Hannah Arendt e as desavenças com a historiografia de seu tempo.pdf

May 23, 2017 | Autor: Marion Brepohl | Categoria: Political Theory, Historiography, Hannah Arendt
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Hannah Arendt e suas suspeitas ao método histórico: excelência da ação1

Marion Brepohl UFPR

Ao aceitar o convite para participar neste evento, que celebra os 50 anos de publicação do livro A condição Humana, proponho-me a “ler” Arendt como historiadora, ou mais livremente, em suas reflexões sobre a escrita da História. Creio que em diversos livros, e no caso de A condição Humana em especial,

a

História

e

a

discussão

sobre

a

História

são

questões

permanentemente presentes e provocadoras aos próprios historiadores. Senão vejamos: no mesmo período em que Origens do Totalitarismo, A condição Humana, Eichmann em Jerusalém e Ensaios sobre a revolução estão sendo escritos, a historiografia francesa, após a descoberta da importância das mentalidades coletivas, a partir da geração Braudel,2 redireciona suas atenções para o estruturalismo e a História Econômica; a historiografia alemã, por sua vez, encontra-se submersa no historicismo e sua compreensão da história como ação evolutiva do espírito; e, a historiografia marxista se vê envolta com a preocupação de identificar leis de caráter econômico como quadros referenciais de interpretação. Neste quadro, Arendt assume outras perspectivas. Primeiro, ela recusa o entendimento da história como processo, cujos fins sejam mensuráveis pela ciência do comportamento; e, o mito das origens, com o qual se estudava, por exemplo, o anti-semitismo. Ainda, o desaparecimento do sujeito em virtude das pesadas estruturas que condicionariam ou mesmo subordinariam a consciência. 1

Palestra apresentada originalmente no evento “A condição humana; 50 anos”. Curitiba, UFPR, 2008. Sobre a “viragem” da Escola de Annales a partir de Fernand Braudel, ver: ARIÈS, P. A história das mentalidades. In: LEGOFF, J. A história nova. Lisboa: Martins Fontes, 1998. 2

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Segundo, onde historiadores positivistas ou marxistas viam o passado como atraso a ser superado, ela sinaliza, inspirada em Walter Benjamin, que o passado enquanto tradição oculta, pode iluminar o presente. Para tanto, vale-se do exemplo da palavra política, uma invenção ateniense do século V a.C, que inspira, orienta e sugere formas de convívio na esfera dos negócios humanos para o estímulo ao debate e à liberdade do pensar e do agir. Por isso, propõe a metáfora de que determinadas experiências históricas podem ser representadas como pérolas que aguardam o pescador – no caso, o historiador, para trazê-las à superfície.3 Esta noção, que pode ser compreendida como “modelo exemplar”, não é somente tributária de Benjamin, mas também do conceito de tempo messiânico judaico-cristão, ou o kairòs, donde seu elogio à Revolução como experiência fundadora.4 Finalmente, dentre outras contribuições à História, cite-se a atenção que ela confere às paixões, aos sentimentos e às sensibilidades no atuar político. Quando a maioria dos historiadores interpretava os processos históricos como exclusivamente movidos pelo pensamento organizado, a que denominavam ideias ou, quando nestes se depositava algum sonho, identificava-se, na melhor das hipóteses, o calor de utopias irrealizáveis, Arendt colocará em evidência sentimentos coletivos que tornaram possíveis o anti-semitismo,5 o racismo e a veneração ao líder, acontecimentos tão ou mais importantes do que ideias, doutrinas e instituições. Mas não somente os sentimentos reativos e irracionais: assinale-se o conceito por ela desenvolvido de Felicidade Pública, ao analisar a revolução americana, ou o sentimento de rebeldia, próprio dos outsiders no

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ARENDT, Hannah. Walter Benjamin. in: Homens em tempos sombrios. São Paulo, Cia das Letras, 1987. p.176. Neste mesmo texto, ela menciona que mesmo no mundo moderno, em que o passado é recorrentemente questionado, ao menos na linguagem, o passado está contido de forma ineliminável, Cita como exemplo, a polis grega, que continuará presente no fundo de nossa existência política, no fundo do mar, enquanto nós utilizarmos a palavra política. 4 ARENDT, Hannah. Da revolução. Brasílila, EDUNB, 1996. 5 Sobre o anti-semitismo, destaque-se o cultivo do ódio aos judeus especialmente no caso Dreyfuss. A este respeito, ver: ANSART, Pierre. Hannah Arendt e a obscuridade dos ódios públicos. In: DUARTE, A., LOPREATO, C. e BREPOHL DE MAGALHÃES, M. (orgs). A banalização da violência; a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumarà, 2004. p. 17-34.

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moldar da arte engajada e da ética da resistência,6 e – o mais notável, em minha opinião, a expressão coeur inteligent – para apontar a necessidade da sensibilidade para o agir com sentido, o agir de maneira sensata.7 Por outro lado, ou seja, conquanto o valor que ela atribui à História, pelo menos nas leituras que realizei, as escolas históricas que prevaleciam nos anos cinqüenta e sessenta pouco foram citadas por Arendt. Segundo Anette Vorwinckel,8 isso se deve, muito provavelmente, pelo fato de Hannah ter colocado sob suspeita todas as tentativas de se estabelecer normas, regularidades, leis ou relações de causa-efeito para explicar a História, o que era exatamente o que se praticava no território da historiografia de sua época – e aí vejo uma tremenda semelhança entre Fernand Braudel, as tendências marxistas e a historiografia que se produziu a partir das ciências do comportamento. Por história ela compreende a ação – uma ação qualquer que acometa a vida dos homens e que se deixe contar pela História. Não se trata de uma concepção ingênua de boa ação, de fazer o bem. Arendt compreende que em toda a ação, encerra-se não um bem ou um mal, mas um bom para e um mau para, pois nossa condição humana de pluralidade evoca um espaço público necessariamente agônico.9 Aí já encontramos mais uma discordância com a historiografia de seu tempo. Onde historiadores entendiam as elites como lugar dos opressores, dos falsos heróis - e isto se traduzindo como “o político”, geralmente confundido com o poder institucional - Hannah confere uma conotação positiva ao poder. Claro está, não ao poder individualista e solitário dos tiranos ou dos intelectuais, nem o poder gerado pela necessidade – eu o chamaria, na falta de uma outra designação, talvez o poder dos revoltados/ ressentidos, mas ao 6

ARENDT, H. La tradition cachée. Paris, PUF, 2001. ARENDT, H. Da violência. In: Crises da República. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 37 8 VORWINCKEL, A. Geschichtsbegriff und Historisches Denken bei Hannah Arendt. Wien: Böhlau, 2001. 9 Esta ação, móbil da História, não pode ser reduzida ao espaço público institucional, pois ela não se deixa aprisionar , seja num partido político ou no Estado; muitas vezes, é totalmente independente de tais instâncias ou a elas contrária. 7

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poder que deriva da vontade livre, quer quando concebida como liberdade de escolha, quer como liberdade de começar algo novo, 10 e que se exerce, segundo o que escreve em seu Denktagbuch,11 no plural, no atuar, na cena pública. Se a história coincide com o acontecimento, se o acontecimento não é determinado (por leis a serem descobertas), necessário (ou seja, o seu contrário seria impossível), ou teleológico (fenômeno concentrado em um objetivo previamente estabelecido), se um acontecimento pode ser provável ou assemelhado a outro, mas jamais idêntico (conforme sugere a teoria da regularidade),12 se ele pode ser desejado mas não previsível (vis – à – vis o repertório emocional que leva os homens à ação), o acontecimento não pode jamais ser redutível às relações de causa e efeito, sob pena de se criar verdades a serem seguidas ao arrepio da liberdade.

A História como histórias

Para melhor compreender o conceito de História em Arendt, bem como de seus possíveis desdobramentos para a historiografia, gostaria de citar, à moda da autora, dois exemplos – modelos exemplares, que têm como cenário uma mesma região: a África do Sul. O primeiro exemplo me vem inspirado nos comentários da própria autora, na segunda parte de Origens do Totalitarismo – Imperialismo a expansão do poder. Quando ela procura identificar elementos de cristalização que tornaram possível o nazismo, realiza um rápido percurso sobre a experiência dos boeres, um grupo social que, a partir do século XVII, vai se deslocar, gradativamente, da cidade do Cabo – onde vendia carne e legume para comerciantes que rumavam à Índia – para o interior da África. E nesta interiorização, ia encontrando e escravizando o povo nativo, que vivia num estágio tribal, o que 10

ARENDT, H. Vida do espírito, Rio de Janeiro, Relume Dimarà, 1999. p. 210 Denktagbuch – 1950-1973. München/ Zürich: Piper, 2003. 2 volumes p. 37 12 VORWINCKEL, op. cit. p.50 11

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Arendt designou como grupos sociais pré-históricos ou pós históricos – vale dizer, ou que desconheciam qualquer forma de civilização, ou aqueles que, em virtude de uma catástrofe, retornaram ao estado da horda . Seja como for, viviam próximos do estado da natureza, isto é, não dominavam a natureza, antes eram dominados por ela. Quanto aos boeres, não havia entre eles qualquer organização comunitária, não tinham qualquer estrutura política. Neste sentido, viviam tão ilhados e tão sem ação quanto os povos das tribos. Carregavam, em suas migrações, um modus vivendi até então inusitado: valer-se do trabalho escravo para não realizar rigorosamente nada. Ainda, segundo Arendt, para os negros, por sua vez, aqueles brancos representavam, em princípio, uma deidade superior e o único governo que passaram com eles a experimentar. Tal governo lhes obrigava a obedecer por meio do arbítrio e da violência. Naquele território não se gerava riqueza, nem artefatos, apenas produtos para suas necessidades básicas. Esse desprezo pelo trabalho e pelo labor resultou, inclusive, numa total falta de ação – no sentido de criações artísticas, culturais e intelectuais. É curioso que, do ponto de vista artístico ou histórico, naquele região somente tenham aparecido, e mesmo assim, apenas no século XX, três museus; em 1902, 0 Museu etnográfico; em 1910, o Museu militar e, em 1920-30, finalmente, o Museu histórico, cuja representação fundadora é a chegada do branco, também conhecida como a Grand Treek (grande viagem), ocorrida em 1834, quando se celebra então a fundação da História da África do Sul.13 Presenciamos aí um mundo sem ação, sem trabalho, sem criação, sem História. Tanto boeres como povo nativo, vivendo sob o estado da natureza. Um mundo que só alteraria seu curso com a chegada dos ingleses (1870) e dos aventureiros em busca de ouro e diamante (produtos que também propiciam o dolce fare niente), mas cuja presença abalaou aqueles latifúndios de escravocratas comandados por “uma raça de senhores”. 13

FERRO, M. O livro negro do colonialismo. São Paulo: Record, 2004. p. 554-555.

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Agora, o segundo exemplo, que me obriga a um salto cronológico, todavia necessário para não me estender demais: A Comissão de Verdade e Reconciliação, instaurada após a ascensão de Nelson Mandela ao cargo de presidente da república na África do Sul. Como sabemos, os negros iniciaram a resistência política à dominação dos brancos desde a fundação deste país. Sem direito a participar da administração, sem ter voz no Parlamento, os negros, sob a inspiração Gandhi , que viveu de 1893 a 1914 na África do Sul, iniciaram um processo de resistência pacífica e decidiram formar o Congresso Nacional Africano (African National Congress) em 1912, com o intuito de defender seus direitos e encontrar mecanismos para formar sua própria união nacional. Conforme Cristina Lopreato, Com o fim da 2a. guerra mundial, caiu por terra a idéia de superioridade branca e um novo conceito de direitos e de dignidade humana surgiu no cenário pós-guerra. A África do Sul instituiu o apartheid como doutrina nacional na contramão da história, talvez porque, naquele momento, o mundo não se importasse com ela e nem ela com o mundo. Era um país recolhido sobre si mesmo.14

Assiste-se, assim, a representação de um racismo de Estado, de um racismo biológico e centralizador que, como observa Foucault, exercer-se-á a prática de uma sociedade “contra si mesma, contra seus próprios elementos... um racismo interno – o da purificação permanente – que será uma das dimensões fundamentais da normalização da sociedade”.15

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LOPREATO, C. O outro como semelhante: alteridade ubuntu e a reconciliação racial sul-africana. in: MARSON, I. , NAXARA, M. & BREPOHL, M. Figurações do outro. Uberlândia: EDUFU, 2009 p. 208. 15 FOUCAULT, Michel. Genealogia del racismo. s/d, p. 57. (Tradução da autora)

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Mas, a partir da década de 70, e, principalmente, com a morte do líder estudantil Steve Biko, os alicerces do apartheid foram abalados. A comunidade internacional passou a pressionar o regime segregacionista com sanções econômicas. Internamente, a população negra iniciou uma onda de greves e boicotes. O Conselho das Igrejas da África do Sul, que congregava as igrejas multirraciais, presidido desde 1978 por Desmond Tutu, pregou a desobediência civil às leis segregacionistas por serem estas contra as leis de Deus que se resumem em duas: amar a Deus e amara ao próximo.16 Com a libertação em 1989 de Nelson Mandela, encarcerado por 27 anos, o que se tornou lenda para aquela sociedade, uma nova era na África do Sul, teve seu início: o da negociação para a mudança do regime, cujo momento mais inovador do ponto de vista político foi a assim denominada Comissão da Verdade e Reconciliação. O arcebispo Desmond Tutu ficou ao encargo da presidência desta comissão, e defendeu a necessidade de entendimento como uma forma de evitar a vingança e, de reparação como freio à retaliação e de unbutu contra a vitimização. Ao mesmo tempo, rejeitou a anistia branca aos colaboradores do regime de opressão. Composta por 17 membros com diversidade de raça, credo, idade e gênero, presidida por Tutu, para estabelecer o mais completo quadro possível das causas, natureza e extensão da violação dos direitos humanos cometidos no período de março de 1960 a maio de 1994, avaliar os pedidos de anistia, recomendar medidas de reparação e apresentar propostas para prevenir futuras violações dos direitos humanos.17

Para muitos, esta forma de transição política não fez senão apagar diversos crimes políticos perpetrados pelo regime do apartheid; que as 16 17

TUTU, Desmond. The rainbow people of God. 1996, p. 171. (Tradução minha) LOPREATO, C. op. cit, p. 212

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reparações foram ínfimas em face dos danos causados por séculos; que muitas das desigualdades sociais, ainda presentes na África, são incontornáveis e isso não foi contemplado pela mencionada Comissão. Não vou me deter nesses comentários, de resto, muito procedentes de per se. Quero me deter numa ação pouco observada aí, que é também um sentimento necessário para a continuidade da ação: conforme Arendt, a ação do perdão. Não o perdão que deriva de um sentimento intimista, o afeto individual por “um outro individual” que nos faz esquecer ou relevar o erro, algo que regula nossas relações familiares e amorosas. Refiro-me às reflexões de Hannah Arendt sobre o perdão encerradas num trecho de A condição Humana, que iluminam a perspectiva da análise histórico-política sobre o perdão. Para Hannah Arendt, o perdão é o corretivo necessário para os danos inevitáveis resultantes de uma ação que causou dor e sofrimento ao outro. Na concepção arendtiana, o perdão é uma ação e esta requer um relacionamento, expressão da condição humana de pluralidade, de presença do outro. É um freio à vingança e remove a barreira que impede o relacionamento. O perdão, que também é um acontecimento, foi introduzido no mundo, conforme Arendt, por Jesus de Nazaré,18. Para ele, o perdão não era apenas um poder divino, mas um poder que deve ser mobilizado pelos homens entre si..., mais radicalmente ainda, deve-se perdoar - setenta vezes sete - porque afora o mal intencional, que é mais raro do que as boas ações, o pecado, como erro humano, reflete-se na política.

O pecado, evento cotidiano, decorrência natural do fato de que a ação estabelece constantemente novas relações numa teia de

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ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1983. p . 250

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relações e precisa do perdão, da libertação, para que a vida possa continuar.19

Feitos estes comentários sobre dois exemplos radicalmente diferentes, a total inação e a ação do perdão, pretendo, para concluir, retornar ao tema que está sendo objeto de minhas reflexões para este encontro: a excelência da ação. A ação e o acontecimento como História No ensaio O conceito de História – antigo e moderno,20 Arendt não disfarça sua preferência pelo conceito clássico de História, ele mesmo, um evento apresentado como de notável importância. No texto intitulado Walter Benjamin,21 deixa mais explícita outra fonte de inspiração para suas reflexões sobre a história: o conceito que se traduz pela noção de “modelo exemplar”, a qual já comentamos. Seja no texto Walter Benjamin, seja no texto O conceito de história: antigo e moderno, as metáforas e citações empregadas por Arendt nos apontam para uma discordância fundamental em relação à historiografia europeia de sua época: primeiro, a recusa à noção de tempo linear, em favor da identificação do passado como um tempo que é evocado ou assalta o tempo presente, precisamente num momento de perigo.22 São fragmentos, não continuidades; são rupturas, e não causalidades. É exemplar, e não experiência gasta. São imagens que emergem e submergem, mas não desaparecem para sempre, como Bergson ilustrou a partir da figura de um cone, com o objetivo de evidenciar que a memória é coextensiva à consciência.23 Segundo, crítica à transformação da História em sinônimo de avanço das forças produtivas ou de progresso, pois 19

ARENDT, idem, p. 252 In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 43-126. 21 In: Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. p. 133-176. 20

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Sobre o assalto do ou recorrência ao passado no momento de perigo, ver: ARENDT, H. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 33 et seg. 23 BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 125 e ss.

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com isto se reduziria o homem à categoria de peça de engrenagem de uma máquina infernal, movida pela lógica da fabricação, e não da ação. Ainda, em O conceito de história – antigo e moderno, relembra que o tema da História entre os gregos é o extraordinário – que provoca um rasgo, uma interrupção na monótona e repetitiva vida biológica, própria do ritmo cíclico da natureza. E o extraordinário só podia ser realizado pela ação humana, termo que na língua grega deriva da palavra nascimento ou fundação. Já no moderno conceito de História, elaborado a partir dos séculos XVI e XVII, e que coincide com a ascensão das Ciências Naturais, e com elas, a crença de que somente a experimentação seria o aval para a confirmação da verdade,24 abandona-se a diferenciação entre o mundo humano e o da natureza. Resulta daí, conforme Arendt, que a própria História foi associada ao progresso técnico, quer pelas correntes positivistas, quer pelas correntes marxistas. Assim procedendo, os interessados em História desqualificam o passado, entendendoo como processo a ser superado, e se servem da História para prever o futuro. E desqualificam também o sujeito da ação, uma atividade política por excelência, creditando à tecnologia o principal móbil para o avanço das sociedades. Com isso, a ação (por natureza imprevisível e indeterminada) cede lugar, na maioria das análises, ao comportamento, cuja previsibilidade e controle são inclusive celebrados pelos cientistas políticos funcionalistas ou pelos psicólogos behavioristas. Isso sem contar com os procedimentos metodológicos e técnicos da História Demográfica, da História Econômica, e mesmo de uma História política que se deixa orientar por métodos demoscópicos. Refiro-me também a estudos sobre o cotidiano e a vida privada, que chegam ao elogio do homem sem ação, como um indivíduo que recusa a ou escapa da interferência dos poderes oficiais, numa clara confusão do público com o estatal.

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O conceito de história antigo e moderno, p. 86

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Parece-nos claro que a autora não ignora a importância da tecnologia no fazer da história no mundo contemporâneo, tampouco ignora as armadilhas das histórias oficiais, que não raramente são transformadas em instrumentos de propaganda da política. Seu estudo não é uma denegação romântica do mundo urbano-industrial em favor de um retorno idílico ao mundo tradicional, ou um desdém à história do homem ordinário. Trata-se, segundo nosso entendimento, de colocar em relevo o acontecimento e de trazer à luz o(s) sujeito(s) da ação, notadamente, aqueles que não sucumbiram ao peso das estruturas (cadeias) de causalidade. Tampouco ela ignora os riscos da inação, tanto é assim que confere grande importância aos boeres, tanto quanto às massas apáticas que apoiaram o nacionalsocialismo. O acontecimento é, para a autora, aquele que torna a ação relevante. E quem o faz é principalmente a História. Salvar um acontecimento e afirmá-lo como documento/monumento. Significa, a um só tempo, iluminar o presente obscurecido por nossas perplexidades e testemunhar sobre um fato que pode contribuir para transformar o mundo. Isso não significa uma posição neutra e desprovida de engajamento político por parte do historiador, ou seja, uma posição idealizada deste intelectual como produtor de verdades. Mas de alguém que elege (e não o faz sozinho) um acontecimento como digno de ser narrado. Trata-se de depor como uma testemunha, e não de ditar sentenças, como um juiz. Assim procedendo, o historiador prestaria, com seu trabalho, um testemunho sobre aquilo que ele ouviu e viu, não a partir de uma experiência vivida (como na figura d´O narrador, de Walter Benjamin25), mas através dos documentos que incitam sua imaginação e que o leva a perguntar, como uma criança de sete anos na idade dos porquês – aquilo que efetivamente aconteceu, porque foi assim e não de outra maneira, para distinguir, enfim, o certo do errado, 25

O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskow. In: Obras escolhidas; magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 197 e ss.

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o belo do feio.26 . Segundo Arendt, isso pode impedir catástrofes, ao menos para mim mesmo27 .

26

ARENDT, Hannah. Pensamentos e considerações morais. In: A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumarà, 1993. p. 168. 27 Idem, p. 168.

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