Haikais de Paulo Leminski: uma abordagem semiótica

May 29, 2017 | Autor: Olivia Nakaema | Categoria: Paulo Leminski, Haikai
Share Embed


Descrição do Produto

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

!"

!"#!"$%&'%(!)*+%*',"-$#".%),!%!/+0&!1',% $',"23"4!!% Olivia Yumi Nakaema Universidade de São Paulo - USP

RESUMO: O presente trabalho visa apresentar uma análise do poema do gênero haikai do poeta paranaense Paulo Leminski com a utilização dos instrumentos teóricos da Semiótica da Escola Francesa. O poema é analisado quanto ao plano da expressão e ao do conteúdo, sendo que relações de isomorfismo são buscadas entre esses dois planos. PALAVRAS-CHAVE: Semiótica. Poesia. Haikai. 1. INTRODUÇÃO O escritor paranaense Paulo Leminski é atualmente conhecido por sua vasta quantidade de traduções, seus romances, poesias e, principalmente, por seus haikais. Acerca do seu fazer poético do poema breve, Perrone-Moisés (2000, p. 234-240) afirma que "Leminski conhecia essa arte e colhia o poema com o golpe certeiro da espada zen" e "ostentando a insígnia da contracultura, ele era um poeta culto, que conhecia seu ofício e o levava a sério, num gabinete cheio de vida e desordem". A respeito do haikai, a mesma continua: "ele encontrou no haicai o humor e a imagem, a economia verbal e a objetividade, qualidades que, segundo Octavio Paz, são também os elementos centrais da poesia moderna" (PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 234-240). Procuramos, neste trabalho, tecer algumas considerações sobre a definição do gênero haikai e analisar um poema, com o intuito de verificar a sua significação e as correspondências entre os planos da expressão e do conteúdo. Assim, procuramos também dar uma pequena contribuição para a compreensão de poemas do gênero haikai. 2. DEFINIÇÃO DE HAIKAI Primeiramente, antes de entrarmos na análise de um haikai do escritor paranaense Paulo Leminski, é necessário responder à seguinte pergunta: o que é um haikai? O haikai, enquanto gênero poético, é escrito pela junção de dois ideogramas: o “hai”, que significa "brincadeira, gracejo", e o “kai”, que significa "harmonia, realização".2 Para este trabalho, adotaremos a nomenclatura de haikai. Seguiremos a denominação do Dicionário Houaiss, segundo o qual "a forma haiku é mais utilizada como transliteração do japonês em línguas como o francês e o inglês, e nos livros especializados japoneses; no português, tanto como em outras línguas ocidentais, o registro mais encontradiço é a forma haikai/ haicai". No Brasil, não há consenso quanto à nomenclatura a ser utilizada, pois alguns poetas adotam os termos “haikai”, “haicai”, “hai-kai”, “haiku”, entre outros. Este gênero poético surgiu no Japão por volta do século XVI tornou-se conhecido, no Ocidente, por meio da difusão da poesia do poeta japonês Matsuo Bashô. O haikai chegou 1

Trabalho apresentado no XIX FALE – FÓRUM ACADÊMICO DE LETRAS realizado na Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM de 22 a 24 de maio de 2008. 2 Fonte: Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2004.

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

253

ao Brasil com a influência do movimento dos poetas concretistas, que valorizam sua forma concisa, e com a cultura dos imigrantes japoneses a partir de 1908. Com estes últimos, houve também a vinda de uma cultura e língua muito diferentes da cultura brasileira e da dos imigrantes europeus já instalados neste país. Inicialmente, o haikai dos imigrantes foi escrito em sua língua nativa, o japonês, mas passaram a ser elaborados pelas gerações seguintes e pelos poetas brasileiros em língua portuguesa. 2.1. O haikai em língua japonesa Segundo SAUSSURE (2000, p. 36), os sistemas de escrita podem ser do tipo ideográfico, no qual "a palavra é representada por um signo único e estranho aos sons de que ela se compõe", ou do tipo dito "fonético", no qual há uma representação dos sons que se sucedem na palavra. Este último tipo pode ser silábico ou alfabético. Saussure afirma ainda que os sistemas ideográficos podem tornar-se mistos, facilmente, quando "certos ideogramas, distanciados de seu valor inicial, terminam por representar sons isolados". Assim, parece-nos que a língua japonesa é um dos casos de sistema misto, uma vez que ela é composta de um sistema ideográfico, os chamados kanji, e de um sistema fonético, os chamados hiragana e katakana. Além de ser um sistema misto de escrita, a língua japonesa é uma língua de ritmo moráico. Primeiramente, é necessário conceituar a mora como sendo uma unidade rítmica com uma duração mais ou menos igual, caracterizada pelo acento de altura e com marcação feita segundo o acento de tom alto. Em outras palavras, a mora pode ser conceituada como a menor unidade de percepção dos falantes de uma determinada língua moráica (DOI, 1997, p. 8). Dessa forma, a divisão "silábica" do poema em língua japonesa ocorre pela divisão em unidades de mora. As letras dos sistemas de escrita fonéticos, o hiragana e katakana, correspondem a uma mora. Algumas das moras desses sistemas não seriam consideradas sílabas na língua portuguesa como os sons nasais /n/, /m/ e /⎠/. Como exemplo dessa divisão moráica podemos apresentar a seguinte escansão do haikai abaixo: ha / ru/ ta/ tsu/ ya // shi/ n/ ne/ n/ fu/ ru/ ki // ko/ me/ go/ shô (Bashô) Este poema é composto por exatamente dezessete moras, divididas em cinco, sete e cinco sílabas. O fonema /n/ é considerado uma "sílaba poética" autônoma e a representação gráfica "ô" indica a presença de duas moras que resultam aproximadamente da junção de dois sons da vogal "o". Deve-se ressaltar ainda, que nos haikais japoneses de Bashô não existem sinais de pontuação como vírgulas, dois pontos, travessão, aspas, pontos de interrogação e de exclamação, ponto final, nem letras maiúscula ou minúscula. Além disso, na língua japonesa existem outros recursos, que neste trabalho chamaremos de "partículas", que podem indicar dúvida, suposição, volição, ação concluída, entre outros sentidos. A "partícula" "ya", por exemplo, corresponde a uma interjeição de admiração ou uma justaposição entre elementos. Por vezes, a falta de pontuação pode gerar a impressão de que o poema termina em reticências. Ademais, a natureza da língua japonesa é aglutinante, ou seja, os termos da oração podem estar em junção com outros, sem que o sentido da oração seja comprometido. Podese também ter muitas orações subordinadas dentro de um mesmo período. Segundo (LEMINSKI, 2001, p. 32-33), essa característica favorece a utilização de gerúndios, frases subordinadas e períodos longos. Na língua japonesa, outrossim, não há lugar fixo para o sujeito ou o predicado

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

254

(BLYTH, 1976, p. 360). Pode-se, grosseiramente, afirmar que as orações simples são organizadas em "S (sujeito) C (complemento) V(verbo)". Entretanto, essa estrutura pode adquirir outra ordem de acordo com o efeito de sentido que se procura dar à oração. Blyth (1976, p. 363) ressalta ainda a importância da onomatopéia, muito utilizada não só na poesia, mas também na prosa e na língua falada. Para esse estudioso da cultura do Oriente, o perfeito significado do haikai só pode ser alcançado quando este for ouvido pelo ouvido físico (BLYTH, 1976, p. 369), o que justifica a enorme importância da escolha vocabular e das onomatopéias. O haikai japonês deve apresentar um kigo, ou seja, palavra que se refere a uma estação do ano. Segundo Goga (1991, p. 11-12), kigo "é o termo que indica os fenômenos característicos de cada estação: variações climatológicas, acontecimentos celestiais ou terrestres, costumes folclóricos, festas ou rituais religiosos, flora, fauna e, também, entes inanimados como rios, campos e montanhas". Dessa forma, como esse termo sazonal deve fazer referência a algo que faça parte do momento da enunciação, para um poema japonês ser situado como um de inverno, ele necessariamente deve conter uma palavra como "yuki" (neve), "shimo" (geada), "shigure" (chuva, garoa de inverno), entre outras, ou a própria palavra "fuyu" (inverno). 2.2. O haikai em língua portuguesa Por ser a língua portuguesa uma língua de sistema escrito silábico, há uma representação dos sons que se sucedem na palavra. Estes sons são fonemas e, assim, podemos afirmar que esta língua é fonética e não moráica. A divisão silábica poética ocorre com separação das sílabas, mas sem a contagem da última átona e unindo-se as sílabas em que ocorre elisão. Existem várias definições de haikai para os brasileiros. Segundo Goga (1988, p. 3740), há três correntes sobre o haikai. A primeira corrente, defendida por Oldegar Vieira e a maioria dos poetas brasileiros, considera que o haikai deve possuir a "concisão, a condensação, a intuição e a emoção concepções essas geradas pela inspiração no zen-budismo" (GOGA, 1988, p. 37). A segunda corrente, representada por Guilherme de Almeida, atribui à forma uma especial importância. Para ele, a rima deve estar presente no haikai, no qual "o primeiro verso rima com o terceiro" e "na segunda linha rimam a segunda e a última sílabas". A última corrente, defendida por Kiyoshi Takahama e Jorge Fonseca Júnior, considera que o haikai deve conter o kigo japonês. Nesta mesma corrente pode-se acrescentar os trabalhos publicados pelo Grêmio Ipê, organizados por H. Masuda Goga, Teruko Oda e Edson Kenji Iura. Em publicação intitulada "Introdução ao Haicai", o Grêmio Ipê afirma que o haikai brasileiro deve ser breve na forma, simples na linguagem, possuir métrica próxima às dezessete sílabas poéticas divididas em três versos e um kigo da estação do ano. Também deve expressar a sensibilidade do poeta ao captar um instante de transitoriedade. Não deve ser analítico, ma sim buscar a verdade, ou seja, a experiência concreta, a vivência direta da natureza. Para essa corrente, o kigo do poema brasileiro deve ser relacionado às estações do ano do Brasil, que pode não corresponder necessariamente a um kigo japonês. Termos como "acelga", "fogos de artifício", "azaléia", "fogueira", "quentão", "tainha", entre outros, são exemplos de kigo do inverno brasileiro. Portanto, como expomos acima, há diferentes formas de se caracterizar um haikai. Para este trabalho, adotamos o posicionamento mais amplo, isto é, consideramos como haikai a poesia de forma breve, limitada a uma estrofe de cerca de três versos, com conteúdo variado. Feito este primeiro esclarecimento, partiremos para a análise do poema que se segue.

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

255

3. OS HAIKAIS DE PAULO LEMINSKI Paulo Leminski estudou largamente a poesia de Matsuo Bashô e chegou a elaborar uma biografia sobre a vida do poeta japonês e a forma poética do haikai. Também traduziu muitos poemas e elaborou seus próprios haikais, com um estilo próprio. Diferentemente do haikai japonês da Escola de Bashô, o de Paulo Leminski possui forma breve não necessariamente correspondente a dezessete sílabas. Assim, quanto ao plano da expressão, há haikais de Leminski que possuem mais de três versos e versos com número de sílabas poéticas variadas. É possível também encontrar poemas com rimas, aliterações, assonâncias, entre outros recursos poéticos, bem como a presença de títulos. Com relação ao plano da expressão, nem sempre há nos poemas de Leminski o termo sazonal kigo ou o ideal zen budista de iluminação. Essas diferenças de forma e conteúdo entre o haikai de Leminski e o do poeta japonês Matsuo Bashô serão mais bem compreendidas a partir da análise do poema que se segue . acabou a farra formigas mascam restos da cigarra3 É inevitável não se lembrar da fábula de La Fontaine após ler este poema. A relação que este estabelecem com a famosa fábula é chamada de “intertextualidade contextual”. Segundo Barros (2002, p. 143), a análise de textos que constituem o contexto do objeto em estudo permite conhecer os “fatores sócio-históricos constitutivos da enunciação”. Assim, para conseguirmos captar o sentido deste haikai de Leminski, é necessário realizarmos uma leitura da fábula e compará-la com o poema. Na fábula, segundo o programa narrativo da cigarra, é celebrado um contrato com o Destinador “natureza”, para que se mantivesse em conjunção com o objeto de valor “vida”, figurativizado pela “comida”. Dessa maneira, o sujeito “cigarra” deveria ter realizado um fazer de reunir seus alimentos durante o verão, a fim de fazer reservas e sobreviver no inverno. Contudo, este sujeito não o cumpriu, o que fez com que, no inverno, sofresse com o vento frio e com a escassez de alimentos. No momento em que a cigarra foi pedir a ajuda da formiga, esta exerceu a função de anti-sujeito, não fornecendo nada para a cantora. Assim, o sujeito “cigarra” sofreu a sanção negativa, deixando de estar em conjunção com o objeto de valor “vida”. A moral da fábula condena a vadiagem, a dedicação às atividades distintas do trabalho. Apesar de a dedicação à música ser considerada como um trabalho nos dias atuais, a fábula traz uma valorização exclusiva do trabalho como gerador de riquezas. Ela condena também a ociosidade e valoriza o trabalho realizado em conjunto. De acordo com o programa narrativo da cigarra, está representado um momento posterior à sanção realizada pelo Destinador na história original, isto é, está representado no poema um esgotamento da sanção negativa, uma vez que, após encontrar a morte, os “restos” da cantora servem de alimento para o anti-sujeito “formigas”. Por outro lado, segundo o programa narrativo da formiga, temos no poema uma sanção positiva. Se na fábula o sujeito formiga exercera o fazer estabelecido no contrato com o Destinador “natureza” e manteve-se em conjunção com o objeto de valor “comida”, com a morte da cigarra, pôde reunir mais alimento ainda, o que representa uma sanção positiva, com a qual poderá se manter em conjunção com o bem “vida”. Em outras palavras, ao não aceitar o 3

Esse poema está publicado em La vie en close, de Paulo Leminski (1995, p. 174).

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

256

contrato proposto pela cigarra, que havia pedido sua ajuda, além de não ter de dividir seu alimento com esta, ainda recebeu uma sanção positiva do Destinador “natureza”. Desse modo, no haikai analisado, há a representação desta sanção do Destinador à formiga, visto que os restos da cigarra servem de alimento para a formiga sobreviver durante o inverno. A intertextualidade se forma por meio do uso de figuras que fazem parte da isotopia da fábula de La Fontaine. “Formigas” e “cigarra” também estão presentes na fábula, mas a figura “restos” aparece apenas nesta última como uma referência à idéia de morte inevitável pelo exaurimento da sanção negativa presente na fábula. A partir das referências a La Fontaine no haikai, podemos pressupor que este ocorre no inverno, pois é nesta estação que a cigarra sofre com a falta de alimentos e morre. O principal estranhamento que o leitor está submetido se refere à sanção positiva dada às formigas, conforme analisaremos mais adiante. Para a Semiótica Francesa, isotopia é definida como "recorrência de um elemento semântico no desenvolvimento sintagmático de um enunciado, que produz um efeito de continuidade e permanência de um efeito de sentido ao longo da cadeia do discurso" (BERTRAND, 2003, p. 420). Dessa maneira, analisando apenas as isotopias isoladas do poema, podemos afirmar que estão presentes a isotopia da natureza e da cultura. A primeira é formada pelas figuras “formigas” e “restos da cigarra”. A segunda isotopia, a qual chamaremos de isotopia festiva, por sua vez, é formada pelas figuras “farra” e “mascam”. Esta última isotopia permite afirmarmos que tanto a cigarra quanto as formigas são também humanizadas no haikai, tendo em vista que fazer “farra” e “mascar” algo, como o chiclete, são ações próprias do ser humano. Não há no poema uma isotopia do trabalho, como está presente na fábula. Nela, havia uma interpretação moral pela qual se afirma que o trabalho permite a sobrevivência do homem, mas o ócio e a vadiagem não. A palavra “farra” refere-se ao momento vivido pela cigarra durante o verão, no qual esta cantava enquanto as formigas trabalhavam. Segundo o Dicionário Houaiss, esse termo possui como uma das suas acepções a seguinte: “1.momento de diversão ou de comemoração, caracterizado por comportamento eufórico e ruidoso, muitas vezes com danças, canto (...);”. Isso nos permite concluir que a conjunção com o objeto de valor “vida” é eufórica para a cigarra e que a “farra” das formigas representada no haikai corresponde a uma disforia, pois está em disjunção com o objeto de valor “vida”. A mesma relação eufórica existe na conjunção das formigas com os restos da cigarra, como pode ser interpretado pelo emprego do verbo “mascar”. Consoante a definição presente no Dicionário Houaiss, “mascar” pode significar “triturar com os dentes” e “mastigar sem engolir”. Sabe-se que essa não é uma ação necessária ao sistema digestivo ou à alimentação do ser humano, o que nos leva a crer que o homem apenas masca para se entreter com cacoetes, fumo, chiclete, entre outros passatempos. Se associarmos, então, essa atividade à formiga antropomorfizada, podemos concluir que mascar os restos da cigarra consiste em uma “farra” para as formigas, portanto, a conjunção é eufórica. Não se pode deixar também de comparar a extensão do corpo da cigarra e o das formigas. Enquanto a primeira aparece no poema isolada de outras cigarras, as segundas estão representadas em conjunto por meio do emprego do plural. Isso nos permite perceber que o corpo de uma cigarra é bem maior que o de uma formiga, pois é preciso muitas formigas para “mascar” os restos da outra. Ainda que o corpo da cantora seja maior e mais forte que o da trabalhadora, isto não permite que aquela sobreviva. Sendo assim, também é possível encontrar elementos que compõem a moral da fábula de que o trabalho em conjunto, como o das formigas, permite o progresso. O isolamento da cigarra junto com o fato de esta não trabalhar durante o verão fazem com que esta não progrida.

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

257

Pode-se, portanto, verificar, no nível mais profundo de significação deste haikai, a existência de categorias fundamentais vida x morte. A categoria vida está figurativizada pela farra e pelo mascar das formigas, enquanto a categoria morte está figurativizada pelos termos “restos” e pelo verbo “acabou”. Para melhor compreendermos o sentido do haikai, passaremos a dividi-lo em duas partes distintas: a primeira constituída pelo primeiro verso e a segunda, pelos segundo e terceiro. Em “acabou a farra” apresenta-se uma oração composta de sujeito e verbo intransitivo, o que transmite uma mensagem completa. O mesmo não ocorre se isolarmos apenas o segundo verso, pois só há o sujeito e o verbo transitivo direto. Apenas com a junção do terceiro verso ao segundo é que podemos obter uma oração completa composta por sujeito (formigas), verbo transitivo direto (mascam) e objeto direto (restos de cigarra). Portanto, há uma descontinuidade entre a primeira parte e a segunda. O quadro a seguir ilustra a divisão do poema em duas partes: Primeira parte: Segunda parte:

[acabou a farra] verbo intransitivo + sujeito [formigas mascam/ restos da cigarra] sujeito + verbo transitivo + objeto direto

No primeiro verso, a expressão “acabou” indica que a ação (farra) foi encerrada, o que caracteriza o predomínio do aspecto terminativo. Ainda que a oração seja breve e não indique um referencial, com o auxílio da intertextualidade, podemos afirmar que a farra se referia à vida da cigarra. Esta deixou de realizar o fazer imposto pela natureza e recebeu como sanção o fim da farra. Com o uso dessa informação acabada no começo do poema, gera-se uma tensão inicial (retenção), que se desfaz nos dois outros versos. Essa distensão ocorre pela aceleração do fluxo do poema que saiu de uma continuidade da falta de movimento para a instauração deste. Essa aceleração traduz, na ordem espacial, uma abertura e, na ordem temporal, uma parada da parada. Para as formigas, há um percurso narrativo inverso ao da cigarra. Enquanto esta sofre o exaurimento da sanção negativa, as formigas recebem o exaurimento da sanção positiva. E é interessante notar que o objeto de valor a que as formigas entram em conjunção é justamente figurativizado como restos da cigarra, o que relaciona os dois destinos. Como o movimento “mascar” está utilizado no tempo presente do modo indicativo, pode-se ainda perceber que a distensão segue e se estabiliza em uma situação de relaxamento (continuação da continuação). Podemos representar os movimentos do poema no esquema abaixo: Retenção (continuação da parada) Contenção (parada da continuação)

Relaxamento (continuação da continuação) Distensão (parada da parada)

Da distensão ao relaxamento, temos que a aceleração diminui, proporcionando uma continuidade no poema. Além disso, como o sujeito já está em conjunção com seu objeto, nos dois últimos versos, temos que a velocidade da extensão (andamento) é pequena, o que faz

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

258

com que as etapas por que passam os sentidos sejam sentidas de forma mais explícita. Isso justifica o uso do verbo “mascar”, que figurativiza o andamento desacelerado do poema ao atingir o relaxamento. O relaxamento também se evidencia pela presença, no último verso, de apenas uma frase nominal de sentido terminativo, na medida em que o termo “restos” remete ao fim da vida da cigarra. Passemos agora para a análise do plano da expressão do poema e mais adiante procuraremos relacionar os dois planos. Graficamente, o haikai de Leminski é dividido em três versos. O primeiro contém cinco sílabas poéticas, o segundo, quatro, e o último, cinco. Apesar de não ser o maior em quantidade de sílabas, o verso intermediário, visualmente, é o mais extenso em quantidade de sílabas. Vejamos abaixo a escansão do poema: a/ca/bou/ a/ fa/rra for/mi/gas/ mas/cam res/tos/ da/ ci/ga/rra Na escansão destacam-se as sílabas tônicas. Na primeira linha há ocorrência de maior tonicidade na terceira e quinta sílabas. Na linha intermediária, notamos maior tonicidade na segunda e quarta sílabas. Finalmente, apresentam maior tonicidade as primeira e quinta silabas, na última linha. Abaixo segue-se a transcrição fonética do poema, destacando a aliteração dos fonemas /µ/ e /{/. ακαβοωαφα{ φοΡµιγασ µασκα) {ΕστΥσδασιγα{

Podemos notar que /{/ aparece nas palavras “farra”, “restos” e “cigarra”, que estão associadas ao universo da cigarra morta. Essa relação de proximidade entre esses termos é reforçada ainda pela rima final entre as palavras “farra” e “cigarra”. Assim, com essas palavras podemos descrever brevemente o programa narrativo da cigarra na fábula e sua relação intertextual com o poema, como se procura ilustrar a seguir: “farra”

“restos da cigarra”

Se analisarmos a aliteração de /µ/, esta reforça a associação entre “formigas” e “mascam”. Somando a nasalidade da última sílaba deste verbo, nota-se que os sons nasais só ocorrem no segundo verso, onde há uma descrição da performance da formiga. Isso nos permite concluir que a repetição do som /µ/ e a presença da nasalidade podem representar o som do mastigar da formiga. Analisando também a presença das vogais no poema, pode-se notar a presença da vogal “i” apenas nas palavras “formiga” e “cigarra”. Isso reforça ainda a conjunção existente entre o sujeito “formiga” e o objeto de valor “vida”, figurativizado pelos “restos da cigarra”. Outro som que se repete muitas vezes é o /σ/, conforme destacamos abaixo: ακαβοωαφα{ φοΡµιγασ µασκα) {ΕστΥσδασιγα{

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

259

Esse som assemelha-se a um chiado estridente de cigarra que percorre os dois últimos versos do poema, mas com maior freqüência no final. Podemos associar esse fenômeno sonoro com o fluxo do poema que, conforme analisamos anteriormente, parte de uma retenção no primeiro verso, passa por uma distensão e termina em um relaxamento ao final. O esquema que se segue procura melhor ilustrar essas relações entre a forma e o conteúdo:

Retenção (continuação da parada) Primeiro verso: sem /σ/

Relaxamento (continuação da continuação) Terceiro verso: com /σ/

Contenção (parada da continuação)

Distensão (parada da parada) Segundo e terceiro versos: surgimento do /σ/

Na retenção há uma continuidade da não incidência do som /σ/ (continuação da parada), mas esta se desfaz na distensão, com a qual o /σ/ surge (parada da parada). No relaxamento, mantém-se também a presença deste fonema, confirmando a continuidade estabelecida (continuação da continuação). Segundo o isomorfismo afirmado por Hjelmslev, há equivalência das relações nos planos da expressão e do conteúdo, uma vez que este está estruturado de modo formalmente idêntico (amorfo) ao primeiro (BERTRAND, 2003, p.164). Desse modo, pode-se notar que há um isomorfismo, isto é, uma relação de semelhança entre os planos da expressão e do conteúdo. 4. CONCLUSÃO O instante poético consiste na apreensão das oposições, causando o deslumbramento do sujeito. Nesse momento, suspende-se o tempo do mundo natural e passam a vigorar novas referências temporais. Essa nova perspectiva temporal na poesia não deixa de ser uma seqüência de simultaneidades, mas não há mais um posicionamento horizontal, mas sim vertical4. Com o recurso da debreagem ou da embreagem temporal, o tempo do poema pode ser correspondente, respectivamente, ao “não-agora” ou “agora” da enunciação. No poema em análise não temos debreagens temporais enunciativas ou enuncivas, porém, a noção temporal está transmitida pela presença da noção de inverno gerada pela “intertextualidade contextual” e dos tempos verbais no pretérito perfeito e no presente. Com relação à percepção dos elementos do mundo natural, as isotopias contribuem para que cada categoria em oposição seja percebida. Segundo Greimas (2002, p. 30), a ruptura da isotopia (“fratura”) é um elemento que proporciona a apreensão estética. Por exemplo, no haikai analisado, há a isotopia da natureza, composta pelas figuras “formigas” e “cigarra”, e a isotopia da cultura, composta pelas figuras “farra” e “mascam”. Observa-se que a atribuição do verbo “mascar” às “formigas” gera um estranhamento, bem como o fato de um ser pequeno, como uma formiga, comer um maior, como a cigarra. 4

“Em suma, tudo quanto nos aparta da causa e da recompensa, tudo quanto nega a história íntima e o próprio desejo, tudo quanto desvaloriza ao mesmo tempo o passado e o futuro, encontra-se no instante poético” (BACHELARD, 2007, p. 104).

Cad. Pesq. Grad. Letr., v. 1, n.1, jan-jun, 2011. p. 252-260

260

Desse modo, a apreensão do efeito poético no haikai analisado consiste no encontro dos opostos. No nível mais profundo, podemos afirmar que há uma oposição entre categorias fundamentais vida x morte. Já no nível discursivo, a oposição reside na confrontação das isotopias e figuras. REFERÊNCIAS BARROS, D. L. P. Teoria do Discurso: fundamentos semióticos, 3. ed. São Paulo: Humanitas, 2002. BERTRAND, D. Caminhos da Semiótica Literária. Tradução do Grupo CASA. Bauru: EDUSC, 2003. BLYTH, R.H. Haiku. Vol. I, II, III e IV. Tokyo: The Hokuseido Press, 1976. DOI, E. T. O Papel da Sílaba e da Mora na Organização Rítmica do Japonês. Orientação da Profa. Dra. Maria Bernadete Marques Abaurre. UNICAMP, Instituto de Estudos da Linguagem, 1997. FRANCO, F.M. de M.; HOUAISS, A.; e VILLAR, M. de.S. Dicionário Houaiss, 1a. reimpressão com alterações. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2004. GOGA, H. M. O Haicai no Brasil. Tradução: José Yamashiro. São Paulo: Oriento, 1988. GREIMAS, A. J. Da Imperfeição. Tradução: Ana Cláudia de Oliveira. São Paulo: Hacker, 2002. LEMINSKI, P. La vie en close. 5a. ed. 1a. reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1995. PERRONE-MOISÉS, L. Inútil Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SAUSSURE, F. de. Curso de Lingüística Geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, 24 edição. São Paulo: Cultrix, 2000.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.