Hannah Arendt e o evento totalitário como cristalização histórica. In: Odilio Alves Aguiar; César Barreira; José Carlos Silva de Almeida; José Elcio Batista. (Org.). Origens do Totalitarismo: Cinquenta anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, v. , p. 61-70.

June 5, 2017 | Autor: André Duarte | Categoria: History, Totalitarianism, Hannah Arendt
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“Hannah Arendt e o evento totalitário como cristalização histórica” André Duarte



Hannah Arendt tornou-se mundialmente famosa com sua análise do fenômeno totalitário em As Origens do Totalitarismo, publicada em 1951, obra reconhecida atualmente como um clássico da reflexão política contemporânea. A exemplo do que se passa com toda a produção da autora, também este é um livro marcado por teses polêmicas e inventivas, tais como a sua definição dos traços comuns ao nazismo e ao estalinismo, procedimento que, de saída, punha em xeque as fronteiras tradicionais entre o pensamento político de direita e de esquerda. Não bastasse isso, acrescente-se ainda o fato de que vários pressupostos teóricos importantes para a sua adequada compreensão permanecem implícitos e como que escondidos do leitor ao longo de três grandes volumes, o que apenas multiplica os mal-entendidos e as controvérsias que o caráter original e provocativo do pensamento arendtiano freqüentemente suscita. De fato, em momento algum Arendt explica o método bastante inusual empregado na sua reconstituição das origens do totalitarismo, nem sequer esclarece em que sentido a noção de origem é empregada ao longo do texto, falha que ela própria viria a reconhecer ao afirmar que “uma das dificuldades do livro é a de que ele não pertence a nenhuma escola e quase não utiliza quaisquer dos instrumentos oficialmente reconhecidos ou controversos”.

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Isto significa

que é preciso aprender a reconhecer o método e os critérios do pensamento arendtiano ali mesmo onde eles não se mostram com tanta evidência, tarefa para a qual cabe tomar como referência fundamental os textos nos quais Arendt formulou suas reflexões imediatamente posteriores à publicação de As Origens do Totalitarismo, muitas delas dedicadas a um esclarecimento dos problemas metodológicos suscitados pela obra. Não é de se estranhar, portanto, que várias questões polêmicas tenham marcado a recepção de sua primeira obra, sobretudo em relação aos critérios historiográficos que orientaram a sua composição. Seyla Benhabib, por exemplo, a despeito de considerar o inegável brilhantismo da obra, observou que, para além de todas as dificuldades e

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problemas postos pela sua análise das origens do totalitarismo nazista, Arendt não teria sequer traçado satisfatoriamente as origens do totalitarismo stalinista, o que acarretou no evidente desequilíbrio da obra e a expôs a toda sorte de críticas.2 Essa objeção traz em seu âmago ainda outras, tais como: em que sentido o anti-semitismo e o imperialismo são pensados como as origens do totalitarismo em sua variante nazista? Como compreender a analogia entre os fenômenos do nazismo e do estalinismo, dado que as origens históricas da Alemanha de Hitler não são exatamente as mesmas da União Soviética de Stálin? E ainda: se é possível retraçar as origens do totalitarismo, em que sentido Arendt pôde afirmar que tal fenômeno estabelecera uma ruptura na história ocidental, instaurando-se como evento inédito e sem precedentes? Para esclarecer a essas questões faz-se preciso discutir a concepção arendtiana da historiografia subjacente à sua análise do fenômeno totalitário. A discussão destas questões metodológicas tornará evidente que a sua peculiar visão da história e de seus eventos está profundamente marcada por seu confronto com o fenômeno totalitário em sua particularidade específica, isto é, enquanto evento de ruptura. Por certo, cabe reconhecer que o livro realmente padecia do evidente desequilíbrio metodológico apontado por Benhabib, e que Arendt estava consciente disso. Para ela, uma verdadeira análise dos “elementos totalitários do marxismo” teria trazido conseqüências que ela julgou indesejáveis para uma obra como As Origens. No seu texto de justificativa do projeto enviado à fundação Guggenheim, entre 1951-52, logo após a publicação daquela obra, Arendt afirmava que o referido desequilíbrio metodológico fora deliberado, pois ela não quisera enfatizar naquela investigação o “único elemento que tem atrás de si uma tradição respeitável, cuja discussão requer a crítica de algumas das principais convicções da filosofia política ocidental – o Marxismo”.3 Por um lado, ela temia que a ênfase na investigação deste componente tradicional do totalitarismo estalinista acabasse por enfraquecer a “originalidade chocante do totalitarismo, o fato de que suas ideologias e métodos de governo foram totalmente sem precedentes e que suas causas desafiaram as explicações adequadas nos termos históricos usuais”. Por outro, ela também sabia que o confronto com o marxismo a levaria a um confronto com certos elementos teóricos da própria tradição do pensamento político ocidental, o que expandiria demasiadamente o campo de suas preocupações naquele livro. Aliás, foi no curso deste projeto de pesquisa

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que sua reflexão política ganhou novos rumos, passando a confrontar a tradição do pensamento político ocidental que culminara em Marx e no seu emprego perverso na União Soviética de Stálin. Afinal, se Arendt não concordava com a condenação simplista do pensamento de Marx enquanto responsável direto pelo totalitarismo estalinista, ela também não podia deixar de perceber que a terrível atualidade do seu pensamento tinha que ver com o fato de que ele pôde ser “utilizado e mal-utilizado” por aquela nova forma de governo. Tais problemas não se lhe impunham em relação à análise dos elementos históricos antecessores do nazismo, pois, como ela o afirmara já desde um texto de 1945, intitulado “Para Abordar o Problema Alemão”, “o nazismo começara sem qualquer base tradicional, e seria bom perceber o perigo desta negação radical de toda tradição que foi o seu traço principal desde o começo”.

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O que ela pretendera enfatizar, desde então, é que o

totalitarismo nazista, distintamente do caso soviético, nada tinha que ver com as tradições alemãs ou mesmo ocidentais, o que, por sua vez, não significava a impossibilidade de buscar no passado os elementos históricos que aí se cristalizaram, o que foi empreendido com a sua pesquisa sobre o anti-semitismo e o imperialismo. Entretanto, o aspecto verdadeiramente relevante para a compreensão dos pressupostos metodológicos da sua abordagem do totalitarismo em sua dupla variante, nazista e estalinista, encontra-se ainda em outro lugar: em sua peculiar noção de evento. Como veremos, esta é a chave para respondermos às questões propostas anteriormente, em torno das quais este texto se estrutura. Em suas reflexões no ensaio “Compreensão e Política”, de 1953, ela afirmava que “[u]m dos principais problemas que o evento põe para o historiador, por sua própria natureza, é o de que a sua significação parece sempre não apenas diferente, mas também maior do que os elementos que o compõem e do que as intenções que trouxeram à luz a cristalização”. 5 Em outros termos, para Arendt os eventos políticos são concebidos como fenômenos políticos singulares, capazes de mudar “súbita e imprevisivelmente a fisionomia inteira de uma dada era”, pois trazem consigo a novidade e o mistério de algo novo que pôde ter ocorrido sem que tivesse sido necessário.5 Surge aqui um tema que permanecerá caro à autora em toda a sua obra: a recusa do determinismo e a justa avaliação da contingência histórica, para além dos quais não se pode considerar adequadamente o fenômeno da liberdade inerente ao agir humano, que é por definição

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imprevisível e ilimitado. O que, no entanto, de modo algum significa que o campo da história não possa ser investigado seriamente, como se quaisquer conclusões pudessem ser extraídas do exame do passado. Por outro lado, a conseqüência historiográfica mais imediata destas considerações arendtianas é a de que a tarefa do historiador não se reduz apenas à reconstituição passada das origens, mas também consiste em “detectar o novo inesperado com todas as suas implicações em qualquer período dado, trazendo à luz o pleno poder de sua significação” 6. Neste caso preciso, o reconhecimento de que todo evento instaura uma ruptura para com seu passado levava Arendt a considerar a brecha existente entre a descrição analítica das origens do totalitarismo e a própria descrição analítica do evento totalitário. Compreende-se assim porque Arendt pôde estabelecer sua analogia estrutural entre o bolchevismo e o nacional-socialismo, para além das incontáveis diferenças existentes entre os elementos pregressos que se cristalizaram naqueles dois fenômenos: para ela, os verdadeiros eventos políticos sempre excedem em significação a soma de todos os elementos que constituem suas respectivas origens. Assim sendo, o que importa ressaltar é que, a despeito de seu título verdadeiramente equívoco, o qual parecia sugerir uma análise genética das causas que teriam necessariamente levado à constituição do fenômeno totalitário, em As Origens do Totalitarismo Arendt pretendeu estabelecer os traços que, vistos a posteriori pelo investigador, “oferecem um relato histórico dos elementos que se cristalizaram no totalitarismo”. 7 Seu objetivo foi o de reconstruir em um grande afresco histórico toda uma trama de acontecimentos passados, os quais só se tornaram origens de algo futuro uma vez conflagrado o evento presente. Para Arendt, não se pode deduzir de quaisquer elementos passados as causas necessárias de explicação do evento totalitário, no sentido de que eles tinham inexoravelmente de produzi-lo. Ela estava ciente de que o anti-semitismo e o imperialismo estiveram presentes em diversos países europeus que não viram o surgimento do totalitarismo, bem como sabia que eles não estiveram presentes na União Soviética de Stalin na mesma medida em que no caso alemão, o que não a impediu de caracterizar o estalinismo como uma forma representativa da dominação totalitária. Tratava-se de reconstruir uma trama de acontecimentos passados tomando como ponto de partida a irrupção iluminadora de um evento presente, pois apenas numa tal visada retrospectiva os

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elementos históricos do passado poderiam aparecer como origens de um fenômeno futuro, sem que tivesse de ser estabelecida entre ambos qualquer relação de necessidade: “[o]s elementos do totalitarismo compõem as suas origens se, por origens, não entendemos ‘causas’. Elementos, por si mesmos, nunca causam nada. Eles tornam-se as origens do evento se e quando eles subitamente cristalizam-se em formas fixas e definidas”. 8 Como se percebe, a historiografia arendtiana do totalitarismo é orientada por duas premissas fundamentais: por um lado, é o evento em sua cristalização presente que ilumina o seu passado, permitindo que se encontrem as suas origens; por outro, todo evento instaura uma ruptura em relação ao passado, na medida em que traz ao mundo uma nova constelação de significações sem precedentes, a ponto de se afirmar que “[a] novidade é o campo do historiador, que lida com eventos que acontecem apenas uma vez, distintamente do cientista natural, que se ocupa com acontecimentos que sempre se repetem”.9 Compreende-se então em que sentido Arendt pensou o anti-semitismo e o imperialismo como as origens do totalitarismo em sua variante nazista: eles só puderam ser pensados como origens a partir do momento em que o próprio passado recebeu sua devida iluminação derivada do súbito acontecimento de algo novo e inédito na história ocidental: a fabricação em massa da morte de milhões de seres humanos. Assim, foi tomando como ponto de referência a política de extermínio levada a cabo nos campos de concentração que Arendt pôde atribuir um novo sentido a certas condições sociais precedentes, entre as quais enumero as seguintes: a conversão do anti-semitismo tradicional e religioso de mero preconceito social em um potente combustível para a discriminação política legalizada, na medida em que, a partir de meados do século 19, o anti-semitismo passou então a referir-se à figura do judeu em geral, independentemente de suas atitudes particulares. A identificação, por parte da sociedade civil, entre os judeus e o aparelho do estado-nacional durante o século dezenove, daí resultando que estes foram tomados como alvos preferenciais dos conflitos entre sociedade e estado. A ilusão social de que os judeus eram poderosos politicamente, ao passo em que não tinham poder efetivo ou qualquer articulação política própria. A própria autocompreensão dos judeus assimilados, que assumiram sua identidade em termos de um conjunto de características naturais inatas, o que em muito favoreceu a idéia do seu extermínio como solução viável para lidar com a

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questão judaica. Visto retrospectivamente, o expansionismo imperialista do final do século dezenove pôde ser considerado como gerador de condições que foram levadas ao paroxismo nos regimes totalitários, tais como a decadência do estado-nação e de suas estruturas institucionais; a definição da conquista global de territórios fundada na expansão em nome da expansão como padrão de governo; o racismo como justificativa biológica da dominação de povos; o uso da burocracia como instrumento de dominação política dos povos conquistados, etc. Todos estes fatores contribuíram decisivamente para o sentimento de uma crescente superfluidade dos seres humanos, a qual se agravou durante e após a Primeira Guerra Mundial, que trouxe os fenômenos do desemprego generalizado, da inflação descontrolada e o grande deslocamento geográfico de massas humanas que se viram privadas de um “lugar no mundo”, pois destituídas de cidadania, de propriedade privada e de função econômica. Ora, tudo isto equivale a dizer que As Origens é um livro que pode ser lido de trás para diante, bem como um livro cujos três volumes assumem uma curiosa relação de unidade e independência entre si. Isto é o mesmo que afirmar que toda escrita do passado é simultaneamente escrita do presente, e vice-versa.

Esta relativa autonomia existente entre as suas análises do racismo, do imperialismo e do próprio totalitarismo é expressa por Arendt em sua ênfase no caráter súbito da cristalização totalitária, aspecto que remete à sua crítica da categoria de causalidade, pensada como totalmente “alheia” e “falsificadora” no âmbito das ciências históricas.10 A fim de esclarecer o sentido desta recusa, que em nada se compromete com um irracionalismo metodológico inócuo, como o afirmou Luc Ferry, podem-se estabelecer algumas comparações entre o modo como Arendt e Benjamin pensaram a tarefa do historiador.11 Para o Benjamin das Teses sobre a História, um texto que sobreviveu à morte de seu autor pelas mãos de Arendt, tanto quanto para ela mesma, a tarefa do historiador não pode ser concebida em termos da mera descoberta de um “nexo causal entre vários momentos da história” a partir da descrição positivista dos acontecimentos históricos. Ou seja, o historiador tem de recusar a tentação de assumir-se como “o ‘profeta virado para trás’”, segundo a bela expressão de Schlegel que Arendt gostava de citar, já que ele não pode recorrer ao próprio acontecimento para efetivamente provar que ele tinha necessariamente de ocorrer tendo em vista seus elementos históricos precedentes. A este

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respeito, portanto, Arendt concordava fundamentalmente com o pensamento benjaminiano, para o qual “nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”.12 Essa concordância básica também pode ser entrevista na tese arendtiana de que “[n]ão apenas o sentido efetivo de cada evento sempre transcende qualquer número de ‘causas’ passadas que possamos atribuir a ele (basta apenas pensar na disparidade grotesca entre ‘causa’ e ‘efeito’ em um evento como a Primeira Guerra Mundial), mas esse mesmo passado só vem a ser com o evento em si mesmo. Apenas quando algo irrevogável aconteceu podemos tentar traçar sua história para trás”.13 Arendt não submete a investigação histórica a rígidos esquemas causais na exata medida em que uma tal orientação teórica acabaria por “ocultar e (...) nos fazer esquecer a nudez brutal dos fatos, das coisas mesmas como elas são”, entregando ao esquecimento o que deveria ser o tema da reflexão política.14 O historiador, em sua narração dos eventos do passado, não se limita a um mero exercício de erudição, pois sabe que “a realidade é diferente da totalidade dos fatos e ocorrências, é mais que essa totalidade, a qual, de qualquer modo, é inaveriguável”. 15 Em suma, o que importava a Arendt não era o passado enquanto tal, mas a possibilidade de narrar determinadas experiências políticas do passado de modo a transformá-las em cristalizações que revelassem o sentido das manifestações políticas cruciais do presente, encontrando assim correspondências sintomáticas entre passado e presente. A crítica arendtiana ao conceito de causalidade histórica traz consigo, também, a sua desconfiança em relação ao princípio fundamental que vem orientando o procedimento das ciências a partir dos tempos modernos, isto é, o “de omnibus dubitandum est de Descartes”, máxima em torno da qual se articulou a moderna desconfiança em relação à evidência dos sentidos na busca da verdade e do conhecimento, bem como a idéia de que os homens têm de voltar sua atenção para aquilo que eles próprios são capazes de fabricar ou produzir. Para a autora, derivou-se daí o impulso assumido pela moderna descoberta da história e da consciência histórica, a qual se deveu não a uma consideração da grandeza e significação intrínsecas dos feitos e sofrimentos humanos, mas originou-se da crença de que a história era compreensível apenas porque ‘feita’ pelos homens. A partir do instante

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em que os historiadores assumiram para si os pressupostos teóricos que deram origem ao imenso desenvolvimento das ciências naturais, também a moderna compreensão da história passou a privilegiar o que não aparece como fundamento do mundo das aparências. Ou seja, a sua crítica do conceito de causalidade nas ciências históricas visa chamar a atenção para a tendência moderna de compreender a causalidade como se ela fosse uma força ou uma corrente subterrânea, invisível, em relação à qual o evento singular deixaria de ser um fenômeno significativo em si e por si mesmo, isto é, aquilo que resplandece e ilumina a si mesmo e a seu passado, para tornar-se mero epifenômeno de um processo mais amplo.16 Evidentemente, Arendt não descartava a idéia de que todo evento histórico tem suas causas, mas contestava a tendência, subjacente ao conceito moderno de história, a extrair o sentido dos acontecimentos históricos da descoberta de uma essência supra-histórica. O que ela recusa, portanto, é a concepção moderna da história enquanto totalidade cujo sentido se desdobra em processos dotados de uma lógica própria, condição teórica fundamental das modernas filosofias da história, as quais subsumem os eventos históricos em sua particularidade significativa a um fundamento invisível, porém inteligível, do mundo das aparências. Disso resultou que na modernidade a história tornou-se aquilo que ela jamais fora antes, pois ela deixou de ser pensada como constituída de feitos humanos cuja ‘estória’ mereceria ser contada, para ser pensada como um ‘processo’ que atua sobre os homens e determina o que eles fazem, pouco importando se este processo é pensado em termos do progresso da humanidade no curso da contínua realização do espírito absoluto, do desenvolvimento das forças produtivas e da luta de classes que lhe acompanha, ou da irrevogável decadência decorrente do moderno processo de secularização, etc.17 Em qualquer dos casos, trata-se sempre de forças sobre-humanas e invisíveis, ‘objetivas’, para além das quais o evento particular vê-se privado de sentido.18 O problema dessa concepção moderna da história como processo é o de que ela implica a dissociação entre o “concreto e o geral, a coisa ou o evento singulares e o significado universal. O processo, que torna por si só significativo o que quer que porventura carregue consigo, adquiriu assim um monopólio de universalidade e significação”.19 Em contraposição à moderna compreensão de uma história universal dotada de sentido próprio, Arendt formulou a metáfora da luz emanada pelo fenômeno histórico, a

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qual ilumina tanto seu passado quanto a própria ocorrência presente. Para ela, “é a luz do próprio evento que nos permite distinguir os seus próprios elementos concretos de um número infinito de possibilidades abstratas, e é ainda essa mesma luz que tem de nos guiar de volta para o passado, sempre vago e equívoco, destes mesmos elementos”.20 Em seu ensaio sobre “O Conceito de História, Antigo e Moderno”, de 1958, Arendt retomaria a metáfora da luminosidade emanada do evento histórico e a definiria como o traço distintivo da historiografia antiga em relação à moderna, visto que, contrariamente a esta, aquela fora capaz de conceber o evento político como manifestação singular dotada de sentido, explicitando então o princípio que orientara a sua própria reflexão política: “(...) as Historiografias grega e romana, por mais que difiram uma da outra, dão ambas por assente que o significado ou, como diriam os romanos, a lição de cada evento, feito ou ocorrência, revela-se em e por si mesma. Isso decerto não exclui seja a causalidade, seja o contexto em que alguma coisa ocorre; a Antigüidade tinha consciência desses fatores tanto quanto nós. No entanto, causalidade e contexto eram vistos sob a luz fornecida pelo próprio evento, iluminando um segmento específico dos problemas humanos; (...) Tudo que era feito ou acontecia continha e revelava a sua quota de sentido ‘geral’ dentro dos confins de sua forma individual, não necessitando de um processo envolvente e abrangente para se tornar significativo”.21 Em sua análise do fenômeno totalitário, Arendt pretendeu justamente preservar a “luz natural” que todo evento histórico encerra em si mesmo, para o quê era necessário contar a sua estória sem permitir que seu sentido fosse dissolvido no âmbito de quaisquer categorias preconcebidas. Foi seguindo esse procedimento que a autora logrou caracterizar a dominação totalitária como um fenômeno de ruptura, o que, por sua vez, em nada contradizia seu projeto de elucidação das suas origens históricas. Arendt explicitou claramente este princípio historiográfico que orientara sua pesquisa em sua resposta a Eric Vögelin, que criticara As Origens do Totalitarismo em resenha publicada na Review of Politics, em 1953. Vögelin afirmara que Arendt perdera de vista a origem essencial do totalitarismo, que, segundo ele, teria de ser pensada por meio da referência ao agnosticismo da época moderna, por ter se concentrado excessivamente na análise das estruturas fenomênicas do próprio evento. Em sua resposta, Arendt devolve-lhe a crítica ao acusá-lo

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de tratar as diferenças factuais como se elas fossem produtos menores derivados de alguma “essência unitária” que lhes seria subjacente. Referindo-se à sua concepção de que o totalitarismo seria apenas a radicalização de uma crise moderna iniciada com o processo de secularização, do qual também resultaram o liberalismo, o positivismo e o pragmatismo, Arendt afirmava que a busca de afinidades entre o totalitarismo e as demais tendências da história política e intelectual do ocidente tivera como resultado a presente incapacidade de apontar a qualidade própria e distinta da dominação totalitária. Arendt conclui seu argumento afirmando que são justamente as diferenças fenomênicas que permitem distinguir o totalitarismo de todas as demais formas de governo ditatorial e de todos os movimentos políticos conhecidos até então, de modo que apenas a sua reconstituição factual poderia fornecer a chave de sua própria essência. Por isto, Arendt afirmava proceder a partir dos “fatos e eventos, e não a partir de afinidades e influências intelectuais”, a despeito dela também se interessar pelas “implicações filosóficas e mudanças na auto-interpretação espiritual” de uma época. 22 Esta sua concepção do trabalho historiográfico tem uma dupla implicação no que diz respeito aos seus propósitos em As Origens do Totalitarismo. Por um lado, ela expressa um aspecto importante da concepção arendtiana da história ocidental e de seus principais eventos, os quais não são pensados como resultantes necessários do desenvolvimento de certas idéias, correntes ou tendências do pensamento, muito embora a autora também se preocupasse com a identificação de correspondências sintomáticas entre certas práticas e idéias professadas generalizadamente em cada período histórico. Assim, a sua reflexão a respeito da ruptura da tradição tem de ser referida a certos eventos políticos determinados e ao desencadeamento de suas conseqüências desastrosas, e não simplesmente relacionada à mera inversão de um conjunto tradicional de idéias. É nesse sentido que se deve compreender o corolário de sua análise do fenômeno totalitário: “A originalidade do totalitarismo é horrível não porque uma nova ‘idéia’ veio ao mundo, mas porque suas próprias ações constituem uma ruptura com todas as nossas tradições; elas claramente explodiram nossas categorias de pensamento político e nossos critérios de julgamento moral. Em outras palavras, o próprio evento, o fenômeno que tentamos – e que devemos tentar – compreender, nos privou de nossas ferramentas tradicionais de compreensão”. 23

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Por outro lado, entretanto, Arendt não pretendeu apenas e tão somente resguardar a particularidade específica do evento totalitário enquanto evento de ruptura, mas também, e justamente por meio da reconstituição factual de suas origens, vislumbrar aqueles traços histórico-políticos que sobreviveram ao colapso dos regimes propriamente totalitários: “O perigo que o totalitarismo põe diante de nossos olhos – e este perigo, por definição, não será superado meramente com a derrota dos governos totalitários – se origina do desenraizamento (rootlessness) e do desabrigo (homelessness), que poderiam ser chamados os perigos da desolação e da superfluidade”.

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Seu temor era o de que o totalitarismo

podia funcionar como um exemplo privilegiado para a ‘solução’, entre muitas aspas, dos problemas derivados da superfluidade política e social de massas humanas tornadas descartáveis, porque destituídas de proteção legal, de interesse comum e de qualquer função social rentável. Assim, a vitória sobre os regimes totalitários de Hitler e Stalin parecia-lhe insuficiente para nos por a salvo do processo de desumanização levado ao seu extremo nos campos de concentração. Daí porque ela concluísse sua primeira grande obra com extrema lucidez, advertindo-nos para o risco de que “as soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação, a qual surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica segundo um modo digno do homem”. 25 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Comunicação apresentada no Colóquio Nacional 50 ANOS DE A ORIGEM DO TOTALITARISMO DE HANNAH ARENDT (MEDO, MORTE E ESPERANÇA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO), realizado na Universidade Federal do Ceará entre os dias 5 e 6 de junho de 2001. 1 Cf. a coletânea de ensaios e escritos de Arendt organizada e editada por Jerome Kohn: (1994) Essays in Understanding, NY, Harcourt-Brace, p. 402. Para uma discussão em pormenor da análise arendtiana do totalitarismo, refiro meu livro: O Pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. RJ, Paz e Terra, 2000. ∗

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Segundo Benhabib, “... quaisquer que sejam os méritos deste conceito [totalitarismo] para nos ajudar a compreender este último tipo de sociedades [União Soviética de Stálin], há pouca dúvida de que a consideração histórica de Arendt não ilumina o estalinismo e o nazismo na mesma extensão e da mesma forma. Enquanto poderia ser argumentado que há mais unidade entre as experiências do imperialismo, antisemitismo e o conseqüente triunfo do nacional socialismo, estes dois fenômenos, quer dizer, o imperialismo e o anti-semitismo moderno, não desempenham o mesmo papel hermenêutico-formativo na emergência do estalinismo”. Cf. Benhabib, Seyla: “Hannah Arendt and the redemptive power of narrative”, reimpresso in Hannah Arendt: Critical Essays, org. L.P. Hinchman e S.K. Hinchman, SUNY Press, 1994, pp.134-135. 3

Cf. Arendt, H.: “Project: Totalitarian Elements in Marxism”, página 012649 dos Papéis de Arendt na Biblioteca do Congresso, Washington. 4 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 108.

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Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 325. Em outra passagem, Arendt afirma que “cada evento na história humana revela uma paisagem inesperada de feitos humanos, sofrimentos e novas possibilidades que, em conjunto, transcendem a soma total de todas as intenções desejadas e a significação de todas as origens”. Idem, p. 320. 5 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 325. 6 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 320. 7 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 402-3. 8 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 325, minha ênfase. 9 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 318. 10 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 319. 11 Cf. Ferry, L.: Philosophie et Politique, Paris, PUF, volume 2, 1984, p. 14 e sgts. 12 Cf. Benjamin, W.: “Sobre o conceito de história” in (1986) Walter Benjamin: Textos Escolhidos, vol. 1, Magia e Técnica; Arte e Política, SP, Brasiliense, Apêndice 1, p. 232. Benhabib (op. cit.) também ressalta a extrema proximidade existente entre Arendt e Benjamin. 13 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 319-20. 14 Cf. Arendt, H.: (1975) “Retour à l’envoyer”, trad. francesa de E. Adda, A. Calon, D. Don e A. Enégren, do original “Home to Roost, a Bicentennial Address”, in (1989) Penser l'Événement, Paris, Belin, p. 256. 15 Cf. Arendt, H.: Entre o Passado e o Futuro, SP, Perspectiva, 1979, p. 323. 16 Em A Condição Humana, Arendt afirmará que a grande inversão que está na base das ciências modernas, históricas ou naturais, é a de que “em lugar do conceito de Ser, encontramos agora o conceito de Processo. E se é da natureza do Ser aparecer e assim revelar-se, é da natureza do Processo permanecer invisível, algo cuja existência pode apenas ser inferida da presença de certos fenômenos” Cf. Arendt, H.: A Condição Humana, RJ, Forense Universitária, 1981, p. 309, tradução modificada. 17 Segundo Arendt, “[n]a época moderna a história emergiu como algo que jamais fora antes. Ela não mais se compôs dos feitos e sofrimentos dos homens, e não contou mais a ‘estória’ de eventos que afetaram a vida dos homens; tornou-se um processo feito pelo homem (...)” .Cf. Arendt, H.: Entre o Passado e o Futuro, op. cit., p. 89. 18 Para a autora, “o historiador, contemplando retrospectivamente o processo histórico, habituou-se tanto a descobrir um significado ‘objetivo’, independente dos alvos e da consciência dos atores, que ele é propenso a menosprezar o que efetivamente aconteceu em sua busca por discernir alguma tendência objetiva” Cf. Arendt, H.: Entre o Passado e o Futuro, op. cit., p. 124. 19 Cf. Arendt, H.: Entre o Passado e o Futuro, , op. cit., p. 96. 20 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 325. Daí porque Arendt afirme que a adesão cega ao conceito de causalidade nas ciências históricas implica negar a própria desta ciência. O problema não diz respeito ao conceito de causalidade histórica enquanto tal, mas se esconde na aplicação irrefletida “de categorias gerais para o curso total dos acontecimentos (...), ou na busca de tendências gerais que seriam supostamente as ‘camadas mais profundas’ das quais os eventos emergem, e das quais eles são os sintomas acessórios. Tais generalizações e categorizações extinguem a ‘luz natural’ que a própria história oferece e, do mesmo modo, destroem a estória real, com a sua distinção única (...) No quadro das categorias preconcebidas, dentre as quais a de causalidade é a mais crua, os eventos, no sentido de algo irrevogavelmente novo, não podem acontecer”. Idem, p. 319-20. 21 Cf. Arendt, H.: Entre o Passado e o Futuro, , op. cit., p. 96. Vários anos mais tarde, no início dos anos setenta, as mesmas concepções seriam retomadas, agora no contexto de sua discussão da filosofia política de Kant. Aqui, ela afirmaria que o espectador grego observava o “cosmos do evento particular em seus próprios termos, sem relacioná-lo a qualquer processo mais amplo do qual ele poderia ou não tomar parte. Ele ocupava-se de fato com o evento individual, com o ato particular. (...) Seu sentido não dependia nem de causas nem de conseqüências. A estória, uma vez

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chegada a seu fim, continha todo o sentido. Isso também é verdade para a historiografia grega, e explica porque Homero, Heródoto e Tucídides podem conceder ao inimigo vencido o que lhe é devido.” Cf. Arendt, H.: Lições sobre a Filosofia Política de Kant, RJ, Relume-Dumará, 1993, p.73. 22 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 405. 23 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 309-10. 24 Cf. Arendt, H.: Essays in Understanding, op. cit., p. 360. 25 Arendt, H.: O Sistema Totalitário, Lisboa, Ed. Dom Quixote, 1978, p. 569.

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