarem dificuldades interpessoais, poderão comprometer a qualidade dessas relações, além de, provavelmente, servir de modelos de comportamentos sociais inadequados para seus filhos. Em uma revisão dos estudos sobre práticas parentais e problemas de comportamentos, Bolsoni-Silva e Marturano (2006) observaram que há uma tendência dos pais serem não contingentes no uso do reforço positivo para comportamentos pró-sociais e em punições efetivas para comportamentos indesejáveis. Consequentemente, comportamentos coercitivos são diretamente reforçados pelos membros da família, o que leva a criança a utilizá-los. Assim, quando a criança frequenta outros ambientes, passa a repetir este padrão, entendendo-se como indicadores de problemas de comportamento, déficits ou excessos comportamentais que prejudicam a interação da criança com seus pares e adultos de sua convivência. As relações familiares despertaram o interesse dos pesquisadores, especialmente no que tange às práticas educativas, isto é, as formas utilizadas pelos pais para orientar o comportamento dos filhos (Reppold, Pacheco, Bardagi & Hutz, 2002; Koberg, Sachetti & Viera, 2006). Segundo Gomide (2003) e Gomide, Salvo, Pinheiro e Sabbag (2005), em seu modelo teórico acerca das sete práticas educativas que compõem o estilo parental, duas são positivas: monitoria positiva e comportamento moral. Essas práticas dizem respeito ao uso adequado de reforçadores sociais, ao desenvolvimento da empatia e ao estabelecimento de contingências reforçadoras ou punitivas para o comportamento do 40

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filho. Dessa forma se estabelecem regras claras e consequências (sanções) para o não cumprimento das mesmas. A monitoria positiva define-se como um conjunto de práticas parentais que envolvem atenção e conhecimento dos pais acerca de onde seu filho se encontra e das atividades desenvolvidas por ele. Cia e Barham (2006), em estudo que teve por objetivo identificar as condições de trabalho que influenciam no envolvimento do pai com o seu filho, relatam que a privação paterna ou uma interação inadequada com o pai é considerada um fator de risco para o desenvolvimento infantil. Segundo as autoras, pesquisas têm demonstrado, de modo geral, a importância do pai em participar dos cuidados com os filhos e das atividades domésticas. Segundo Cia e Barham (2006), tais comportamentos por parte dos pais contribuiriam diretamente para diminuir a sobrecarga das mães, o que melhoraria o relacionamento entre ela e o filho. Ainda os autores apontam que no relacionamento entre pai e filho, os pais indicaram que mantiveram várias formas de comunicação diariamente com os filhos, avaliaram como alta a sua participação quanto aos cuidados dos filhos e apontaram que participavam das atividades escolares, culturais e de lazer dos filhos com alta frequência. Este relacionamento significativo entre pai e filho é, segundo BolsoniSilva e cols. (2000), precursor de um bom desenvolvimento infantil, destacando-se o desenvolvimento social. O conceito de retardo mental destaca a necessidade do desenvolvimento das condutas adaptativas dessas pessoas, principalmente habilidades de relacionamento. Segundo a American Association on Mental Retardation (AAMR, 2002), a definição de retardo mental aponta uma incapacidade caracterizada por importantes limitações, tanto no funcionamento intelectual, quanto no comportamento adaptativo, expresso nas habilidades adaptativas conceituais, sociais e práticas. Essa incapacidade tem início antes dos 18 anos. O critério diagnóstico do retardo mental indica que, no caso das dez condutas adaptativas, o indivíduo há de ter déficits em pelo menos três dessas condutas. Nesta listagem aparecem categorias indicativas de comportamento (habilidades sociais, cuidados pessoais, comunicação), de condições (saúde, segurança) e de contextos de funcionamento do indivíduo (lazer e trabalho). Segundo Del Prette e Del Prette (2005), é fácil reconhecer, portanto, que além da categoria das habilidades sociais, outras mostram o caráter também interativo que implicam em demandas sociais. Habilidades sociais, portanto, são cruciais para os processos de ajustamento social dos indivíduos nos diversos contextos, portadores ou não de necessidades educativas especiais. Rosin-Pinola, Del Prette e Del Prette (2007) referem que a expressão necessidades educativas especiais pode ser utilizada para se referir a crianças e jovens cujas necessidades decorrem de sua pouca capacidade para aprender. O termo surgiu para evitar os efeitos negativos de expressões utilizadas no contexto educacional, como deficientes, excepcionais, subnormais, infradotados, incapacitados etc., para se referir as pessoas com deficiências cognitivas, físicas, psíquicas e sensoriais. Tem o propósito, segundo a autora, de deslocar o foco do aluno e direcioná-lo para as respostas educacionais que eles requerem, evitando enfatizar os seus atributos ou condições pessoais que possam interferir na sua aprendizagem e socialização. Uma dessas direções é o desenvolvimento de habilidades sociais que, embora não solucionem o problema orgânico ou mental, podem diminuir seus efeitos psicológicos, especialmente na comunicação com pessoas Aletheia 31, jan./abr. 2010

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não deficientes, maximizando a condição de vida e de socialização dessa clientela (Del Prette & Del Prette, 2005). Segundo Paniagua (2004), ter um filho é um dos acontecimentos mais vitais para um ser humano. Os vínculos afetivos entre pais e filhos são muito intensos. Nunes (2003) e Nobre, Montilha e Temporini (2008) em seus estudos sobre as famílias com filhos com deficiência, descreve os conflitos presentes nos vínculos e os indicadores de risco no meio familiar. Estes autores concluem que esses conflitos não surgem do resultado direto da deficiência, mas da adaptação ou não a essa nova realidade. Desde o momento em que os pais ficam sabendo da existência de uma deficiência, há muita preocupação com o presente e o futuro da criança que irá acompanhá-los por toda a vida. Muitas vezes, a criança com deficiência irá requerer muito mais cuidados físicos, assim como mais tempo de interação e mais situações de jogo ou estudo compartilhado. Glat e Duque (2003), em uma pesquisa qualitativa com dezesseis pais de filhos com necessidades especiais, concluíram que a preocupação com a incerteza do futuro de seus filhos foi um ponto relevante nesse estudo. As autoras viram que essa preocupação faz com que eles se esforcem em dar a seus filhos uma educação que, principalmente, possa desenvolver habilidades que garantam maior independência e autonomia possível na vida adulta. Nesse estudo as autoras concluíram também, que apesar dos pais viverem suas angústias, desespero e depressão no contato íntimo e diário com seus filhos, eles tiveram inúmeras oportunidades de compensação. Conseguiram superar as crises, de acordo com suas maneiras de ser, amando e convivendo com seus filhos, apesar de todas as dificuldades. Hanson (2003) estudou famílias em que filhos com Síndrome de Down participaram de um programa de intervenção na infância, o qual foi reavaliado vinte e cinco anos depois. Os dados mostraram que os pais percebem as características positivas da criança, considerando, por exemplo, como uma benção às experiências prazerosas das aquisições dos filhos com Síndrome de Down. Feitosa (2003), em sua pesquisa sobre a relação família-escola, sugere que os pais participem ativamente das decisões relacionadas à educação de seus filhos, buscando conhecer as suas dificuldades acadêmicas e a necessidade de recursos específicos para o desenvolvimento adequado das potencialidades destes alunos. Segundo Cia, D’Affonseca e Barham (2004), são poucos os estudos que nos permitem saber como é a qualidade do relacionamento entre pais e filhos no Brasil. Além disso, o papel do pai se encontra em fase de mudanças, sendo frequente as famílias em que ambos (mãe e pai) trabalham fora, o que tem levado a redefinição do papel paterno. Cia, D’Affonseca e Barham (2004) estudaram, em uma amostra de cinquenta e oito pais e filhos do ensino fundamental, o impacto da qualidade do relacionamento entre estes pais e seus respectivos filhos no desempenho acadêmico. Neste estudo puderam verificar que quanto maior a frequência de comunicação entre pai e filho e a participação dos pais nas atividades escolares, culturais e de lazer, maior a pontuação das crianças em escrita e leitura e maior o desempenho acadêmico delas. Em outra pesquisa, que teve como objetivo comparar e correlacionar indicadores do repertório de habilidades sociais e do envolvimento dos pais na educação dos filhos, Cia e 42

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cols. (2006) tem duas referências apontam que os relatos passados pelos cônjuges indicam atividades diferenciadas. Por exemplo, os pais se ocupavam com maior frequência em proporcionar lazer fora de casa aos filhos e as mães em estabelecer horário de deitar-se e em controlar a higiene. Esta diferença de participação e envolvimento dos pais (mãe e pai) nos cuidados com os filhos é semelhante aos dados das pesquisas de Bertolini (2002) em que há uma divisão razoavelmente estruturada de atividades, com o homem se ocupando da parte social e de lazer e as mães com os cuidados diários da casa. Como é possível ver, a relação entre pais e filhos é fruto de um conjunto de expectativas compartilhadas e o envolvimento dos pais com seus filhos é crucial para seu desenvolvimento físico e mental. Os pais são também modelos de conduta para seus filhos daí a importância de se mostrarem habilidosos na resolução de problemas e no trato com as situações cotidianas. No caso de pais que tem filhos com deficiência mental as habilidades sociais servem, além de tudo, de recursos para o enfrentamento dos pais e são favorecedoras do envolvimento com filhos. Considerando a importância das habilidades sociais dos pais (pai e mãe) para o envolvimento e a qualidade na relação educativa de filhos com retardo mental e os estudos escassos focalizando especificamente as habilidades sociais educativas e a participação de cada cônjuge na educação das crianças com deficiência, esta pesquisa objetivou: (1) comparar os indicadores do repertório de habilidades sociais de pais e mães de filhos com retardo mental (2) comparar os indicadores do envolvimento na educação dos filhos de pais e mães de filhos com retardo mental e (3) correlacionar os dois conjuntos de medidas. Método Participantes Participaram desta amostra vinte e sete pais e vinte e sete mães morando juntos e com um filho diagnosticado com retardo mental, matriculado em instituição para pessoas com deficiência, com idade cronológica entre sete e quatorze anos. A idade dos cinquenta e quatro respondentes variou de trinta a sessenta anos, sendo que, a grande maioria (83%) esteve entre trinta e cinquenta anos. Todos os respondentes eram casados, tendo a grande maioria, (74%) entre dois e três filhos. O grau de escolaridade dos pais caracterizou uma amostra de 79,6% entre os anos iniciais completos do ensino fundamental e o superior incompleto. Considerando o nível socioeconômico das famílias, a amostra caracterizou-se por 48,1% da classe C e 51,9% da classe D, segundo o critério Brasil (Ibope, 2000). A coleta de dados ocorreu em uma sala da FUNLAR (Fundação Municipal Lar Escola Francisco de Paula), localizada no bairro de Vila Izabel na cidade do Rio de Janeiro. Escolheu-se este local, pois, a instituição, na qual estão matriculados os filhos desses casais, realiza vários encontros com as famílias, abordando tanto aspectos sociais como psicopedagógicos, o que facilitaria a coleta dos dados, além de criar e fortalecer vínculos com seus membros.

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Instrumentos Critério de Classificação Econômica Brasil (Ibope, 2000): divide a população em grupos de consumidores a partir da sua capacidade de consumo (que resulta em classes socioeconômicas), sendo possível classificá-la em sete diferentes grupos: A1, A2, B1, B2, C, D e E. A capacidade de consumo é verificada por tabela cuja pontuação é maior quanto mais itens e em maior quantidade a família possuir (ex: automóvel; empregada mensalista) somando a pontuação referente ao grau de instrução do chefe da família. Os dados do Critério Brasil foram pontuados de acordo com a tabela proposta pelos autores, com maior pontuação indicando maior nível socioeconômico (mais próximo de A1) do respondente. Questionário da Qualidade da Interação Familiar na Visão dos Pais (Cia, D’Affonseca & Barham, 2004) adaptado especialmente para esta pesquisa. Além da folha de rosto para a identificação dos dados sociodemográficos, é dividido em três partes: (1) Habilidades sociais educativas dos pais para com os filhos: escala de comunicações (verbais e não verbais) entre pai e filho, segundo o pai, com 21 itens e a pontuação variando entre 1 (nunca) a 6 (uma vez por dia); (2) Participação dos pais nas atividades escolares, culturais e de lazer dos filhos: escala de participação com 14 itens e a pontuação variando entre 1 (nunca) a 6 (todos os dias); (3) Participação dos pais nos cuidados de seu filho: escala de participação com 7 itens e a pontuação variando entre 1 (nunca) a 6 (todos os dias). Foi calculado o Alpha de Cronbach para cada fator do instrumento. Para avaliar a qualidade da consistência interna utilizou-se a classificação proposta por Hill e Hill (2002) que considera acima de 0,9 excelente; entre 0,8 e 0,9 bom; entre 0,7 e 0,8 razoável; entre 0,6 e 0,7 fraco e abaixo de 0,6 considerado inaceitável. O primeiro fator obteve valor do Alpha de Cronbach de 0,87 e foi classificado como bom, o segundo fator obteve valor de 0,82 e também foi classificado como bom; o terceiro fator obteve 0,84 considerado também como bom. O questionário “Qualidade da Interação Familiar na Visão dos Pais” como um todo obteve (0,92) e foi classificado como excelente. Inventário de Habilidades Sociais (Del Prette & Del Prette, 2001) é um instrumento de autorrelato, composto por trinta e oito itens que descrevem situações de interação social em diferentes contextos (trabalho, lazer e família). Solicita-se ao respondente que estime a frequência com que reage a uma situação descrita em cada item, em uma escala tipo Likert que varia de 0 (nunca ou raramente) a 4 (sempre ou quase sempre) e avalia cinco fatores: (a) enfrentamento e autoafirmação com risco; (b) autoafirmação na expressão de sentimento positivo; (c) conversação e desenvoltura social; (d) autoexposição a desconhecidos e situações novas; (e) autocontrole da agressividade. Trata-se de um instrumento aprovado pelo Conselho Federal de Psicologia, com estudos psicométricos que atestam suas qualidades de validade e confiabilidade. Apesar do instrumento ter sido validado para estudantes universitários (Bandeira, Costa, Del Prette, Del Prette & GerkCarneiro, 2000) diversas pesquisas têm utilizado o mesmo instrumento para identificar habilidades sociais em adultos, inclusive pais, mães e cuidadores (Bolsoni-Silva, Brandão, Versuti-Stoque & Rosin-Pinola, 2008; Bolsoni-Silva, Silveira & Marturano, 2008; Bolsoni-Silva, Silveira & Ribeiro, 2008).

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Procedimentos de coleta de dados Uma vez explicado os objetivos e mostrando desejo de participarem do estudo, os pais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Só a partir daí, receberam o instrumento Qualidade da Interação Familiar na Visão dos Pais (Cia, D’Affonseca e Barham, 2004) adaptado e as orientações quanto ao seu preenchimento levando em conta seu relacionamento com seu filho com retardo mental. Em seguida foi aplicado o IHS-Del Prette, (2001) que foi respondido em separado pelos respondentes. Com o objetivo de documentar as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo seres humanos, dispostas na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, o presente projeto foi encaminhado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número 156/2007. Resultados Os resultados são apresentados de forma a contemplar três conjuntos: comparações dos escores de habilidades sociais entre mães e pais com filhos com retardo mental; comparações dos escores quanto ao envolvimento de mães e de pais com filhos com retardo mental; correlação entre os escores de Habilidades Sociais e de Envolvimento dos casais na educação de filhos com retardo mental. Comparações entre os escores de habilidades sociais de mães e pais com filhos com retardo mental Para avaliar se as mães de filhos com retardo mental são mais habilidosas socialmente do que os pais destes mesmos filhos, utilizou-se o teste t para amostras dependentes, comparando-se as médias dos pais e mães dos filhos com retardo mental nas variáveis de habilidade social conforme mostra a Tabela 1. Tabela 1 – Descrição por fatores (IHS) Fatores Enfrentamento Autoafirmação com Risco

N

M

DP

t

p

Pai

27

2,43

0,56

3.292

0,003**

Mãe

-1.760

0,090

-3.132

0,004**

-0.049

0,961

0.133

0,895

-0.161

0,873

27

1,93

0,69

Autoafirmação Expressão de Sentimento Positivo

Pai

27

2,77

0,48

Mãe

27

2,95

0,35

Conversação Desenvoltura Social

Pai

27

1,52

0,80

Mãe

27

2,06

0,62

Autoexposição a Desconhecidos e Situações Novas Autocontrole da Agressividade IHSTOTAL

Pai

27

1,85

0,86

Mãe

27

1,86

0,72

Pai

27

2,64

1,12

Mãe

27

2,62

0,68

Pai

27

2,25

0,40

Mãe

27

2,26

0,35

Nota: ** Significativo ao nível de 0,01 * Significativo ao nível de 0,05

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A Tabela 1 mostra que houve diferenças significativas no Fator 1, Enfrentamento e Autoafirmação com Risco, com os pais obtendo escores superiores aos das mães (t = 3.292; p = 0.003). Este fator reúne onze itens que retratam situações interpessoais e está ligado a uma classe de habilidade social chamada assertividade que envolve enfrentamento em situação de risco de reação indesejável do interlocutor, com controle de ansiedade e expressão apropriada do sentimento, desejos e opinião. Ela implica tanto na superação da passividade, quanto no autocontrole da agressividade e de outras reações não habilidosas (Del Prette & Del Prette, 2005). Por outro lado, conforme mostra a Tabela 1 observaram-se diferenças significativas no Fator 3, Conversação e Desenvoltura Social, com as mães obtendo escores superiores aos dos pais (t = -3.132; p = 0.004). Este fator reúne sete itens sobre situações interpessoais, demanda traquejo social na conversação o que supõe conhecimentos das normas de relacionamento do dia a dia e comportamentos razoavelmente padronizados inerentes aos encontros sociais breves e ocasionais. Estão ligados à classe de habilidade social de Civilidade, que expressa cortesia e algumas habilidades de conversação como apresentar-se, despedir-se e agradecer utilizando formas delicadas de conversação (Del Prette & Del Prette, 2005). Comparações entre os escores de envolvimento das mães e pais com filhos com retardo mental Quanto ao envolvimento das mães e pais de filhos com retardo mental na educação dos filhos, os dados foram avaliados pelo teste t para amostras dependentes, comparando as médias dos pais e mães dos filhos com retardo mental nas variáveis de envolvimento na educação dos filhos. Para tanto se investigou a frequência das respostas dos pais e mães nos três fatores de Habilidades Sociais Educativas de Comunicação, Participação (Escola, Cultura e Lazer) e Participação (Cuidados) do QIFVP. A Tabela 2 mostra as médias das respostas dos respondentes em que claramente nota-se que as médias das mães são bem superiores aos dos pais. Tabela 2 – Descrição por fatores QIFVP Fatores Habilidades Sociais Educativas de Comunicação (Verbais e Não Verbais)

Participação (Escola / Cultura / Lazer)

Participação (Cuidados)

N

M

DP

t

p

Pai

27

4,45

0,73

-5.028

0,000**

Mãe

27

5,18

0,67

Pai

27

3,63

0,87

-6.695

0,000**

Mãe

27

4,87

0,73

Pai

27

3,58

1,17

-8.833

0,000**

Mãe

27

5,66

0,39

Nota: **Significativo ao nível de 0,01 *Significativo ao nível de 0,05

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Foram observadas, conforme os dados da Tabela 2, diferenças significativas no fator referente às Habilidades Sociais Educativas de Comunicação (Verbais e Não Verbais), com as mães obtendo escores superiores aos dos pais (t = -5.028; p = 0.000). No fator referente à Participação (Escola / Cultura / Lazer), também as mães obtiveram escores superiores aos dos pais (t = -6.695; p = 0.000), bem como no fator referente à Participação (Cuidados), em que mais uma vez as mães obtiveram escores superiores aos dos pais (t = -8.833; p = 0.000). Tais evidências apontam que mães de filhos com retardo mental são mais envolvidas na educação dos filhos do que os pais destes mesmos filhos. Correlações entre os escores de habilidades sociais e de envolvimento dos casais na educação de filhos com retardo mental Para verificar se casais com maiores escores de habilidades sociais são aqueles que demonstram maior envolvimento na relação com os filhos com retardo mental, utilizou-se o teste de correlação linear de Pearson, buscando-se correlação positiva entre escores de habilidades sociais e envolvimento na educação dos filhos. Tabela 3 – Correlação entre escores HS e QIFVP Habilidades Sociais Educativas de Comunicação

Participação (Escola / Cultura / Lazer)

Participação (Cuidados)

r

p

r

p

R

p

Enfrentamento autoafirmação com risco

0,033

0,813

-0,053

0,705

-0,282*

0,039*

Autoafirmação expressão de sentimento positivo

0,036

0,793

0,201

0,145

0,296*

0,030*

Conversação desenvoltura social

0,055

0,694

-0,120

0,388

0,208

0,132

Autoexposição desconhecidos situações novas

-0,192

0,165

0,120

0,387

0,047

0,734

Autocontrole agressividade

0,115

0,406

0,218

0,113

-0,081

0,562

IHSTOTAL

0,055

0,695

0,121

0,385

0,003

0,986

Nota: **Significativo ao nível de 0,01 *Significativo ao nível de 0,05

Como se observa na Tabela 3, apenas os fatores Autoafirmação na Expressão de Sentimento Positivo (F2-Habilidades Sociais) e Participação (Cuidados) do QIFVP apresentaram uma associação positiva e significativa (r = 0.296; p = 0.030). Por outro lado, os fatores Enfrentamento e Autoafirmação com Risco (F1-Habilidades Sociais) e Participação (Cuidados) apresentaram uma associação negativa e significativa (r = -0.282; p = 0.039). As demais correlações não foram significativas. O que podemos constatar, de acordo com as evidências expressas pela análise estatística, é que casais que têm grande facilidade de expressar seus sentimentos positivamente são aqueles que demonstram maiores cuidados com seus filhos com retardo mental e ainda que casais que se envolvem Aletheia 31, jan./abr. 2010

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nos cuidados pessoais de seus filhos são aqueles que têm mais dificuldade de enfrentarem assertivamente as dificuldades de seus filhos evidenciando a influência das habilidades sociais no envolvimento de pais com seus filhos. Discussão Quanto ao primeiro conjunto de resultados, comparações entre os escores de habilidades sociais de mães e pais com filhos com retardo mental, verifica-se que em relação ao Fator 1, enfrentamento e autoafirmação com risco em que os pais (homens) apresentam escores bem superiores de assertividade em relação aos das mães. Cia, Pamplin e Del Prette (2006), em seus estudos sobre comunicação e participação pais-filhos afirmam que, pais que se comportam assertivamente com os filhos, podem estar monitorizando os próprios comportamentos passivo e agressivo que levariam às práticas educativas ineficientes, como negligência e coerção. Desta forma, com este monitoramento, estariam sendo modelos assertivos para seus filhos. Pode-se, supor, que no caso de crianças com retardo mental, este modelo de pai, melhoraria muito os repertórios de comportamento de autonomia de seus filhos, bem como os avanços nas relações interpessoais. No Fator 3, conversação e desenvoltura social, em que as mães obtiveram médias significativamente superiores as dos pais e está ligado as habilidades sociais de civilidade, Cia, Souza Pereira, Del Prette e Del Prette (2007), identificando e analisando o repertório de habilidades sociais de mães, concluíram que este fator, efetivamente, é importante para incentivar os filhos a participarem de atividades, tanto no colégio como em outros contextos. Relatam ainda as autoras que a comunicação com os filhos normalmente é permeada por sentimentos positivos e é crucial que estes sentimentos sejam expressos de forma verbal e não verbal. Neste sentido, corroborando os dados verificados neste estudo, as mães estariam, provavelmente, ajudando seus filhos com retardo mental, fazendo uso da comunicação não verbal, com a intenção de minimizar déficits nesta área. Para o segundo conjunto de resultados, comparações entre os escores de envolvimento das mães e pais com filhos com retardo mental, os dados deste estudo demonstram que as mães relataram alta frequência nos indicadores de envolvimento com seus filhos com retardo mental através do Questionário Qualidade da Interação Familiar na Visão dos Pais (Cia, D’Affonseca & Barham, 2004). Segundo Cia e cols (2007), esses indicadores favorecem ao desenvolvimento infantil saudável, mormente ao desenvolvimento socioemocional, abrangendo também cognição e desempenho na escola. Por esses estudos, os autores concluem que o envolvimento das mães na educação de seus filhos é importante, ainda mais, diante da fase de transição em que as crianças da amostra se encontram (começo do ensino fundamental). Segundo os autores, nesta fase, o ajustamento no ambiente escolar, muito em função das novas relações que requerem novas regras de comportamento moral e social, vão exigir dos pais maior assistência (Del Prette & Del Prette, 2005). Transportando esses resultados para os estudos de famílias de filhos com retardo mental, verifica-se a mesma preocupação das mães com os cuidados das crianças. Apesar da ênfase que se deve dar aos processos de interação social (Araújo, 2006; Riches, 1996), os cuidados que as mães têm, principalmente no tocante à higiene, à alimentação, levar ao médico, acordar e cuidar de madrugada (as médias mais altas, Tabela 2) são constantes 48

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mesmo na faixa etária bem acima das idades de crianças em início do ensino fundamental com desenvolvimento normal. A responsabilidade das mães por aspectos que são cruciais no desenvolvimento da autonomia de seus filhos em famílias de crianças com retardo mental, ainda é bem maior do que a responsabilidade dos pais (homens). Embora os modelos atuais de paternidade preconizem uma participação (cuidados) mais próxima com os filhos, ideias, crenças e comportamentos tradicionais do papel do pai e da mãe, permanecem enraizados no cotidiano das famílias (Rangel, 2006), principalmente nos contextos familiares de crianças com retardo mental. Segundo Rapoport e Piccinini (2006), a experiência da maternidade traz muitas mudanças, especialmente para a mãe, que se adapta a esta nova realidade de acordo com suas características pessoais e com a sua habilidade de solicitar e aceitar apoio de outras pessoas. Quanto mais a mãe se mostra apoiada socialmente mais ela se apresenta em condições para responder a situações estressantes, entretanto nem todas mães conseguem pedir ajuda ou até mesmo recebê-la e algumas têm maior dificuldade em compartilhar os cuidados do bebê, mesmo tendo uma rede de apoio disposta a ajudá-la. Segundo Navarini e Hirdes (2008), mulheres que experienciam a maternidade de filhos com retardo mental tem a necessidade de incorporar à doença a vida cotidiana, utilizando recursos adaptativos tais como lidar com os encargos objetivos e subjetivos de ter um filho portador de um transtorno mental, o estigma e outros sentimentos decorrentes. Muitos familiares sentem culpa, mas acima de tudo existe a preocupação com o bemestar do filho. De acordo com Pereira, Dessen e Pereira Silva (2005), recentemente, o relacionamento marital estaria sendo apontado como um fator importante para a qualidade das relações que os pais mantêm com os seus filhos. Segundo as autoras, a convivência entre cônjuges, quanto às formas de comunicação e estratégias para resolver os problemas, estariam influenciando a criação de estilos parentais de cuidados dos filhos e a qualidade dessas relações. No que tange às situações de conflito, os autores relatam que seus estudos estão em consenso com a literatura em que mães insatisfeitas tendem a compensar seus filhos sendo mais responsivas e envolvendo-se mais com suas crianças. Por outro lado, pais emitem condutas negativistas e intrusivas em relação aos seus filhos, afastando-se do convívio mais direto, apesar de viverem sob o mesmo teto. É possível que no caso da amostra de pais e mães de filhos com retardo mental isto esteja ocorrendo, principalmente, com relação ao estresse vivenciado pelo pai, oriundo das dificuldades financeiras, e pelo fato de ter um filho com retardo mental. Afinal, os sentimentos e as representações familiares que existiam anteriormente ao nascimento deste filho, se deterioram gerando uma crise de identidade neste pai. Segundo Glat e Duque (2003), tudo aquilo que era dado como certo é questionado e desqualifica-se. Por outro lado, este envolvimento das mães de filhos com retardo mental, principalmente com relação aos cuidados, levou-a a caminhar a procura de tratamento para seus filhos. Miltiades e Pruchno (2001) realizaram um estudo com mães de filhos adultos com deficiência e chegaram à conclusão que essas mulheres ainda continuam vivendo situações de cuidado e de responsabilidades pela vida de seus filhos, assumindo um papel vitalício de cuidadoras. Estão sempre procurando manter as diversas formas de tratamento, em infindáveis negociações com as instituições de reabilitação ou redes de apoio. Em função dessa demanda, pode-se supor que tenham Aletheia 31, jan./abr. 2010

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adquirido habilidades de traquejo na conversação, o que supõe conhecimento das regras e normas de relacionamento, o que ratificaria os resultados desse estudo, quando da verificação dos indicadores do repertório de habilidades sociais da amostra de mães de filhos com retardo mental. Para o terceiro conjunto de resultados, correlações entre os escores de habilidades sociais e envolvimento de casais na relação com os filhos com retardo mental, considerando a relação entre os cinco fatores que fazem parte da escala de habilidades sociais e as medidas do envolvimento entre cônjuges e seus filhos com retardo mental, pôde-se verificar que a assertividade (F1) dos casais estabelece uma relação inversa com o nível de cuidados atribuídos ao filho. Segundo os estudos de Cia e cols. (2006), culturalmente no Brasil, ambos os pais têm liberdade de expressarem seus direitos e a mostrarem para seus filhos que eles têm também direitos e deveres. Quanto mais os casais se envolvem com os cuidados de seus filhos mais parecem não se utilizarem da assertividade, talvez por interpretarem que seus filhos não estão aptos a corresponder às exigências sociais e cognitivas de outros indivíduos sem deficiência mental. Quanto ao F2, autoafirmação na expressão de sentimento positivo, correlacionou-se significativamente de forma positiva com o fator Cuidados quando avaliaram o envolvimento de ambos os pais com seus filhos. De fato, segundo Cia e cols. (2006), espera-se que mães e pais expressem sentimentos positivos como carinho, cuidado e atenção durante suas relações com seus filhos com retardo mental, favorecendo a qualidade do relacionamento. Considerações finais Este estudo procurou investigar se as habilidades sociais dos pais (pai e mãe) se relacionam com o envolvimento na educação dos filhos com retardo mental. Em geral, os resultados indicam que os pais são mais assertivos que as mães e as mães tem melhores habilidades de conversação e desenvoltura social que os pais. As mães são mais envolvidas que os pais na educação, nas atividades escolares, de lazer e culturais e no cuidado dos seus filhos. Verificou-se também que existe correlação positiva entre expressão de sentimentos positivos e cuidados dedicados aos filhos e correlação negativa entre assertividade e cuidados dedicados aos filhos, ou seja, as mães se envolvem mais com seus filhos tanto nos cuidados pessoais quanto da educação e os pais são mais assertivos e normatizadores da conduta dos filhos. Este trabalho permitiu entender melhor a influência que as habilidades sociais podem ter para o envolvimento dos pais com seus filhos ainda que a amostra tenha sido pequena devido ao fato de se encontrarem muitos casais que viviam com seus filhos e suas companheiras e não eram casados, ou que casados, não eram pais biológicos, mas que se diziam participantes e envolvidos com seus filhos nos diversos ambientes partilhados. Nesse sentido, ficaram impossibilitados de participar da amostra e isso se apresentou como uma limitação do estudo, assim como o uso de um instrumento ainda não normatizado. A investigação da dinâmica familiar e o estresse enfrentado pelos pais de crianças com retardo mental mostraram a existência de fatores interessantes que carecem de 50

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intervenções que possam possibilitar o favorecimento de um ambiente acolhedor e de melhor qualidade do suporte parental. Também ao minimizar o estresse parental, isso estaria indo no sentido da melhoria da qualidade de vida desses pais e a condução da criança ao seu potencial máximo. O encontro com os pais que desenvolvem não apenas o papel de provedor, mas principalmente, participantes das atividades escolares, culturais e de lazer, educando e dividindo atividades de cuidado da criança, interagindo adequadamente, brincando, estimulando, favorecidos com um bom repertório de habilidades sociais, visualiza um caminho aberto para investigações com a figura do pai. Referências American Association on Mental Retardation (2002). Mental retardation: definition, classification and systems of supports. Washington, DC: AAMR. Araújo, J. N. G. (2006). Relações sociais: as trocas e os mitos de um mundo sem trocas. Psicologia USP, 17(1), 155-179. Bandeira, M., Costa, M. N., Del Prette, Z. A. P., Del Prette, A., & Gerk-Carneiro, E. (2000). Qualidades psicométricas do Inventário de Habilidades Sociais (IHS): estudo sobre a estabilidade temporal e a validade concomitante. Estudos de Psicologia, 5, 401-419Bertolini, L. B. A. (2002). Relação entre o trabalho da mulher e a dinâmica familiar. São Paulo: Vetor. Bertolini, L. B. A. (2002). Relação entre o trabalho da mulher e a dinâmica familiar. São Paulo: Vetor. Bolsoni-Silva, A. T., Brandão, A. S., Versuti-Stoque, F. M., & Rosin-Pinola, A. R. (2008). Avaliação de um programa de intervenção de habilidades sociais educativas parentais: Um estudo piloto. Psicologia Ciência e Profissão, 28, 18-33. Bolsoni-Silva, A. T., Del Prette, A., & Del Prette, Z. A. P. (2000). Relacionamento paisfilhos: um programa de desenvolvimento interpessoal em grupo. Psicologia Escolar e Educacional, 3(3), 203-215. Bolsoni-Silva, A. T., & Marturano, E. M. (2006). A qualidade da interação “pais e filhos e sua relação com problemas de comportamentos de pré-escolares”. Em: M. Bandeira, Z. A. P. Del Prette & A. Del Prette (Orgs.), Estudos sobre habilidades sociais e relacionamento interpessoal (pp. 89-104). São Paulo: Casa do Psicólogo. Bolsoni-Silva, A. T., & Marturano, E. M. (2008). Habilidades sociais educativas parentais e problemas de comportamento: comparando pais e mães de pré-escolares. Aletheia, 27, 126-138. Bolsoni-Silva, A. T., Silveira, F. F., & Marturano, E. M. (2008). Promovendo habilidades sociais educativas parentais na prevenção de problemas de comportamento. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 10(2), 125-142. Bolsoni-Silva, A. T., Silveira, F. F., & Ribeiro, D. C. (2008). Avaliação dos efeitos de uma intervenção com mães/cuidadoras: contribuições do Treinamento em Habilidades Sociais. Revista Contextos Clínicos, 1, 19-27. Caballo, V. E. (2003). Manual de avaliação e treinamento das habilidades sociais. São Paulo: Santos. Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Aprovado em março de 2010

Alcides Cardozo: Psicóloga; Mestre em Psicologia Social (Universidade Salgado de Oliveira – Universo/ Niterói-RJ) Adriana Benevides Soares: Psicóloga; Mestre e Doutora em Ciências Cognitivas (Université de Paris Sud); Professora da Universidade Salgado de Oliveira (Universo/ Niterói-RJ) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Endereço eletrônico para contato: [email protected]

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Precisão entre juízes na avaliação dos aspectos formais do teste de Wartegg Irai Cristina Boccato Alves, Augusto Rodrigues Dias, Luís Sérgio Sardinha, Fábio Donini Conti Resumo: A questão da clareza e objetividade dos critérios utilizados na avaliação e interpretação dos testes psicológicos é uma das preocupações dos profissionais da Psicologia que trabalham com a avaliação psicológica. O objetivo deste trabalho consistiu em verificar em que medida os critérios de avaliação delineados para alguns aspectos formais do Teste de Completamento de Desenhos de Wartegg (WZT) estão definidos adequadamente. Participaram desta pesquisa dois juízes devidamente treinados nos critérios desenvolvidos pela autora, que avaliaram 191 protocolos do teste. Para determinar a precisão entre juízes foi calculado o coeficiente Kappa, para cada campo em cada uma das variáveis estudadas, tendo variado 0,66 a 1,00. Estes resultados permitiram concluir que os critérios propostos, de um modo geral, se mostraram claros e objetivos para os aspectos formais estudados, possibilitando o seu emprego de forma relativamente segura na avaliação de um protocolo do WZT. Palavras-chave: técnicas projetivas; teste de Wartegg; precisão de avaliadores; avaliação de desenhos.

Raters reliability in the assessment of formal aspects of the Wartegg test Abstract: The question of clearness and objectivity of the criteria in the assessment and interpretation of psychological tests has been a concern between Psychology professionals who work with psychological assessment. The purpose of this work was to verify if the assessment criteria for some formal aspects of The Wartegg Test (WZT) are adequately defined. Two trained judges evaluated 191 test protocols. The Kappa coefficient was calculated to determinate the rater’s reliability to each studied variable and for each WZT field. The coefficients between raters ranged from 0.66 to 1.00. It can be concluded that the proposed criteria for evaluation of the formal aspects were clear an objective and they will permit their use in a secure form in the WZT assessment. Keywords: projective techniques; Wartegg test; raters reliability; drawing assessment.

Introdução Para que um teste psicológico seja considerado em condições de uso, ele necessita apresentar estudos atualizados relativos aos seus parâmetros psicométricos, em especial os que evidenciem sua validade e precisão. Tal condição passou a ser determinante a partir da Resolução 002/2003 do Conselho Federal de Psicologia (C.F.P.), que define e regulamenta o uso, a elaboração e a comercialização dos testes psicológicos. Como consequência desta Resolução, na atualidade, uma série de instrumentos se encontra com a utilização suspensa devido à ausência de tais estudos, em particular aqueles que são classificados como técnicas ou métodos projetivos (Alves, 2004; Sardinha, 2008).

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Dentro deste universo inclui-se o Teste de Completamento de Desenhos de Wartegg (WZT). Este instrumento caracteriza-se como uma técnica projetiva gráfica, de completamento de desenhos, que pretende avaliar a personalidade por meio das produções realizadas livremente pelos examinandos a partir de oito sinais gráficos dispostos em oito campos (Berlinck, 2000). O WZT encontra-se na lista de testes com parecer “não favorável” devido à escassez de estudos de validade e precisão com a população brasileira. O Teste de Wartegg foi muito usado no Brasil, conforme pode ser constatado na pesquisa de Noronha, Beraldo e Oliveira (2003), na qual foi indicado como o 5o colocado entre os testes mais usados pelo psicólogo (N = 52) na sua prática profissional. Por outro lado, a literatura internacional sobre o WZT é muito ampla, mas é de difícil acesso, conforme foi apontado pelo levantamento apresentado por Berlinck (2000, 2006) e Ramon (2006), principalmente porque alguns dos estudos mais completos foram realizados por Takala (citados por Heidberg, 1981) na Finlândia. Também podem ser destacados os trabalhos de Kinget (1952) nos Estados Unidos e o de Biedma e D’Alfonso (1955/1973) na Suíça. Kinget foi responsável pela sistematização dos critérios de avaliação do teste e realizou estudos de validade, comparando os resultados do WZT com os dados de um questionário baseado no Inventário de Personalidade de Benreuter. No Brasil, a literatura sobre o WZT é pequena e existem poucos dados de pesquisa disponíveis sobre a nossa realidade, que foram resumidos por Alves (2008). Algumas dessas pesquisas serão apresentadas a seguir. Os únicos estudos normativos do Teste de Wartegg desenvolvidos para adultos no Brasil foram os de Berlinck (2000; 2006), cujo objetivo foi estabelecer critérios para a aplicação, avaliação e interpretação para pessoas com diversos níveis de escolaridade. A autora propôs critérios objetivos para avaliação, baseados principalmente no trabalho de Kinget (1952). Em 1999, Gullo, Reis e Siqueira compararam as características de originalidade avaliadas pelo Teste de Wartegg e pelo Teste Pensando Criativamente com Figuras de Torrance, em universitários, tendo obtido uma correlação positiva e fraca (0,21) entre as características de originalidade avaliadas pelos dois testes. Salazar, Tróccoli e Vasconcelos (2001) compararam os resultados do fator Desempenho do IFP-R e os desenhos do campo 5 do Wartegg, entre o campo 8 e o fator Afiliação e entre o tipo de Sequência do WZT e o fator Ordem, de uma amostra de 723 participantes com nível de escolaridade superior. Os protocolos do WZT foram avaliados por dois juízes e foram correlacionados os resultados de cada avaliador e da média entre eles com os fatores do IFP-R. As correlações obtidas foram próximas de zero, indicando não haver relação entre os aspectos avaliados nos dois testes. As correlações entre os juízes variaram entre 0,18 e 0,78, as quais apontam para a necessidade de critérios objetivos. Concluem que os dois testes parecem abordar aspectos diferentes da personalidade, bem como apresentam pressupostos teóricos diferentes, o que pode explicar os resultados encontrados. É importante ressaltar que não se sabe exatamente como foram avaliadas as características do WZT para chegar às conclusões apresentadas.

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Investigando a validade de critério do WZT com o Teste de Zulliger, em relação à variável movimento, Berlinck (2002) obteve uma correlação significante de 0,349 entre os dois testes. Embora a correlação não seja muito alta, esta indica a validade da interpretação dessa variável nos dois testes, que se relaciona à criatividade, empatia, espontaneidade e poder de adaptação ao meio externo. Em outro estudo de validade, Cruz, Ruschel, Meazzi, Monteiro e Fagundes (2003) avaliaram a persistência e o desempenho no IFP e no campo 3 do Wartegg, que avalia ambição, desejo de crescimento e perseverança. Encontraram que um resultado favorável no campo 3 estava relacionado a maior persistência no IFP, o que sugere tendência a terminar um trabalho, mesmo quando este é difícil. Foram encontradas diferenças entre homens e mulheres, com resultados mais altos para os homens. Muitos questionamentos surgem quando se aborda a validade e a precisão das técnicas projetivas, em especial a adequação ou não destes parâmetros psicométricos para este tipo de instrumento. A esse respeito, Vane e Guarnaccia (1989) assinalam que os procedimentos (métodos) utilizados para o estabelecimento de tais parâmetros foram criados para testes cujos resultados são expressos de forma quantitativa e em dimensões únicas, diferentemente do que ocorre com as técnicas projetivas, em que os resultados dependem muito da subjetividade do avaliador. Contudo, ressaltam a necessidade de estabelecer critérios padronizados para a avaliação. Cabe salientar que, a principal distinção entre os testes objetivos e os projetivos reside no fato de que os primeiros têm por objetivo informar o quanto um indivíduo tem de um determinado traço, estado ou fator; enquanto que os projetivos seriam considerados meios de se obter informações sobre a pessoa avaliada (Weiner, 2000). Entretanto, independente da problemática exposta, é impossível não tratar as questões de validade e precisão dessas técnicas, em virtude de ser necessário verificar se elas fazem aquilo que se propõem a fazer e com que consistência o fazem (Alves, 2006). No que se refere à precisão das técnicas projetivas deve ser dada atenção especial à escolha do método a utilizar. Os métodos mais comuns para o estabelecimento da precisão de um teste são (teste-reteste, formas paralelas e divisão em metades ou consistência interna), entretanto, apresentam dificuldades quando aplicados às técnicas projetivas. No caso do teste-reteste a dificuldade estaria relacionada a mudanças em aspectos da personalidade que podem ocorrer com o passar do tempo ou como consequência de pressões externas e internas, que vão depender do intervalo de tempo entre as aplicações. Se o intervalo for curto, o reteste vai mostrar se as flutuações em um breve período de tempo alteram o resultado do teste. Se a correlação for alta, ela vai indicar que estão sendo avaliados aspectos mais estáveis da personalidade. Em relação às formas paralelas, a dificuldade estaria ligada à criação de formas equivalentes, pois os estímulos nestas duas formas deveriam avaliar as mesmas características. No caso da divisão em metades a dificuldade estaria centrada na divisão de um teste projetivo em duas metades equivalentes (Alves, 2006). Depreende-se, portanto, que avaliar a precisão de uma técnica projetiva pelos métodos mais convencionais pode se tornar uma tarefa difícil e até mesmo inócua, afinal toda avaliação, que em seu processo envolva aspectos da subjetividade do indivíduo que a realiza, está mais propensa a erros e, consequentemente, pode ser considerada mais 56

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vulnerável e imprecisa. Desse modo, torna-se necessária a busca de um método mais adequado às características peculiares destes instrumentos (Sardinha, 2000). Este método estaria baseado na concordância entre as avaliações efetuadas por dois ou mais juízes independentes (Alves, 2006). Comumente denominada de precisão ou fidedignidade do avaliador (juízes independentes), este método prevê que uma amostra dos protocolos do teste seja pontuada independentemente, de acordo com critérios previamente definidos, por dois ou mais examinadores. Os escores atribuídos por cada avaliador a cada examinando devem ser correlacionados, sendo os coeficientes resultantes, medidas da fidedignidade do avaliador (Anastasi & Urbina, 2000; Dias, 2005). No Brasil, alguns estudos foram desenvolvidos para aferir a precisão do WZT fazendo uso deste método, entre os quais se destacam os trabalhos de Silva (2004) e Ramon (2006). Silva (2004) realizou dois estudos de concordância entre avaliadores. O primeiro envolveu a avaliação de 93 protocolos quanto às variáveis “Atmosfera e Envolvimento”, por dois profissionais treinados. A variável “Atmosfera” foi avaliada no campo “2” do WZT, seguindo os critérios propostos por Kinget (1952), e classificada em três níveis previamente definidos: atmosfera negativa, neutra ou positiva. Para a variável “Envolvimento” foram considerados os desenhos executados nos oito campos, no que se refere à atenção na produção demonstrada por meio da realização cuidadosa e presença de detalhes adicionais e enriquecedores. Esta variável foi classificada em três níveis alto, médio e baixo. No segundo estudo foi solicitado a dois psicólogos clínicos com experiência no WZT que avaliassem as seguintes características complexas da personalidade: recursos intelectuais; habilidades sociais, flexibilidade, organização, nível de aspiração, nível de energia, controle emocional, segurança e assertividade de 30 protocolos. Para cada característica os profissionais seguiram critérios previamente definidos e as classificavam nos níveis 1 (baixo), 2 (médio) e 3 (alto). Quanto aos resultados, no primeiro estudo Silva (2004) observou que as avaliações relativas à variável “atmosfera” apresentaram correlação de 0,91 e de 0,89, para a variável “envolvimento”. No segundo estudo, a análise de características complexas da personalidade atingiu correlação média de 0,88, sendo que as correlações máximas (1,00) foram para as características “energia” e “assertividade” e a correlação mais baixa (0,81) para a característica “controle emocional”. Com base nestes dados, a autora concluiu que profissionais treinados atingem altos níveis de concordância na avaliação do WZT, tanto na avaliação de características de execução quanto de características de personalidade mais complexas. Ramon (2006) efetuou um estudo, relativo à precisão do WZT, dividido em duas etapas. A primeira voltada a verificar a precisão da classificação de 27 variáveis e a segunda direcionada para a precisão da interpretação de três características: relacionamento interpessoal, afetividade e controle emocional e ambição. Participaram do estudo 18 psicólogos com experiência entre três e 30 anos na avaliação do WZT, que analisaram cinco protocolos. Na primeira etapa deste estudo (precisão da classificação), os resultados mostraram que das 27 variáveis classificadas, sete apresentaram correlações altas (acima de 0,70), Aletheia 31, jan./abr. 2010

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quatro obtiveram correlações satisfatórias (acima de 0,60), cinco correlações medianas (entre 0,50 e 0,60) e 11 variáveis correlações abaixo de 0,50. Em relação à segunda etapa (precisão das interpretações), o autor obteve precisão satisfatória para as três características consideradas, entretanto, este resultado foi obtido com 10 dos 18 juízes. Em suas conclusões, Ramon observou que foi possível estabelecer a precisão no sistema de classificação do WZT para algumas variáveis, sendo necessário o desenvolvimento de novos estudos, principalmente em relação à precisão das interpretações, para permitir que avaliadores diferentes façam interpretações semelhantes de um mesmo protocolo. Como é possível observar, os resultados encontrados nos estudos de Silva (2004) e Ramon (2006) são animadores e indicam que, em relação à precisão do WZT, seria primordial o domínio ou conhecimento que o profissional possua dos critérios utilizados, principalmente no que se refere à classificação e interpretação dos dados. Na verdade, a questão da experiência é uma preocupação antiga dos profissionais da Psicologia. Van Kolck (1984) e Alves (2006) apontam que para uma avaliação são necessários profissionais com bastante experiência na área, que possam traduzir melhor os dados fornecidos por um teste. Concorda-se que a experiência seja um fator importante em um processo avaliativo, mas não pode ser o único (Sardinha, 2000). Esta experiência encobre uma falta de parâmetros claros de avaliação dos testes, pois “muitas técnicas pecam por não apresentar um sistema de análise e interpretação que seja suficientemente preciso de modo a permitir alto grau de concordância quando avaliados por profissionais diferentes” (VillemorAmaral, 2006, p. 168-169). Villemor-Amaral (2006) acrescenta ainda, que, para ampliar a gama de indicadores de validade das técnicas projetivas, é preciso criar sistemas de análise que garantam a precisão entre avaliadores. Assim, os psicólogos devem se esforçar para criar critérios objetivos e que possam ser utilizados de maneira mais uniforme e ampla por toda a categoria profissional. Foi neste sentido que Berlinck (2000) realizou um estudo sobre o WZT. Seu trabalho teve como meta estabelecer critérios objetivos para a aplicação, avaliação e interpretação do teste, a partir de uma ampla revisão da literatura sobre o mesmo. Em termos da classificação dos aspectos formais do WZT, propõe que sejam avaliadas cinco categorias e suas respectivas derivações, a saber: a) traçado ou linha, em que se avaliam a pressão (forte, média, fraca e mista), o tipo de linha (reta, curva e reta/curva), a continuidade do traçado (contínuo ou descontínuo) e a qualidade da linha (reforço, retoque e tremor); b) o tamanho do desenho (grande, médio, pequeno e constrição); c) sombreado (presença ou ausência); d) composição do desenho em que são avaliados a organização (bidimensional e tridimensional), a repetição, duplicação e a recorrência, o movimento, a orientação, a clareza, a originalidade e a popularidade e; e) outros em que se enquadram a transparência, o desenho sobre moldura, a visão de pássaro e a mudança de posição. Entretanto, apesar de valioso, este sistema de classificação ainda não foi submetido a um estudo que verifique a sua clareza e objetividade. Entende-se que estudos desta natureza trariam uma maior confiabilidade ao sistema proposto. Foi a partir desta constatação que o presente trabalho se originou. Seu objetivo consistiu em verificar em que medida alguns critérios de classificação dos aspectos formais do WZT, delineados por Berlinck (2000), estão adequadamente definidos. Em outros 58

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termos, se são claros e objetivos o suficiente para serem compreendidos e utilizados pelos profissionais que irão realizar uma avaliação (Primi, Miguel, Couto & Muniz, 2007). Método Participantes Participaram do presente estudo 191 sujeitos, dos quais 100 eram do sexo feminino, com as idades variando entre 18 e 54 anos (média de 28,6 anos, DP de 8,71), e 91 do sexo masculino com idades entre 18 e 50 anos (média de 28,0, DP de 9,36). Em termos de escolaridade 2,1% (n=4) do total não a informaram, 11,5% (n=22) indicaram possuir o ensino básico completo, 12,6% (n=24) o ensino médio incompleto e, 73,8% (n=141) o ensino médio completo. Participaram também, dois juízes treinados no método de pontuação desenvolvido por Berlinck (2000) para a avaliação dos aspectos formais do WZT. Estes juízes eram profissionais devidamente inscritos no CRP 06 – São Paulo. Material Foram utilizadas as folhas de aplicação padronizadas do Teste de Completamento de Desenhos de Wartegg publicadas pela editora (CETEPP), lápis preto No 2 e borracha para cada examinando. A folha de aplicação é constituída de oito quadrados ou campos, havendo em cada quadrado um sinal ou estímulo gráfico, para ser completado pelo examinando da forma e sequência que desejar. Procedimento A coleta de dados foi realizada em um único dia e de forma coletiva, sem limite de tempo. Os sujeitos eram parte de um grupo de 700 candidatos a um concurso público para o cargo de Agente Comunitário em uma cidade da Grande São Paulo no ano de 2003, realizado antes da publicação da lista definitiva de testes pelo CFP. Estes foram subdividos em grupos de aproximadamente 20 indivíduos por sala e todos assinaram o termo de consentimento livre-esclarecido. As instruções de aplicação do WZT utilizadas foram as padronizadas por Wartegg (1987). Para o estudo de precisão, inicialmente os dois juízes se submeteram a um treinamento na codificação dos aspectos formais delineados por Berlinck (2000), selecionados para esta pesquisa. Para tanto, 10 protocolos do WZT (metade de cada sexo), que não fizeram parte de amostra, foram utilizados. Cada juiz indicou a presença ou ausência de cada um dos aspectos formais avaliados para cada um dos oito campos dos protocolos considerados, com base nas definições de Berlinck. Em seguida, os juízes discutiram as concordâncias e discordâncias das classificações de modo a dirimir as dúvidas. Os 191 protocolos do WZT foram entregues aos dois juízes obedecendo a seguinte distribuição: juiz 1 recebeu os 100 protocolos de sujeitos do sexo feminino para a avaliação e o juiz 2 recebeu os 91 protocolos dos sujeitos masculinos. Posteriormente, os juízes trocaram os protocolos do WZT, para avaliar os restantes. Os juízes indicaram a presença ou ausência de cada uma das variáveis para cada campo em todos os protocolos. Aletheia 31, jan./abr. 2010

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Os juízes consideraram os seguintes aspectos formais e respectivas definições: 1. Pressão do lápis: a) forte: “caracterizada por marcas profundas, escuras e visíveis principalmente nas costas do papel” (Berlinck, 2000, p. 94); b) média: linhas intermediárias, não há traços fortes, nem leves; c) fraca: realizada com linhas extremamente delicadas e leves e; d) mista: presença de traços fortes, médios e fracos em diversas combinações em um mesmo desenho; 2. Tipo de linha: a) reta: aparenta ter sido traçada com o auxílio de uma régua; b) curva: traçado com características de flexibilidade em sua construção, bem como graciosidade e fluência; c) mista: quando os dois tipos de linhas estão presentes num mesmo desenho; 3. Continuidade da linha: a) contínua: traçado constituído por uma linha sem interrupções, feito de tal forma que dá a ideia de que o lápis não foi levantado do papel; b) descontínua: realizada com interrupções, paradas ou quebras nos traçados, subdividindose em: b1) traçado interrompido: com uma ou mais interrupções ao longo das linhas; b2) tracejado: linha substituída por pequenos traços que mostram aparente continuidade; b3) pontilhado: quando a linha contínua é substituída por pontos. Para o presente estudo, estes três tipos foram agrupados em uma única variável, a saber: traçado interrompido. 4. Qualidade da linha: a) reforço ou retoque: caracterizado pela presença de linhas repassadas, dando a impressão de maior largura ou cobrindo linhas leves e finas; b) Linha tremida: avaliada pelas constantes mudanças não intencionais do traçado, ou seja, ondulações características de tremores. 5. Tamanho do desenho: a) grande: quando o desenho ocupa mais do que ¾ do campo (de 13 a 16 células); b) médio: entre ¼ a ¾ do campo (de 5 a 12 células); c) pequeno: desenho em área menor que ¼ do campo (de 1 a 4 células). Para fazer a distinção entre os três tamanhos foi utilizado o crivo de avaliação, que subdivide a área de um campo do WZT em 16 células de 1cm², proposto por Biedma e D’Alfonso (1973) e adotado por Berlinck (2000). 6. Sombreado nos desenhos: a) presença; b) ausência, considerando-se as superfícies de colorido mais escuro, contrastando com zonas de luz. 7. Movimento nos desenhos: a) presença; b) ausência. O desenho transmite uma sensação de que as figuras estão em movimento. 8. Transparência nos desenhos: a) presença; b) ausência. Constitui a inclusão de partes no desenho, que não seriam visíveis na realidade. Resultados e discussão A análise estatística foi feita como auxílio do SPSS versão 17 para Windows. Foram calculados os coeficientes Kappa entre os dois juízes de cada variável por campo do WZT e depois as médias desses coeficientes para cada variável. O coeficiente Kappa de Cohen (1960) é uma medida estatística de concordância entre juízes para escalas nominais (qualitativas, isto é, em que existe a avaliação em categorias). Ele é considerado uma maneira mais adequada de avaliação do que o simples cálculo de porcentagens de acordo, porque leva em conta a possibilidade de concordância por acaso (Cohen 1960; Wikipedia, 2009). A interpretação do coeficiente Kappa pode ser classificada como 60

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concordância quase perfeita, quando os valores estão entre 0,81 e 1,00; concordância substancial, quando estão entre 0,61 e 0,80; concordância moderada entre 0,41 e 0,60; concordância fraca ou pequena entre 0,21 e 0,40; concordância leve entre 0,0 e 0,20 e, nenhuma correlação quando forem menores do que zero (0), indicando ausência de acordo (Landis & Koch, 1977). Além deste sistema de classificação, adotou-se como critério mínimo para indicar clareza e objetividade das definições dos aspectos formais avaliados a correlação de 0,60, ou seja, moderada (Conselho Federal de Psicologia – CFP, 2003; Dancey & Reidy, 2006). Desse modo, as correlações inferiores a 0,60 indicariam falta de clareza e objetividade e, consequentemente, a necessidade de redefinição dos critérios de avaliação. Salienta-se que este valor de correlação é o mínimo aceito para coeficientes de precisão pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), de acordo com a Resolução 02/2003. Nas Tabelas de 1 e 2 são apresentados os coeficientes de concordância Kappa entre os juízes e as médias para os aspectos formais avaliados. Tabela 1 – Coeficientes Kappa para cada campo da pressão do traçado, tipo, continuidade, descontinuidade e qualidade da linha Campos Aspectos formais

1

2

3

4

5

6

7

8

M

Pressão

0,84

0,80

0,85

0,83

0,86

0,79

0,86

0,88

0,84

Tipo de linha

0,93

0,85

0,82

0,87

0,91

0,93

0,91

0,94

0,89

Linha contínua

0,90

0,84

0,90

0,86

0,84

0,83

0,97

0,88

0,88

Linha descontínua

0,90

0,83

0,88

0,88

0,84

0,95

0,93

0,99

0,90

Qualidade da linha

0,92

0,89

0,84

0,86

0,91

0,91

0,90

0,85

0,88

Na Tabela 1 verifica-se que todos os coeficientes foram positivos e variaram de 0,79 a 0,99, sendo todas acima do critério mínimo adotado pela Resolução 02/2003 do CFP para a precisão. Os maiores coeficientes encontrados foram para linha descontínua, no campo 8 com kappa = 0,99, linha contínua, no campo 7 com kappa = 0,97 e o menor foi kappa = 0,79 no campo 6 (pressão do lápis). No caso do maior coeficiente observa-se a presença da concordância positiva quase perfeita (0,99), relativa a linha descontínua no campo 8 do WZT. Em relação ao menor coeficiente (kappa = 0,79, no campo 6 da pressão do lápis, ocorreu a maior discrepância entre os avaliadores, embora possa ser classificado como uma concordância significativa. Foram calculadas as médias dos coeficientes dos oitos campos para cada um dos aspectos formais. Estas variaram entre 0,84 (pressão do lápis) e 0,90 (linha descontínua). Estes coeficientes podem ser considerados pelo critério adotado como concordâncias quase perfeitas. Só é possível fazer comparações em relação à literatura com o estudo de Ramon (2006), no qual a precisão foi obtida por meio das correlações de Pearson entre quatro Aletheia 31, jan./abr. 2010

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pares de juízes, que para a pressão variaram de 0,13 a 0,62, sendo três delas superiores a 0,56. Contudo em seu trabalho o autor não especificou como foi avaliada a pressão, nem ao que as correlações se referem, isto é, se para cada campo e para cada intensidade de pressão, o que torna difícil uma comparação dos resultados. Ramon (2006) também investigou a continuidade da linha, tendo encontrado correlações muito baixas (entre 0,14 e 0,31), todas não significantes. Deve-se lembrar que o autor estudou as variáveis linhas contínuas e descontínuas, mas não ofereceu uma definição, nem ilustrações das mesmas para os juízes, o que fez com que cada juiz utilizasse seu próprio parâmetro, o que pode ter levado à ausência de correlações significantes. Para a linha reforçada ou trêmula Ramon (2006) obteve correlações entre 0,21 e 0,60, que foram muito inferiores às da presente pesquisa. Tabela 2 – Coeficientes kappa para cada campo do tamanho, sombreado, movimento e transparência nos desenhos Campos Aspectos formais

1

2

3

4

5

6

7

8

M

Tamanho

0,90

0,88

0,86

0,78

0,83

0,90

0,91

0,90

0,87

Sombreado

0,87

0,85

0,77

0,81

0,85

0,75

0,92

0,87

0,84

Movimento

0,96

0,89

0,85

0,82

0,95

0,91

1,00

0,93

0,92

Transparência

1,00

0,93

0,74

0,88

0,85

0,86

0,70

0,66

0,83

Na Tabela 2 todos os coeficientes Kappa foram positivos, sendo que os maiores foram para movimento (Kappa = 1,00) no campo 7 e transparência no campo 1 (Kappa = 1,00) e, os menores, foram para transparência (Kappa = 0,66) no campo 8 e no campo 7 (Kappa = 0,70). Estes dados são importantes, pois se pode considerar no geral que, na avaliação de um determinado aspecto formal dos desenhos do WZT, os dois juízes usaram o mesmo critério, o que leva a uma consistência nas conclusões que podem ser tiradas a partir dos mesmos. Os coeficientes podem ser considerados como indicando concordância substancial ou quase perfeita, uma vez que variaram entre 0,66 e 1,00, com médias que variaram entre 0,83 para o sombreado até 0,92 para o movimento. Em seu estudo, Ramon (2006) obteve para o tamanho dos desenhos correlações entre 0,67 e 0,80, indicando que essa é uma das variáveis mais precisas nas duas pesquisas, mesmo que o autor não tenha estabelecido parâmetros para ela. As variáveis movimento e sombreado também foram investigadas por Ramon (2006), que estabeleceu como movimento os vários tipos propostos por Kinget (1952), também considerados na presente pesquisa, incluindo movimento humano, animal, inanimado, cósmico e mecânico. As correlações obtidas variaram de 0,62 a 0,84, um pouco menores do que as desta pesquisa. Quanto ao sombreado ele estabeleceu as classificações leve, moderado e escuro, tendo encontrado correlações entre 0,37 e 0,73, também mais baixas do que as desta pesquisa. 62

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O outro estudo brasileiro sobre a fidedignidade de avaliadores do WZT foi realizado por Silva (2004), que investigou variáveis diferentes das abordadas na presente pesquisa, o que torna impossível a comparação com seu estudo. A única conclusão que pode ser considerada em comum com essa autora é a da importância do domínio ou experiência do profissional sobre os critérios utilizados. Conclusão Este trabalho é parte de um projeto mais amplo que pretende verificar a adequação de todos dos critérios propostos por Berlinck (2000) para a avaliação do WZT em relação à precisão entre avaliadores. O objetivo deste trabalho consistiu em verificar em que medida os critérios delineados por Berlinck para alguns aspectos formais do Teste de Completamento de Desenhos de Wartegg (WZT) estão definidos adequadamente, isto é, se eles são claros e objetivos o suficiente para serem compreendidos e utilizados pelos profissionais que irão realizar a avaliação do teste. Os resultados foram promissores, pois os coeficientes obtidos foram classificados entre concordância substancial ou quase perfeita, de acordo com o critério de Landis e Koch (1977), bem como ficaram acima do critério mínimo adotado (0,60) pela Resolução 02/2003 do CFP para os estudos de precisão. Tais dados permitem afirmar que os critérios propostos por Berlinck (2000) para os aspectos formais do WZT podem ser utilizados com considerável precisão, mesmo os que apresentaram as correlações mais baixas. Também é importante lembrar que os resultados mais altos obtidos nesta pesquisa em realção aos relatados por Ramon (2006) devem-se principalmente a dois aspectos. Nesta pesquisa as variáveis e suas classificações foram claramente definidas fazendo com que os juízes tivessem parâmetros para fazer suas avaliações. O segundo aspecto, que muito contribuiu para os resultados obtidos, foi a realização de um treinamento e da discussão dos critérios entre os juízes para que os dois estabelecessem parâmetros comuns para as variáveis. Assim, pode-se concluir que para se tirar conclusões confiáveis do WZT é necessário que os avaliadores conheçam bem as definições das variáveis, bem como sejam submetidos a uma treinamento na avaliação para evitar classificações altamente subjetivas que somente poderão prejudicar as interpretações de qualquer técnica projetiva. Referências Alves, I. C. B. (2004). Técnicas projetivas: questões atuais na Psicologia. Em: C. E. Vaz & R. L. Graeff (Orgs.), Técnicas projetivas: produtividade em pesquisa (pp. 361366). Porto Alegre: SBRo. Alves, I. C. B. (2006). Considerações sobre a validade e precisão nas técnicas projetivas. Em: A. P. P. Noronha, A. A. A. Santos & F. F. Sisto (Orgs.), Facetas do fazer em avaliação psicológica (pp.173-190). São Paulo: Vetor. Alves, I. C. B. (2008). Pesquisas com o teste de Wartegg no Brasil. Em: A. E. VillemorAmaral & B. S. G. Werlang (Orgs.), Atualizações em métodos projetivos para avaliação psicológica (pp. 345-363). São Paulo: Casa do Psicólogo.

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Ramon, R. R. (2006). Wartegg: Precisão entre avaliadores e evidência de validade com o Método de Rorschach. Dissertação de Mestrado. Universidade São Francisco, Itatiba. Salazar, A., Tróccoli, B. T., & Vasconcelos, T. (2001). Investigação das correlações entre medidas de personalidade projetiva e objetiva. [Resumo]. Em: Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXXI Reunião Anual de Psicologia (p.244). Rio de Janeiro: SBP. Sardinha, L. S. (2000). Estudo sobre aspectos de personalidade de usuários e não usuários de drogas através do Rorschach. Em: Sociedade Brasileira de Rorschach (Org.), Livro dos Anais do II Congresso Nacional da Sociedade Brasileira de Rorschach e outros métodos projetivos (p.119-123). Porto Alegre/RS: AGE Editora Sardinha, L. S. (2008). As emoções de dependentes de drogas: estudo através do Rorschach. Em: Sociedade Brasileira de Rorschach (Org.), Livro de Programas e Resumos do V Encontro da Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos (p.549-558). Ribeirão Preto: ABR. Silva, M. C. V. M. (2004). Estudos de validação e precisão do WZT de Wartegg. (manuscrito não publicado). Vane, J. B., & Guarnaccia, V. J. (1989). Personality theory and personality assessment measures: How helpful to the clinician? Journal of Clinical Psychology, 45(1), 5-19. Van Kolck, O. L. (1984). Testes projetivos gráficos no diagnóstico psicológico. São Paulo: EPU. Villemor-Amaral, A. E. (2006). Desafios para a cientificidade das técnicas projetivas. Em: A. P. P. Noronha, A. A. A. Santos & F. F. Sisto (Orgs.), Facetas do fazer em avaliação psicológica (pp.163-171). São Paulo: Vetor. Wartegg, E. (1987). Teste de Wartegg – WZT – Diagnóstico de camadas. Livros I e II. São Paulo: Casa do Psicólogo. Weiner, I. B. (2000). Princípios da interpretação do Rorschach. São Paulo: Casa do Psicólogo. Wikipedia – The Free Encyclopedia (2009). Cohen’s Kappa. Disponível: Acesso: 25.09.2009. _____________________________ Recebido em maio de 2009

Aceito em setembro de 2009

Irai Cristina Boccato Alves: Psicóloga; Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Universidade de São Paulo/ USP). Professora do curso de Psicologia (Universidade de São Paulo/ USP). Augusto Rodrigues Dias: Psicólogo; Mestre em Psicologia (Universidade São Francisco – USF). Especialista em Educação a Distância (Faculdades SENAC/SC). Professor dos cursos de Psicologia e Gestão de Recursos Humanos (Centro Universitário Paulistano – UniPaulistana) e do curso de Psicologia da Universidade do Grande ABC – UniABC/SP). Luís Sérgio Sardinha: Psicólogo; Mestre em Educação Arte e História da Cultura (Universidade Mackenzie). Doutorando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Universidade de São Paulo/ USP). Fábio Donini Conti: Psicólogo; Mestrando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Universidade de São Paulo/ USP). Professor do curso de Psicologia (Universidade Guarulhos/UnG). Endereço eletrônico para correspondência: [email protected]

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Aletheia 31, p.66-81, jan./abr. 2010

Conjugalidade em contexto de depressão da esposa no final do primeiro ano de vida do bebê Giana Bitencourt Frizzo Ivani Brys Rita de Cássia Sobreira Lopes Cesar Augusto Piccinini Resumo: O presente estudo investigou o relacionamento conjugal no contexto da depressão materna, no final do primeiro ano de vida do bebê. Participaram do estudo 22 casais, divididos em dois grupos, um em que a esposa apresentava indicadores de depressão (10), e outro em que não os apresentava (12), segundo o Inventário Beck de Depressão. Os bebês tinham em torno de 12 meses de idade, sendo 8 meninas e 14 meninos. O teste Mann-Whitney indicou diferença significativa entre os dois grupos quanto à depressão, mas não em relação às diversas variáveis sociodemográficas investigadas. Análise de conteúdo qualitativa das entrevistas indicou que, comparado ao grupo sem depressão, as esposas com indicadores de depressão relataram mais dificuldades com relação ao companheirismo e o tempo para o casal, à comunicação e resolução de conflitos e à avaliação global da qualidade do relacionamento conjugal e sexual. Esses resultados corroboram outros estudos que têm destacado que a presença de indicadores de depressão na esposa pode trazer dificuldades para a conjugalidade. Palavras-chave: relacionamento conjugal; conjugalidade; depressão materna; parentalidade.

Conjugality in context of wife’s depression by the end of the infant’s first year of life Abstract: The present study investigated marital relationship in the context of maternal depression, at the end of the baby’s first year of life. Twenty-two couples, divided into two groups, took part in the study. In one of them the wife presented depression indicators (10), and in the other there were no depression indicators (12), according to Beck’s Depression Inventory. The babies were around 12 months, 8 girls and 14 boys. Mann-Whitney test indicated significant differences between the two groups as far as depression is concerned, but not regarding the several investigated socio-demographic variables. Qualitative content analysis of the interviews indicated that, compared to the group without depression, the wives with depression indicators reported more difficulties regarding partnership and time for the couple, to the communication and resolution of conflicts and to the global evaluation of the quality of the marital and sexual relationship. Those results corroborate other studies which have highlighted that the presence of depression indicators in the wife can bring difficulties for marital relationship. Keywords: marital relationship; conjugality; maternal depression; parenthood.

Introdução Devido a algumas condições específicas ao encontro mãe-bebê e pai-bebê, é possível que a mãe sinta dificuldades em lidar com as mudanças que sucedem após o nascimento de um filho. Com frequência, durante a transição para a parentalidade, algumas pessoas

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não conseguem preservar seus interesses pessoais e, principalmente, suas relações de casal (Cramer & Palácio-Espasa, 1993). Waldemar (1998) afirma que não é incomum que, em famílias com filhos pequenos, os casais acabem dedicando muito tempo aos cuidados com os filhos, relegando a conjugalidade para um segundo plano. Algumas vezes, esse pouco investimento na conjugalidade é sentido como um sentimento de insuficiência, de fracasso e de esgotamento (Cramer & Palácio-Espasa, 1993). A qualidade do relacionamento conjugal estabelecido ainda antes do nascimento do primeiro filho pode ser um importante fator de ajustamento nesse período, podendo inclusive predizer alguns desfechos possíveis. Menezes e Lopes (2007) sugerem que a estrutura da relação conjugal possui forte influência no desenrolar da transição para a parentalidade, já que esse momento pode potencializar um distanciamento já existente no casal. Nesse contexto, a depressão pode ser um fator que traz complicações para o ajustamento do casal às novas demandas. Uma das formas que a depressão pode afetar a família é através de um possível aumento de problemas no relacionamento conjugal (Cummings, Keller & Davies, 2005). Ainda sobre a associação entre depressão materna e qualidade do relacionamento conjugal, Mayor (2004), em um estudo longitudinal realizado com participantes de Porto Alegre, sugere que parecem existir diferenças nas famílias com e sem depressão materna. Nas primeiras, houve maior relato de existência de conflitos, menor apoio do marido e maior insatisfação conjugal. Interessante notar que, durante a gestação, as famílias não apresentavam maiores diferenças entre si nesses aspectos. Foi após o nascimento do bebê que as diferenças entre essas famílias apareceram, sendo que as famílias com mães deprimidas apresentaram maiores dificuldades durante essa transição para a parentalidade, especialmente quanto à satisfação conjugal. A satisfação conjugal aumenta quando há proximidade, estratégias adequadas de resolução de problemas, coesão, boa habilidade de comunicação, se os cônjuges estiverem satisfeitos com seu status econômico e forem praticantes de sua crença religiosa (Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt, & Shlomo, 2004). Mas é possível que esses sejam alguns fatores também afetados pela presença de depressão e que poderiam, então, levar a uma maior insatisfação conjugal. A depressão pode, inclusive, afetar a percepção da mãe quanto ao apoio recebido. No estudo de Schwengber e Piccinini (2005), as mães deprimidas de Porto Alegre referiram sentimentos ambivalentes em relação ao apoio social recebido por parte dos familiares e amigos, além de sentimentos muito ambivalentes em relação ao apoio recebido do companheiro e a seu papel como pai. Já o estudo de Fritsch e cols. (2005) mostrou que as mulheres deprimidas tiveram uma avaliação mais negativa da qualidade de vida familiar e da relação conjugal, posição corroborada por seus parceiros. Beach e O´Leary (1993) também encontraram que pessoas deprimidas podem avaliar de modo mais negativo a qualidade do relacionamento conjugal, como uma consequência de seus sintomas depressivos. Além disso, conviver com uma pessoa deprimida pode ser sentido como fonte importante de tensão e angústia emocional para os cônjuges. Benazon e Coyne (2000) sugerem que o impacto da depressão não se restringe ao indivíduo, pois os cônjuges de pacientes deprimidos relataram diminuição em suas atividades sociais e Aletheia 31, jan./abr. 2010

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de lazer, queda na renda familiar e aumento de tensão na relação conjugal. Segundo Papp (2000), essa sobrecarga sobre o cônjuge sem depressão pode ser ainda maior, pois se sentir emocionalmente vinculado a uma pessoa, como o cônjuge, pode ser essencial no alívio da depressão. Para essa autora, o relacionamento conjugal é muito importante para a mulher após o nascimento do bebê, posição também corroborada por Trad (1997). Segundo esse ponto de vista, a insatisfação conjugal pode até mesmo ser um fator de risco para o desenvolvimento de depressão nesse momento (Alvarado e cols., 2000). A literatura revisada acima aponta que, quando um membro do casal tem depressão, pode haver interferências na qualidade das relações familiares, tanto diretamente, através das interações com a criança, como indiretamente, influenciando as condições do relacionamento conjugal (Braz, Dessen & Silva, 2005). Além disso, a depressão parental pode alterar o desenvolvimento da criança, ao modificar o comportamento dos genitores, o que pode acarretar risco, predispondo-a a problemas emocionais e de comportamento (Jacob & Johnson, 1997). O exercício da parentalidade requer uma reorganização familiar, em que o bebê é incluído e o casal precisa de uma nova acomodação para desempenhar as tarefas de cuidado e educação dos filhos, sem esvaziar sua conjugalidade (Minuchin, 1982). Dessa forma, é importante investigar a qualidade das relações conjugais e seu impacto no desenvolvimento da criança, no seu ajustamento social (Dessen & Braz, 2000) e na família. Vários estudos têm investigado particularmente a depressão pós-parto (Field, 1995; Frizzo, 2008) e outros, a depressão e a maternidade no primeiro ano de vida do bebê (Schwengber, 2007; Schwengber & Piccinini, 2005), mas poucos têm examinado a conjugalidade neste contexto. De forma geral, os estudos que investigaram a conjugalidade e a depressão indicaram uma associação entre estes dois fatores com o surgimento de problemas conjugais (Cramer & Palácio-Espasa, 1993; Cummings, Keller & Davies, 2005; Frizzo, 2008; Linares & Campo, 2000; Mayor, 2004; Prado, 1996; Trad, 1997). Nesse sentido, o objetivo desse estudo foi investigar o impacto da depressão da esposa na conjugalidade em casais com bebês no final do seu primeiro ano de vida. Método Participaram do estudo 22 casais, divididos em dois grupos, um em que a esposa apresentava indicadores de depressão (10 participantes), e outro em que a esposa não os apresentava (12), conforme o resultado do Inventário Beck de Depressão (Beck & Steer, 1993; Cunha, 2001). No grupo de esposas com indicadores de depressão, sete apresentavam indicadores de intensidade leve e três de intensidade moderada. Os bebês tinham em torno de 12 meses de idade, sendo 8 meninas e 14 meninos. Todas as esposas

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de ambos os grupos moravam com o marido1, que era o pai do bebê. As Tabelas 1 e 2 apresentam as características sociodemográficas dos casais. O teste Mann-Whitney não indicou diferenças sociodemográficas entre os dois grupos quanto à idade, escolaridade, nível socioeconômico do casal e sexo do bebê. O nível socioeconômico dos casais foi avaliado de acordo com critérios baseados em Hollingshead (1975), adaptados para o presente estudo por Tudge e Frizzo (2002). Tabela 1 – Dados sociodemográficos dos casais com esposa deprimida Família

Depressão Materna

BDI mãe

Idade

Escolaridade

Ocupação

Sexo bebê

Idade Bebê

NSE Fam

1

Leve

15

E=23 M=29

E=1° G inc. M=1° G

E=dona de casa/doceira M=auxiliar de matizador

M

12m

1

2

Leve

15

E=19 M=27

E=2º G M=2º G

E=dona de casa M=comerciante

M

12m

2

3

Leve

15

E=19 M=22

E=2º G M=2º G

E=dona de casa M=segurança

M

12m

2

4

Moderado

31

E=18 M=19

E=2º G M=1º G inc

E=dona de casa M=marcenaria

M

12m

1

5

Leve

12

E=33 M=29

E=3º G M=3º G

E=psicóloga M=advogado

M

12m

5

6

Leve

16

E=26 M=40

E=3ºG inc M=3º G

E=estudante M=escrivão judicial

F

12m

5

7

Leve

16

E=17 M=17

E=2ºG inc M=2º G inc

E=estudante M=desempregado

F

12m

1

8

Leve

12

E=24 M=25

E=2ºG inc M=2ºG

E=garçonete M=pintor

F

12m

3

9

Moderado

20

E=23 M=38

E=1ºG inc M=1ºG inc

E=dona de casa M=caseiro

F

12m

1

10

Moderado

25

E=20 M=20

E=2ºG M=2ºG

E=auxiliar administrativo M=bancário

M

12m

3

1 Embora alguns casais coabitassem e outros fossem casados legalmente, no presente estudo optou-se por falar em maridos e esposas para simplificar o texto, por considerar essa distinção não importante para os fins dessa investigação.

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Tabela 2 – Dados sociodemográficos dos casais com esposa sem depressão Família

Depressão Materna

BDI mãe

Idade

Escolaridade

Ocupação

Sexo bebê

Idade bebê

NSE Fam

11

Ausente

6

E=26 M=30

E= 1ºG inc M= 1ºG inc

E= dona de casa M= zelador de igreja

M

12m

1

12

Ausente

9

E=27 M=21

E= 2ºG M= 1ºG

E= serviços gerais M= auxiliar de padaria

M

12m

1

13

Ausente

4

E=23 M=24

E= 2º G M= 2º G

E= recepcionista M=auxiliar de serigrafia

M

12m

2

14

Ausente

6

E=33 M=33

E= 3ºG M= 3ºG

E= fonoaudióloga M= designer gráfico

F

12m

5

15

Ausente

8

E=18 M=18

E= 1ºG inc M= 1ºG inc

E= dona de casa M= pedreiro

M

12m

1

16

Ausente

6

E=30 M=35

E= 3ºG M= pós grad.

E= programadora M= administrador

F

12m

5

17

Ausente

6

E=25 M=32

E= 3ºG inc M= 3ºG inc

E= dona de casa M= servidor público

M

12m

2

18

Ausente

11

E=14 M=16

E= 1º G M= 1ºG inc

E= dona de casa M= jardineiro

M

12m

1

19

Ausente

11

E=27 M=26

E= 3ºG inc M= 3ºG inc

E= vendedora de carros M= corretor de seguros

M

12m

4

20

Ausente

6

E=31 M=30

E= 3ºG M= 3ºG inc

E= empresária M= Empresário

M

12m

5

21

Ausente

5

E=28 M=41

E= 2ºG M= 1ºG inc

E= chefe de setor M= modelista

F

12m

3

22

Ausente

10

E=35 M=41

E= 3ºG M= 3ºG

E= dona de casa M= empresário

F

12m

5

Delineamento, procedimentos e instrumentos Foi utilizado um delineamento de grupos contrastantes (Nachmias & Nachmias, 1996), a fim de comparar eventuais diferenças entre os casais cujas esposas apresentavam ou não indicadores de depressão. A amostra foi selecionada dentre os participantes do “Estudo Longitudinal de Porto Alegre: Da Gestação à Escola- ELPA” (Piccinini, Lopes, Sperb & Tudge, 1998), que teve por objetivo investigar tanto os aspectos subjetivos e comportamentais das interações iniciais pai-mãe-bebê, como o impacto de fatores iniciais do desenvolvimento nas interações familiares, no comportamento social de crianças pré-escolares e na transição para a escola de ensino fundamental. Esse estudo iniciou acompanhando 81 gestantes, que não apresentavam intercorrências clínicas, seja com elas mesmas ou com o bebê, que era seu primeiro filho. Os maridos também foram convidados a participar do estudo, caso residissem juntos em situação matrimonial. Os participantes representavam várias configurações familiares (nucleares, monoparentais ou re-casados), de diferentes idades (adultos e adolescentes) e com escolaridade e níveis socioeconômicos 70

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variados. Foram realizadas várias coletas de dados desde a gestação até os oito anos das crianças (gestação, 3º, 8º, 12º, 18º, 24º, 36º meses e 6º,7º e 8º ano de vida da criança). O convite inicial para participar do estudo ocorreu quando a gestante fazia pré-natal em hospitais da rede pública da cidade de Porto Alegre (41%), nas unidades sanitárias de saúde do mesmo município (4%), através de anúncio em veículos de comunicação (14%) e por indicação (41%). Naquela ocasião, foi preenchida a Ficha de contato inicial (GIDEP, 1998), visando obter dados sociodemográficos dos participantes. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFRGS (Resolução n° 2006596). Para fins desse estudo, foram utilizados os dados relativos à coleta de dados realizada aos 12 meses de idade do bebê. Nesse momento, seguindo o plano de coleta de dados do projeto ELPA, o casal foi convidado a comparecer a um novo encontro no Instituto de Psicologia para realizar as entrevistas referentes a essa etapa. A esposa e o marido responderam separadamente à Entrevista sobre o desenvolvimento do bebê e a experiência da maternidade (GIDEP, 1999a) e à Entrevista sobre o desenvolvimento do bebê e a experiência da paternidade (GIDEP, 1999b), respectivamente. Essas entrevistas tinham por objetivo investigar as impressões maternas e paternas a respeito do crescimento, desenvolvimento, habilidades e características emocionais do bebê, os sentimentos sobre ser mãe/pai, as impressões sobre o marido como pai e da esposa como mãe, a rede de apoio em relação aos cuidados com o bebê e a ocorrência de eventos estressantes. Após, o casal respondia conjuntamente à Entrevista com o casal com bebê de doze meses (GIDEP, 2000), cujo objetivo era investigar como estava a vida do casal no momento, sua rotina e o relacionamento conjugal. O Inventário Beck de Depressão (Beck & Steer, 1993; Cunha, 2001) foi preenchido apenas pela esposa. As entrevistas foram conduzidas por outros pesquisadores que não os autores do presente estudo. Dos 47 casos do ELPA2 avaliados pelo BDI aos 12 meses de vida do bebê, 26 esposas (34%) apresentaram indicadores de depressão, sendo que 5 (11%) foram classificadas como apresentando depressão moderada e 11 (23%) depressão leve. 31 esposas (66%) não apresentaram depressão. Para fins do presente estudo, foram inicialmente selecionados todos os casais cuja esposa apresentava indicadores de depressão, morasse com o marido, que era o pai do bebê, e que tinham os dados completos, o que permitiu a inclusão de dez casais. Foram então selecionadas as esposas que não apresentavam indicadores de depressão, que tinham dados completos e que apresentavam características sociodemográficas semelhantes ao grupo com indicadores de depressão, o que permitiu a inclusão de doze casais. Resultados e discussão As entrevistas foram examinadas através de análise de conteúdo qualitativa (Bardin, 1977; Laville & Dionne, 1999), com base em três categorias: companheirismo, atração Um artigo que contemplou parte da mesma amostra, mas apenas com os relatos das mães sobre sua experiência da maternidade, foi publicado por Schwengber, D. D. S., & Piccinini, C. A. (2005). A experiência da maternidade no contexto da depressão materna no final do primeiro ano de vida do bebê. Estudos de Psicologia, 22, 143-46. 2

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física e paixão romântica (Waldemar, 1998) e comunicação, que foi também incluída por ser bastante referida nos estudos sobre conjugalidade (Braz, Dessen & Silva, 2005; Garcia & Tassara, 2003; Norgren & cols., 2004). Para cada uma dessas categorias, foram incluídas subcategorias, que permitiram explicitar detalhes dos resultados, conforme exposto a seguir. Tomando-se por base esta estrutura de categorias, inicialmente foram feitas repetidas leituras de todas as entrevistas das esposas e dos maridos, buscando-se identificar todos os relatos que caracterizassem cada uma das categorias e subcategorias acima. As análises foram realizadas de forma independente por duas das autoras deste artigo, sendo que as eventuais diferenças foram revisadas e discutidas até haver um consenso. Caracteriza-se, a seguir, cada uma das categorias e subcategorias, ilustrandoas com os relatos dos participantes, destacando inicialmente as semelhanças e depois as particularidades nos relatos dos casais nos dois grupos. Companheirismo Essa categoria refere-se à dedicação dos membros do casal no relacionamento conjugal. Para fins de análise, foi subdividida em três subcategorias: tempo para o casal, cuidar um do outro e divergências e conflitos. Uma importante semelhança que ocorreu entre os grupos foram os relatos de que conseguiam organizar o tempo do casal, independente do tempo dedicado ao bebê (cd:E4/ E9/E10/M8/M2/M4/M5; sd:E12/E17/E20/E22/M12/M22) 3,4, como exemplificado na fala a seguir: “A gente procura assim ter um final de semana que a gente sai nós dois, nós deixamos [filho] com a mãe ou a gente liga pra babá, pra ela ficar” (E20/sd). No entanto, algumas diferenças apareceram quando essa questão foi mais bem explorada ao longo da entrevista. No grupo de esposas deprimidas5, os casais pareciam ter maior dificuldade na organização do tempo do casal, quando o bebê não estivesse presente, restando para o casal apenas os momentos em que o bebê estivesse dormindo (cd:E9/M6/M8): “O tempo que a gente tem junto a gente não tá.... não tá junto, a gente tá no ambiente de serviço, então não tá disponível. E depois em casa a gente dá maior atenção para ela, até ela dormir né, depois a gente tem um tempo para ficar só nós dois... (M8/cd)”. Embora isso também tenha sido relatado pelo grupo com esposas deprimidas (sd:E11/E13/E14/E16/E17/E20/ M13/M17/M16), parecia que nesse a divisão do tempo se dava com mais tranquilidade: “As coisas pessoais sempre se revezando até que ela durma, quando ela dorme, a gente pode olhar filme junto... tem mais tempo né” (M16/sd). Alguns casais, em ambos os grupos, relataram que o tempo em que estão juntos, o bebê sempre está presente (cd:E1/E2/E3/ E14/E6/E7/E8/E9/M5/M14/M8; sd:E11/E14/E20/E22/M14/M19/M21). Isso foi relatado como queixa por algumas esposas deprimidas (cd:E1/E2/E9) “Eu tenho que estar junto. Então de noite, o quê que se faz? Que ele possa ir junto. Jantar. Então é o que a gente faz, a gente vai comer pizza...” (E2/cd). Houve também um relato de dificuldade em se separar do bebê: “Eu, aonde eu for, eu gosto de levar ele [bebê] comigo. Eu não gosto de deixar A letra ‘E’ refere-se à esposa, e ‘M’, ao marido; o número indica o participante, conforme a tabela 1 e 2. As letras ‘cd’ referem-se aos casais com esposas com indicadores de depressão, e ‘sd’ aos casais com esposas sem indicadores de depressão. 5 Embora o termo correto seja esposas com indicadores de depressão, para tornar o texto mais claro, optou-se por falar a partir desse momento em esposas deprimidas e esposas sem depressão. 3 4

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ele com ninguém.” (E2/cd). Outra esposa deprimida relatou que passou a incluir o bebê nos passeios do casal para poderem retomar à vida normal: “É que a gente tá percebendo que se a gente incluir a [bebê] no nosso programa, a gente faz coisas normais. A gente vai passear, sempre, e leva ela junto.” (E6/cd). Mas vários casais, em ambos os grupos, relataram que incluíam o bebê para poder aproveitar melhor o tempo em que estavam juntos: “Mas de noite a gente aproveita, de noite a gente janta e a primeira coisa que a gente faz é ir pro quarto, os três, ficar ali junto, ficar olhando TV, mas geralmente a gente procura sempre ir os três juntos, descansar, olhar TV, ficar juntos, pelo menos esse tempo. A gente faz coisas junto, a gente, domingo, a gente não faz muita coisa diferente, mas a gente fica mais tempo junto” (E7/cd). Da mesma forma, isso aconteceu nos casais com esposa sem depressão, que consideravam essa inclusão do bebê como já esperada, como pôde ser visto nesse diálogo do casal: “E: –É que já era tão previsto assim que os nossos planos eram estar com ela, a gente adaptou muita coisa, as saídas... M: – Tudo gira em função dela [bebê]. E: – É. Nossa vida gira muito em função dela, então, ah, a praia ou sair... M: – Quer ir para a praia, ‘Ah, mas e daí?’, tudo em função dela. É, a maior parte é sair assim durante o dia para parque, que ela gosta e é isso” (E14/M14/sd). Finalmente, poucos casais, em ambos os grupos, relataram explicitamente que não tinham mais tempo juntos (cd:E7/M2; sd:E12/M12): “A gente não tem aquele tempo pra nós, né.” (E7/cd)”. Juntos estes relatos mostram que, quando se tem filhos pequenos, pode ficar difícil organizar um tempo somente para o casal, mesmo na ausência de depressão (Cramer & Palácio-Espasa, 1993; Waldemar, 1998). Esse ajustamento entre o subsistema conjugal e parental é uma importante tarefa dessa etapa do ciclo vital (Carter & McGoldrick, 1995), por ser necessário criar um espaço para inclusão do bebê sem perder o apoio e companheirismo no relacionamento do casal. Esse desafio pode ser sentido como algo já esperado, como citado pelos casais sem depressão, ou suscitar sentimentos de insuficiência, de fracasso e de esgotamento (Cramer & Palácio-Espasa, 1993), como apareceu particularmente nos relatos dos casais com esposas com indicadores de depressão do presente estudo. A depressão pode, então, ser considerada um fator estressor que dificulta a adaptação nesse momento de transição na vida da família. Na subcategoria cuidar um do outro, apareceram poucas semelhanças e várias diferenças entre os casais com e sem esposa deprimida. No que diz respeito às semelhanças, nos dois grupos apareceu, com pouca frequência e somente na fala dos maridos, a questão de o marido ajudar a esposa nas tarefas de casa como uma forma de ajudar o outro (cd: M1/M5/M6/M9/M10; sd: M11/M19/M21/M22): “Aí, fica, quando eu tô em casa, sempre eu tô ajudando ela, limpando, coisa assim” (M1/cd); “Ela chega em casa, hoje tem um monte de roupa, ela chega em casa e vai estar passada” (M21/sd). Essa subcategoria teve maior incidência nos casais com esposas deprimidas, (cd: E2/E5/E6/E8/E9/E10/M2/M5/ M6/M9/M10), com grande convergência no relato de ambos membros do casal. Houve relatos de o marido cuidar do bebê para a esposa descansar: “Eu fico com ela [bebê] para minha esposa tomar um banho, fazer uma sauna, e depois ela [bebê] fica com a mãe e eu faço. A gente se adapta dessa forma, porque nem sempre tem alguém pra cuidar dela...” (M6/cd) ou para terem mais tempo juntos “Meu marido faz tudo, até o serviço da casa, ele me ajuda dia de semana, pra gente poder terminar rápido” (E9/cd). As falas das esposas com depressão também se referiram ao apoio do marido para que elas Aletheia 31, jan./abr. 2010

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se sentissem melhores, o que envolveu possíveis sintomas de depressão, por exemplo, quando a esposa chorava sem motivo e o marido ficava preocupado com isso: “O [marido] me ajudava um monte. Ele chegava em casa e nós duas chorando... e ele não sabia se acudia a ela ou acudia a mim...” (E8/cd). Cabe ressaltar que, nos casais sem depressão, houve apenas relatos dos maridos se sentirem cuidados pelas esposas, especialmente quando ela não trabalhava fora de casa “No dia-a-dia da casa, nessa história de ela não trabalhar, ela termina então dando uma dedicação adicional. Contribuição adicional, até me poupando de demandas que certamente se ela trabalhasse fora, eu teria que auxiliar” (M22/sd). Não houve nenhum relato das esposas nessa subcategoria como apareceu nos casais com esposas deprimidas. Estas falas ilustram como a esposa e o marido precisam um do outro como um refúgio para as exigências múltiplas da vida (Minuchin, 1982). Especificamente em situação de depressão materna, o pai pode amenizar possíveis efeitos negativos da depressão para seus filhos ao apoiar a esposa deprimida, o que acaba contribuindo para uma melhor parentagem (Frizzo & Piccinini, 2005). Ao mesmo tempo, isso contribui para a satisfação conjugal, se a mulher perceber isso como um cuidado com ela, como um indicador desse “refúgio” proposto por Minuchin (1982). Quanto à subcategoria divergências e conflitos, houve mais diferenças nos relatos entre os dois grupos, com maior relato de conflitos nos casais com esposa deprimida (cd: E5/E7/E8/M2/M8; sd: M19/M21). Em sua maioria, nos casais com esposas deprimidas, os conflitos foram relacionados às diferenças de temperamento: “Ele tem saído com os amigos dele, eu não gosto de sair, aí ele vai com os amigos dele” (E7/cd); à falta de apoio numa situação em que a esposa se sentiu mal: “Ele achou que eu estivesse fingindo a indisposição e disse que ia levar [filho] lá pra mãe. Dá uma olhada nele, eu só quero dar uma descansada. Eu não sei o que eu tenho, eu tô um pouco indisposta, eu tô com dor de cabeça, uma situação estranha pra mim, sintomas que eu não tinha sentido. Aí ele simplesmente disse pra mim, então tu trata de ficar boa” (E5/cd) e ao pouco tempo para ficar junto: “Mas ela [esposa] é muito dorminhoca... ela não assiste a um filme comigo....” (M8/cd). Nos casais sem depressão, houve apenas dois relatos que referiram divergências e conflitos (M19/M21), sendo que ambos diziam respeito às tarefas domésticas e isto só apareceu nas falas dos maridos: “Ah, do ponto de vista dela, eu sempre poderia fazer um pouquinho mais. Mas não em relação a ele [filho], mas em relação à casa.” (M19/sd). Apareceu também divergência nas tarefas domésticas em um casal com esposa deprimida, mas com maior intensidade: “Acho que ela não gosta de ficar junto, então ela sai lá e depois ela vem... aí na hora de voltar para casa aí tem que tomar banho, tem que fazer a refeição... aí quando eu acho que a gente vai descansar, ela vai passar roupa... aí em vez de nós ficarmos descansando e curtindo ficar com ela [bebê], ela tem que ficar passando roupa... então fica tudo complicado” (M8/cd). Especialmente em relação a essa última vinheta, podemos pensar que, conforme preconizado pela literatura, a pessoa deprimida parece ter uma tendência a priorizar os deveres e responsabilidades, negligenciando os momentos de prazer e descanso (Linares & Campo, 2000). Além disso, devemos lembrar que essa subcategoria se refere a divergências e conflitos no companheirismo do casal e não a questões mais globais de conflito. Ainda assim, estes relatos corroboram a 74

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associação entre depressão e conflito conjugal existente na literatura (Alvarado e cols., 2000; Cummings e cols., 2005; Mayor & Piccinini, 2005). Embora divergências e conflitos tenham aparecido nos dois grupos, nos casais com esposas deprimidas, os relatos foram mais frequentes e intensos, tanto na fala dos maridos como das esposas. Comunicação Essa categoria se refere à qualidade da comunicação entre o casal. Para fins de análise, foi subdividida em duas subcategorias: resolução de conflitos e divergências e conflitos. Quanto à primeira subcategoria, a resolução de conflitos, nos casais com esposas deprimidas, aparentemente, havia conflitos que não eram solucionados de forma adequada para ambos, pois um deles acabava cedendo sempre (cd: E2/E6/M2/M5): “É, eu já decidi que não fico mais brava. Não vou mais me estressar à toa” (E2/cd). Um casal desse grupo relatou uma divergência, pois a esposa referiu que o marido conversava com ela: “Eu acho que a gente conversa bastante, ele procura ser carinhoso, se ele tiver que falar alguma coisa... ou eu tiver com alguma coisa, mau humor por exemplo... ele deixa eu me acalmar, depois ele vem e conversa: ‘O que que tu tem?... porque tu tá assim?’” (E8/cd) e o marido relatou que não costumava conversar: “Então, quanto a isso, não tem muita ajuda... e quando a gente briga ou coisa assim, não tem... eu não costumo conversar muito” (M8/cd). Já nos casais sem depressão, o diálogo apareceu como forma de resolução de conflitos (sd: E11/E22/ M20/M22): “Às vezes, a gente tem um desentendimento, ela [esposa] quer resolver logo e, às vezes, ela tá junto, então, não vale a pena, eu não insisto em falar enquanto a nenê tá junto, até porque ela vai sentir que tem uma... então, não precisa saber disso, não é que não precisa saber, mas que ela não precisa passar por isso, até porque isso não é dela, não é assunto dela, não é dela, não é problema dela, uma coisa nossa, de nós resolver, aí, depois a gente fala.” (M22/sd). Quanto à subcategoria divergências e conflitos, apenas um casal, do grupo das esposas deprimidas, fez um relato incluído nessa subcategoria, tanto pelo marido como pela esposa: “E eu quero conversar, sabe? Eu passei o dia inteiro sozinha. Eu quero conversar, eu quero que ele me conte como é que foi... E ele não presta atenção no que eu falo, porque ele fica na televisão, sabe?” (E2/cd). “Daí eu não falo com ela também, porque eu tô vendo o jogo!” (M2/cd). De acordo com Cummings e Davies (1994), mulheres deprimidas podem ter dificuldade em explicar as causas e consequências de suas brigas, aproximando-se então de uma característica de casais disfuncionais que, muitas vezes, têm dificuldades na identificação do problema, pois a pouca clareza na comunicação bloqueia a sua definição (Walsh, 2002). Em geral, esses casais têm dificuldade de exprimir as diferenças por um grande medo de que o conflito aumente e ocasione violência ou ruptura do casamento. Linares e Campo (2000) corroboram essa asserção ao descreverem algumas características de casais com esposas deprimidas, onde a evitação de conflito parece ser bastante comum, exatamente pelo receio de ruptura na relação. Porém, essas estratégias só fazem aumentar a possibilidade de que os problemas não sejam enfrentados de modo eficaz, com consequências negativas para o relacionamento (Walsh, 2002). Em uma revisão teórica realizada por Mayor e Piccinini (2005), os autores apontaram que, quanto mais Aletheia 31, jan./abr. 2010

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o casal puder escutar um ao outro, respeitar e aceitar o ponto de vista do outro, mais chances têm de encontrar uma solução para seus conflitos que satisfaça a ambos. Garcia e Tassara (2003) também apontaram que a falta de diálogo constitui-se num dos principais problemas nos casamentos de modo em geral. No caso de casais cuja esposa apresenta depressão, esse parece ser um desafio particularmente importante. Atração física e paixão romântica Essa categoria refere-se à qualidade do relacionamento conjugal relatada pela esposa e marido. Para fins de análise, foi subdivida em qualidade do relacionamento conjugal, percepção em relação ao outro e divergências e conflitos. Quanto à primeira subcategoria, casais de ambos os grupos avaliaram de forma positiva seu relacionamento conjugal (cd:E2/E3/E6/E7/P2/P4/P9; sd:E11/E12/E14/E13/E17/M11/M12/M13), como no relato desse marido: “Mudou pra melhor, né, tem pessoas que reclamam, mas eu, da minha parte melhorou mais, assim.” (M11/sd). Por outro lado, houve uma pequena diferença entre os grupos, pois nos casais com esposas deprimidas, não foram referidas melhoras no relacionamento conjugal após o nascimento do bebê: “Não, eu acho tá, assim, normal. Tá bom” (E3/cd), ao contrário do que foi relatado nos casais sem depressão, onde apareceram mais avaliações de que o relacionamento melhorou, principalmente em comparação com os primeiros meses após a chegada do bebê (sd:E14/E17;M11/ M12/M14): “Então, acho que isso facilita um pouco e aí isso faz com que o casal também fique melhor, né, comece a ter mais momentos.” (E14/sd). Devemos lembrar que o casal contemporâneo é confrontado o tempo todo com forças paradoxais: por um lado, deve sustentar o crescimento e o desenvolvimento de cada um e, por outro, surge a necessidade de vivenciar a conjugalidade e os desejos e projetos comuns do casal (Féres-Carneiro, 1998). Conciliar essas demandas pode ser especialmente difícil para as famílias principalmente em alguns momentos de crise no ciclo vital, como na ocasião do nascimento dos filhos. No entanto, quando existe um bom relacionamento conjugal, a tendência é que, passado o momento inicial de crise, a reorganização estabelecida de certa forma tende a restaurar os sentimentos de satisfação familiar e conjugal. Não devemos esquecer, entretanto, que a depressão nesse período do ciclo vital é um fator estressor imprevisível que se sobrepõe à crise normativa, característica principalmente do nascimento do primeiro filho do casal (Carter & McGoldrick, 1995). E com essa sobreposição, pode ser mais difícil avaliar os aspectos positivos das mudanças. Alguns casais, em ambos os grupos, avaliaram de forma negativa seu relacionamento (cd:E2/E6/M4/M8; sd:M13/M19). Nos casais com esposa deprimida, houve maior incidência desses relatos e pareceu que essa percepção foi relatada com mais intensidade: “Eu tinha um cansaço, uma angústia, uma coisa assim. Primeiro porque eu fiquei muito insatisfeita com o meu corpo, pra começar. Porque eu acho que, no meu inconsciente, estava assim, ‘Aquela que me estragou’, tá, ‘que me deixou, assim, mal, porque eu tô mal comigo’, se eu estava mal, se estava mal com meu corpo, eu estou mal. Até com o meu marido, a minha relação com ele” (E6/cd). Já nos casais sem depressão, houve apenas dois relatos nessa subcategoria e de pouca intensidade: “Tá faltando um pouco de tempo, mas...” (M13/sd). Estes relatos apoiam o que a literatura indica, já que era esperado que o relacionamento conjugal fosse avaliado de forma mais negativa nos casais com esposas 76

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deprimidas, na medida em que elas parecem ter uma percepção mais negativa de seu relacionamento familiar e conjugal (Beach & O´Leary, 1993; Fritsch e cols., 2005). Por fim, alguns poucos casais, em ambos os grupos, se mostraram ambivalentes na sua avaliação sobre a qualidade do relacionamento conjugal (cd:E5/M5; sd:E19/M19): “Não vai mal, mas nós estamos tentando conciliar, e aí que vai... Às vezes, é muito estressante, e principalmente pra mim.” (M5/cd); ou ainda relataram que não havia ocorrido mudanças (cd:E1/E2/E8/E10; sd:E18/M15/M21), o que foi referido principalmente pelos casais com esposas deprimidas: “Acho que não mudou” (E10/cd). Quanto à percepção em relação ao outro, casais de ambos os grupos (cd:E8/E9/M2/ M3/M4/M6/M10; sd:E20/E21/M11/M14/M16/M20/M21/M22) avaliaram seu cônjuge de forma positiva: “Sendo filha da mãe dela, eu sempre achei que ela tinha esse jeito [carinhosa e meiga], essa personalidade, assim” (M6/cd). Mas houve também relatos negativos em relação ao cônjuge. Nos casais com esposas deprimidas, a maioria dos relatos são queixas dos maridos sobre suas esposas serem bravas (cd:M4/M1): “A mãe dele, quando fica brava, é brava mesmo” (M1/cd); apáticas (M7/cd): “Eu acho que ela é muito preguiçosa, porque ela poderia ir, ela poderia largar a [filha] no chão, ela não vai muito de preguiça mesmo, porque a [filha] vai atrás, ela não é daquelas que tem que ficar sempre no colo, que a [filha] é muito mais fácil de lidar com ela” (M7/cd); ou impacientes: “Ela perde a paciência muito rápido” (M10/cd). Nos casais sem depressão, os principais aspectos relatados foram relacionados com características da esposa como ser ciumenta (M19): “a [nome da esposa] é mais ciumenta” (M19/sd); mandona (M18): “Ela é muito mandona”; ou brava (M20), como pôde ser visto no exemplo a seguir: “O jeito assim de bravo [da filha] tudo é da mãe” (M20/sd). Em ambas os grupos (cd:E4/E6; sd:E17/E22), houve poucos relatos negativos da percepção das esposas sobre seus maridos e não houve diferenças entre os grupos nesse aspecto, pois, em ambos, eles foram descritos como teimosos/geniosos (cd:E4; sd:E22) e como bravos/estourados (cd: E6; sd: E17). Além disso, somente os maridos relataram certa ambivalência com relação às suas esposas (cd:M1/M5/M7; sd:M13), especialmente nos casais com esposas deprimidas: “Mas quando ela tá assim, calma, ninguém xingou, brigou com ela, ela tá, é normal, assim, calma, tudo assim.” (M1/cd). Esse aspecto de inconstância das emoções precisa de atenção especial no contexto da depressão, pois as emoções tendem a se alterar com frequência (Phares. Duhig & Watkins, 2000). Essa característica das esposas pode ter influenciado a avaliação desses maridos sobre elas no presente estudo. Quanto às divergências e conflitos no relacionamento conjugal, houve uma incidência maior de conflitos relacionados à impulsividade da esposa nos casais com esposas deprimidas: “Até tivemos algumas brigas assim, porque a [nome da esposa] é bem impulsiva” (M8/ cd); à quantidade de tempo para ficarem juntos: “Eu encho o saco, ah, vem deitar comigo, vamos dormir, porque ele é muito amarrado, entendeu, ele tem a mania de chegar e ficar se amarrando, se amarrando e demora pra tomar banho, eu já estou até deitada e quero que ele venha deitar junto com a gente assim, sabe e ele fica se amarrando” (E7/cd); brigas por morar com a sogra e não ter casa própria: “Passa dois, três dias, eu já tô agoniado, mas se a gente fica muito tempo junto, parece que, que qualquer coisa a gente briga, sabe, eu acho que é porque também a gente não mora sozinho, a gente não tem uma casa nossa” (E4/cd); e quanto à sexualidade: “Porque esses dias... foi o caso de novo da coisinha Aletheia 31, jan./abr. 2010

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[sexo], que eu não queria, e queria dormir, tava cansada. Aí pegou, ‘Ai... então, pega e vai dormir!’ Sabe? Já ficou bravo, já não me deu boa-noite... ‘Tu não vai deitar?’ ‘Não!’ Já ficou furioso comigo. Daí fui eu me deitar lá, toda cheia de culpa, sabe? Toda furiosa. Aí acabei dormindo. Daqui a pouco, ele veio se deitar, me abraçou...” (E2/cd). Apenas um casal sem depressão relatou conflito, mas sem explicitar detalhes: “Certas coisas a gente briga, mas só...” (E21/sd). Novamente, pôde-se perceber a associação entre qualidade do relacionamento conjugal e presença de depressão (Beach & O’Leary, 1993; Fritsch e cols., 2005; Mayor & Piccinini, 2005), além de certa dificuldade das esposas deprimidas de lidarem com eventos estressantes (Schwengber & Piccinini, 2005). Considerações finais O presente estudo teve como objetivo investigar diferenças na conjugalidade de casais em que a esposa apresentava ou não indicadores de depressão, quando o bebê estava no final do primeiro ano de vida. Os resultados encontrados corroboraram a expectativa inicial de que a presença de depressão na esposa pode trazer dificuldades nos diferentes aspectos investigados do relacionamento conjugal, com destaque para o companheirismo e o tempo para o casal, a comunicação e resolução de conflitos, a avaliação global da qualidade do relacionamento conjugal e sexual. A fase do ciclo vital do nascimento dos filhos por si só tende a ser estressante para a maioria dos casais pelas diversas readaptações que necessitam ser feitas. Na ocorrência de mais um estressor, como a depressão materna, pode ser ainda mais difícil realizá-las, como pôde ser visto nos relatos dos casais do presente estudo. Obviamente, muitas vezes, as dificuldades são sutis e podem surgir tanto em casais em que a esposa tem ou não depressão. No presente estudo, puderam-se observar sofrimentos e dificuldades adicionais especialmente no primeiro grupo, seja na forma de avaliar o relacionamento conjugal ou no cuidado com o outro, como na reorganização do tempo do casal, quando o bebê não está presente. A comunicação talvez tenha sido a categoria que melhor explicitou as diferenças entre os dois grupos, especialmente quanto à forma de resolução de conflitos, mais difícil nos casais com esposas deprimidas. De acordo com Walsh (2002), a diferença entre casais ditos “saudáveis” e àqueles que apresentam dificuldades não está na presença ou ausência de problemas, mas na maneira como eles são resolvidos. Por exemplo, o acúmulo de fatores estressantes (no caso, nascimento do bebê mais sintomas depressivos) pode colocar em perigo qualquer casal, mesmo os que não apresentam dificuldades, embora no presente estudo isto pareça ter sido mais comum entre os casais em que a esposa apresentava indicadores de depressão no final do primeiro ano de vida do bebê. Além disso, a estrutura prévia da relação conjugal, que não foi investigada aqui, pode também atuar como um fator que explica a conjugalidade em momentos de crise e merece ser investigada em futuros estudos. A importância de se investigar a conjugalidade e a depressão pós-parto, também merece ser ressaltada devido a um possível efeito de contaminação de afetos entre os diferentes subsistemas familiares. Quando a mulher encontra-se deprimida, com sentimentos de desvalia e dificuldades no relacionamento conjugal, isto pode também afetar a qualidade da relação que poderá estabelecer com seu bebê. Ainda que, muitas vezes, apareça no relato materno a satisfação em cuidar do bebê, mesmo em situações de 78

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depressão pós parto da mãe (Frizzo, 2008), devemos lembrar que isso também pode ser sentido como sobrecarga em alguns momentos. E, embora essa sobrecarga seja relatada também por mulheres sem depressão, novos estudos devem investigar melhor este aspecto e sua relação com depressão pós-parto. É importante ressaltar que nenhuma das participantes deste estudo havia sido diagnosticada com depressão anteriormente, embora algumas estivessem com sintomas intensos de irritabilidade, fadiga e dificuldades no cuidado com o bebê, além de dificuldades no relacionamento conjugal. Esses não são casos isolados, pois, muitas vezes, os sintomas depressivos podem ser confundidos com o desgaste natural do puerpério, tanto pelo cuidado com o bebê e as noites mal dormidas, como pelo acúmulo de tarefas domésticas (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). Assim, é comum que a mulher deprimida e as pessoas que a cercam nem sempre reconheçam que seus sintomas podem ser considerados depressão. Tendo em vista que, mesmo a presença moderada e leve de indicadores de depressão – como o que ocorreu nos casos do presente estudo – já pode trazer importantes dificuldades nos relacionamentos da mulher, ressalta-se a importância da família e dos profissionais da saúde em reconhecer esses sintomas e em ajudar a mulher a buscar ajuda quando ela não se sente bem, especialmente ao longo do primeiro e segundo ano de vida do bebê, quando as demandas sobre a mulher são particularmente elevadas. Avaliações sistemáticas associadas à prevenção e intervenções psicológicas neste contexto terão importante papel não só para o relacionamento conjugal, mas particularmente para o desenvolvimento da criança. Referências Alvarado, R., & cols. (2000). Cuadros depresivos en el postparto en una cohorte de embarazadas: construcción de un modelo causal. Revista Chilena de Neuropsiquiatria, 8(2), 84-93. Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. Beach, S. R. H., & O’Leary, K. D. (1993). Marital discord and dysphoria: For whom does the marital relationship predict depressive symptomatology? Journal of Social and Personal Relationships, 10, 405-420. Beck, A. T., & Steer, R. A. (1993). Beck Depression Inventory. Manual. San Antonio: Psychological Corporation. Benazon, N. R., & Coyne, J. C. (2000). Living with a depressed spouse. Journal of Family Psychology,14, 71-79. Braz, M. P., Dessen, M. A., & Silva, N. L. (2005). Relações conjugais e parentais: uma comparação entre famílias de classes sociais baixa e média. Psicologia: Reflexão e Crítica, 18(2), 12-27. Carter, B., & McGoldrick, M. (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar – uma estrutura para a terapia familiar. Em: B. Carter & M. McGolcrick (Orgs.), As mudanças no ciclo de vida familiar- uma estrutura para a terapia familiar (pp. 7-29). Porto Alegre: Artmed. Cramer, B., & Palacio-Espasa, F. (1993). Técnicas psicoterápicas mãe-bebê. Porto Alegre: Artes Médicas.

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Aprovado em dezembro de 2009

Giana Bitencourt Frizzo: Psicóloga; Especialista em Psicoterapia de Casal e Família (INFAPA); Doutora e pós-doutora em Psicologia (UFRGS); Professora do curso de Psicologia (UFRGS) Ivani Brys: Psicóloga; Mestranda em Psicologia (UFRGS); Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Rita de Cássia Sobreira Lopes: Psicóloga; Doutora em Psicologia (University College London/Inglaterra); Professora do PPG-Psicologia (UFRGS); Pesquisadora do CNPq. Cesar Augusto Piccinini: Psicólogo; Doutor e Pós-doutor em Psicologia (University College London/ Inglaterra); Professor do PPG-Psicologia (UFRGS); Pesquisador do CNPq. Endereço eletrônico para contato: [email protected]

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As ideias do senso comum sobre a relação entre a justiça e a injustiça Lila Maria Spadoni Ana Raquel Rosas Torres Resumo: Este artigo tem como objetivo principal investigar as ideias do senso comum de jovens brasileiros e franceses acerca das relações entre justiça e injustiça. Para tanto, utilizou-se o conceito de tematas. As tematas são concebidas como fatores organizadores de conjuntos temáticos de diferentes representações sociais. A abordagem estruturalista das representações sociais norteou o planejamento metodológico desta investigação. Assim, foi utilizada a técnica de evocação simples juntamente com a análise dos esquemas cognitivos de base. Os participantes deste estudo foram estudantes universitários franceses (N=121) e brasileiros (N=129). Os resultados foram semelhantes nas duas amostras, demonstrando uma relação funcional e de oposição entre as ideias sobre a justiça e a injustiça. Essa relação é bem estruturada e resistente às diferenças socioeconômicas e culturais existentes entre o Brasil e a França. Palavras-chave: justiça; representações sociais; tematas.

The common sense ideas about the relations between justice and injustice Abstract: This article aimed at investigating Brazilian and French young people’s common sense ideas on the relations between justice and injustice. For this, the concept of thematas was used. Thematas are defined as the organizing factors of thematic sets of different social representations. The methodological design was planned from the social representation estructuralistic approach. Therefore simple evocation technique together with the base cognitive schemata analysis was used. The participants were French (N = 121) and Brazilian (N = 129) university students. The results were similar in both samples, demonstrating a functional and oppositional relationship between justice and injustice ideas. This relationship is well structured and resistant to the socio-economic and cultural differences between Brazil and France. Keywords: justice; social representations; thematas.

Introdução Neste artigo, é apresentado um estudo desenvolvido em duas culturas diferentes a fim de investigar as concepções ingênuas a respeito das relações entre a justiça e a injustiça. Ele foi realizado a partir da perspectiva teórica das representações sociais, iniciada por Moscovicci (1961), que gerou diferentes abordagens, e que tem sido um campo de estudo, segundo Jodelet (2001), pleno de vitalidade. Para tanto, adota-se a abordagem estruturalista, caracterizada pela busca das estruturas invariantes e inerentes à organização interna das representações sociais, em detrimento da investigação de seus diversos conteúdos que variam segundo grupos e objetos (Flament & Rouquette, 2003). Essa abordagem desenvolveu-se, sobretudo, com base na ideia de que as representações sociais se organizam a partir de um sistema central e um sistema periférico. No primeiro, existem poucos elementos de grande consenso, e no

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segundo, há um maior número de elementos que expressam as diferenças interindividuais e as adaptações circunstanciais (Rouquette, 1999). As representações sociais são definidas pelo Grand Dictionaire de la Psychologie (Rouquette, 1999, p.800) como “uma maneira de ver, localmente e momentaneamente partilhada no seio de uma cultura, que permite assegurar a apropriação cognitiva de um aspecto do mundo e guiar as ações a seu respeito.”1 Essa definição é particularmente apropriada para este estudo pois esclarece o caráter efêmero e cultural das representações sociais que as diferenciam do outro conceito teórico aqui utilizado, conhecido como tematas. As tematas são estruturas profundas do pensamento social, construídas e modificadas no tempo longo da história, e, portanto são extremamente duráveis e tendencialmente de grande amplitude cultural, quando não universais (Moscovicci & Vignaux, 1994). Elas podem ser definidas como uma fonte de ideias que se operam metodologicamente, a fim de estabilizar os significados dos objetos sociais, por meio da relação entre os temas. Esse conceito, proposto por Moscovicci e Vignaux (1994), evidencia as relações entre dois temas que se opõem, tais como a justiça e a injustiça, vindo ao encontro da necessidade de os estudos acerca das representações sociais confrontarem o desafio de associar duas ou mais representações (Guimelli & Rouquette, 2004). As representações sociais têm sido investigadas isoladamente em comparações sincrônicas ou diacrônicas, ou seja, ora evidenciando as representações de grupos diferentes em um mesmo momento, ora ressaltando as representações de um mesmo grupo em momentos diferentes (Flament & Rouquette, 2003). No entanto, a realidade sociocognitiva não é dividida em partes, mas ela se organiza em um conjunto de temas e de conceitos, alguns mais específicos e outros mais restritos, descritos por Rouquette (2002) como uma espécie de enciclopédia temática organizada em árvores documentais. Assim, algumas representações relacionam-se a outras representações e também a algumas atitudes, crenças ou tematas. A relação entre as tematas e as representações sociais foi descrita por Guimelli (1999) com a pressuposição de que as tematas servem de ponto de referência para a organização de conjuntos temáticos de diferentes representações sociais. Nesse mesmo sentido, Moscovici e Vignaux (1994) descreveram as tematas como uma espécie de memória coletiva de longa duração que organiza os significados de todos os temas e conceitos do pensamento social, por intermédio da objetivação e da ancoragem. Mediante a ancoragem, as tematas criam classes de discursos, nos quais se enquadram as diferentes representações sociais, formando conjuntos temáticos. Por meio da objetivação, é feito um trabalho de reparação cognitiva e linguística a fim de estabelecer modos de composição entre os objetos. Esse trabalho gera leis, especificações de objetos exemplares, de acordo com as propriedades apresentadas como típicas, tais como bom e ruim, melhor e pior, ideal e real, justo e injusto, o que visa estabilizar os aspectos cognitivos e sociais. 1 Tradução livre realizada pela primeira autora do texto original : “Façon de voir localmente et momentanément partagée au sein d’une culture, qui permet de s’assurer l’apropriation cognitive d’un aspect du monde et de guider l’action à son propos.’’

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Embora os processos de objetivação e ancoragem das representações sociais por meio das tematas ainda não tenham sido investigados, há alguns estudos que fornecem pistas sobre eles, como o referente à relação de oposição entre as representações sociais da segurança e da insegurança (Guimelli & Rouquette, 2004). Esse estudo demonstra que se trata de duas representações sociais diferentes, ou seja, portadoras de núcleos centrais diferenciados. Também Gurrieri (2007) testa, de maneira empírica, a instanciação da temata ideal-pire (ideal-pior) sobre a representação social de voyage (viagem), investigando a estruturação das representações voyage, voyage le pire (a pior viagem) e voyage ideal (a viagem ideal). Novamente, os resultados confirmam que se tratam de três representações diferentes, e que, portanto, possuem núcleos centrais diferentes. Esses estudos corroboram a ideia de Guimelli (1999), segundo a qual diferentes representações podem ser organizadas em torno de algumas tematas, pois os diferentes polos de uma mesma temata (polo positivo e polo negativo) geram representações diferentes. Pode-se antever então a importância da identificação dos componentes do núcleo central das representações sociais para a investigação das tematas. A temata justiça e injustiça Segundo Markova (2007), as atividades mentais dos seres humanos são naturalmente regidas por antônimos. Consequentemente, as ideias do senso comum também o são. No entanto, essas antinomias só se tornam tematas quando elas não se referem à situação de conteúdos latentes. Os conteúdos latentes são conhecimentos já adquiridos, frutos da memória e da história do grupo e transmitidos de geração em geração. No entanto, por alguma eventualidade histórica, eles podem transformar-se em alvo da atenção comum, tornando-se objetos de discussões e do discurso público. Geralmente isso acontece quando surge um conflito no curso dos acontecimentos históricos e sociais. No caso da justiça, por exemplo, as ideias iluministas do século XVIII, trouxeram à tona a discussão referente à justiça aliando-a, até os dias atuais, a ideia de igualdade. As ideias iluministas sobre a justiça igualitária foram geradas pelos conflitos históricos entre a igreja, a classe aristocrática e a burguesia, e desembocaram em transformações políticas importantes, tais como a criação e a expansão de direitos civis, e a redução da influência de instituições hierárquicas como a nobreza e a igreja. Essas transformações, aliadas aos eventos políticos, também gerados à luz das ideias iluministas, tais como a revolução francesa e russa e todos os movimentos independentistas, dentre os quais a independência brasileira do reinado de Portugal, foram de extrema importância para a constituição do mundo moderno. Por isso, embora a oposição justiça e injustiça pareça noção onisciente, que sempre existiu, seu significado atual aparece arraigado nas ideias igualitaristas provenientes do século XVIII, frutos da revolução francesa, que aliou definitivamente a noção da justiça à noção da igualdade. A igualdade de direitos, de deveres, de oportunidades expressam-se diferentemente conforme as ideologias políticas da sociedade atual. As oposições temáticas podem ser muito antigas em sua estrutura, existindo em quase todas as sociedades, independentemente de suas diferenças culturais. No entanto, seu 84

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significado, ou seus conteúdos, variam de um grupo a outro e também sofrem mudanças através do tempo. Objetivando investigar a relação entre os temas justiça e injustiça, o conceito de temata e as metodologias próprias da abordagem estrutural das representações sociais foram adotados. Para verificar a amplitude ideológica deste estudo, o mesmo procedimento foi utilizado em dois países diferentes – Brasil e França. A comparação intercultural Como as tematas são objetos de pesquisa ainda pouco investigados, ainda não existe nada escrito sobre os métodos de investigação desse conceito. Neste estudo, investigase a relação entre dois polos temáticos, adotando uma abordagem estruturalista. Por isso, utiliza-se a metodologia originalmente criada e utilizada para a investigação das representações sociais, mais especificamente as evocações e os esquemas cognitivos de base. No núcleo central das representações sociais, encontram-se os aspectos mais consensuais, ideológicos ou societais, frutos da memória coletiva, no qual estão inscritas as tematas. Nesse caso, utilizou-se a comparação de duas representações (justiça e injustiça) em duas culturas diferentes do mundo laico ocidental (Brasil e França). Busca-se investigar, sobretudo, as características das relações entre essas duas representações, percebidas em cada cultura. A relevância da investigação intercultural tem sido uma constante nas investigações da psicologia social da justiça. Tyler, Broeckmann, Smith e Huo (1997) afirmam que existem tanto aspectos universais quanto especificidades culturais na maneira como as pessoas pensam e reagem ao tema justiça. As primeiras teorias da psicologia social da justiça, nascidas nos Estados Unidos da América nos anos 1960, foram inspiradas na teoria da privação relativa. Essa teoria afirma que a satisfação ou insatisfação das pessoas, nas situações sociais, não são diretamente relacionadas à qualidade objetiva de suas recompensas ou riquezas, mas são socialmente determinadas pela comparação social entre suas recompensas e uma espécie de padrão que a pessoa adota. A essa teoria, seguiram-se três ondas diferentes de investigação relacionadas às concepções de justiça. A primeira onda ficou conhecida como justiça distributiva e teve como pioneira a teoria da equidade, que estabelece a proporcionalidade como um princípio básico da justiça. A justiça distributiva tem como objeto as concepções de justiça nas situações que implicam distribuição de bens. Na década de 1970, iniciou-se uma nova onda que ficou conhecida como justiça procedural, que, por sua vez, se preocupa com os processos de tomadas de decisão em situações de justiça que inclui a decisão de um terceiro. E recentemente, na década de 1990, surgiu uma terceira onda, conhecida pela preocupação com a punição em casos de infração de leis formais e normas sociais, denominada justiça retributiva. No entanto, segundo Tyler e cols. (1997), inicialmente a psicologia social da justiça, influenciada pelo positivismo, tinha uma visão universalista, e buscava encontrar leis universais capazes de reger os comportamentos humanos. Gradualmente, os pesquisadores afastaram-se dessa concepção, à medida que foram percebendo a importância das Aletheia 31, jan./abr. 2010

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influências culturais nas concepções de justiça. Começaram então os estudos transculturais, que procuravam as semelhanças e as diferenças de comportamentos e de processos mentais entre culturas diferentes. Enfim, as pesquisas psicológicas da justiça passaram a questionar e testar a validade trans-cultural das teorias existentes. Conforme Assmar (2000), as primeiras teorias psicológicas da justiça se atinham aos dois primeiros níveis de análise descritos por Doise (2002). O primeiro nível é o intrapessoal que investiga, sobretudo, os processos mentais individuais. O segundo nível trata das relações interpessoais. Doise (2002) também realça a necessidade da psicologia alcançar os dois últimos níveis, o grupal e o societal. A psicologia precisa preocuparse com as diferentes posições que os indivíduos ocupam nas relações sociais e com as produções culturais e ideológicas da sociedade, que dão significação aos comportamentos dos indivíduos e sustentam as diferenciações sociais. Esse nível é complexo e detém a maioria dos aspectos universais, que são resultado de estruturas profundas, nos quais se inserem as tematas. Nesse mesmo sentido, Tajfel (1984) também critica as primeiras teorias sobre a psicologia da justiça afirmando que elas deveriam ser transpostas para uma psicologia das relações intergrupais, traduzindo em larga escala o fenômeno social que se torna realidade psicológica para cada indivíduo envolvido nesse sistema. Ele também critica essas teorias serem concebidas como se cada indivíduo começasse do zero suas considerações e concepções de justiça, em processo totalmente ingênuo e descontextualizado. Tajfel (1982) considera que essas teorias pecam por praticar um reducionismo psicológico, que são tentativas de explicar as complexidades do comportamento coletivo ou social em termos de processos individuais ou relacionais. Nesse sentido, investigar as concepções de justiça, por meio das teorias e metodologias estruturalistas a respeito das representações sociais e das tematas, é um dos caminhos possíveis para tratar esse fenômeno, contemplando, sobretudo o nível societal. Por isso, concebe-se a hipótese de que as diferenças na convivência com as desigualdades sociais podem operar como um fator de diferenciação no modo como o senso comum estabelece a relação entre a justiça e a injustiça social. As diferenças socioecônomicas entre o Brasil e a França são notadamente conhecidas, já que a França consta entre os países considerados desenvolvidos, e o Brasil figura entre os países considerados em desenvolvimento. A desigualdade social marca profundamente a realidade brasileira. Essa desigualdade tem sido calculada por meio do índice de Gini, que varia entre 0 e 1. Quanto mais próximo de zero, menores as desigualdades sociais. O índice brasileiro é 0,58. No Brasil, segundo o índice de desenvolvimento humano do Human Development Reports (HDR, 2007-2008), os 10% mais ricos da população detêm 45,8% da renda nacional, ao passo que os 10% mais pobres detêm apenas 0,8 % da renda nacional. O índice de Gini da França é 0,32, classificando-a como o quarto país menos desigual do mundo e em décimo lugar, segundo o índice de desenvolvimento humano (HDR, 20072008), que não enfrenta mais problemas como o analfabetismo. Pode-se concluir então que as realidades em relação à justiça social nesses dois países são bem diferentes. Além disso, há diferenças no curso da história dos dois países. A França tem seu percurso histórico marcado pela revolução francesa, no século XVIII, que pode ser 86

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considerada como o florescimento das ideias igualitaristas da modernidade. A revolução culminou nas mudanças políticas que na prática, já tinham acontecido na vida social e econômica, com o surgimento da classe burguesa. O Brasil inspirou-se nessas mesmas ideias para proclamar sua independência de Portugal no século XIX. No entanto, a independência brasileira restringiu-se à esfera política e se manteve a mesma estrutura socioeconômica no país, o que favoreceu a distribuição desigual da riqueza que atualmente caracteriza o país. Por outro lado, considera-se também que a obtenção de resultados semelhantes nos dois estudos revela não somente as semelhanças na maneira de relacionar os dois temas (justiça e injustiça), mas, sobretudo o sucesso da mensuração desse fenômeno no plano ideológico e, portanto, mais estrutural, estável, universal e característico das tematas. Método Participantes Participaram deste estudo alunos de psicologia de Goiânia e de Paris. Em Goiânia, foram 129 alunos, contatados em setembro de 2007. A média de idade foi de 25,7 anos, com desvio padrão de 8,29. A idade mínima foi de 17 anos e, a máxima, de 52 anos. A amostra foi composta por 88,4% de mulheres e 11,6% de homens. Em Paris, foram 121 alunos, contatados em fevereiro de 2008. A média de idade foi de 22 anos com desvio padrão de 7,5. A idade mínima foi de 17 anos e, a máxima de 53 anos. A amostra foi composta por 83% de mulheres e 17% de homens. Instrumento e procedimento Os participantes responderam a um questionário composto de três partes. Na primeira, constavam duas perguntas de evocação simples sobre os termos indutores justiça social e injustiça social. A técnica de evocação simples tem sido utilizada para identificar os possíveis componentes do núcleo central ou da periferia de uma representação social. Ela consiste em solicitar dos participantes as três primeiras palavras ou expressões lembradas após o conhecimento de um termo indutor. Vergès (1992, 1994) propõe sua análise com o cruzamento da frequência das respostas e a rapidez com que foram proferidas, produzindo uma tabela composta por quatro casas. Os itens com maior frequência e menor média de ordem de citação (casa1) podem ser elementos que caracterizam o núcleo central de uma representação. Os itens com frequência baixa, mas com alta média de ordem de citação podem caracterizar os elementos periféricos (casa 4). E os itens das duas casas restantes são considerados uma zona de instabilidade, nas quais as mudanças se operam. As análises das respostas foram efetuadas utilizando o Logiciel Evocations 2000, criado por Vergès, Scano e Junique (2002). O valor 2,0 foi adotado como referencial de média de ordem de citação, por ser o valor médio, já que foi pedido aos participantes três respostas. Como frequência mínima, definiu-se o valor de cinco respostas, sendo excluídos, portanto, os itens citados menos de cinco vezes. Definiu-se também, como frequência média, um valor equivalente à 10% do número total de participantes, o que significa que os itens considerados com alta frequência foram citados por pelo menos Aletheia 31, jan./abr. 2010

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10% da amostra. Esse valor foi definido com o objetivo de reter, na primeira casa, apenas os elementos com o maior nível de consenso possível. Na segunda parte do questionário, 25 itens abordavam os esquemas cognitivos de base (SCB) (Flament & Rouquette, 2003), relativos às famílias prática, atribuição, composição e vizinhança. Os esquemas cognitivos de base constituem um modelo teórico proposto por Guimelli e Rouquette (1992) que parte do pressuposto estruturalista, segundo o qual a lógica natural do sujeito social possui regularidades, ou seja, regras que determinam operações cognitivas particulares e especificas. As operações cognitivas provavelmente apresentam-se em número finito. Portanto, o modelo dos esquemas cognitivos de base sugere que as relações possíveis entre dois elementos são numericamente limitadas e propõe 28 tipos de relações possíveis (ver Sá, 1996, para informações em português). As 28 relações aplicam-se entre dois elementos, um indutor e um induzido, e a ligação entre eles constitui um tripé (indutor-relação-induzido). Essas relações são organizadas em famílias distintas que representam estruturas de organização do conhecimento (Guimelli, 1994, 2003; Flament & Rouquette, 2003; Rouquette, 1994; Rouquette & Rateau, 1998). As famílias prática e atribuição compõem o núcleo central das representações sociais, pois formalizam os aspectos normativos e valorativos. A família prática trata das relações entre um ator, uma ação, um objeto e um instrumento, descrevendo assim as prescrições de práticas das representações sociais. A família atribuição corresponde às diversas modalidades de relação de qualificação e concepção do objeto, descrevendo, dessa forma, os valores e as relações de causa e efeito. As demais famílias tratam da descrição do objeto e são consideradas mais periféricas. A família vizinhança descreve o reagrupamento de elementos adjacentes a uma classe conceitual, tais como A é uma subclasse de B. A família composição também faz o mesmo tipo de relação, mas ela o faz com base na noção de constituinte, tais como A é um componente de B. A família léxica descreve as relações de sinônimo, antônimo e de definição. A última família (léxica) foi eliminada do questionário, pois ela seria redundante em relação ao objeto aqui analisado, já que investigou-se um par de antônimos. Cada modalidade de relação pode ser operacionalizada por um conector, o que possibilitou a construção de um procedimento empírico dividido em três etapas. A seguir, descreve-se as etapas do procedimento padrão, identificando como elas foram instrumentalizadas nesse estudo. A primeira etapa consistiu em um procedimento de evocação simples e contínua, no qual os sujeitos devem dar três respostas em forma de expressões verbais, com base em um termo indutor. No questionário, incluiu-se duas questões desse tipo, uma com o indutor justiça social e outra com o indutor injustiça social. As respostas não foram utilizadas para determinar o termo induzido como previsto no protocolo, mas para serem analisadas conforme a tabela proposta por Vergès (1992, 1994). A segunda etapa consistiu na justificação das três respostas apresentadas na primeira etapa e que tem por objetivo facilitar para o sujeito a etapa seguinte. Essa etapa foi ignorada neste estudo, pois as três respostas apresentadas na primeira etapa não foram utilizadas como termo induzido na etapa seguinte, como prescreve o protocolo original da metodologia. 88

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A terceira etapa consiste na apresentação dos 28 conectores (que formalizam as 28 relações possíveis) do modelo para que os participantes respondam sim, não, ou talvez, determinando assim as modalidades de relação que se aplicam a cada uma das três respostas dadas na primeira etapa. Utilizou-se apenas 25 conectores, eliminando apenas a família léxica, como explicado anteriormente. Definiu-se então como termo indutor a palavra justiça e como único termo induzido a palavra injustiça. Os estudos anteriores que tratam das relações entre duas ou mais representações (Guimelli & Rouquette, 2004) o fazem com base na investigação dos elementos centrais de cada representação. No entanto, neste estudo, o sujeito foi considerado como um especialista de seu próprio conhecimento, de acordo com a proposta inicial dessa metodologia, perguntando ao sujeito quais relações dos SCB se aplicam a uma dupla de termos. A terceira parte do questionário refere-se aos dados demográficos: sexo, idade e nacionalidade. Os questionários foram respondidos individualmente em aplicação coletiva durante as aulas. Ressalta-se que os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e que todos os procedimentos realizados estavam de acordo com a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. Inicialmente serão apresentados os resultados do estudo com participantes brasileiros. Em seguida, apresentam-se os resultados franceses. Isso por que o objetivo deste artigo não é comparar os dados dos diferentes países, nem encontrar as variantes culturais que perpassam a relação entre a justiça e a injustiça. Pelo contrario, o objetivo deste artigo é justamente encontrar as invariantes estruturais que resistem aos efeitos provocados pelo contexto cultural. Resultados do primeiro estudo – participantes brasileiros Evocação utilizando como termo indutor a expressão “justiça social” Como se percebe na tabela 1, construída nos moldes propostos por Vérges (1992, 1994), no primeiro quadrante aparece a palavra igualdade, caracterizada por uma baixa ordem de evocação (range = 1,3) e por uma forte frequência (f = 41), superior ao dobro da frequência do segundo item mais citado, a palavra respeito (f = 20). Igualdade aparece como único item candidato a núcleo central, e representa 11% do total de respostas retidas na tabela, o que pode indicar uma estereotipia, ou um grande consenso em torno da igualdade como um fundamento das teorias que compõem o pensamento social a respeito da justiça. Na casa 4, correspondente aos itens que podem constituir a periferia da representação, há os termos direitos humanos, inclusão social, justiça, moradia, oportunidade, paz, responsabilidade e solidariedade, que parecem exprimir os aspectos circunstanciais, provenientes das experiências cotidianas e que exprimem também a variabilidade intraindividual. Nas casas consideradas como zona que contém os elementos de status ambíguos, há o termo respeito, com alta frequência e baixa média de ordem de citação, e o termo direito, que apresenta baixa frequência e alta média de citação.

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Tabela 1 – Evocações obtidas com base no termo indutor “justiça social” – Brasil Ordem de citação ≤2

>2

Frequência ≥ 15

Igualdade (41; 1,3)

Respeito (20; 2,3 )

< 15 ≥5

Direito (6; 1,3)

Direitos humanos (5; 2,4) Inclusão social (5; 3,0) Justiça (6; 2,5) Moradia (5; 2,0) Oportunidade (7; 2,3) Paz (5; 2,4) Responsabilidade (5; 2,4) Solidariedade (6; 2,3)

Evocação utilizando como termo indutor a expressão “injustiça social” Na primeira casa da tabela 2, há, como candidatos ao núcleo central, os termos desigualdade e preconceito. O termo desigualdade representa 37% do total dos itens retidos na tabela e também aparece como um fundamento do pensamento social sobre a injustiça, que, à semelhança da igualdade em relação à justiça, exerce um papel gerador e organizador no plano ideológico, como descreve Doise (2002). Os termos da casa 4, corrupção, desemprego, fome e racismo, parecem expressar as aplicações circunstanciais que coincidem com os aspectos periféricos da representação. Os termos das casas 2 e 3 também parecem exprimir aplicações circunstanciais, frutos da experiência cotidiana dos indivíduos, como a violência, o desrespeito, a discriminação, a miséria e a pobreza. Tabela 2 – Evocações obtidas com base no indutor “injustiça social”- Brasil Ordem de citação ≤2

>2

Frequência ≥ 15

Desigualdade (32; 1,6) Preconceito (33; 1,9)

Violência (16; 2,1)

< 15 ≥5

Desrespeito (9; 1,3) Discriminação (13; 1,7) Miséria (7; 1,6) Pobreza (12; 1,4)

Corrupção (10; 2,5) Desemprego (7; 2,0) Fome (12; 2,0) Racismo (5; 2,0)

Há uma indicação da existência de relação de antônimos entre as representações de justiça e injustiça social, semelhantes à relação entre segurança e insegurança, descrita por Guimelli e Rouquette (2004). Em uma análise qualitativa, a igualdade faz parte do suposto núcleo central de justiça social e a desigualdade, do suposto núcleo central de injustiça social.

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Esquemas Cognitivos de Base (SCB) Cálculo das valências do SCB O cálculo das valências tem por objetivo verificar a multiqualificação das relações de um elemento em referência aos outros elementos de uma mesma representação social. Portanto, foi utilizado para a identificação dos elementos do núcleo central. No entanto, neste estudo, utiliza-se o cálculo das valências para identificar o tipo de relação predominante entre dois elementos de uma temata. Foi aplicada a fórmula padrão para cálculo de valências parciais, conforme a descrição de Flament e Rouquette (2003): V= número de respostas “sim” /zN (somatória das respostas “sim”, z = número de conectores em questão, n = número de participantes) Com base nesse cálculo, obtém-se a valência total que varia entre zero e um. Essa valência mede o número de conexões diferentes entre os elementos, e quanto mais próximo de zero, menos modalidades de relações se aplicam entre os elementos, aproximando-se do pensamento lógico formal. Nesse caso, ocorre uma valência total igual a 0,38, o que significa que poucas modalidades de relação se aplicam à relação entre os elementos justiça e injustiça, confirmando uma certa determinação lógica e racional dos tipos de modalidades que se aplicam entre esses dois elementos. Também foi realizado o cálculo das valências parciais, conforme a mesma fórmula aplicada separadamente a cada família dos SCB (tabela 3). Em seguida, realizou-se uma Anova entre as valências parciais, que indicou que existe uma diferença global entre as valências. Tabela 3 – Valências parciais da relação entre os elementos justiça e injustiça- Brasil Brasil Valência atribuição

0,28

Valência prática

0,46

Valência descrição

0,33 F(2,252) = 32.877, p.2

Frequência ≥ 15

Igualdade (18;1,4)

< 15 ≥5

Direito (7; 1,4) Equidade (9;1,5) Leis (5;1,4) Divisão (5;1,60) Respeito (6;1,33) Utopia (1,50)

Na primeira casa da tabela 4, ocorre apenas a palavra igualdade (égalité) que é o único suposto elemento do núcleo central. Esse termo representa 34,4% das palavras retidas na tabela. No entanto, na quarta casa, onde supostamente estariam os elementos periféricos, nada foi retido. Somente na casa 3, caracterizada por abrigar os elementos instáveis, encontram-se os itens direito, leis, divisão, respeito e utopia (droit, éqüite, lois, partage, respect e utopie). Evocação utilizando como termo indutor a expressão “injustiça social” Tabela 5 – Evocações obtidas a partir do indutor “injustiça social” – França Ordem de citação

≤2

>2

Frequência ≥ 15

Inégalité (14;1,5) Discrimination (13;1,2)

< 15 ≥5

Pauvreté (10;1,10) Racisme (5;1,2)

Na tabela 5 ocorre novamente uma estereotipia centralizada no tocante ao termo desigualdade (inégalité), que representa 33,3% dos termos retidos na tabela 5. Em seguida aparece no núcleo o termo discriminação. Na casa 3 aparecem somente os termos pobreza e racismo (discrimination, pauvreté e racisme). Apenas quatro termos foram retidos na tabela. O conjunto de dados referentes aos dois indutores justiça e injustiça pode indicar uma estereotipia semelhante e ainda mais acentuada que as mesmas representações dos participantes brasileiros.

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Cálculo das valências do SCB Calculou-se a valência total a fim de verificar a multiqualificação das relações entre os elementos, de acordo com a fórmula padrão para cálculo de valências parciais conforme a descrição de Flament e Rouquette (2003). Ocorre uma valência total igual a 0,45, evidenciando certa determinação lógica e racional dos tipos de modalidades que se aplicam entre esses dois elementos. O cálculo das valências parciais também foi realizado, conforme a mesma fórmula aplicada separadamente a cada família dos SCB (tabela 6). Tabela 6 – Valências parciais das relações entre os elementos justiça e injustiça – França França Valência atribuição

0,41

Valência prática

0,50

Valência descrição

0,41 F(2,240) = 9,05, p
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