Habitação e cidade contemporânea: São Paulo e Madrid

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Leandro Medrano Luiz Recaman

Seminário Habitação e Cidade Contemporânea: São Paulo e Madrid (1 : 2013 : São Paulo ) I Seminário Habitação e Cidade Contemporânea: São Paulo e Madrid / organização de Leandro Silva Medrano e Luiz Antônio Recamán Barros . São Paulo : FAUUSP, 2014. p. 80: il. Nota: Seminário realizado em maio de 2013 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) ISBN: 978-85-8089-048-8 1. Habitação (Seminários ) 2. Política Habitacional (São Paulo, SP) 3. Política Habitacional (Madrid). I. Medrano, Leandro Silva, org. CDD 711.13 Serviço de Biblioteca e Informação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea / são paulo e madri” 02-03-04 de maio de 2013 participantes: Pesquisadores da FAUUSP, FEC-Unicamp, FAU-Mackenzie e ETSAM-UPM organizadores: Prof. Dr. Leandro Silva Medrano e Prof. Dr. Luiz Antônio Recamán Barros

Grupo LEAC patrocinador: Fapesp

ETSAM

1ª Edição São Paulo, 2014 Organização e coordenação: Leandro Silva Medrano, Luiz Antônio Recamán Barros Equipe de Pesquisa: Beatriz del Carmen Martínez Gonzáles, Carolina Celete Pinto, Cássia Bartsch Nagle, Desy Frezet, Eliane Roberto Ferreira, Giovana Savietto Feres, Katrin Rappl e Maria Fernanda Sartorelli Saadi Preparação de originais: Ivanilda S. da Silva Projeto Gráfico e Diagramação: André Luis Ferreira Capa: Tainá Colombrini Revisão: Flávia Orsi Impressão Digital (Canon iR ADV 5051/image PRESS 1135+) Vicente Lemes Cardoso

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

índice apresentação Prof. Dr. Leandro Medrano, Prof. Dr. Luiz Recamán ........................................................................... 7 Habitação social em madri. os ensanches madrilenhos e as iniciativas da emVs na periferia de madri Prof. Dr. Nicolas Maruri ...................................................................................................................... 15 nova habitação social na espanha: da periferia ao centro Profa. Dra. Carmen Espegel ................................................................................................................ 21 reabilitação do edifício riachuelo em são paulo Prof. Dr. Paulo Bruna .......................................................................................................................... 27 operação urbana água branca Eliane Roberto, Giovana Feres e Carolina Celete ............................................................................... 33 o labHab e a pesquisa habitacional Prof. Dr. João Sette Whitaker Ferreira ................................................................................................ 39 experiências recentes de habitação na cidade de são paulo Profa. Dra. Lizete Rubano ................................................................................................................... 45 o esquema antiurbano da arquitetura brasileira Prof. Dr. Luiz Recamán ....................................................................................................................... 51 a arquitetura brasileira e a cidade contemporânea Prof. Dr. Leandro Medrano ................................................................................................................. 61 5

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

catálogo de obras 82 Viviendas de protección oficilal en carabanchel Amann + Canovas + Maruri Arquitectos ........................................................................................... 67 118 Viviendas para jovenes en coslada Amann + Canovas + Maruri Arquitectos ........................................................................................... 69 23 Viviendas de realojo en lavapies, madri Espegel + Fisac Arquitectos ................................................................................................................ 71 reabilitação do edifício riachuelo, são paulo Paulo Bruna Arquitetos Associados ..................................................................................................... 73 casarão do carmo, são paulo Hector Vigliecca & Associados ............................................................................................................ 75 gleba a, são paulo Hector Vigliecca & Associados ............................................................................................................ 77 parque novo santo amaro, são paulo Hector Vigliecca & Associados ............................................................................................................ 79

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apresentação O Seminário “Habitação e cidade contemporânea: São Paulo – Madri”, realizado em maio de 2013 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), faz parte de uma pesquisa mais abrangente decorrente de um acordo de cooperação com a Escola Técnica Superior de Arquitetura de Madri (ETSAM) da Universidade Politécnica de Madri (UPM). O objetivo desse acordo é aproximar o debate acadêmico sobre a questão da habitação na cidade contemporânea resultante da experiência madrilena e paulistana. Foram programados seminários e reuniões técnicas entre pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Grupo de Investigación in Vivienda Colectiva (GIVCO), da ETSAM/UPM. O trabalho aqui apresentado é o resultado do primeiro seminário, que contou com a participação dos seguintes professores pesquisadores: Nicolas Maruri (ETSAM/UPM), Carmen Espegel (ETSAM/UPM), Paulo Bruna (FAUUSP), João Sette Whitaker (FAUUSP/FAUMack), Lizete Rubano (FAUMack), Luiz Recamán (FAUUSP) e Leandro Medrano (FAUUSP). Além desses, as estudantes de pósgraduação Eliane Ferreira, Giovana Ferez, Carolina Celete, Beatriz Martinez, Katrin Rappl e Cássia Nagle. O que deu início a essa pesquisa e a esse convênio foi a percepção de um novo patamar da questão urbana na cidade de São Paulo estabelecido nos últimos anos e a evidência de que as estratégias relacionadas à habitação coletiva são protagonistas das possibilidades de alteração qualitativa das estruturas das cidades. Além disso, ressaltam-se as evidências negativas dos esquemas tanto do planejamento totalizador quanto do urbanismo estratégico que ainda vigoram nas intervenções urbanas contemporâneas. Depois de décadas de estagnação de amplos programas habitacionais no país, o início do século XXI concretizou uma série de medidas, em efervescência desde a redemocratização brasileira, que fez avançar tanto a questão urbana quanto a habitacional. O Estatuto das Cidades (2001), o Ministério das Cidades (2003) e o Plano Nacional de Habitação – Planhab (2007) são os principais instrumentos da nova política urbana pretendida. No entanto, em decorrência da crise internacional de 2008 e das políticas anticíclicas adotadas pelo governo brasileiro, a questão habitacional passou a operar em uma outra lógica ligada ao

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financiamento imobiliário e à construção civil em grande escala. Isso significou uma alteração em relação aos parâmetros pretendidos pelo Planhab, no qual a questão habitacional estava vinculada às questões urbanísticas e às distintas realidades regionais, em todos os seus aspectos: geográficos, ambientais, culturais, econômicos e sociais. Essa nova abordagem da questão habitacional tem no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) seu principal mecanismo. Em sua primeira fase, esse programa construiu um milhão de unidades; na segunda fase, em andamento, pretende concluir mais dois milhões de unidades as quais, somadas, representam mais da metade do atual déficit habitacional estimado no país (5,6 milhões de unidades). Cabe ressaltar que 83,3% desse déficit referem-se à áreas urbanas, sendo que 36,6% à região sudeste. O montante de recursos é da ordem de 235 bilhões de reais (BRASIL, 2010). Os problemas habitacionais são especialmente graves na cidade de São Paulo, devido ao seu crescimento acelerado e desordenado na segunda metade do século XX. O PMCMV tem, no entanto, enfrentado dificuldades para se implementar nessa cidade. Os dados oficiais de 2010 indicam que das 4.374 unidades realizadas na Região Metropolitana de São Paulo, apenas 680 localizavam-se na capital (BRASIL, 2010). Deve-se, esse fato, à escassez de terrenos disponíveis para esse tipo de empreendimento, ou aos seus valores de mercado, que inviabilizariam a operação financeira do programa. Além disso, a lógica de ocupação de terrenos baratos e distantes dos centros urbanos, característica embutida na lógica financeira do programa, vai de encontro ao consenso alcançado nas últimas décadas, que identifica as enormes desvantagens dessa estratégia de ocupação territorial. Os grandes conjuntos periféricos tornaram-se um problema urbano, social e ambiental, que caracterizou a conformação dos novos territórios da cidade, principalmente nos anos 1970. No âmbito da Prefeitura do Município de São Paulo, no início deste século, têm sido incentivados programas habitacionais que pretendam inserir os novos conjuntos no tecido urbano consolidado e ligados à infraestrutura existente. Da mesma maneira, intensificou-se a urbanização de favelas e a reciclagem de edifícios nas áreas centrais destinados à habitação social.

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O problema a ser enfrentado neste ciclo de seminários é o fato de, mesmo com esse movimento em direção à cidade, do ponto de vista da lógica geral dos programas, a resposta arquitetônica a esses novos desafios tem se mostrado reativa à urbanidade. Queremos dizer que as estratégias projetuais consolidadas na cidade, ainda que revestidas de uma retórica urbana, tendem a reforçar a cisão entre edifício e meio urbano. Aos problemas amplamente identificados nos diversos programas habitacionais em âmbito nacional e municipal, gostaríamos de acrescentar as dificuldades disciplinares da arquitetura local em enfrentar, em termos renovados, a questão do desenho urbano e as novas demandas surgidas com a ampliação do acesso ao consumo de parte significativa da população. Novos e democratizados usos da cidade passam a ser reivindicação de primeira hora das ampliadas demandas sociais emergentes. A experiência no campo da habitação de interesse social foi sempre um tema destacado no pensamento arquitetônico espanhol. Nas últimas décadas, no entanto, com a maior estabilidade social e econômica, a questão da habitação passou a ser um instrumento estratégico para a construção de novos territórios urbanos e a transformação de áreas de urbanização consolidada. Ultrapassa assim a ênfase quantitativa que sempre esteve associada ao déficit habitacional, em direção a experiências que vinculassem diretamente a questão urbana à implantação de conjuntos e edifícios destinados à moradia. A cidade de Madri teve oportunidade de desenvolver programas inovadores de urbanismo, desenho urbano e habitação de interesse social os quais podem contribuir, em seus acertos e equívocos, para fazer avançar a discussão no Brasil e em São Paulo. A preocupação desta aproximação entre experiências e realidades bastante distintas não consiste em exemplaridade ou modelos a serem perseguidos. Como dissemos, trata-se de refletir sobre a arquitetura, como pensamento social, e sua relação com os outros atores da sociedade. Assim, a experiência madrilena pode auxiliar a definir um papel mais incisivo da arquitetura em São Paulo no que diz respeito à conformação de espaços urbanos e habitacionais, frutos de operações e programas diversos. Em resumo, trata-se de conhecer os mecanismos e resultados da interferência de uma prática de arquitetura consistente e insistente nos processos de transformação urbana, normalmente submetidos a ditames econômicos, financeiros e políticos, onipresentes nas estratégias urbanas contemporâneas. 9

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Ainda no âmbito da discussão disciplinar, buscou-se contrapor essa tradição à brasileira, marcada, notadamente, pela dissociação entre o objeto arquitetônico e a urbanidade. A experiência brasileira recente, com os grandes programas habitacionais, indica que a disciplina não desenvolveu mecanismos consistentes que permitissem que essa oportunidade rara se transformasse na renovação de seu território urbano. Percebemos razões estruturais para essa condição. Neste seminário, além de identificá-las, pretendemos indicar caminhos para novos paradigmas da relação entre arquitetura e cidade. Há tempos identificado pelo pensamento crítico, nosso déficit urbano tem sido, ainda que indiretamente, alvo recente do movimento social. Mesmo a habitação, tema histórico das lutas populares, passa agora a ser visto de maneira distinta: de um direito fundamental à moradia para um componente central do direito à cidade. Gostaríamos de estender essa reivindicação, dirigida frequentemente ao poder público, à disciplina arquitetônica local. A estrutura do seminário buscou apresentar, principalmente, experiências em São Paulo e em Madri, atentando para uma compreensão histórica dos processos que envolvem a questão da habitação social nessas duas conjunturas distintas. O objetivo dessa publicação é documentar as conferências realizadas, que foram gravadas e transcritas para esta finalidade. Ainda que os relatos não estejam na primeira pessoa, pretendeuse conservar as qualidades espontâneas da fala de cada um. No primeiro dia, no Centro Universitário Maria Antonia – USP, o professor Nicolas Maruri apresentou o histórico do desenvolvimento dos programas de habitação social e sua relação com a urbanização e o desenho urbano da cidade de Madri. Ressaltou as recentes realizações do Programa de Atuación Urbanistica de Madrid e, em maior detalhe, dois projetos de sua autoria, vencedores de concursos organizados pela Empresa Municipal de Vivienda. Seguindo a estrutura do seminário, o professor Maruri concentrou a discussão nos projetos realizados nas áreas periféricas da cidade. É importante destacar, nessa apresentação, a procura de urbanidade e densidade populacional desses novos projetos em áreas não consolidadas, e as estratégias de desenho urbano que permitam, por meio de diferentes tipologias edilícias, a inovação dos espaços coletivos. Nesses novos bairros mesclam-se habitações destinadas ao mercado formal com habitação de interesse social, como aquelas apresentadas. 10

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Em seguida, a professora Carmen Espegel apresentou a questão da recuperação do centro histórico de Madri, envolvendo a renovação de seus espaços públicos e livres, a reciclagem de edifícios históricos e a construção de novos edifícios, incluindo aqueles destinados à habitação de interesse social. Em detalhe, apresentou três exemplos, incluindo um edifício habitacional de sua autoria, também vencedor de um concurso público, situado no bairro de Lavapiés, na região central de Madri. Destaca-se, nesse exemplo, a pesquisa das tipologias das tradicionais curralas (espécie de cortiço madrileno) e a proposta de relação direta com o espaço público contíguo que recebe a tradicional feira el rastro nos finais de semana. Esse tipo de intervenção, que procura manter as características arquitetônicas, culturais e sociais do bairro, contribuiu para a rápida recuperação de um espaço central e popular que até o ano de 2000 apresentava graves problemas urbanos e sociais. O professor Paulo Bruna apresentou, na parte da tarde, uma síntese sobre as políticas públicas relativas à renovação do centro antigo de São Paulo no período de 2001 a 2004, quando foi lançado o Programa Ação Centro. Dentre as diversas estratégias adotadas, foi destacado o Programa Morar no Centro, que incentivava habitação no centro da cidade. Uma das mais importantes iniciativas desse programa era a reabilitação de edifícios abandonados para uso habitacional da população de baixa renda. Foi apresentado um projeto de sua autoria que teve suas obras concluídas em 2008. O Edifício Riachuelo, nas proximidades do histórico Largo de São Francisco, desapropriado pela Prefeitura do Município de São Paulo, depois de um período de abandono. Esse edifício originariamente comercial foi reformado para receber 120 unidades habitacionais para uma população de baixa renda. O professou destacou que essa operação, embora complexa em vários aspectos, tem viabilidade econômica e poderia ser reproduzida nos inúmeros edifícios abandonados e subutilizados na região central. A última apresentação do primeiro dia foi organizada pelas alunas da pós-graduação. Cuidou da “Operação Urbana Água Branca”, o estudo de caso paulistano selecionado para o seminário e para a visita técnica. O roteiro consistiu na análise dos aspectos urbanísticos, dos projetos disponíveis para a área e da legislação regente das operações urbanas. Os principais problemas detectados nessa operação são a ausência de qualquer regulamentação morfológica consistente e de participação da população local. Essas deficiências 11

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não são fortuitas, pois indicam o que se mostra evidente à primeira vista: a precedência dos interesses do agressivo mercado imobiliário paulistano em relação aos interesses da população local e da cidade em geral. Portanto, tanto a questão habitacional de interesse social quanto a adequada designação dos espaços livres públicos não puderam ser contempladas até o momento. Os problemas urbanos característicos desse bairro central não serão transformados ou amenizados por meio desse grande investimento. Ao contrário, em vários aspectos prevê-se uma grande deterioração espacial bem como a supressão de suas potencialidades urbanas e sociais facilmente detectáveis hoje. No segundo dia, o professor João Sette Whitaker Ferreira apresentou uma síntese das atividades desenvolvidas no Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP (LABHAB). Tema que tem grande interesse na medida em que esse laboratório, direta ou indiretamente por meio de seus participantes, contribuiu para a elaboração de planos e diretrizes federais que culminaram no Estatuto da Cidade, no Ministério das Cidades e no Planhab. Após uma breve introdução à questão habitacional no país, o professor destacou as recentes políticas públicas para a habitação social, especialmente o Programa Minha Casa Minha Vida. Indicando os diversos problemas desse programa, principalmente sua determinação financeira, destacou as discussões atuais as quais permitiram, segundo o professor, revisões preliminares de alguns aspectos criticados, tanto no que se refere ao edifício quanto às questões urbanísticas envolvidas. No entanto, ele indica que a questão fundiária permanece o problema central da questão habitacional e das cidades brasileiras. Em seguida, a professora Lizete Rubano apresentou em grandes linhas a produção de habitação social desde os anos 1940, apontando a ausência de continuidade da política habitacional do Estado, bem como a frágil ligação entre a questão da habitação social com o planejamento urbano. A retomada dos programas habitacionais dos últimos anos se depara com uma metrópole transformada e com graves problemas sociais e ambientais. Segundo a arquiteta, os exemplos apresentados, obras do arquiteto Hector Vigliecca em São Paulo, enfrentam os problemas que escapariam a outras estratégias de projeto mais tradicionais. Tanto em áreas centrais, como é o caso da recuperação do casarão do Carmo para uso habitacional de baixa renda, 12

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quanto em áreas periféricas, nas quais questões ambientais se somariam à problemática dos assentamentos precários, como é o caso das intervenções em Heliópolis. Esse arquiteto ultrapassaria a oposição entre território planejado e espontâneo, em direção à estruturação do existente pela potencialização de suas vocações urbanas irrealizadas. Essa abordagem é singular na cultura de projeto local, cuja tradição reforça a inconciliável oposição entre o “novo” e a cidade real. Na parte da tarde, os coordenadores do seminário apresentaram uma crítica à questão urbana local segundo dois pontos de vista: a disciplina arquitetônica moderna brasileira e as dificuldade da formação de uma sociedade urbana e moderna no país. Pretenderam ambientar a questão da habitação social em um contexto mais abrangente tanto do ponto de vista da arquitetura brasileira quanto de nossa modernização industrial. No sábado o grupo realizou uma visita técnica ao bairro da Água Branca, onde está sendo realizada uma operação urbana. O objetivo foi confrontar os resultados antevistos na visita com os temas previamente abordados nas conferências, e identificar uma experiência atual na cidade de São Paulo que permitisse um diálogo direto com os interlocutores espanhóis. Esse exemplo foi escolhido por realizar uma intervenção no âmbito de um bairro, que reclamaria soluções de projeto diretamente voltadas às questões urbanas em diferentes escalas. O objetivo foi discutir as experiências paulistanas atuais em relação às de Madri. Levando em conta que a Espanha foi uma das formuladoras do planejamento estratégico, via modelo Barcelona, também desenvolvido nos Programas de atuación urbanistica e as renovações das áreas centrais de Madri. O seminário não procurou exemplos ou contrapontos, mas, sim, canais a partir dos quais pudesse estabelecer diálogos e intensificar as trocas culturais. Isso foi alcançado na medida em que foi feito um amplo panorama histórico das questões mais importantes, seguido de exemplos. A intenção em discutir a experiência local por meio de preocupações urbanas consistentes foi alcançada. A experiência espanhola mostra que o desenho urbano pode influenciar as políticas públicas urbanas, ainda que não determiná-las plenamente. No Brasil, assistimos o exato oposto. As políticas urbanas não consideram de maneira adequada as questões de desenho da cidade, em todas as escalas de intervenção. Assim destituída de lógica abrangente, a arquitetura das

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cidades no Brasil não encontra formas urbanas consistentes, contentando-se com seu desenho contingente e voluntarioso. Do mesmo modo, devem-se considerar de maneira contundente os impasses do modelo urbanístico estratégico, identificados pela crítica desde sua origem, que demonstram a necessidade de encontrar alternativas urbanísticas e arquitetônicas a permitir resolver tanto a questão da habitação quanto a afirmação das qualidades urbanas das cidades atuais. Se estão identificados os problemas de gestão e financiamento dos empreendimentos, sua relação com as soluções arquitetônicas ainda deve ser melhor analisada, para se poder conhecer as alternativas e seu caráter crítico indispensável. Ou seja, levar à arquitetura e seus procedimentos uma forma crítica relativa a uma renovada perspectiva social. Essa pode estar embrionária em diferentes projetos recentes, e o seminário proposto procurou consolidar instrumental metodológico para sua identificação e fortalecimento. O seminário mostrou que países os quais passaram por um processo de renovação disciplinar no sentido de uma maior ventilação da arquitetura e urbanismo pelos ares da cidade real, mesmo em suas formas radicais e informais, podem responder com maior desenvoltura aos desafios das cidades contemporâneas, principalmente diante de sua crise paradigmática. Prof. Dr. Leandro Medrano (FAUUSP) Prof. Dr. Luiz Recamán (FAUUSP)

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Habitação Social em Madri. Os Ensanches Madrilenhos e as Iniciativas da EMVS na Periferia de Madri

nicolas maruri Arquiteto. Professor Titular da Universidad Politécnica de Madrid (UPM) e sócio do escritório de arquitetura Amann-Canovas-Maruri

Prof Dr. Nicolas Maruri - p. 15-20

Habitação social em madri. os ensancHes madrilenHos e as iniciatiVas da emV na periferia de madri

introdução A apresentação do arquiteto Nicolas Maruri abrangeu as diversas fases de expansão urbana de Madri nos últimos 100 anos, além do tema do planejamento urbano e da habitação social na periferia da cidade. Foi apresentada uma comparação entre as escalas macro das cidades de Madri e de São Paulo. Posteriormente, foi analisado o crescimento de Madri e sua relação com a construção de habitação social na periferia. Finalmente, o arquiteto abordou os Programas de Actuación Urbanistica (PAU), que são os novos bairros construídos a partir de 2000 na periferia da cidade, apresentando, assim, as políticas públicas e análises de projetos realizados por arquitetos convidados ou ganhadores dos concursos públicos promovidos pela Empresa Municipal de Vivienda Social (EMVS), em Madri. A apresentação do arquiteto Nicolas Maruri iniciou-se por meio da comparação entre duas imagens: a primeira da região do Plan Castro1 em Madri, cujo desenho regular de quadra, com área de 100 x 100 m e densidade de 150 unid./ha, é muito distinto em relação à segunda imagem apresentada, da região central de São Paulo. De acordo com o arquiteto, o desenho de São Paulo difere em complexidade e flexibilidade em comparação às quadras planejadas de Madrid o século XIX. Além do desenho da cidade, foram analisados os seguintes elementos:

1 O Plan Castro foi o plano de expansão da cidade de Madri planejado em 1846, chamado assim em homenagem a Carlos Maria de Castro, o urbanista promotor do plano.

• Densidade de população; • economia das cidades; • transporte público; • unidades habitacionais.

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Depois de comparar dados demográficos e econômicos sobre as duas cidades, foram analisados os sistemas de transporte público, característica que, conforme o arquiteto, costuma ser um indicador do nível de desenvolvimento urbano das cidades. São Paulo apresenta, atualmente, uma extensão de linhas metroviárias equivalentes a 1/5 das linhas existentes em Madri, ainda que com uma população quatro vezes maior. Em relação à disponibilidade de unidades habitacionais, Maruri destacou a dicotomia entre as duas cidades: São Paulo, hoje, sofre com o déficit habitacional ao mesmo tempo em que Madri possui um estoque de habitação superior à demanda. No tocante à habitação de interesse social, explicou que na abordagem desse tema é fundamental a consideração de três fatores: • Planejamento urbano, necessário ao desenvolvimento de uma política social de habitação; • definição de parâmetros mínimos de qualidade das habitações; • financiamentos públicos para construção de unidades. Na Europa, esses três elementos foram estabelecidos pela primeira vez em 1900 na Holanda e, a partir de então, todas as políticas públicas de habitação desenvolveram-se tendo como referência o modelo holandês. A exigência de se desenvolver uma política habitacional em Madri surgiu em decorrência do contínuo crescimento populacional na cidade entre 1842 até 1970, quando este se estabilizou; a partir desse momento se inicia um processo de especulação imobiliária e de oneração do preço da terra. Maruri apresentou, ainda, uma análise histórica do crescimento de Madri a partir do primeiro grande plano de expansão, o Plan Castro de 1846. Até aquele momento, a cidade estava marcada por limites geográficos claramente definidos, edificada no espaço entre as duas residências reais2. O Plan Castro foi, portanto, a decisão política de mudar a densidade populacional da cidade e prever a duplicação de sua extensão territorial. Nessas novas áreas foram construídos apartamentos com 16

2 Palacio Real e o atual Parque del Retiro.

Habitação Social em Madri. Os Ensanches Madrilenhos e as Iniciativas da EMVS na Periferia de Madri

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3 Plan General de Ordenación de Madrid (1941), lei especial aprovada em 1946. Foi um plano urbano de ampliação de Madri. Suas obras foram iniciadas em 1941, pelo arquiteto e urbanista Peter Bidagor Lasarte, portanto, o plano também é conhecido como Bigador Plano. Esse foi o primeiro plano urbanístico elaborado na Espanha que regulamentou globalmente o uso da terra.

metragens maiores que o convencional com a finalidade de atrair a classe média e, simultaneamente, diminuir a densidade da área central. Em contrapartida, a ocupação periférica do território municipal foi incentivada e realizada, em boa parte, mediante a autoconstrução de moradias pela população carente, cujo acesso à cidade consolidada não era possível.

4 El consurso de vivienda experimental foi um concurso de arquitetura promovido pela prefeitura de Madri em 1956. Foram convidados os melhores arquitetos jovens para propor ideias sobra habitação miníma promovendo as técnicas de pré-fabricação.

Esse processo perdurou até 1946, período marcado pela guerra civil e pela destruição de grande parte das cidades espanholas, época em que a população madrilena correspondia a um milhão de habitantes e, por meio do Plan General de Ordenación3, foi planejado um cinturão verde ao redor da cidade. O plano de 1946, então, foi realizado para 50% da população da cidade que não possuía habitação, cerca de 500.000 habitantes, já que após a Segunda Guerra faltou uma política urbana habitacional que mantivesse o controle do crescimento da cidade.

5 Los poblados foram os novos bairros periféricos criados em Madri nos anos de 1950, segundo um modelo de cidades satélites ao redor da cidade consolidada.

De acordo com o arquiteto, a implementação de um novo plano, em 1952, organizou a cidade em zonas, cuja infraestrutura rodoviária e de parques existe até hoje. Todavia, a população continuou a crescer, em decorrência do êxodo rural de uma população que buscava o trabalho que se intensificava nas fábricas. Dessa forma, os problemas habitacionais também se acentuavam, já que o país passava por um momento econômico delicado, com suas fronteiras fechadas à importação de matéria-prima para a construção civil. Por conseguinte, em 1956, com discussões a respeito de um plano de emergência social, organizaram-se alguns concursos para a produção de habitações pré-fabricadas, o Concurso de vivenda experimental4, a criação dos poblados5, além de todo o planejamento focado na habitação de interesse social, baseado em um modelo moderno, aproximadamente 40 anos após sua teorização. Em comparação com o Plan Castro, nessas intervenções o desenho da quadra foi substituído pelo modelo de blocos abertos, rodeados de espaços verdes. No entanto, na periferia madrilena não existiram tais espaços, tampouco infraestrutura para conectar essas intervenções à cidade existente, culminando, portanto, em bairros isolados destinados à população de baixa renda. 17

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Como exemplo, o palestrante apresentou o projeto do bairro de Entrevias6, situado na região sudeste de Madri, área ocupada por barracos autoconstruídos pelos próprios moradores sem condições de comprar moradias na cidade. O critério adotado para a revitalização local foi a manutenção dos moradores nos locais já ocupados, substituindo as chabolas7 por habitações sociais, cujos projetos foram desenvolvidos por jovens arquitetos convidados. As habitações, com área mínima de 45 m², possuíam sala, cozinha, banheiro e dois dormitórios, e suas construções foram organizadas sob a forma de mutirões. Com divisão em grupos coordenados pelos arquitetos, esses grupos construíam suas próprias casas aos finais de semana, como parte do pagamento pela aquisição do imóvel. A experiência dos poblados terminou no fim dos anos de 1950, entretanto, até os anos 1970 existiam assentamentos informais nas regiões periféricas da cidade8. Ademais, Maruri mostrou um Plano de Madri de 1970 desenhado pelo exército. Nele é possível verificar o crescimento deformado da cidade em direção ao norte, além da criação do Aeroporto de Barajas. Na década de 1980 foram planejadas pequenas áreas de crescimento, como a proposta Plano Madrid Sur, que previa a construção de 10.000 unidades habitacionais na região sul da cidade. Esse plano procurou reproduzir os espaços de sociabilidade existentes na habitação burguesa do Plan Castro. Nesse ritmo, a cidade continuou seu processo de transformação até 1985, quando atingiu um desenvolvimento quase completo. Analisando esses projetos, Maruri chamou a atenção para a mudança do ideal de cidade, isto é, a crítica ao movimento moderno repensou a importância da rua como um elemento organizador do espaço urbano e, nessas experiências, os arquitetos ocuparam todo o desenho da quadra, propondo um modelo baseado na ocupação perimetral, com pátio interno e de uso particular, com acesso às unidades pelo interior dos blocos. Dessa forma, no entanto, a rua resultou em um espaço vazio, com poucas atividades, uma vez que os comércios, por sua vez, passaram a ser adensados em shoppings. Segundo o arquiteto, esse tipo de cidade assemelha-se às cidades medievais, porém sem as mesmas complexidades e densidades. 18

6 O projeto de entrevias foi realizado pelo arquiteto F. J. Sáenz de Oiza, que fazia parte da equipe de jovens arquitetos contratada pela prefeitura de Madri na realização dos Poblados Dirigidos, novos bairros periféricos da cidade. 7 Chabola é um tipo de assentamento humano marginal precário, frequentemente formado por pessoas socialmente excluídas. Assemelha-se às favelas brasileiras. 8 Referência ao El Pozo del Tio Raimundo, um bairro periférico de Madri que cresceu por meio da autoconstrução das casas e sem a implantação de infraestrutura básica até a chegada dos jesuítas em 1955, quando várias intervenções foram promovidas pela prefeitura de Madri.

Habitação Social em Madri. Os Ensanches Madrilenhos e as Iniciativas da EMVS na Periferia de Madri

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De acordo com o palestrante, a introdução da história do urbanismo de Madri é importante para a compreensão daquilo que a cidade representa hoje, bem como do que são os Planes de Actuación Urbanística, responsáveis atualmente pelo desenvolvimento da parte periférica da cidade espanhola. Esse plano urbano, segundo o arquiteto, foi desenvolvido a fim de produzir mais solo urbano, os Solos Urbanos No Programados (SUNP), considerados áreas passíveis de urbanização. Essa iniciativa visava, também, a baixa dos preços das habitações a partir do aumento da oferta, algo sem justificativa para o arquiteto, já que não existia demanda excedente. Maruri acredita, portanto, que, por interesses meramente políticos, a Espanha era o país europeu que mais investia em moradia de interesse social na ocasião da primeira década dos anos 2000. Por uma questão de obrigatoriedade, para o recebimento das novas edificações, iniciou-se o processo de urbanização dessas novas áreas, dotando-as de infraestrutura básica, como pavimentação, iluminação, rede sanitária, etc. Todavia, Maruri afirmou que o desenho urbano desse espaço é “desastroso”, já que está baseado na monofuncionalidade, nas baixas densidades, na ausência de complexidade urbana e no superdimensionamento de seu traçado. considerações finais e abertura ao debate A exemplo dessas experiências, o arquiteto apresentou uma série de projetos habitacionais provenientes de concursos de arquitetura, nos quais os critérios de seleção foram a inovação, a releitura da manzana e a qualidade arquitetônica. Suas características principais são: • manzana en L; • manzana extensa – habitação com teto verde; • manzana ocupada – bloque perforado; • viviendas en corredor; • torre pixelada – interiores inter-relacionados; 19

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

• manzana en línea – varanda perimetral; • manzana en torre – habitações cruzadas; • manzana en C – habitações em círculo; • manzana mirador — habitações de catálogo; • manzana en celosia – habitações “de costas”; • manzana apilada – habitação flexível; • manzana en L – habitação extra; • viviendas unifamiliares adosadas – de extremo a extremo. Por fim, Maruri apresentoudois casos de habitação coletiva desenvolvidos por seu escritório: • manzana perimetral – 81 viviendas en Carabanchel para la EMV; • manzana em estrella – em Coslada. Em decorrência do supracitado, o arquiteto salienta que a Empresa Municipal de la Vivienda de Madri (EMV) passou, então, a ser responsável pelo desenvolvimento das habitações protegidas, ou seja, aquelas que têm custo limitado pelo Estado e são ofertadas às pessoas com limite de renda. Assim, convocaram-se concursos nacionais e internacionais de arquitetura, demonstrando a abertura da entidade promotora no recebimento de propostas inovadoras e alternativas ao que vinha sendo produzido até então, acreditando que essas experiências pudessem influenciar os novos projetos e elevar, dessa forma, o nível da qualidade arquitetônica das habitações e do próprio bairro. Ainda que a EMV tenha demonstrado, em um primeiro momento, certa abertura em relação às novas proposições, ela também foi exigente nas questões quantitativas em cumprimento das normativas que regulamentam a habitação social na Espanha.

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Nova Habitação Social na Espanha: Da Periferia ao Centro

Profa. Dra. Carmen Espegel - p. 21-26

carmen espegel

noVa Habitação social na espanHa: da periferia ao centro

Arquiteta. Professora Titular da Universidade Politécnica de Madri (UPM), e responsável pelo Grupo de Investigação de Vivienda Colectiva (GIVCO)

introdução

1 “Chabola” é um tipo de assentamento humano marginal precário, frequentemente formado por pessoas socialmente excluídas; assemelham-se às favelas brasileiras.

A apresentação da arquiteta Carmen Espegel concentrou-se na exposição de diversos projetos de habitação coletiva, frutos de concursos de arquitetura, convocados pela Empresa Municipal de la Vivienda (EMV) com o objetivo de revitalizar o centro de Madri. Carmen ressalta que a determinação de intervir no centro da cidade, oficializada por meio do Plano Urbanístico de 1985, está diretamente relacionada a questões de ordem econômica, já que em momentos de crise, busca-se recuperar o existente por meio de intervenções mais comedidas no centro da cidade, enquanto que em momentos de pujança econômica planeja-se o novo mediante propostas mais ousadas, como as encontradas na periferia de Madri, em decorrência do Plano Urbanístico de 1997. A arquiteta selecionou três projetos habitacionais considerados referências na reinterpretação do contexto e na proposição de novas leituras a respeito dos modos de habitar, e finalmente concluiu sua apresentação com um posicionamento pessoal a respeito da habitação do futuro e a relação desta com a cidade. A Empresa Municipal de la Vivienda (EMV) nasceu em 1981 com amplos objetivos, tais como a produção de habitações, o desenvolvimento de planos urbanísticos, a erradicação de chabolas1, a realocação da população das favelas, o lançamentodo movimento cooperativista do Plan 18000, o desaparecimento dos cortiços (problema frequente no centro de Madri), além da promoção e gestão do Plano de Aluguel de Habitações, o qual, segundo a arquiteta, não é muito claro, já que a habitação na Espanha é fundamentalmente de propriedade privada. Na busca por exemplificar a abrangência de atuação da EMV, a autora apresenta uma série de intervenções promovidas pela empresa no centro de Madri, mais especificamente no bairro de Lavapiés, o qual, segundo a arquiteta, é um lugar peculiar, consolidado originalmente em função de uma fábrica de 21

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

cigarros, que teve sua densidade ampliada por meio das corralas2 e, posteriormente, pela imigração, por encontrarem ali habitações economicamente acessíveis em decorrência das características do bairro. O bairro Lavapiés, que esteve em decadência até o ano 2000, passa por um processo de reurbanização a partir de intervenções pontuais promovidas pela EMV, nomeadas pela arquiteta como uma “verdadeira acupuntura” no tecido urbano do centro da cidade. Esses foram os projetos por ela apresentados: • Calle Embajadores, 37, dos arquitetos Jesús San Vicente e Juan Ignacio Mera: um projeto rossiano. • San Bernabe, do arquiteto Mariano Bayón: reinterpretação das “corralas”. • Pavilhão Espeortivo Daoiz Velarde, dos arquitetos Oscar Tusquets e Carles Díaz: antigo galpão ferroviário. • Doctor Salgado I Y II, dos arquitetos Chema Lapuerta e Camen Moreno: habitações formalmente contidas. • Arregui Aruej, dos arquitetos Ábalos y Herreros: uso de materiais até então desconhecidos para a função habitacional, atrelados em maior escala ao uso industrial. Até 1999, 80% dos concursos de arquitetura promovidos pela EMV eram limitados a uma concorrência de preços, favorecendo, logo, o baixo custo do projeto e da obra, o que muitas vezes acabava por limitar a inovação e a arquitetura de qualidade. A partir de 2000, essa ordem é invertida, transformando 80% dos concursos de arquitetura em concorrências abertas de projetos e, com a continuidade desse processo, em 2005, 100% dos concursos promovidos pela EMV passaram a ser abertos. Isso consistiu em uma mudança de mentalidade da empresa e representou o estímulo à participação dos arquitetos nas discussões acerca da habitação e dos modos de habitar. Por outro lado, lembrou a arquiteta, os concursos foram e continuam sendo balizados por normativas antigas, defasadas para o momento atual, apresentando-se em muitos casos como obstáculo para o 22

2 As “corralas” são habitações tradicionais de caráter coletivo do centro de Madri, construídas no interior das quadras, onde o acesso aos apartamentos acontece por meio de galerias horizontais de circulação. Cada habitação apresenta normalmente um único acesso e uma única abertura para iluminação e ventilação, com pátios internos geralmente estreitos. Por ser considerada de baixa qualidade, esse tipo de habitação abriga, na maioria dos casos, uma população menos favorecida, semelhante aos cortiços. Simultaneamente, entretanto, propicia a mescla social, já que muitas vezes se localiza em bairros nobres e a precariedade das habitações faz com que os moradores façam uso intenso dos espaços públicos, o que favorece e promove ainda mais a vitalidade das ruas e do convívio interpessoal.

Nova Habitação Social na Espanha: Da Periferia ao Centro

Profa. Dra. Carmen Espegel - p. 21-26

avanço da disciplina como um todo. De acordo ainda com a autora, os projetos a seguir exemplificam um novo momento da produção arquitetônica, em que a habitação estava sendo interpretada como um elemento standard, produzida por meio de processos industriais, prevalecendo, assim, o uso de materiais e sistemas não usuais no campo da habitação até o referido momento: • Rafael Finat, 56, dos arquitetos Aberto Martínez Castillo e Beatriz Matos; • Amparo, 38, do arquiteto Miguel Fernandéz; • Blasón, 20, dos arquitetos Bernardo Angelini e David Casino, com uso da cobertura do edifício como extensão da fachada e início das discussões sobre sustentabilidade e fachadas verdes; • Arquiteto Soli, tentativa de tornar abstrata a fachada de uma habitação, onde função não determina forma; • Jardin de la Reina, projeto dotacional, exemplificando a qualidade da arquitetura dotacional que estava sendo desenvolvida naquele momento. Posteriormente, relacionou-se ainda três casos com projetos habitacionais coletivos, selecionados e executados por concursos de arquitetura promovidos pela EMV entre os anos 2000 e 2005, todos localizados no centro da cidade, especificamente nos bairros de Atocha e Lavapiés. 1) O primeiro exemplo apresentado são 43 Viviendas de Protección Oficial (VPO)*– el Águila-Alcatel, dos arquitetos Maria José Pizarro y Oscar Rueda, com custo aproximado de 617 €/m², em uma pequena manzana triangular, próxima à Estação de Atocha, iniciado em 2000 e concluído em 2004. Para a arquiteta, a trama urbana (o contexto) é fundamental, sendo este um dos principais diferenciais entre a atuação no centro e a atuação na periferia. Neste exemplo, adota-se a implantação de dois blocos, ao invés de um bloco em diagonal, como previa a legislação. Esses blocos se relacionam com

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

a trama existente e um espaço intermediário entre eles que dialoga com o vazio das linhas de trem da Estação Atocha, criando uma dupla escala e uma dupla leitura do projeto. Foram determinadas duas tipologias em função da orientação solar: uma com galeria horizontal de circulação e outra com ventilação cruzada e núcleo de circulação vertical. Optou-se também por materiais pré-fabricados, como os painéis de concreto estrutural (dispensando o uso de pilares), nas versões maciço e vazado, além do U glass vedando a circulação vertical. 2) O segundo exemplo é de 22 Viviendas de Protección Oficial (VPO)3 de alquiler para jóvenes, na Plaza General Vara del Rey, no bairro Del Rastro, com uma atividade comercial relevante para toda a cidade de Madri. Foi realizado pelos arquitetos Mónica Alberola, Luis Díaz Mauriño e Consuelo Martorell, entre os anos de 2005 e 2010. Seu custo foi de 770 €/m². Durante os finais de semana, o contexto urbano dessa área muda completamente por conta de um mercado de pulgas que acontece na Plaza General Vara Del Rey. Por isso, a equipe vencedora preocupou-se em inserir o edifício habitacional nesse contexto, permitindo que a feira fosse estendida ao seu interior, no térreo e primeiro andar, promovendo uma conexão entre o edifício e a cidade. Esse diálogo também acontece em relação à definição do gabarito, das aberturas e do sistema de acesso às habitações, que respeitam os elementos encontrados no entorno. Optou-se por materiais fortes e consistentes, como o aço e o concreto, prevendo a pouca verba disponibilizada para a manutenção dos edifícios voltados para habitação social. 3) O terceiro e último projeto apresentado é um trabalho da própria arquiteta, Carmen Espegel, ganhadora de um concurso restrito, para construção de Viviendas Sociales para Realojo, na rua Embajadores, 52, em Lavapiés. Esse tipo de habitação é classificado como inferior em relação às VPO, e por esse motivo deve apresentar um custo compatível à sua classificação, aproximando-se de 400€/m². Para o partido principal adotado foi o lema “o doble o nada”, por considerar que uma habitação barata é aquela que é 24

3 As habitações coletivas, de modo geral, são classificadas na Espanha como Viviendas Libres (VL) ou Viviendas de Protección Oficial (VPO). A primeira, como o próprio nome indica, é livre em relação ao controle do Estado, prevalecendo, portanto, as forças reguladoras do mercado. As que são chamadas protegidas VPO (ou também viviendas de protección pública e ainda viviendas protegidas) são aquelas que apresentam um valor taxado, subvencionado pela administração pública.

Nova Habitação Social na Espanha: Da Periferia ao Centro

4 Pronunciamento da palestrante Carmen Espegel em Maio de 2013 na FAUUSP.

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eficiente economicamente e, para tanto, ela deve ser fisicamente protegida, isto é, ter dupla cobertura, dupla parede, duplo caixilho, etc. Outro ponto considerado pela arquiteta foi a questão do perfil dos habitantes do bairro (classe operária e imigrantes em sua maioria) e do perfil de suas habitações, somados ainda à tradição construtiva das corralas. Dessa forma, o projeto proposto apresenta-se como uma reinterpretação do existente, já que se mantiveram as galerias horizontais das tradicionais corralas, as quais permitem a vista não só do pátio interior, como também da rua principal por meio de vãos e pátios que aparecem na fachada, estabelecendo assim uma conexão entre o interior da quadra e seu exterior. Outro fato importante é que essas circulações horizontais foram executadas em dimensões pouco maiores do que as mínimas exigidas, o que permite pequenas reuniões entre os vizinhos nesses espaços, somando à função de circulação as funções de permanência e convívio. considerações finais e abertura ao debate A partir do exposto, a arquiteta concluiu sua apresentação com a leitura de um manifesto sobre o que ela espera e/ou acredita ser a habitação ideal para nosso futuro: A habitação deve conformar-se como um condensador social, ou seja, deve ser proporcionada programaticamente a integração não apenas dentro dos limites do edifício, mas também entre os bairros e as cidades4.

Para tanto, fez algumas proposições sobre sua conclusão, como, por exemplo, a mescla de VL com VPO, gestão complexa, porém, interessante a seu ver, já que possibilita equilibrar as diferenças sociais, o que poderia resultar em uma sociedade muito mais homogênea e democrática. Ademais, o uso coletivo de atividades comuns às habitações, tais como, lavar, armazenar, lazer, entre outras, bem como o direito de cada pessoa ter uma habitação (vivienda unipersonal), também se apresentam como alternativas plausíveis à arquiteta.

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

Finalmente, ressalta e conclui que a habitação deveria ser compreendida como um programa tão sério e relevante quanto outros e, por isso, merecedor de uma industrialização, automação e estandardização, visando a eficiência energética das habitações e do próprio processo construtivo.

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Reabilitação do Edifício Riachuelo em São Paulo

paulo bruna

reabilitação do edifício riacHuelo em são paulo

Professor Titular – FAUUSP

introdução

Prof. Dr. Paulo Bruna - p. 27-32

O professor apresentou o caso da reabilitação do Edifício Riachuelo, na região central da cidade de São Paulo. Originalmente um edifício de escritórios, projetado na década de 1940, encontrava-se abandonado e decadente no início dos anos 2000. Sua reabilitação, de 2005 a 2008, transformou-o em um edifício habitacional de interesse social, o qual teve como responsável pelo projeto o escritório do arquiteto. O professor Paulo Bruna acompanhou o processo desde a fase inicial de levantamento técnico das condições físicas e estudos iniciais de leiaute, bem como a fase de desenvolvimento de projetos técnicos e de estudos de pós-ocupação. O professor Paulo Bruna iniciou sua apresentação retomando a história do centro de São Paulo, seu crescimento populacional e sua expansão territorial até o ano de 1960. Cidade que até 1870 tinha uma população de 31 mil habitantes, e contava já com a Academia de Direito de São Paulo, no Largo São Francisco, iniciativa que proporcionava à pequena cidade uma vida cultural ativa. A partir do início do século XX, a cidade passou por um crescimento desordenado em virtude do desenvolvimento do café e das ferrovias que a interligavam ao interior do estado e à cidade de Santos, onde se situava o porto de escoamento. Esse processo desencadeou um aumento do número de imigrantes e, consequentemente, um aumento populacional para cerca de 240 mil habitantes em poucas décadas. A cidade passou a ser reconhecida, portanto, como centro operacional da produção cafeeira, fato que levou à transferência das residências dos “barões do café” para a cidade de São Paulo. Esta mudança configurou o surgimento de uma importante classe administrativa e a consequente transformação de seu centro, o qual, passou, então a sediar o desenvolvimento econômico da região. Nesse mesmo período são construídos palacetes, teatros, bancos, tribunais, bolsas de valores, etc.

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

A crise econômica eclodida em 1929 gerou a retração do comércio internacional e provocou alterações políticas e econômicas importantes no país. O fim da Primeira República levou a um projeto de modificação das estruturas de exportação, que transformou a cidade de São Paulo em um centro de industrialização emergente. Em 1930, a cidade já alcançava um milhão de habitantes. Após a Segunda Guerra esse crescimento se intensificou, chegando a 3,7 milhões de habitantes em 1960. Nesse processo de crescimento, seu centro histórico, inicialmente construído na várzea do rio Tamanduateí, foi aos poucos se expandindo para as ladeiras ao redor, espaços em declive acentuado em relação ao Parque Dom Pedro e à Praça da Bandeira, como a rua Riachuelo e a Ladeira Porto Geral. Após essa breve introdução, o professor Paulo Bruna inicia a apresentação do Edifício Riachuelo, localizado na rua de mesmo nome no centro da cidade, próximo à Catedral da Sé (seu marco zero), ao Viaduto do Chá e ao Vale do Anhangabaú. O projeto inicial data de 1942, e a conclusão da obra, de 1945. Realizado pelo escritório de engenharia civil Lindemberg & Assumpção, da iniciativa privada, o edifício seguia o padrão da época e possuía salas autônomas de escritórios, com 45 a 50 m² cada, interligadas entre si e aos sanitários por corredores. Com área construída de 8.700 m², distribuída em 17 pavimentos, o edifício foi erguido em terreno relativamente pequeno (546 m²) de formato triangular e de desnível acentuado. Essa configuração espacial ocasionou o desenvolvimento de planta em formato de “A”, com duas faixas laterais de escritório ligadas a dois corredores, por sua vez interligados a partir de um hall, em que então se encontrava o eixo de circulação vertical (três elevadores, uma escada e poços de ventilação). A construção de um edifício desse porte só foi possível devido ao elevado coeficiente de aproveitamento existente na época. Bruna ressaltou a engenhosidade com que o edifício fora construído. Em cada sala havia uma parede extremamente rígida que funcionava estruturalmente contra a torção do prédio em decorrência da ação 28

Reabilitação do Edifício Riachuelo em São Paulo

Prof. Dr. Paulo Bruna - p. 27-32

dos ventos, resistindo assim à deformação. Nesse sentido, contava também com um grande número de pilares, que resultou em vãos menores e travamentos bem definidos. Com isso, o processo de reabilitação do edifício teve de ser bastante cauteloso com a estrutura existente e, segundo o arquiteto, se tais paredes fossem retiradas, seria necessário um reforço nos nós da estrutura para evitar a torção propiciada pelos ventos. Em relação aos usos anteriores à reabilitação, como o edifício pertencia originalmente a uma empresa privada, funcionava ali um programa variado, com restaurantes, cabeleireiros para as funcionárias, consultoria jurídica, salas de aula para treinamento dos funcionários e outros ambientes. Posteriormente, parte da edificação transformou-se em uma escola de contabilidade e os andares superiores foram vendidos. Em seus últimos anos de atividades, a escola fechou e os andares acima foram sendo desocupados gradativamente, levando ao esvaziamento completo do prédio. Por conseguinte, nos anos 1970, foi invadido por grupos de sem-teto, ocasião em que a polícia agiu e houve conflito resultando em vandalização, com remoção de tubulações de água pluvial, danificação de esquadrias e quebra de vidros. Com o tempo, essas ações ocasionaram deterioração e comprometeram toda a estrutura a partir da entrada de água da chuva no interior do edifício. Além disso, para se evitar nova invasão, o edifício foi murado até o quarto andar, perpetuando então seu abandono e degradação. Quando o centro da cidade ganhou atenção, por parte do governo municipal a partir de programas de renovação do centro, na gestão da prefeita Marta Suplicy em 2000, as secretarias municipais foram transferidas para o centro da cidade, ocasionando nessa área a geração de empregos em serviços e comércios. Para suplementar tais mudanças, era necessária ainda a provisão de moradias na área central para estimular a vinda de uma população permanente para a região. Essa iniciativa pretendia aproveitar a infraestrutura existente e consolidada – como linhas de metrô, redes sanitárias e de energia, e coleta de lixo –, ao invés de incentivar o habitual crescimento da periferia da cidade, na qual é necessária a implantação de toda essa estrutura.

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

O Edifício Riachuelo possuía débitos de Impostos Prediais Territoriais Urbanos (IPTU), o que facilitou sua compra pela Prefeitura da cidade de São Paulo. Esta, entretanto, exigiu estudo detalhado para a confirmação da possibilidade de sua reabilitação para fins habitacionais. A partir de uma licitação, o arquiteto Paulo Bruna iniciou então seu trabalho, que foi dificultado pela inexistência das plantas estruturais do edifício, uma vez que o escritório responsável havia sido fechado e os seus arquivos perdidos. Dessa maneira, o primeiro passo para a reabilitação foi o levantamento detalhado a partir de medições in loco e do redesenho das plantas de todos os andares. Posteriormente, foi necessário ainda realizar um estudo da estrutura do prédio com elaboração de provas de carga para verificação de sua qualidade. Esses procedimentos resultaram em um relatório atestando suas boas condições, o que propiciou a compra do edifício pela prefeitura e a contratação do escritório do arquiteto Paulo Bruna. A ideia inicial da proposta de reabilitação do Edifício Riachuelo era a de se produzir habitação de interesse social para aluguel. Na mesma época em que a obra fora finalizada, entretanto, a prefeitura demoliu o Edifício São Vito, em estado bastante degradado. Foi oferecida, então, a possibilidade de seus moradores comprarem os novos apartamentos do Edifício Riachuelo recuperado. Quanto à reabilitação propriamente dita, a complexidade da intervenção, segundo o arquiteto, foi grande, já que não se tratava apenas da restauração e criação de apartamentos, mas de preservar o valor histórico do edifício, segundo as normas do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Para tanto, foi necessário respeitar a alvenaria estrutural existente, o que impossibilitou a abertura de espaços e condicionou a divisão e a forma dos apartamentos. Como resultado, obteve-se oito tipos de unidades diferentes. Os antigos banheiros se tornaram também apartamentos, e os poços de ventilação foram mantidos. Os 17 andares passaram a abrigar 120 unidades habitacionais e a planta básica de cada 30

Reabilitação do Edifício Riachuelo em São Paulo

Prof. Dr. Paulo Bruna - p. 27-32

unidade possuía uma sala, um ou dois dormitórios, uma cozinha, com tanque e máquina de lavar, ao lado de um banheiro, separados por uma parede hidráulica com tubulações visitáveis. Além disso, no 17º andar foi criado um salão social de uso comum, a partir da qual se tem uma vista privilegiada da cidade. Quanto ao levantamento pós-ocupação, o arquiteto observou a apropriação do lugar pelos moradores, já que houve melhoramentos de forma geral, por parte deles, nos apartamentos, tais como pintura das paredes de cores fortes e vivas, e também não foram encontradas pichações. No caso desses edifícios, ainda, a demolição constituiria perda em relação à área de construção, já que o alto coeficiente de aproveitamento original não seria permitido atualmente e, portanto, a execução de um novo edifício resultaria em área menor a partir do coeficiente atual (4,0). Conforme descreveu o professor Paulo Bruna, o sucesso da iniciativa foi tal que se decidiu prosseguir com novos projetos, lançando-se um programa de reabilitação para 100 edifícios do centro. Fundação para a pesquisa Ambiental (Fupam), foi contratada para realizar levantamentos no centro expandido, concluindo que havia muito mais do que 100 edifícios desocupados. Alguns, contudo, foram eliminados do projeto por possuírem problemas legais, como de inventário ou por conter problemas estruturais. Dos edifícios levantados foram selecionados 50 para desenvolvimento dos projetos, por melhor permitirem a instalação de habitações; entretanto, nenhum deles foi executado. No debate que se seguiu à apresentação, a professora Lizete Rubano lembrou existir atualmente um déficit de 6 milhões de habitações no Brasil e que, ao mesmo tempo, existem 4 milhões de unidades vazias nas áreas centrais das grandes cidades. Nesse sentido, as soluções, como essa realizada no Edifício Riachuelo, em muito contribuiriam para a resolução dos problemas habitacionais no país, bem como para a qualidade das áreas urbanas centrais. Além desse fato, o professor Paulo Bruna destaca que essa solução se mostrou economicamente viável, uma vez que a estrutura existente resultou em redução de 30 a 40% do custo final da obra.

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

A professora Carmen Espegel salientou a importância de tais soluções para as áreas centrais tenham condução adequada e distanciada da “museificação” do centro das cidades, onde não se podem alterar os edifícios existentes. O professor Nicolas Maruri, por sua vez, observou que o sucesso dessas reabilitações está condicionado ainda à revitalização do centro de modo geral. Mostrou-se curioso pelo fato de o Edifício Riachuelo, com sua importante localização e dimensão, ser originalmente projetado por engenheiros, fato que, segundo o arquiteto espanhol, teria resultado nesse edifício sem grande expressão arquitetônica. Para o professor Leandro Medrano, faltaria na formação dos arquitetos brasileiros a experimentação por parte dos alunos de graduação de exercícios de projetos desse tipo. Entre nós, consolidou-se a tradição de conceber edifícios novos ou, mais recentemente, realizar projetos de restauração, necessária para edifícios de destacado valor histórico ou arquitetônico. Reabilitar ou transformar edifícios antigos requer conhecimento técnico e arquitetônico ainda pouco discutido no país.

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Operação Urbana Água Branca

eliane roberto, gioVana feres e carolina celete Arquitetas e urbanistas, alunas de pós-graduação e pesquisadoras do Laboratório de Estudos em Arquitetura Contemporânea – (LEAC)

Grupo de alunos LEAC - p. 33-38

operação urbana água branca introdução A Operação Urbana Água Branca foi o estudo de caso escolhido na cidade de São Paulo para visita técnica. Assim, com o intuito de mostrar o objeto aos participantes do seminário, os membros do Laboratório de Estudos em Arquitetura Contemporânea (LEAC) prepararam uma apresentação contemplando os aspectos urbanísticos e da legislação vigente que rege as intervenções urbanas na cidade, além dos principais pontos positivos e negativos dessa operação urbana, inserida em um contexto contraditório de forte investimento e de atendimentos parciais. A apresentação iniciou-se trançando um panorama acerca das intervenções urbanas brasileiras, especialmente na cidade de São Paulo, tendo em vista que para o efetivo sucesso destas operações é imperativo que exista simultaneamente a atuação da população da área e das esferas que compõem o poder público. Desta forma, os principais objetivos de um projeto urbano deveriam ser o uso dinâmico dos espaços urbanos, por meio da identificação/mapeamento da vulnerabilidade sócioambiental-urbanística, culminando em cidades sustentáveis e de espaços democráticos. Entretanto, as transformações urbanísticas-estruturais e melhorias sociais, tão inerentes a esses programas, têm ficado em segundo plano em detrimento dos interesses privados. A apresentação foi dividida em três partes. A primeira tratou das operações urbanas, a segunda tratou especificamente da Operação Urbana Água Branca e a última se ateve aos desdobramentos dessas implementações tanto impressas no solo urbano quanto na vida de seus moradores; além da abertura de um espaço para debate. operações urbanas De acordo com a Prefeitura Municipal da Cidade de São Paulo (2011) as operações urbanas são intervenções pontuais realizadas sob a coordenação do poder público envolvendo a iniciativa privada, 33

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

empresas prestadoras de serviços públicos, moradores e usuários do local, na busca em alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. Nesse instrumento, o poder público deve delimitar uma área e elaborar um plano de ocupação, no qual estejam previstos aspectos tais como a implementação de infraestrutura, nova distribuição de usos, densidades permitidas e padrões de acessibilidade. Dessa forma, pode-se dizer, portanto, que se trata de um plano urbanístico de escala quase local, pelo qual podem ser trabalhados elementos de difícil tratamento nos planos mais abrangentes (tais como altura das edificações, relações entre espaço público e privado, reordenamento da estrutura fundiária, etc.). Na cidade de São Paulo, o ideário das operações urbanas surgiu na década de 1980, entretanto, durante 10 anos não passaram de tentativas, quando, em 1991, a cidade teve sua primeira operação aprovada, a Operação Anhangabaú, que acabou sendo extinta três anos depois. Em 1995 eram instituídas a Operação Urbana Faria Lima e a Operação Urbana Água Branca, as quais, conjuntamente às Operações Urbanas Centro (1997) e Água Espraiada (2001) formam o quadro de operações em andamento na cidade. Além destas, está em pauta a instituição de três novas: Operação Urbana Lapa-Brás, Operação Urbana Mooca-Vila Carioca, Operação Urbana Rio Verde-Jacu. Não obstante, existe ainda, a proposta do Arco do Futuro, que consiste em um plano de reforma urbana ao longo de grandes avenidas de São Paulo, tendo como principal eixo a Marginal Tietê. O plano intenciona a revitalização dos espaços por meio da construção dos apoios norte e sul da marginal, são obras viárias que englobam áreas comuns às operações urbanas em andamento. operação urbana água branca Aprovada em 1995 pela Lei 11.774/95, a região da Água Branca está inserida na várzea do rio Tietê em uma área originalmente industrial e de grandes glebas com baixa atividade econômica e imobiliária. Com uma área de intervenção correspondente a 504 ha, o perímetro da operação abrange os bairros da Água Branca, Perdizes e Barra Funda. O desenvolvimento urbano da área foi induzido pela ferrovia o 34

Operação Urbana Água Branca

1 Como resposta ao modelo tradicional e funcionalista do planejamento urbano, surgem em um contexto de crise fiscal do Estado e consequente descentralização do mesmo, as grandes implementações urbanas. Assim, em muitos lugares do mundo são implantados projetos urbanos que buscam melhorias sociais e valorização ambiental, por intermédio da parceria público-privada e representação da sociedade civil. Como exemplo, podem ser citadas as parcerias público-privadas em Londres, as revitalizações em áreas portuárias como Puerto Madero na Argentina ou Baltimore nos Estados Unidos; as Novas Centralidades em Barcelona e as Zonas de Planejamento Pactuado na França (ROLNIK, notas de aula, 2012).

Grupo de alunos LEAC - p. 33-38

que contribuiu para implantação de galpões industriais e armazéns, assim, em função da desativação de grande parte destas construções, frequentes na área, e transferência da atividade industrial para regiões próximas às rodovias, a partir da década de 1960, foi desencadeado um processo de esvaziamento, desvalorização e fragmentação da malha urbana local. Segundo a apresentação, com influência de “Grandes Projetos Urbanos”1, um dos principais objetivos da operação é utilizar o rio Tietê em conjunto com a ferrovia como elementos de renovação urbana. Não obstante, a área é suscetível às inundações culminadas por ações antrópicas como desmatamento, contaminação de córregos, impermeabilização do solo, etc., o que influenciou diretamente a operação em suas diretrizes principais: • Promover o crescimento urbano ordenado pelos novos padrões de ocupação do solo; • Criar um contraponto ao adensamento na região, por meio da construção de novas unidades residenciais para repovoamento da Barra Funda; • Despoluir o rio e requalificar a linha férrea, integrando seu funcionamento às linhas de metrô e com as diretrizes da CPTM ao Plano Urbanístico da Operação Urbana; • Melhorar o sistema de drenagem e desenvolvimento de projeto paisagístico para a região do Tietê, pela implantação um sistema de áreas verdes associado ao sistema de drenagem e de recuperação de referenciais paisagísticos e desmembramento de lotes muito grandes; • Aumentar o potencial de uso e ocupação do solo nas proximidades da linha férrea com estabelecimento de diretrizes que estimulem a ocupação dos vazios urbanos; • Adequar área às atuais legislações federal (Estatuto da Cidade) e municipal (Plano Diretor Estratégico) e de avaliação da capacidade de suporte da infraestrutura;

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

• Potencializar o uso do solo em virtude da facilidade de acesso ao centro expandido por meio de transporte público e pela proximidade das rodovias dos Bandeirantes, Anhanguera e Castelo Branco; • Implantar espaços públicos e equipamentos de interesse da comunidade; • Melhorar as condições de mobilidade para veículos e pedestres no interior da área; • Reurbanizar a orla da ferrovia: áreas para concessão urbanística; viabilizar a implantação de HIS e HMP; • Criar eixos de acesso e melhorar as ligações existentes entre as estações de metrô / ferrovia e os principais polos de atração da região – incentivar percursos a pé para distâncias curtas. O grupo salientou que o regime de arrecadação desta operação é o da outorga-onerosa. E, apesar de todas as diretrizes apontadas, o que tem ocorrido é segregação socioespacial em decorrência da forte produção imobiliária. Ressaltou-se, também, que a adesão à operação urbana não é obrigatória para pagamento de contrapartida, isto é, embora os recursos obtidos sejam aplicados exclusivamente em obras previstas na Lei da Operação Urbana e na área contida por seu perímetro, os proprietários de imóveis situados dentro desta área poderão, portanto, fazer a compensação de acordo com seus interesses econômicos. considerações finais e abertura ao debate Embora as operações urbanas sejam instrumentos cujo objetivo primordial versa sobre a restruturação de padrões urbanísticos e de espaços públicos, além da produção de habitação para população de baixa renda, durante esses anos houve uma distorção desses instrumentos, ou seja, o município tem tratado as operações urbanas como um mecanismo de venda de potencial construtivo acima do permitido pelo zoneamento para custeamento de obras viárias.

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Operação Urbana Água Branca

Grupo de alunos LEAC - p. 33-38

A política urbana pautada pela parceria público-privada foi regulamentada em grande parte dos municípios brasileiros e sua utilização justificada pelas crises fiscais e financeiras pelas quais o país passou especialmente na década de 1980, quando novos instrumentos de planejamento foram inseridos na política urbana do país, em um contexto de democratização política. Foi nesse momento que a gestão urbana passou a incorporar a sociedade civil na discussão das políticas públicas, além da prática de concessões à iniciativa privada mediante contrapartida de interesse público. Associado a esse quadro, a Constituição Federal de 1988 ao propor a descentralização política e institucional, reforçou o poder municipal que passou a dar prioridade às estratégias competitivas para a atração de recursos e investimentos para implementações pontuais. Assim, diante deste quadro as parcerias público-privada ganham espaço como instrumento de gestão no planejamento urbano nacional. Na cidade de São Paulo, especialmente, as operações urbanas se efetivaram por intermédio do investimento público em infraestrutura atrelada ao uso permissivo do solo, isto é, a permissão de construção acima dos índices contidos no zoneamento acarretou a produção de metros quadrados de área adicional, em detrimento da demanda do mercado, além de contribuir para o aprofundamento das desigualdades sociais, econômicas e espaciais. Em relação à Operação Água Branca, embora as propostas estejam diretamente vinculadas com a reestruturação urbana da área e os investimentos sejam substanciais, os atendimentos são parciais e norteados pelo uso mais rentável do solo urbano. Ademais, o maior ônus recai sobre as parcelas populares, uma vez que o poder público investirá ainda mais em infraestrutura na região na qual a iniciativa privada construiu seus edifícios. Assim, serão utilizados recursos públicos para criação de condições para viabilização de investimentos além da remoção da população de baixa renda em função da especulação imobiliária.

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

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O Labhab e a Pesquisa Habitacional

João sette WHitaKer ferreira Professor da FAUUSP. Coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB) da FAUUSP

Prof. Dr. João Sette - p. 39-43

o labHab e a pesquisa Habitacional introdução Durante sua apresentação, o professor João Sette Whitaker Ferreira enfatizou o trabalho desenvolvido pelo Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB), e tratou da temática da habitação social no cenário nacional. Iniciou sua apresentação com um panorama geral do laboratório, seus objetivos, dificuldades e obstáculos encontrados em relação à questão social da habitação no Brasil, desenvolvendo uma reflexão sobre suas causas históricas, teóricas e conceituais. Posteriormente, discutiu a produção habitacional atual no país, como o Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), seus pontos positivos, negativos e perspectivas futuras. O LABHAB foi criado em 1996 pela professora Ermínia Maricato em uma tentativa de aprofundamento no meio acadêmico dos estudos sobre a questão da precariedade habitacional e urbana, ligado a experiências práticas na área, como a autoconstrução e os mutirões, e a questões sociais que envolvem o tema. No seminário apresentado, o arquiteto explicou as dificuldades, os obstáculos e os objetivos considerados para o desenvolvimento dos trabalhos relacionados à cidade realizados pelo LABHAB e pelo próprio arquiteto enquanto consultor na área de habitação social. A palestra se iniciou com a discussão sobre a separação da habitação social do contexto de planejamento urbano durante o governo militar, a qual é, segundo o autor, o ponto crítico do processo. Enquanto o planejamento objetivava o desenvolvimento da cidade, apoiado no sistema de mobilidade automotiva particular e incluindo a participação do mercado imobiliário na produção da habitação em geral, a habitação social foi estigmatizada e excluída, como uma “política de habitação”, atividade assistencialista a ser destinada à população de menor renda. Segundo Ferreira, a questão habitacional é inerente ao 39

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

planejamento urbano e às políticas ambientais, e deve estar, desde o começo, inserida nos planos diretores e nas especificações dos zoneamentos. Fato agravado porque cerca de 40% da população das grandes metrópoles vivem na informalidade, totalizando um déficit habitacional no país de aproximadamente 6 milhões de unidades. Diz o arquiteto: “falar de política ambiental e políticas urbanas é falar de política habitacional”. Além disso, apoiado nas proposições da sociologia urbana brasileira, considera que não se trata aqui de um modelo de desenvolvimento econômico atrasado ou obsoleto, mas de uma forma peculiar de desenvolvimento do modelo capitalista que, para o avanço do país, alimenta-se do atraso de setores da vida nacional, como a precariedade urbana e social. Sob esse aspecto, a modernidade aqui só é possível porque se alimenta de estruturas arcaicas subdesenvolvidas e da pobreza. Se isto for aplicado então ao meio urbano, conforme o arquiteto, evidenciar-se-á que se trata de uma matriz no país compreensível na bagagem histórica de um estado patrimonialista, instrumento político e econômico dos setores dominantes. Como exemplo, destaca o investimento público1 de mais de 150 milhões de reais realizado na cidade de São Paulo para a construção de uma ponte “moderna”2 pela qual os ônibus não podem trafegar, concluindo que não se trata de questão puramente econômica, mas de estratégias políticas em que o Estado desvia a atenção da inclusão dos economicamente desfavorecidos para a manutenção do funcionamento de um sistema constante de apartheid social e econômico. Nosso modelo urbano não funciona, portanto, porque as cidades brasileiras possuem estruturalmente essa lógica peculiar segregacionista. O LABHAB, hoje com dez professores da FAUUSP e mais uma dezena de pesquisadores de outras instituições, discute a questão urbana apoiada em questões sociais e políticas e tenta desenvolver pesquisas, atividades, assessoria aos movimentos populares, consultorias aos governos municipais e federal, e projetos sob condição de realizar investigação acadêmica para não desvirtuar a característica de laboratório e somar esforços que possam transformar essa realidade. 40

1 Financiado com parte da Outorga Onerosa da Operação Urbana Água Espraiada, que “tem como um dos seus principais objetivos revitalizar a região com a criação de espaços públicos de lazer e esportes, remoção de famílias de área de risco, construção de novas unidades habitacionais para essas famílias, melhoria no sistema viário da região”. (Disponível em: , acessado em 01/06/2013). 2 Refere-se aqui à Ponte Estaiada Octavio Frias inaugurada em meados de 2008 e que é hoje cartão postal da cidade. Durante a construção do complexo viário, houve desrespeito à Lei Municipal n. 14.266, que determina, em seu artigo 11, que “as novas vias públicas, incluindo pontes, viadutos e túneis, devem prever espaços destinados ao acesso e circulação de bicicletas, em conformidade com os estudos de viabilidade”. Essa determinação existe desde 1990, na forma da Lei Municipal n. 10.9079, substituída pela L.M. n. 14.266, vigendo, portanto, já na época do planejamento do complexo. Sua função secundária foi aumentar a especulação imobiliária da área, além da remoção de centenas de famílias que foram morar nas Áreas de Preservação Permanentes (APP) das represas circundantes.

O Labhab e a Pesquisa Habitacional

3 Instituição financeira pública do governo federal brasileiro. 4 O salário mínimo de 2013 no Brasil era de R$678,00. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população brasileira é dividida econômica e socialmente em faixas A,B,C,D e E, sendo as classes média e baixa as representadas pelas faixas C, D e E.

Prof. Dr. João Sette - p. 39-43

Entre os trabalhos mais recentes desenvolvidos pelo laboratório, destacam-se, por exemplo: • A discussão da habitação em áreas urbanas de proteção ambiental (APA e APPs) e as possibilidades de elaboração de políticas habitacionais e urbanas compensatórias e sustentáveis; • O estudo sobre parques lineares ao longo dos córregos ocupados, já que, para o laboratório, “fazer parques lineares é fazer política habitacional”, por conta da grande ocupação de favelas nessas áreas; • A elaboração do Plano Nacional de Habitação, uma política de habitação do governo federal solicitada pelo Ministério das Cidades (licitação vencida em parceria com o Instituto Via Pública e a Lagos Engenharia), sob coordenação do professor Nabil Bonduki e com metodologia participativa a partir da interlocução entre sociedade e entes federativos. Porém, segundo Ferreira, o plano “foi atropelado pelo Programa MCMV”; • O estudo de impactos urbanísticos da construção do anel rodoviário “Rodoanel”, em São Paulo, solicitado por uma organização não-governamental preocupada com a proteção ambiental da área e com as ocupações periféricas que seriam perturbadas; • A investigação e a proposição de um sistema de avaliação dos empreendimentos do programa MCMV, operado pelo banco Caixa Econômica Federal3 para a construção de habitações. É a primeira vez que o governo federal propicia grande quantidade de subsídios não onerosos à população mais carente (para famílias com receita de até R$1.600 mensais, Faixa 1). Por outro lado, libera também financiamentos para a classe média (famílias com rendimentos de até R$5.000 mensais)4. O programa apresenta muitos desafios, resultantes, principalmente, do sistema de gestão relacionado à descentralização do pacto federativo brasileiro e à autonomia das municipalidades, aos problemas com o custo especulativo da terra e à falta de poder do Ministério das Cidades para conduzir a situação. Desse contexto, segundo o palestrante, emergem os seguintes problemas:

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• O MCMV é mais um programa de financiamento do que um programa habitacional propriamente dito, já que deu incentivo à economia sem uma base teórica e sem uma reflexão urbano-arquitetônica do habitar. É ainda uma “medida econômica anticíclica” por conta da crise internacional de 2008; • Para solucionar a carência habitacional para as faixas de menor renda, o governo liberou 70 bilhões em subsídios, com os quais as famílias conseguem pagar a entrada e o restante financia em 10 anos, sob o valor de 10% da renda familiar. Porém, em virtude da privatização da construção e da autonomia dos municípios na condução da política territorial, não se consegue alavancar uma política urbana associada à produção de casas. Além disso, as moradias são construídas em terrenos muito distantes da cidade, resultando-se em uma maior segregação social e econômica da sociedade5; • A ausência de propostas técnicas dos arquitetos e urbanistas e suas instituições, como Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), e Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU). Esse fator, com a falta de utilização sistêmica e integrada dos instrumentos disponíveis no Estatuto da Cidade, por parte dos municípios, condicionam o que se está produzindo no país em relação à habitação social. • Sendo um programa de financiamento e estímulo ao crédito, a Caixa Econômica Federal é o agente com maior poder de decisão técnica sobre as medidas e parâmetros arquitetônicos, bem como o poder de decisão das municipalidades sobre a utilização das terras destinadas às Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIs). Isso leva à grande valorização da terra em razão da especulação imobiliária resultantes dessa política financeira. Quando a municipalidade não dispõe de terras suficientes, os empreendimentos habitacionais são construídos nas periferias, sem acesso à infraestrutura e aos serviços públicos urbanos de qualidade. Dessa maneira, sem a regulamentação das legislações, as unidades habitacionais sociais entram no jogo da especulação do mercado imobiliário.

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5 Segundo o próprio arquiteto: “(...) novas unidades ‘sociais’ de 38 m² são vendidas no mercado por R$100 mil, em áreas muito distantes por falta da disponibilidade de solo”.

O Labhab e a Pesquisa Habitacional

Prof. Dr. João Sette - p. 39-43

conclusões gerais e abertura ao debate Verifica-se que a questão da habitação social no país engloba diversos fatores e necessidades, e encontrase ainda muito aquém da qualidade mínima, principalmente em relação à vinculação com políticas de planejamento urbano, localização dos empreendimentos e qualidade urbana. As leis e os instrumentos urbanísticos existentes permitem uma gama de oportunidades, porém na realidade não são aplicados de forma integrada, resultando em projetos e operações urbanas que não atingem a qualidade necessária. Em relação ao programa MCMV é possível notar alguns pontos favoráveis, como o incentivo ao setor da habitação no país e o volume inédito de subsídios à Faixa 1, entretanto, ao mesmo tempo ainda existem grandes desafios a serem enfrentados, especialmente em relação ao custo da terra e à gestão descentralizada. Por fim, ressalta-se a necessidade dessa discussão urbana e habitacional em cenário nacional afim de buscar melhores alternativas e maior qualidade habitacional e urbana para a realidade brasileira.

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

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Experiências Recentes de Habitação na Ciadade de São Paulo

Profa. Dra. Lizete Rubano - p. 45-50

lizete rubano

experiências recentes de Habitação na cidade de são paulo

Arquiteta. Professora doutora. Atualmente é professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da FAU-Mackenzie

introdução A palestra da professora Lizete Rubano apresentou as diversas experiências de habitação coletiva no Brasil a partir de sua origem até chegar à produção contemporânea promovida pelo Programa Nacional MCMV e aos concursos públicos promovidos pela Sehab, em São Paulo. A primeira parte da apresentação abordou a temática da habitação com enfoque na relação estabelecida entre unidade habitacional e o desenho da cidade, analisando, do ponto de vista da relação “formaconteúdo” como se dá esse processo no Brasil. Na segunda parte da apresentação foram expostos quatro projetos do arquiteto Héctor Vigliecca, destacados como exceção no panorama atual da produção de habitação social no país. A apresentação foi iniciada com uma explanação sobre o processo de formação dos arquitetos brasileiros e as características dos projetos implementados no Brasil. Além disso, foi identificada uma cisão entre a arquitetura brasileira e as reais necessidades das cidades. De alguma forma, a escala da cidade deveria estar presente em todo desafio de projeto, essencialmente os originados pelas políticas públicas. Entretanto, a reflexão teórica – e a prática projetual – dos arquitetos, no Brasil, não tem enfrentado a vida urbana. O Brasil, por muito tempo, mostrou-se moderno, sem que, de fato, tivéssemos as condições produtivas e sociais correspondentes. Talvez o resultado mais claro dessa ideia da arquitetura como representação de uma modernidade esvaziada de conteúdo seja o cenário caótico e desarticulado das cidades brasileiras. Na sequência, foi abordada a temática da habitação coletiva e a cidade –“Do abstrato à conciliação”–, analisando o percurso feito ao longo da história nacional de construção do pensamento acerca do habitar e a atuação na realidade física do ambiente construído. Isto é, o abstrato é tratado aqui como a maneira em que são conformadas as hipóteses do mundo e do homem e, a partir disso, é feito um 45

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

exercício de conciliação, ou seja, de como esta abstração se conforma às situações reais de cidade e de sociedade. O desenvolvimento da pesquisa, voltada à urbanidade de áreas críticas na cidade de São Paulo, analisa a obra do arquiteto Héctor Vigliecca, cuja formação, bastante distinta da tradição brasileira, permitiu-lhe realizar de maneira ímpar a conciliação entre a cidade consolidada e as áreas críticas, desconexas entre si. Com o intuito de embasar de forma consistente o percurso das abstrações à articulação com a cidade real, a arquiteta fez um breve panorama sobre o desenvolvimento das habitações proletárias no Brasil, enfatizando os casos recorrentes na cidade de São Paulo. De acordo com a autora, três experiências realizadas merecem ser destacadas, em razão, especialmente, da abstração de homem e de projeto de mundo, e das reais necessidades urbanas, daquilo que é, de fato, fazer cidades. • Experiência 1: Quando o território da cidade foi produzido em função do crescimento industrial. Nesse momento, a produção habitacional proletária foi um acontecimento autonômo, independente de políticas públicas, associada à implantação das indústrias e a elas conectada. Como exemplo, a arquiteta mostrou a Vila Operária Maria Zélia, de 1917, primeira vila operária brasileira, localizada no bairro do Belenzinho em São Paulo; • Experiência 2: Destacou o momento em que o Estado reconheceu, de fato, a necessidade de operar o habitar proletário. A medida posta em prática foi a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAP), surgidos em 1933, que foram organizações de âmbito nacional conforme as categorias profissionais. Essas construções, por sua vez, na maioria dos casos, foram implantadas em áreas perimetrais ou desvalorizadas das cidades (várzea do Carmo, por exemplo). Entretanto, salientou-se que, nessa época, décadas de 1940 e 1950, os arquitetos-urbanistas participaram dessa política elaborando questões teóricas e projetuais para pensar a dimensão da vida na cidade, questões programáticas atreladas às dimensões do espaço público, tamanho das habitações, dentre outras. Como exemplo, a palestrante mostrou o conjunto Santa Cruz e o Residencial da Mooca, ambos em São Paulo.

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Experiências Recentes de Habitação na Ciadade de São Paulo

Profa. Dra. Lizete Rubano - p. 45-50

Concomitante à atuação dos IAP, o Departamento de Habitação Popular do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, viabilizou algumas experiências que se tornaram emblemáticas na história da habitação social no Brasil: são as megaestruturas – Pedregulho e Gávea, por exemplo, marcos de nossa construção moderna como representação. • Experiência 3: Banco Nacional da Habitação (BNH), de 1964 a 1986. Momento em que o Estado assume pela primeira vez uma produção massiva de habitação, sem que se industrializasse a construção civil, desencadeando uma ocupação periférica alarmante, principalmente nas grandes cidades, e minimizando absurdamente todas as contradições urbanas. A habitação é reduzida ao mínimo. O trabalho do arquiteto Héctor Viglieca foi apresentado a partir de uma perspectiva contemporânea: seus projetos na área de habitação coletiva são claramente identificados como exceções frente à essa dualidade histórica insupérável da arquitetura e urbanismo brasileiros (edifício e cidade desarticulados). Héctor tem tratado – teoricamente e pela dimensão projetual – dessa problemática por meio de uma outra abordagem voltada aos territórios urbanos. Foram apresentados os trabalhos do arquiteto, destacando o exercício da conciliação entre cidade formal e informal. Foi feita uma leitura da trajetória profissional de Vigliecca, destacando a forma como ele entende o território usado, isto é, aquele que tem a dimensão social, da produção e do uso. Na palestra foram analisados quatro projetos de Héctor Vigliecca, os quais enfrentam situações urbanas distintas. O primeiro contexto trabalhado foi o centro histórico, ou seja, aquele da cidade consolidada, com dimensão e densidade histórica, cuja referência principal é a quadra. O segundo e terceiro contextos englobaram intervenções inseridas em áreas urbanas não centrais, áreas parcialmente consolidadas, ocupadas sem um padrão definido de organização urbana. O quarto contexto analisado, por sua vez, tratou dos projetos inseridos em áreas ambientalmente sensíveis, nos limites da extensão da cidade, como as áreas de mananciais. O último tema tratado foi o das possibilidades a serem levantadas por

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

meio de participação em concursos, ou seja, os projetos, nesse contexto, representam hipóteses de um futuro possível. O primeiro projeto apresentado, com atuação no centro histórico, foi o Casarão do Carmo, situado na rua Tabatinguera, bairro da Sé, na cidade de São Paulo. O arquiteto operou em uma quadra especial no centro urbano da cidade, com construções do século XIX, além de dois elementos tombados pelo patrimônio histórico: a casa episcopal e a Igreja da Boa Morte. O intento principal do projeto era o de viabilizar habitação às famílias que viviam no interior na quadra em situação de cortiço. A proposta consistiu em criar um elemento de legibilidade urbana – a rua – no interior da quadra. Junto a ela, duas lâminas habitacionais foram justapostas aos dois edifícios das divisas. A estrutura do projeto deu-se a partir da introdução de um elemento urbano, a da perspectiva da vida pública. A palestrante indicou a conciliação do projeto com a cidade, pela casa episcopal, que passaria a equipamento de uso coletivo ou público, com continuidade pela rua criada, elemento estruturador da proposta. A ele estariam associadas as três caixas de escada propostas, três pontos de contato com a nova estrutura da rua. Assim, esses pontos de acesso às habitações criaram movimento no espaço urbano. Nesse caso, portanto, as preexistências foram associadas as possibilidades novas à dimensão da vida na cidade. Na sequência, foi apresentado dois projetos em áreas críticas: a Gleba A e a Gleba H na Favela de Heliópolis, na cidade de São Paulo. Aqui o trabalho desenvolveu-se segundo o reconhecimento das experiências humanas e na interpretação das preexistências, com o objetivo de reconhecê-las como elementos potenciais em uma perspectiva de transformação. O projeto da Gleba A, de 2010, localizado na área próxima à Estação do Sacomã, enfrentou a questão da linha d’água, trecho de maior fragilidade em toda ocupação informal, e que fazia frente à área de intervenção. Em outros contextos urbanos esses são lugares privilegiados, mas na realidade brasileira são áreas ocupadas de forma mais precária. No projeto foi redesenhada a relação entre a linha d’água (agora canalizada), a via e as calçadas. O

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Experiências Recentes de Habitação na Ciadade de São Paulo

Profa. Dra. Lizete Rubano - p. 45-50

edifício laminar foi implantado em paralelo ao córrego e blocos menores, perpendicularmente, gerando pátios no interior da quadra. Os pátios internos representaram a outra ideia estruturadora do projeto, o qual na tentativa de integração entre o novo e o preexistente (as casas autoconstruídas da quadra), propôs o que poderia ser uma zona de convívio entre os moradores anteriores e os dos novos edifícios implantados. Entretanto, as áreas de convívio ainda são pouco utilizadas. Ainda dentro do segundo contexto abordado, outro projeto localizado em Heliópolis, mostrou-se ainda mais significativo em relação às possibilidades de apropriação. No projeto da Gleba H, foi repensada uma quadra já ocupada por cinco torres de habitação de interesse social construídas pela Cohab-SP, mas não entregues aos mutuários a que se destinavam. A área foi totalmente ocupada: os edifícios finalizados ou inacabados da Cohab e as bordas da quadra, com edificações autoconstruídas, que foram se articulando às torres existentes de diferentes maneiras. Essas novas casas autoconstruídas pelos moradores da comunidade voltavam-se para a rua, onde havia atividade pública. No projeto, essa memória foi mantida, preservando a ocupação perimetral da quadra e considerando o espaço aberto como ambiente coletivo. Em relação às tipologias, foi elaborada a possibilidade de unidades expansíveis. As atividades comerciais surgidas espontaneamente foram incorporadas ao pavimento térreo da nova edificação, construída a partir do gabarito preexistente, reconhecendo, assim, o potencial da cidade real e o valor das lógicas urbanas que surgiram nesse contexto. O último projeto apresentado tratou de uma experiência em área de manancial. Esse era o contexto mais difícil trabalhado pelo arquiteto, uma vez que praticamente inexistem referências de cidade legal. Destacou-se que o crescimento populacional em áreas de mananciais aumentou nos últimos anos, denotando o adensamento das áreas precárias no município de São Paulo. O projeto apresentado foi o Parque Novo Santo Amaro, cuja topografia local deu forma à ocupação. Os moradores voltados às 49

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ruas, nas cotas altas, viabilizam, em geral, melhores construções e uso misto. Os do interior da área constroem mais precariamente e os das margens dos córregos vivenciam a pior situação. O arquiteto tratou do fundo de vale como um parque linear, articulando duas centralidades já existentes. As edificações de risco e as de maior precariedade foram substituídas por um bloco-estrutura habitacional que acompanha a borda da área, constrói o térreo, os uso, e serve como articulação das cotas altas: por meio dele se atravessa de um lado ao outro pela passarela, vinculada ao edifício habitacional. considerações finais e abertura ao debate Lizete Rubano concluiu a apresentação destacando que os casos de estudo apresentados representam apenas uma exceção no panorama atual da produção de habitação social no Brasil. Os modelos reproduzidos em grande escala são aqueles propostos pelo Programa Minha Casa Minha Vida, muito semelhantes ao BNH, no que diz respeito à localização da habitação coletiva na cidade (não há política de terras), à construção (sem que se industrialize) e ao projeto (de implantação e das tipologias). De acordo com Lizete, é imperativo que exista uma preponderância da condição urbana sobre a arquitetura, algo ainda muito difícil de ser colocado em prática no cotidiano nacional.

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O Esquema Antiurbano da Arquitetura Brasileira

luiz recamán

o esquema antiurbano da arquitetura brasileira

Arquiteto, Professor Doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP

introdução

Prof. Dr. Luiz Recamán - p. 51-60

A apresentação do professor Luiz Recamán procurou discutir os fundamentos disciplinares da relação entre arquitetura e cidade em São Paulo, por meio da análise de algumas residências projetadas pelo arquiteto Vilanova Artigas. A proposta de sua pesquisa é a de encontrar, dentro do “sistema arquitetônico” brasileiro, os limites históricos de suas estratégias de projeto para a compreensão e transformação do meio urbano no país, em especial na cidade de São Paulo. Se as pesquisas e os resultados da crítica relativos à habitação social e ao urbanismo brasileiros têm importante avanço e impacto nas políticas públicas e na compreensão dos fenômenos urbanos, o mesmo não se pode dizer em relação à arquitetura. Esta abandonou, por razões históricas detectáveis, seu importante papel na construção do território urbano no país. Compreender seus motivos é o primeiro caminho para tentar ultrapassar as dificuldades do presente. O arquiteto inicia a argumentação contextualizando seu tema. Após a Revolução de 1930, o movimento modernista de renovação social e cultural ganhou uma nova dimensão, no sentido da afirmação coordenada de uma identidade moderna e ilustrada da nação emergente. Esse investimento supraestrutural teve a mesma importância que os amplos investimentos na infraestrutura do país, passo fundamental para sua modernização industrial. A partir de 1937, com o Golpe do Estado Novo, a arquitetura moderna brasileira assume a linha de frente desse processo de unificação identitária, com seus emblemas de nacionalidade e modernização. Esse forte estímulo estatal à recém-criada arquitetura moderna no Brasil – traduzido no projeto e construção do Ministério da Educação e Saúde (1936-1942) – permitiu com rapidez inédita a criação de um “sistema arquitetônico”, estruturado a partir dessa agenda modernizadora e centralizadora, que passou a funcionar enquanto tal vínculo ideológico permitisse. Seus prodígios arquitetônicos 51

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

conhecemos bem. Para o professor Recamán, trata-se agora de pensar sobre aquilo que foi reprimido em tal esplêndida fulguração áulica: a dimensão urbana; seja em sua relação com a cidade existente, pela ausência de conexões entre a nova arquitetura e a cidade, seja em relação ao plano e às utopias da forma nele configuradas. Isso deve ser entendido à luz da relação direta entre o momento autoritário, em especial o período que vai de 1939 a 1942, e as demandas de representação arquitetônica de forte caráter de exposição. Nesse período, segundo o professor, é concebida a arquitetura moderna brasileira, com os projetos para o Pavilhão de Nova York (1939) e a Pampulha (1942). Não se trata, simplesmente, da relação entre essa arquitetura e a construção identitária da nação, mas da via ultraconservadora do Estado Novo como ambiente do equacionamento da linguagem moderna local, e desta como a certeira tradução do “espírito do tempo”. Suas principais características são: inexistência programática de qualquer vínculo com a realidade urbana nacional, principalmente com as cidades reformadas da República Velha; deslocamento da ênfase em habitação social original da arquitetura moderna europeia para a questão do edifício, mantendo a alusão a suas formas puras; e, da mesma maneira, esse vocabulário construtivo, que procurava mimetizar a racionalidade maquinista – transformada pelo fordismo e taylorismo – e ao mesmo tempo impulsioná-la para o todo da vida, é utilizado no Brasil desvinculado da realidade produtiva local e das possibilidades de seu desenvolvimento (um deslocamento ideológico importante). A aceleração industrial dos anos 1950 teve como epicentro a metrópole paulistana, a qual passa por um processo de crescimento populacional que pode ser entendido como “explosão”. Em tal ambiente era de se esperar que o sistema arquitetônico passasse a enfrentar as questões urbanas tornadas prioritárias e urgentes, ainda que tivesse sido formulado em um quadro urbano restrito em meio a um profuso universo rural. O Rio de Janeiro e a idealizada paisagem natural, fundantes do esquema “palácio tropical”, não forneceram instrumentos disciplinares para a nova realidade metropolitana de São Paulo. A forte rejeição de Niemeyer ao projeto para o Edifício Copan, de 1954, e suas razões, podem exemplificar esse fenômeno de inadequação. Capital privado, industrialização, classe trabalhadora, expansão viária 52

O Esquema Antiurbano da Arquitetura Brasileira

Prof. Dr. Luiz Recamán - p. 51-60

e alastramento dos loteamentos periféricos são novos elementos da realidade social e urbana que vão impactar as ideias arquitetônicas brasileiras e seu recalcitrante irrealismo. É nesse fecundo momento da arquitetura nacional que se destaca o arquiteto João Batista Vilanova Artigas, considerado um dos principais expoentes da arquitetura paulista, não apenas pela qualidade de sua obra, mas pela forte influência na formação de uma nova geração de arquitetos. Artigas liderou a renovação arquitetônica em São Paulo, em crescente protagonismo no panorama nacional, o que inclui a sua participação ativa na fundação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e do Museu de Arte Moderno (MAM-SP), em 1948, e a militância e profissional no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP). Conforme o palestrante, o arquiteto Vilanova Artigas teve sua trajetória inicialmente vinculada ao arquiteto Frank Lloyd Wright: temas como casas, continuidade espacial, os telhados e a horizontalidade surgiam em seus projetos refletindo a busca da especificidade continental. Em um segundo momento, Artigas se vinculou à chamada Escola Carioca de Niemayer e Lúcio Costa – a Europa passa a ser a referência – e aos temas que envolviam a arquitetura como objeto e sua relação com a paisagem; exemplos importantes dessa fase são o Edifício Louveira (1946), em São Paulo, e a Rodoviária de Londrina (1949). A redemocratização do país com o fim do Estado Novo, em 1945, alterava os termos da relação entre arte e sociedade, impondo uma agenda política à qual a arquitetura brasileira não estava acostumada. Em São Paulo, no campo da arquitetura essa mudança foi liderada por Vilanova Artigas. Ele se tornou um ativista político e, no início da década de 1950, traduziu esse novo momento em sua arquitetura, a qual indicava que o modelo anterior, das grandes perspectivas e seus palácios, não possuía mais validade para a nova fase de desenvolvimento nacional. Não se tratou de uma ruptura com o esquema prévio, mas de sua atualização parcial em conjuntura ideológica alterada. O cenário dessa mudança é aquele típico da cidade formal: loteamentos regulares 53

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

da expansão sudoeste. O grande enigma é a razão pela qual a mais rudimentar partição patrimonial do solo urbano passou a ser horizonte dessa nova imaginação arquitetônica. Em busca de abrangência social, esse momento ideológico elege a casa como tema e horizonte de transformação política geral. Percebe-se nesse momento uma reação à oficialidade anterior, buscando uma dimensão negativa da sociabilidade da casa e do Brasil tradicional: uma “democracia doméstica” latente, com potencial político, que poderia ser acionada para a modernização social exigida. Perspectiva essa desdobrada da dialética de nossa colonização, tema dos pensadores da “formação”, confrontada nos anos 1950 com uma nova face do desenvolvimentismo. À formulação original do edifício “belo” em meio a paisagem sublime, duramente criticada nos anos 1950, seguiu-se um caminho inusitado, diferente daquele que se poderia esperar (uma resposta à urbanização acelerada). A via doméstica idealizada, em seus sentidos ético, estético e social, irrompe como crítica ao processo desordenado de ocupação, mas também como objeção abrangente ao modelo subdesenvolvido de exploração do trabalho. Via inversa à imaginação urbana metropolitana, de cepa moderna e à Gesellschaft que exige trabalho formal e relações contratuais racionalizadas. Se é compreensível essa crítica ao fracasso da modernização capitalista depois da Segunda Guerra, menos o é o afastamento da realidade e do território (cidade e natureza), respostas da reação europeia ao estilo internacional e ao CIAM, pois a “casa” idealizada nessa conjuntura de industrialização configurou-se em radical abstração do morar e das formas e vivências tradicionais. Vê-se claramente a contradição do nacional-desenvolvimentismo brasileiro em sua base estética avançada. Atente-se ao fato de esta análise tratar das obras realizadas, não dos programas políticos defendidos e da militância pessoal. A casa e seu lote definem a utopia local: vivência comunal conformada pela geometria da propriedade. Seu modelo urbano deduzível pode ser averiguado no plano de Artigas para Brasília (1957), uma das grandes incógnitas da história da arquitetura recente no Brasil. Esse modelo centrado nas formas e relações sociais no âmbito da “casa”, mesmo quando estendido a programas mais públicos, passa a ser o eixo da arquitetura paulista em seu período mais influente. 54

O Esquema Antiurbano da Arquitetura Brasileira

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E nunca deixou de repercutir, sem a crítica subjacente, até os dias de hoje, como comprovam as exibições, as premiações e as publicações. Essa centralidade passa pelos programas, pelo vocabulário, mas, essencialmente – e este é a base do argumento – pela relação entre a arquitetura e a cidade, que define o leitmotiv da disciplina arquitetônica no Brasil. O professor passou então a analisar alguns projetos de residências de Vilanova Artigas. O primeiro projeto exposto foi “A Casinha” construída no bairro do Campo Belo, em São Paulo, área, até então, de baixíssima ocupação na periferia da cidade. A pequena casa estava inserida em um lote de 1.000 m2, o que facilitou a experimentação das soluções wrightianas em um novo contexto. O segundo projeto apresentado (1949) é a outra residência do arquiteto que se encontra no mesmo lote do projeto anterior, agora com a influência de Le Corbusier e da arquitetura moderna brasileira do período. Continua, no entanto, a pesquisa da relação entre arquitetura e meio natural, ou melhor, das dificuldades dessa relação idealizada em casos concretos. Procedeu a um exercício para garantir a unidade arquitetônica que, como vimos, existia em sua contraposição à paisagem natural, em uma situação proximidade urbana fruto de uma ocupação sem controle. Em última análise, cria estratégias complexas de controle formal que ameniza o inesperado, típico da situação urbana na qual estas casas estão inseridas. Nesse mesmo período, Artigas ensaia alternativas para o mesmo problema, como pode ser verificado na Casa Czapski (1949), agora enfrentando uma realidade urbana mais definida, em um lote de 300 m2. Nesse caso, a amplitude visual foi buscada no espaço da rua-vazio, como na “Casa em Santos”, outro projeto analisado. Essa abertura em direção à rua, que tem caráter de vazio – e não de espaço público – será abandonada a seguir, exatamente por não ser possível a convivência do esquema proposto com a condição pública do vazio, não arquitetonicamente controlável. Nesse projeto, Artigas avança na formulação de um conjunto-unidade em mútua relação, absorvendo o vazio para dentro da composição. A tensão entre a rígida unidade formal e a necessidade de volumes separados por vazio arquitetônico

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

pode ser claramente verificada pela moldura que unifica formalmente aquilo que tem natureza diversa (os espaços e seus programas). A “Residência D’Estefani” (1950) marca a separação volumétrica no lote compacto e o fechamento (parcial) da fachada por meio da parede de elemento vazado (cobogó). As estratégias de controle daquilo que se vê a partir do ambiente interno da casa alcança nesse projeto um momento fundamental, pois se inicia o enclausuramento do volume e a definição de uma área vazia no interior do projeto, sucedâneo do vazio externo que foge ao controle desejado pelo arquiteto. Esse espaço “social” da casa, nesse momento, é o espaço que define a visualização de todo o pequeno e possível conjunto, e sua autorreferência, em termos abrangentes. Na “Casa dos Triângulos (1958)”, a solução de fechamento é ao mesmo tempo monumentalizada e atualizada, revelando uma mudança qualitativa na relação entre arquitetura e cidade. O volume fechado (dos quartos) se independentiza, no sentido visual, e adquire nova função: um painel gráfico voltado para a “cidade”, criado por Rebôlo, de triângulos em diferentes proporções. Esse écran, que pode indicar uma relação midiática com a cidade, em ritmo de cultura pop, rapidamente será reinterpretado, tanto em sua forma (bidimensional) quanto no conteúdo do que se transmite (nesse caso, a matemática racional dos triângulos, do concretismo paulista). Na emblemática “Casa Taques Bittencourt (1959)”, Artigas define o invólucro que pretenderá absorver todos os espaços da casa, inclusive o vazio descoberto, e também a “comunicação” da estrutura. O triângulo ganha espacialidade e transmuta-se em arquitetura plenamente, definindo os pilares e os jogos dos apoios monumentalizados, considerando-se a modéstia do programa. Esse novo signo, de origem visual e comunicativa, passa no entanto por uma mudança importante, já que reflui para o interior, mal visto tanto dos espaços interiores quanto do recuo lateral estreito. As contradições, que o professor afirma estarem sendo, nesses projetos, elaboradas esteticamente, chegam a um paroxismo, já que tanto a potência arquitetônica do pórtico de concreto, que sintetiza a 56

O Esquema Antiurbano da Arquitetura Brasileira

Prof. Dr. Luiz Recamán - p. 51-60

casa, conflita com as dimensões do projeto e com sua função “casa”, quanto seu potencial comunicativo silencia nos estreitos recuos em que está confinado. Isso resulta do achado estético de Artigas, que procurou associar o arrojo do cálculo de engenheiro com as dificuldades técnicas do trabalho alienado e precário da conjuntura nacional. O importante aqui, diz o autor, é salientar o mal-estar estético da solução, o que dá destaque à essa obra em particular, e às inquietações que caracterizaram sua atividade profissional. Tamanho mal-estar não se limita à projeção exterior do conteúdo da casa – sua relação possível com a cidade, a informação visual geométrica silenciosa –, mas se amplifica no lugar dessa possibilidade de vida livre, o seu interior. Lugar dos afetos e da liberdade, o interior da residência Bittencourt tampouco consegue inocular a “dialética da modernização”. Propõe fluidez e permeabilidade modernas, intensificação dos encontros, restrição das áreas íntimas, etc., mas às expensas de bloqueios visualsociais o térreo visualmente livre. Tanto as dificuldades funcionais obstrutoras quanto as funções “não livres” devem abandonar, visualmente, o pilotis. Nesse sentido, a manobra do muro de pedra e do subsolo da área de serviço – e dependências de empregados – são a base real que permite a largueza das áreas coletivas da família. Largueza essa visual e social. Algo se tem dito do discurso construtivo da fachada, que opõe a rusticidade do muro à transparência tecnológica da caixilharia dos dormitórios no primeiro pavimento. A essa oposição argumentativa subjaz uma contradição real (estética e social). O esquema estético que Artigas define nessa residência será a base para uma série importante de projetos, na fase mais significativa de sua obra. Inclui-se essa lista a FAUUSP. Esses projetos não foram analisados detalhadamente, apenas referenciaram a importância do esquema do arquiteto, mesmo em programas mais abrangentes, como a série de escolas que projetou na cidade de São Paulo. considerações finais e abertura ao debate Para concluir sua apresentação, o arquiteto Luiz Recamán fez referência a dois projetos de Vilanova Artigas que podem comprovar o esquema interpretativo proposto, originado na série de residências 57

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

projetadas desde os anos 1940. O Parque Cecap propiciou a extensão das tipologias ensaiadas em direção à configuração urbana. Como cada residência era um ensaio ou sintoma, sobre as possibilidades de um espaço geral resultante de sua lógica mais direta (o volume, o lote, as aberturas, etc.), é de grande serventia entender a solução urbanisticamente abrangente a fim de verificar os impedimentos externos ao sistema criado, e aqueles advindos de suas aporias constituintes. Pode-se compreender, assim, a utilização de modelos de implantação consagrados pela arquitetura moderna – as lâminas na cidadeparque – sem qualquer enfrentamento da questão nacional, conforme o próprio arquiteto tematizava nos projetos anteriores. As casas e o Cecap não são desdobramentos óbvios das escalas distintas. Existe uma impossibilidade de extensão da solução, nos termos anteriormente apresentados. A mesma impossibilidade da industrialização da construção, que era a base estética da solução arquitetônica, mas que não foi realizada, servindo apenas de figuração expressiva para a construção tradicional de fato levada a cabo nesse imenso conjunto. É claro que o próprio “nacional” estava em crise nesses anos de golpe militar. A resolução drástica, em 1964, das possibilidades emancipatórias do nacional-desenvolvimentismo, deixando clara a “modernização conservadora” que estava em curso no país, mostra-se, nesse conjunto habitacional consagrado, uma grave restrição social externa ao esquema. Porém também interna, ou seja, os impasses sociais da modernização brasileira não puderam ser equacionados esteticamente por sua vanguarda arquitetônica. Não superamos esteticamente os impasses sociais formadores da nação. Não existe cidade possível, do ponto de vista da imaginação arquitetônica nacional, recuperável de seus edifícios exemplares. Apesar disso, segundo o expositor, esse impasse considerado é melhor compreendido em um estudo anterior, para o plano piloto de Brasília, de 1957. Artigas e equipe participaram do concurso com um projeto peculiar. Em rápidas pinceladas, esse estudo mostra com clareza absoluta o ideal desejado, resultante do modelo coetâneo das casas no lote, e como desse esquema não pode resultar cidade, pelo menos nos termos em que o século XX definiu. Apesar da função administrativa da cidade ser 58

O Esquema Antiurbano da Arquitetura Brasileira

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preponderante (capital federal), o grande destaque do projeto é a ocupação unifamiliar em grandes quadras de baixíssima densidade (50 hab/ha). Ou seja, mais ancho, mas com a mesma lógica dos novos loteamentos que definiam o caráter das áreas nobres da cidade naquele mesmo período. Uma ocupação suburbana, que o arquiteto pretendia manter em equilíbrio – isolamento – dentro do âmbito regional e nacional, já que seu fundamento econômico era o orçamento público tanto de salários como da administração local. O equilíbrio de tal ocupação suburbana só pode ser garantido pelo afastamento das áreas “caóticas” (produtivas ou das classes baixas), ou por sua eliminação ideal, em uma capital federal. Reforça essa estratégia a diferença que existe entre esse projeto e a “Broadacre city”, de Wrhight, inspiradora direta da solução em discussão. O projeto norte-americano era um desdobramento das utopias jeffersonnianas das pequenas propriedades rurais produtivas, base de uma democracia social de massa. A dimensão produtiva da “Broadacre city” é estruturante. No caso brasileiro do projeto para Brasília, o vazio à guisa de exterioridade púbica é o alvo a ser perseguido para dialeticamente conformar o edifício e sua forma. O palestrante conclui afirmando que o objetivo de sua apresentação foi mostrar os impasses internos do esquema da arquitetura moderna, no caso de São Paulo. Ou melhor dizendo, o quanto as dificuldades de modernização social do país, longe de encontrarem resistência ou objeção por meio de seus esquemas de pensamento arquitetônico, estruturam esse esquema. Essa perversa equação ideológica permitiu uma modernidade arquitetônica justaposta à precariedade territorial geral, não como oposição crítica, mas como estratégia compositiva na qual as texturas de ambas se contrapõem e compõem. Essa é a relação possível entre arquitetura e cidade, permitida pelo esquema da arquitetura moderna brasileira.

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

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A Arquitetura Brasileira e a Cidade Contemporânea

Prof. Dr. Leandro Medrano - p. 61-66

leandro medrano

a arquitetura brasileira e a cidade contemporânea

Professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAUUSP

introdução Durante a apresentação do professor Leandro Medrano, um dos coordenadores do seminário “Habitação e Cidade Contemporânea: São Paulo – Madrid”, foi apresentada uma síntese do processo de formação da sociedade urbana brasileira, com ênfase na relação historicamente construída entre a arquitetura e a cidade. Foram enfatizados à luz de autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado e Florestan Fernandes, as singularidades do processo de urbanização no Brasil moderno. Medrano iniciou sua apresentação abordando questões que afligem as cidades no Brasil contemporâneo, como a violência, a falta de moradias, a mobilidade e a precariedade dos espaços públicos. Para a elaboração de uma reflexão crítica da situação atual, recorre ao processo histórico de urbanização da cidade de São Paulo. No percurso apresentado, ressalta a cisão entre a arquitetura e o urbanismo na formação da cidade, visto que enquanto os modelos arquitetônicos emblemáticos buscavam autonomia, a cidade crescia desordenada, sem desenho ou forma. A apresentação teve início com uma imagem da Virada Cultural de São Paulo, com a intenção de representar, no campo simbólico, a transformação ocorrida nos últimos anos no Brasil: “com os avanços econômicos sociais da última década, novas formas de socialização parecem emergir nos centros urbanos – principalmente em seus espaços públicos ou coletivos”. Em seguida, o palestrante relatou suas pesquisas em andamento, cujo principal objetivo é compreender os entraves que caracterizam o desenvolvimento dos espaços urbanos nas cidades brasileiras. Salienta que, em um país com dois prêmios Pritzker, e cidades de evidente precariedade, é certo que algo está errado – tanto na arquitetura quanto no urbanismo. Nesse sentido, temas como a habitação de interesse social, por exemplo, tornam-se essenciais às pesquisas em nosso campo disciplinar; sobretudo, por sua 61

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

singular relevância no atual momento do desenvolvimento urbano nacional, no qual o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), produz moradias populares em proporções inéditas. Destarte, Medrano ressalta que suas pesquisas atuais, grosso modo, procuram respostas a dois questionamentos centrais: “Como os exemplos emblemáticos da arquitetura habitacional brasileira elaboram a relação entre a arquitetura e a cidade?” e “Qual o espaço urbano decorrente dessa arquitetura nacional oficial?”. Como exemplo das questões em estudo, foi apresentado um resumo do desenvolvimento urbano da cidade de São Paulo desde o início do século XX até os dias atuais. A ênfase foi dada ao processo de industrialização da cidade, que ocorre a partir dos anos 1930. Seus comentários podem ser assim resumidos: • Dos anos 1930 aos anos 1950 – O período foi marcado pela acelerada formação do Brasil urbano, com a explosão do crescimento das cidades. A cidade de São Paulo, por exemplo, cresceu quase 300% de 1900 a 1930, e manteve crescimento equivalente nas duas décadas seguintes, tornando-se o maior polo industrial do país. No mesmo período foram publicadas as mais importantes obras das chamadas “explicações brasileiras”, como Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Tais obras, cada qual a seu modo, revelam a permanência do “Brasil arcaico” (patrimonialista, patriarcal e rural) no Brasil urbano e “moderno”. A cidade, como meio ideal para a liberdade individual e criação de “ordens não legítimas”1, não formarse-ia em plenitude nesse período do desenvolvimento nacional. • Dos anos 1950 aos anos 1970 – A cidade de São Paulo atinge seu maior ritmo de crescimento e desenvolvimento industrial. Entretanto, torna-se evidente a fragilidade das políticas urbanas adotadas, que privilegiaram o transporte individual e a expansão horizontal em direção às desordenadas periferias. Nesse período, é notória a vulnerabilidade do Brasil moderno, visto que a industrialização e a urbanização não resultaram em uma “ordem competitiva”2, como oposição ao Brasil arcaico. Destaca-se a 62

1 Referiu-se aqui a Max Weber e seu texto “A Cidade”. 2 Referiu-se ao termo utilizado por Florestan Fernandes.

A Arquitetura Brasileira e a Cidade Contemporânea

Prof. Dr. Leandro Medrano - p. 61-66

contribuição de autores como Florestan Fernandes e Celso Furtado. A criação da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 1948, também contribuiu para o entendimento das singularidades da industrialização nos países periféricos, como o Brasil. Para Medrano, é nesse contexto que se torna evidente a precariedade da forma urbana das cidades brasileiras, pois seu desenvolvimento seguia de forma irrestrita aos interesses do capital, favorecendo as elites locais, e não à população como um todo. Nesse contexto, as ordens existentes no Brasil rural são transferidas e adaptadas ao Brasil urbano, sem grandes rupturas às formas sociais preexistentes. Ao mesmo tempo, vimos o auge da arquitetura moderna brasileira, que explorava um campo simbólico espetacular (o Brasil moderno), distante da realidade nacional. • Dos anos 1970 aos anos 1990 – Durante a ditadura militar, nos anos 1970, os planos diretores, em grande parte influenciados pelo zoning norte-americano, persistiram sem muito alterar a precária qualidade dos espaços urbanos das cidades brasileiras. A cidade de São Paulo seguia à frente como metrópole pujante e disforme, e consolidava a marca de sua arquitetura moderna (Escola Paulista) de forma independente da caótica realidade urbana que proliferava – em ritmo de milagre brasileiro – da periferia ao centro. Aos urbanistas mais engajados, foram tempos de entrosamento às teorias urbanas marxistas, restritas, no entanto, ao âmbito da academia e do ativismo político. Também nessa época desenvolveu-se o até então maior programa habitacional nacional, gerido pelo Banco Nacional da Habitação, o BNH. Os grandes conjuntos habitacionais do BNH, de tipologias repetidas em série e distantes dos núcleos urbanos consolidados, até hoje marcam nossos territórios urbanos e endossam a crítica – comum em todo o mundo – dos limites do “modelo modernista” de habitação coletiva de interesse social. Nos anos 1980, com o fim da ditadura militar, inicia-se a formulação de novos modelos políticos e de gestão para o trato com a questão da habitação. O fim do BNH, em 1986, e a Constituição de 1988, sinalizam um novo rumo à questão da habitação no país. A falta de uma política habitacional nacional abrangente e a busca por alternativas às práticas vigentes, marcaram a década seguinte. Esse é um período no qual a cidade de São Paulo destacou-se com experiências pioneiras no campo das Habitações de Interesse Social (HIS) empreendidas na administração da 63

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

prefeita Luiza Erundina. Essas experiências envolviam tanto mecanismos de gestão quanto práticas de projeto, e resultaram em exemplos emblemáticos, como os conjuntos habitacionais Rincão, Rio das Pedras, Casarão do Carmo, entre outros. Entretanto, as inovações decorrentes desse processo foram interrompidas pelos governos das gestões seguintes, que optaram por estratégias “conservadoras”, similares ao criticado período do BNH. Após esse breve relato histórico, foi enfatizado as singularidades do momento atual da arquitetura e do urbanismo no Brasil, visto que muitas das reinvindicações das décadas anteriores foram atendidas. Tanto o cenário político quanto o econômico são favoráveis à ideação de novas condições e formas urbanas, com melhores soluções para a relação entre a habitação e a cidade no contexto nacional. Entretanto, não são poucos os entraves que persistem, internos e externos à disciplina. Nesse sentido, destacou: • Os instrumentos urbanos e políticos reivindicados desde o final dos anos 1960 resultaram em conquistas significativas, como as contribuições à Constituição de 1988, a aprovação do Estatuto das Cidades (2001), a criação do Ministério das Cidades (2003), o Plano Diretor Estratégico em São Paulo (2002), além de linhas de financiamento como o Programa MCMV (2009). Tais conquistas, embora muitas delas fragilizadas por suas estruturas políticas, técnicas e econômicas, não ressoaram em melhores condições à qualidade urbana de nossas cidades. Assim, nos últimos anos, intensifica-se a crítica geral às políticas urbanas vigentes, mas sem definições consensuais quanto aos modelos desejados. Não parece haver acordo em relação à forma urbana pretendida nessa atual fase do processo de urbanização brasileiro. Sabe-se a cidade que não queremos, mas não a que desejamos. • Os megaeventos esportivos, que em outros tempos e lugares marcaram conquistas urbanas expressivas, chegam ao Brasil desgastados em relação ao seu potencial de regenerar o tecido urbano e promover o desenvolvimento econômico. Ademais, o processo no país está sendo conduzido de forma hermética, e parece priorizar os interesses econômicos de investidores privados e distanciar-se dos debates urbanos nacionais mais abrangentes. Não existe, nos encaminhamentos e nos resultados 64

A Arquitetura Brasileira e a Cidade Contemporânea

Prof. Dr. Leandro Medrano - p. 61-66

divulgados até o momento, a expectativa de grandes benefícios urbanos e sociais, como nos exemplos emblemáticos dos anos 1990. Também não se vê a articulação de uma estratégia original – engajada na busca por novos modelos de gestão e participação social em eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. • A chamada “nova classe C” parece reconhecer a cidade e seus espaços públicos como lugares legítimos de expressão e vivência urbanas. Vemos um novo cenário, diferente do movimento em direção à reclusão que fora evidente nos anos 1980 e 1990, quando os condomínios fechados e os shopping centers conformavam o esquema dominante da vida urbana nos grandes centros – uma simplificação casual e oportunista das formas de vida pública. • Eventos de amplo alcance, como a Virada Cultural, que teve início em 2005, reforçam a ideia dos espaços livres públicos da cidade como lócus central da vida coletiva e, portanto, essenciais à formação de uma cultura urbana abrangente e dinâmica. • Os concursos de arquitetura, como o HabitaSampa (2004), o Bairro Novo (2004) e o Renova São Paulo (2011), evidenciamos temas da habitação social e do urbanismo diante das novas condições e necessidades da cidade de São Paulo. Seus resultados revelaram a diversidade de matrizes teóricas e metodológicas que caracteriza a disciplina, nesse início de século, no Brasil. A continuidade dos concursos como método de seleção para obras públicas, em ambiente propício à análise crítica abrangente, seria fundamental para que essas experiências não se limitem a grupos restritos, e possam influenciar projetos e políticas urbanas em todo o país. considerações finais O palestrante finalizou sua apresentação com uma reflexão sobre o Projeto Nova Luz, cujo objetivo era o de reurbanizar uma área degradada do bairro da Luz, conhecida como “cracolândia” por abrigar usuários de crack. A proposta, idealizada pelas gestões dos prefeitos José Serra e Gilberto Kassab 65

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

(2004/2012), foi desenvolvida por um consórcio internacional que teve a empresa britânica City Company como a maior responsável pelo projeto urbano. O Nova Luz foi recentemente arquivado pelo atual prefeito da cidade. O arquivamento foi justificado pela existência de irregularidades em seu desenvolvimento, como a falta de diálogo com comerciantes e moradores do local, e o excessivo controle da iniciativa privada em relação aos resultados urbanos desejados. O Projeto Nova Luz, nesse contexto, tornou-se um exemplo emblemático do distanciamento de nosso campo disciplinar em relação às questões que envolvem o desenho da cidade. Por um lado, o histórico recente da região reafirma certas práticas urbanas nacionais, como os edifícios “espetaculares” situados, passivos, em entorno degradado. Por outro lado, confirma-se que o vínculo entre a arquitetura e a cidade, no Brasil, trata-se de uma suposição retórica, sem lastro conceitual ou histórico que sinalize alternativas à estrutura geral existente. Nesse sentido, a desigualdade social e a injusta configuração espacial da cidade, que historicamente legitimavam as conformadas arquiteturas da prática cotidiana, perdem força nesse momento de transformação evidente. Reforça os equívocos desse modelo peculiar a contratação do escritório Herzog & de Meuron para o projeto da sede da São Paulo Cia. de Dança. O projeto, se construído, fará parte do amplo complexo cultural do local, composto por edifícios como a Pinacoteca, a Estação Pinacoteca, a Sala São Paulo, Museu da Língua Portuguesa e a Estação da Luz (restaurada). Esse conjunto de emblemáticos edifícios em nada resultou à regeneração do bairro. Temse toda arquitetura e nenhuma urbanidade nessa versão atrasada e parcial das desgastadas estratégias do city marketing. Ou seja, nossa sociedade, governantes e arquitetos, parecem aceitar essa estrutura peculiar de cidade. Entretanto, de que cidade estamos falando? Certamente não é A Cidade descrita por Max Weber em seu texto do início do século passado, e nem mesmo uma estrutura urbana moderna capaz de abrigar uma “ordem competitiva” nos moldes descritos por Florestam Fernandes. Os impasses indicados pelas “explicações brasileiras” dos anos 1930 parecem, infelizmente, permanecer nas atuais formas urbanas nacionais. 66

82 Viviendas de Protección Oficial en Carabanchel

amann + canoVas + maruri arquitectos

Projeto: 82 ViViendas

de

Amann / Canovas / Maruri - p. 67-68

Protección oficilal en carabanchel

local: Av de la Peseta, Carabanchel, Madri – ES data: 2005 – 2007 cliente: EMVS (Empresa Municipal de Vivienda Social de Madrid) área de intervenção: 4.441,33 m2 área construída: 13.419,81 m2 (incluído estacionamento) equipe técnica: Arquitetura: Atxu Amann, Andrés Cánovas, Nicolás Maruri 67

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

Planta tiPo

fachada

tiPologias

68

118 Viviendas para jovenes en Coslada

amann + canoVas + maruri arquitectos

Projeto: 118 ViViendas

Para joVenes en

Amann / Canovas / Maruri - p. 69-70

coslada

local: Coslada – ES data: 2005 – 2012 cliente: EMVICOSA (Empresa Municipal de Vivienda de Coslada) programa: Uso misto: habitação para venda e aluguel, comércio, escritórios equipe técnica: Arquitetura: Atxu Amann, Andrés Cánovas, Nicolás Maruri

69

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

Planta tiPo

fachada e Volumetria

tiPologias

70

23 Viviendas de realojo en Lavapies, Madri

espegel + fisac arquitectos

Projeto: 23 ViViendas

de realojo en

Espegel + Fisac Arquitectos - p. 71-72

laVaPies, madri

local: Madri – ES data: 2001 – 2004 cliente: EMVS de Madri (Empresa Municipal de Vivienda Social) área de intervenção: 528,83 m2 área construída: 3.427,77 m2 equipe técnica: Arquitetura: Carmen Espegel, Concha Fisac Estrutura: Aplen s. l. Instalações: V y H arquitectos

71

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

Planta

III e IV Pavimento

Terreo

fachada

tiPologias

72

Reabilitação do Edificio Riachuelo, São Paulo

paulo bruna arquitetos associados

Projeto: reabilitação

do edifício

P. Bruna Arquitetos Associados - p. 73-74

riachuelo, são Paulo

local: Rua do Riachuelo, 275, São Paulo – SP data: 2007 – 2008 cliente: Cohab – Prefeitura de São Paulo área de intervenção: 473,70 m2

Edifício Riachuelo em 2000

Edifício Riachuelo em 2008

área construída: 7.870,74 m2 equipe técnica: Arquitetura: Paulo Bruna, Sonia Gouveia, Guilherme Leme, Frederico Ambrosio, Renata Lemos Elétrica: Santiago Engenharia de Eletricidade Ltda Hidráulica: ETIP Projetos de Engenharia Orçamento: STRAUB Estrutura: Atual Engenharia

PaVimento tiPo 73

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

tiPologias

ANTES

esPaços internos

74

DEPOIS

Casarão do Carmo, São Paulo

Hector Vigliecca & associados

Projeto: casarão

do

Hector Vigliecca & Associados - p. 75-76

carmo, são Paulo

local: Bairro Sé, São Paulo – SP data: 2003 – paralisado cliente: Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) área de intervenção: 540 m2 área construída: 1.150 m2 equipe técnica: Arquitetura: Hector Vigliecca, Luciene Quel, Ruben Otero, Lilian Hun, Ana Carolina Penna, Ronald Werner, Mario Echigo, Fausto Chino, Indiana Marteli, Maíra Carrilho, Yuri Vital, Paulo Serra, Lucí Maíe Gerenciamento: Consórcio JNS e Hagaplan Estrutura: Pedro Teleki Instalações: Oací Picolo e Alceu Belqueldo Filho Orçamento: Mário Scarpelli Topografia: Carlos Haak

Contexto preexistente

Área de intervenção

75

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

fachadas

interVenção no edifício existente

76

Gleba A, São Paulo

Hector Vigliecca & associados

Hector Vigliecca & Associados - p. 77-78

Projeto: gleba a, são Paulo

local: Heliópolis, São Paulo – SP data: 2004 cliente: Prefeitura Municipal de São Paulo área de intervenção: 60.000 m2 área construída: 30.000 m2

Área de intervenção

equipe técnica: Arquitetura: Hector Vigliecca, Luciene Quel, Ruben Otero, Ronald Werner, Neli Shimizu, Lílian Hun, Thaísa Fróes, Ana Carolina Penna, Gabriel Farias, Paulo Serra, Luci Maie Estrutura e Instalações: High Tech Consultants 77

1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

fachadas

esPaços coletiVos

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Parque Novo Santo Amaro, São Paulo

Hector Vigliecca & associados

Hector Vigliecca & Associados - p. 79-80

Projeto: Parque noVo santo amaro, são Paulo

local: São Paulo – SP data: 2009 – em andamento cliente: Prefeitura de São Paulo/Consórcio Mananciais: Construbase + Engeform área de intervenção: 5,4 ha área construída: 13.500 m2 equipe técnica: Arquitetura: Hector Vigliecca, Luciene Quel, Neli Shimizu, Ronald Werner, Caroline Bertoldi, Kelly Bozzato, Pedro Ichimaru, Bianca Riotto, Fábio Pittas, Thaísa Fróes, Aline Ollertz, Sérgio Faraulo, Paulo Serra, Lucí Maíe Gerenciamento: Consórcio JNS e Hagaplan Infraestrutura: MC Engenharia Fundações: Berfac Consultoria de Solos e Fundações Estrutura de concreto: Camilo Engenharia Estrutura metálica: Projeto Alpha, Prometal Engenharia Instalações elétricas e hidrossanitárias: Procion Engenharia

contexto preexistente

novas unidades habitacionais

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1º seminário “Habitação e cidade contemporânea - São Paulo e Madri”

fachadas

esPaços coletiVos e Públicos

tiPologias

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