HAIKAI NO BRASIL: UMA HISTÓRIA DE IMIGRAÇÃO JAPONESA

May 22, 2017 | Autor: Olivia Nakaema | Categoria: Literatura brasileira, Haikai, Imigração Japonesa, Literatura Nipo-Brasileira
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HAIKAI NO BRASIL: UMA HISTÓRIA DE IMIGRAÇÃO JAPONESA

Olivia Yumi NAKAEMA Ivã Carlos LOPES FFLCH/ USP Resumo: O presente trabalho visa apresentar o conceito de haikai para os brasileiros e a utilização dessa forma pelos autores brasileiros e nikkeis. Foi introduzido no Brasil com a vinda dos imigrantes japoneses, a partir de 1908, inicialmente escrito e ensinado em língua japonesa. Posteriormente, o gênero poético haikai passou a ser escrito em língua portuguesa, mas com as devidas modificações quanto à métrica, rima e kigo (referência ao tempo ou ao espaço do enunciado), tendo em vista as peculiaridades do Brasil e da sua língua. Ao final, propomos um tipologia dos escritores de haikais, segundo as prioridades que são aos planos do conteúdo e da expressão. Palavras-chave: Haikai; Literatura Brasileira; Imigração Japonesa.

Introdução

A história dos japoneses e seus descendentes no Brasil começou com a chegada dos primeiros imigrantes em 1908. Com eles, houve também a vinda de uma cultura e língua muito diferentes da cultura brasileira e da dos imigrantes europeus já instalados neste país. Diante de uma paisagem natural e aspectos humanos diferentes, a literatura produzida pelos imigrantes no novo país assumiu características próprias e acabou por influenciar poetas com os quais entrou em contato. Dessa maneira, procuraremos contribuir para a compreensão desse processo de "antropofagia" do haikai japonês pelos brasileiros por meio da elaboração de uma "tipologia estilística de haikaístas brasileiros".

1. Chegada e adaptação do haikai no Brasil

Provenientes de um país insular e com estações do ano bem definidas, os

imigrantes japoneses depararam-se com um clima tropical e com muitas culturas diferentes como a do sertanejo, do caboclo, dos portugueses, italianos, entre outras. Isso fez com que os japoneses se adaptassem a uma nova forma de natureza e de riquezas sociais. Nessas condições, imigra também para o Brasil a poesia do haikai. Sabe-se que no primeiro navio imigrante, o Kasato Maru, em 1908, aportou em Santos o poeta Shuhei Uetsuka (1876-1935), cujo nome artístico é Hyôkotsu. Com ele chegava ao Brasil a tradição dos poemas de Bashô e muitos outros poetas japoneses. Posteriormente, há registro dos poetas Keiseki Kimura (1867-1938) e Nenpuku Sato (1898-1979) no estado de São Paulo. Juntos, eles contribuíram para a difusão das técnicas de elaboração do haikai entre os imigrantes japoneses e brasileiros. Inicialmente o idioma de escrita era a língua japonesa, mas o conteúdo já indicava a aclimatização do kigo 1 . Os haikais aqui escritos passaram a adotar termos lexicais que faziam parte da natureza brasileira e novos sentimentos que decorriam do distanciamento da terra natal e do contato com novas experiências. O passo seguinte foi a criação de haikais em língua portuguesa. Sabe-se que, durante a Segunda Guerra Mundial, o idioma japonês passou a ser perseguido pelo governo brasileiro, o que obrigou os imigrantes a adaptarem o haikai, realizando alterações quanto à expressão e ao conteúdo. Então, passou-se a considerá-lo como sendo o poema breve dividido em três linhas de cinco, sete e cinco sílabas poéticas em cada uma. Apesar de o haikai japonês não ter esquema de rimas nem título, alguns poetas passaram a defender o seu uso, como o fez Guilherme de Almeida. Quanto ao conteúdo, alguns poetas, como Jorge Fonseca Júnior, pregaram a importância de se manter o kigo no haikai. Atualmente, há muitos poetas que denominam seus poemas haikai, mas que não apresentam o kigo nem a métrica de três linhas. Para eles, basta a forma breve e a concisão para que o poema seja um haikai. Millôr Fernandes, Paulo Leminski e Antônio

1

O kigo é um termo que faz referência a uma estação do ano. Pode ser uma palavra que se refere ao

tempo, a um fenômeno atmosférico, à geografia, à fauna, à flora e a vivências ou eventos de uma determinada estação do ano ou a menção direta a esta, como sapo e primavera.

Fernando de Franceschi são alguns dos poetas que elaboram haikais de conteúdo livre e forma variável, mas breve. No presente trabalho não pretendemos julgar qual dos posicionamentos é o mais adequado para a forma de haikai brasileiro, mas nos deteremos a apresentar diferentes autores e diferentes correntes a fim de demonstrar que a riqueza da poesia brasileira reside na diversidade e na conciliação dessas diferenças em um mesmo espaço cultural.

2. Por uma tipologia estilística dos haikaístas brasileiros

Inicialmente, parte-se da "tipologia estilística dos poetas contemporâneos" elaborada por PIETROFORTE (2006) que classifica os poetas que elaboram haikais como poetas "arquitetos". Essa tipologia considera que o poeta "arquiteto" vale-se de formas já consagradas, como sonetos e haikais, para criar uma nova forma de poesia. Contudo, esta tipologia não nos permite classificar as diferentes manifestações de haikaístas brasileiros, na medida em que, além da forma consagrada de haikai, eles divergem em características dos planos da expressão e do conteúdo 2 . Por essa razão, para apresentar uma tipologia de estilos de escritores brasileiros de haikais, esclareceremos algumas dessas principais características do haikai tradicional para, a seguir, classificá-las em quatro tipos. Como elementos do plano da expressão que caracterizam o haikai japonês temos a forma breve de dezessete sílabas, divididas em cinco, sete e cinco partes separadas por termos cortantes (kireji 3 ) ou que indiquem final de frase (終止形 – shushikei 4 ). Além 2

As expressões "plano do conteúdo" e "plano da expressão" estão sendo utilizadas conforme o sentido

atribuído por Louis Hjelmslev em "Prolegômenos a uma teoria da linguagem". 3

O kireji constitui uma partícula que se associa a uma palavra para indicar um corte na frase. Pode ser

traduzida para o português como uma "palavra cortante". Segundo BLYTH (1976, p. 377-379), as partículas ya,,kana,, keri são tipos de kireji comuns. A primeira corresponde a uma interjeição de admiração ou pode indicar uma justaposição entre elementos. Kana pode expressar uma exclamação de uma emoção ou destacar a palavra anterior como o centro de interesse do poema ou sua energia. E keri pode demonstrar que o tempo do poema é o passado e a ação é concluída ou indicar um sentimento de

disso, originalmente, o haikai não era utilizado com título ou rima final. Por ser uma língua moraica, a poesia japonesa possui como sílaba poética cada unidade de mora. Segundo Elza Doi (1997, p.8), o haikai japonês é constituído de 17 moras, que podem ser conceituadas como a menor unidade de percepção dos falantes de uma determinada língua moraica. Como a língua portuguesa não é uma língua moraica, algumas adaptações métricas precisaram ser elaboradas para o haikai brasileiro, conforme veremos a seguir. Em língua portuguesa o haikai pode conter outros elementos do plano da expressão, como a constituição em uma estrofe dividida em cinco, sete e cinco sílabas em cada uma das linhas ou, simplesmente, apresentar uma forma breve de duas ou mais linhas. Pode-se ainda dar título ao poema e utilizar rimas finais e internas, aliterações, assonâncias, entre outros recursos poéticos. Com relação ao kireji, alguns poetas adotam a pontuação com travessão para indicar um "corte" na frase. Para o plano do conteúdo do haikai japonês tradicional, podemos afirmar que ele possui sempre um kigo, que expressa uma tradição japonesa de tornar um elemento do léxico uma referência exata de uma certa estação do ano. Esse termo não representa apenas a estação do ano, mas o tema principal do haikai, isto é, representa a idéia-núcleo do poema à qual todas as outras informações devem estar vinculadas. Por ser elemento essencial para a poesia japonesa, existem listas de kigos (saijiki). Outro elemento presente são as formas de associação com o zen budismo, uma vez que alguns estudiosos como Octavio Paz consideram o haikai como uma forma de iluminação (satori) 5 . Finalmente, há ainda a presença de três momentos no conteúdo de um haikai: emoção ou de admiração ou, ainda, dar a sensação de peso ou de poder para alguma palavra do discurso. 4

Este recurso é utilizado para termos cuja classe morfológica apresenta a flexão em shushikei, como

verbos (dôshi) e alguns adjetivos (keiyôshi). 5

Para Octavio Paz (2005, p.158-159) zen está presente no haikai através da simplicidade e comunhão

com a natureza. Sobre a obra de Bashô, ele afirma: "O haiku de Bashô é exercício espiritual. Discípulo do monge Buccho- e ele mesmo meio ermitão, alternando a poesia com meditação - não será talvez impertinente deter-se na significação do budismo Zen em sua obra e em sua vida."

momento de equilíbrio inicial, momento de transformação e momento de novo equilíbrio. No Brasil, há grupos de poetas que defendem que o haikai necessita ter o kigo que faça referência a uma estação do ano brasileira. Assim, como a natureza e o clima de um país tropical são bem diferentes do japonês, o kigo japonês não pôde imigrar do país do haikai nos mesmos moldes que os poetas. Por essa razão, foi preciso criar uma nova lista de kigos brasileiros como, por exemplo, o saijiki intitulado "Natureza: berço do haicai", elaborada pelo Grêmio Ipê. Há poetas também que defendem que o haikai deva possuir um conteúdo que o aproxime da iluminação zen budista, sem obrigatoriedade de um kigo. No entanto, alguns poetas brasileiros defendem um conteúdo livre para o haikai, podendo este ser cômico, político, tratar ou não da natureza ou de qualquer assunto cotidiano. Baseando-se, então, em um conceito do haikai tradicional para a literatura japonesa e em como o haikai é produzido no Brasil por haikaístas brasileiros e nikkeis, podemos elaborar uma tipologia de estilos de haikais escritos em língua portuguesa, conforme a opção de privilegiar apenas um plano poético, ambos ou nenhum. Essa tipologia pode ser mais bem compreendida a partir da estrutura gráfica abaixo:

Aos poetas que privilegiam igualmente o plano da expressão e o do conteúdo e que visam a preservar as características do haikai tradicional japonês, com poucas

adaptações para o idioma falado no Brasil, denominaremos haijin 6 . São representantes desse estilo os poetas integrantes de grêmios e associações como o Grêmio Ipê, entre eles Goga e Teruko Oda. A seguir, um haikai que foi escrito por uma haikaísta pertencente a este grupo:

Vagas lembranças da casinha de sapé Luz de pirilampos. (Teruko Oda)

Podemos notar que o kigo utilizado é o termo "pirilampos" e há evidente descrição da natureza. A situação inicial é a presença da luz de pirilampos que desperta a lembrança dos furinhos da casa de sapé, por onde a luz consegue entrar, como se fossem vaga-lumes. Também o plano da expressão é muito próximo do haikai tradicional japonês, com três partes, sendo maior a intermediária, com kireji e quantidade de sílabas próxima a 17 sílabas poéticas. Por sua vez, há os poetas, aos quais denominaremos de "ourives", que privilegiam o plano da expressão, adotando rimas e a métrica de cinco, sete e cinco sílabas, divididas em três linhas e conteúdo variado. Diferenciam-se do grupo haijin por não pregarem o uso do kigo ou qualquer outro elemento de conteúdo. Um dos defensores dessa corrente é Guilherme de Almeida, que além desses critérios, também acrescentou título e rima entre o primeiro verso e o terceiro, obedecendo ao seguinte esquema:

__ __ __ __ X __ O __ __ __ __ O __ __ __ __ X

6

O termo haijin é usado para denominar os poetas que escrevem haikais em língua japonesa.

Para melhor exemplificar o grupo dos poetas "ourives", observemos o haikai que se segue:

De noite

Uma árvore nua aponta o céu. Numa ponta brota um fruto. A lua? (Guilherme de Almeida)

Além de rimar "nua" e "lua", "aponta" e "ponta", o haikai acima apresenta o título "De noite" e uma métrica muito próxima a dezessete sílabas poéticas. Apesar de possuir um conteúdo sobre a natureza, o haikai apresenta um esforço evidente em obedecer a normas do plano do conteúdo. Segundo GOGA (1988, p.37), há uma corrente de poetas brasileiros que defendem que o haikai deve conter "concisão", "condensação", "intuição" e "emoção" geradas pela associação com o zen budismo, independente da forma conter rima ou outros elementos do plano da expressão, com exceção de alguma brevidade na forma. Esse grupo de poetas, aos quais denominaremos de "monges", possui como representante Oldegar Vieira. Assim, segundo nossa classificação, esta corrente de haikaístas estaria inserida entre os que privilegiam o plano do conteúdo, mas mantêm algum aspecto do plano da expressão, ainda que seja apenas a brevidade em três linhas. Abaixo, um poema de Oldegar Vieira, que ilustra seu pensamento sobre o haikai:

Alvorada

Pouco a pouco vai canto claro dos galos

clareando o dia

Por fim, podemos ainda encontrar poetas brasileiros que privilegiam elementos livres tanto no plano do conteúdo quanto no da expressão, aos quais chamaremos de "poetas-cotidianos". Paulo Leminski, Millôr Fernandes e Antonio Fernando de Franceschi são alguns dos representantes desse grupo.

pra que cara feia? na vida ninguém paga meia. (Paulo Leminski)

***

Poeminha Solidário 1979

Ladrão, mentiroso, tarado, Fanático, covarde, traidor. Mas do nosso lado. (Millôr Fernandes)

*** TENSÃO

linha e ponto suspender no limite

e as palavras nas canções (Antonio Fernando de Franceschi)

Como se pode notar nos haikais anteriores, não há regras fixas de métrica, nem de conteúdo. Acerca da pretensão de se criar haikais no estilo bashoniano no Brasil, poderíamos concordar com Valdinei Dias Baptista (1995, p.111) quando afirma que a excessiva preocupação com técnicas de elaboração do haikai acaba por "sufocar" a poesia, tornando-a "carente da espontaneidade, da delicadeza e do brilho de que falava Bashô", todavia, o haikai elaborado no Brasil por imigrantes ou brasileiros, desde o início de sua curta história, tem apresentado características próprias, como a presença de assuntos e kigos verdadeiramente brasileiros, bem como uma visão de mundo bem diferenciada. Portanto, desde sempre, o haikai brasileiro passou a obedecer ao seguinte ensinamento bashoniano: "não siga as pegadas dos antigos; busque o que eles buscaram" 7 . Assim, ao expor uma tipologia dos haikaístas brasileiros, procurou-se contribuir para uma comparação esquematizada de estilos e para a conclusão de que a influência dos imigrantes japoneses e a mistura da forma haikai com a criatividade brasileira proporcionou fértil campo para a literatura nacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAPTISTA, Valdinei Dias. "Chiclete com Banana - A experiência do Haicai no Brasil". Estudos Japoneses. Número 15. São Paulo, 1995. BASHÔ, Matsuo. Trilha Estreita ao Confim. Tradução: Kimi Takenaka e Alberto 7

Ensinamentos de Bashô em GARCIA (1989:31) com tradução para o português da autora.

Marsicano. São Paulo: Iluminuras,1997. BLYTH, R.H. Haiku. Vol. I. Tokyo: The Hokuseido Press, 1976. DOI, Elza Taeko. O Papel da Sílaba e da Mora na Organização Rítmica do Japonês. Orientação da Profa. Dra. Maria Bernadete Marques Abaurre. UNICAMP, Instituto de Estudos da Linguagem, 1997. GARCIA, A. C. Jaikus inmortales. Segunda edición. Madrid: Ediciones Hiperión, 1989. GOGA, H. Masuda. O Haicai no Brasil. Tradução: José Yamashiro. São Paulo: Oriento, 1988. HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. 2.edição. 1a. reimpressão. Tradução de J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2006. LEMINSKI, Paulo. Matsuó Bashô: A Lágrima do Peixe. São Paulo: Brasiliense, 1983. MENDONÇA, Maurício Arruda. Nenpuku Sato: Trilha forrada de folhas. Seleção, tradução e ensaio de MAURÍCIO ARRUDA MENDONÇA. São Paulo: Edições Ciência do Acidente e Aliança Cultural Brasil-Japão, 1999. PAZ, Octavio. "A Tradição do Haikai". In: SAVARY, Olga (org.), São Paulo: Hucitec, 1989. ________; SHIYIA, Eikichi Haya. "Bashô e o Haikai". In: SAVARY, Olga (org.), São Paulo: Hucitec, 1989. ________. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 2005. PIETROFORTE, Antonio Vicente. "Você é lingüista ou pregador? Elaboração de uma tipologia estilística dos poetas brasileiros contemporâneos". Estudos Semióticos.

Número

2.

São

Paulo,

2007.

Disponível

em

. Acesso em "21/08/2007". SAVARY, Olga (org.). Haikais de Bashô. Tradução: Olga Savary. São Paulo: Hucitec, 1989. WAKISAKA, Geny. "Haicai - Seu Desenvolvimento no Japão". Anais do IV Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura e

Cultura Japonesa. São Paulo: Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo, 1993.

ABSTRACT: This research aims present the concept of haiku for Brazilians and also the use of this form of poetry by Brazilian and Nikkei people. This concise poem has been originated from the Japanese haiku, which was created in Azuchi-Momoyama Period (1573-1603). In Brazil, it has been introduced by Japanese immigrants, since 1908, and firstly it has been taught and written in Japanese Language. After that, this kind of poem started being written in Portuguese Language, but with some adaptations as metric, rhythm and kigo (reference to the time and place of enunciation) needed because of the peculiarities of Brazil and its language.

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